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resenha
O Kant de Anthony Kenny: leitura e
análise em busca dos problemas de Kant
Klaudinei Luis Engelmann1
KENNY, A. Uma nova história da filosofia ocidental: o despertar da filosofia moderna. 1. ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2009. v. 3
Kant é um autor difícil, temos que reconhecer. A forma com que ele assentou cada
“pedrinha” de sua argumentação, lugares e relações escolhidos, formou castelos teóricos que,
para muitos, na realidade são verdadeiras fortalezas cujas chaves, se existem, se encontram nas
mãos de uns poucos privilegiados. Essa dificuldade, no entanto, não é uma exclusividade de
Kant. Outros autores, e a filosofia como um todo, compartilham da mesma fama. Todos os
anos, novas publicações são entregues ao público com o fim de auxiliar no estudo da filosofia,
tais como comentários, coleções, histórias da filosofia, compêndios etc. Muitas delas, no entanto, não colaboram efetivamente e, por fim, o estudante se vê submerso em uma enxurrada de
materiais quase sempre tão ou mais obscuros que os autores que pretendem elucidar.
Dois livros precisam ser apresentados para que este trabalho possa ser entendido. O
primeiro é de Mario Porta2, A filosofia a partir de seus problemas, que está ligado à forma como
devemos estudar filosofia e determinado autor. Para Porta (2001, p. 15), grande parte das
dificuldades usuais no estudo da filosofia deve-se a não entender o “problema” do qual se
está tratando. Para ele, a compreensão do problema de que trata certo autor não apenas é importante ou deve fazer parte de seu estudo, mas deve “constituir o núcleo essencial, o eixo,
tanto do ensino quanto da aprendizagem da filosofia. Não é possível ‘entender’ filosofia
se não se entende o ‘problema’ abordado por um filósofo” (PORTA, 2002, p. 15). Iremos
esclarecer melhor este ponto mais adiante. O segundo livro (na realidade uma coleção de
quatro volumes) é Uma nova história da filosofia ocidental, de autoria de Anthony Kenny.3
A cada um desses livros nos dirigimos por motivos relativamente diferentes. Ao
primeiro, com o objetivo de entender e assimilar a visão do autor. Ao segundo, com o
óbvio objetivo de conhecer melhor a história da filosofia, motivados, principalmente, pela
estrutura proposta por Kenny em seu trabalho4. Entretanto, a leitura de Kenny não pare-
1
Mestrando em filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de filosofia e ensino religioso no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). E-mail: [email protected]
2
Mario Ariel González Porta é professor de filosofia para a graduação e pós-graduação no Departamento de
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em filosofia pela Universidade de Münster, 1989,
com sua tese sobre o neokantismo. Em seu pós-doutorado estudou Cassirer.
3
Anthony Kenny é doutor em filosofia pelo St. Benet’s Hall da Oxford University, 1961. Ensinou em várias
universidades e atualmente é presidente do Royal Institute of Philosophy.
4
Kenny nos três primeiros capítulos de cada volume desenvolve uma apresentação cronológica dos
pensadores de cada período. Em seguida, passa a uma abordagem temática. No caso do terceiro volume:
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cia tão esclarecedora quanto esperávamos. À medida que seu estudo de ambos os livros se
desenvolvia, podíamos notar que a proposta de um poderia ser a explicação das dificuldades para a compreensão do outro. Passamos a entender que algo essencial5, o problema,
“o núcleo essencial da filosofia”, poderia estar desfocado ou mesmo ausente.
Assim, idealizamos este trabalho com o objetivo de avaliar algumas exposições
de Kant feitas na obra de Anthony Kenny, e notar em que medida os problemas foram
focados para a exposição. Não é nosso objetivo produzir uma “crítica” à obra de Kenny
ou pontuar como uma história da filosofia deveria ser escrita – embora em alguns momentos acabemos transmitindo tal impressão. Estamos conscientes de que nem Porta
nem Kenny propuseram uma história escrita da filosofia a partir de seus problemas,
embora isso nos pareça muito desejável.
Os procedimentos para o desenvolvimento de nosso trabalho são muito simples.
Vamos iniciar sistematizando brevemente o papel do problema para o desenvolvimento
da filosofia. O objetivo aqui é que o leitor não familiarizado com o livro de Porta possa
ter o mínimo de compreensão do lugar que o problema deve ocupar no estudo e ensino da filosofia. Em seguida, passaremos à análise de três trechos da obra de Kenny6, a
saber: 1) a seção biográfica de Kant; 2) a seção dedicada a Kant no capítulo “conhecimento”; e 3) a seção dedicada a Kant no capítulo “ética”. Estes trechos serão esboçados
de forma que sua estrutura fique suficientemente visível e possa ser criticada. Embora
inevitavelmente breves comentários possam ser feitos durante o esboçar das seções
escolhidas, concentraremos as críticas individualmente após cada seção. E seguiremos
com uma crítica geral antes das considerações finais.
Assim, precisamos perguntar7: em que medida as três seções selecionadas foram
relacionadas por Kenny aos problemas de Kant? Estão as teses de Kant apresentadas em
sua relação com estes problemas, com seu caráter de solução?
O lugar do problema na filosofia
Segundo Mario Porta (2002, p. 26), “quando não há problema tampouco há filosofia”.
De início, sua afirmação não soa muito agradável. A frase impõe que o que quer que estejamos fazendo, lendo ou escrevendo com a pretensão de ser filosofia corre o risco de não sê-la,
de perder a identidade, a existência como tal, se estiver destituído do problema. Para ele, “o
núcleo essencial da filosofia não é constituído de crenças tematicamente definidas e racionalmente fundadas, senão de problemas e soluções” (PORTA, 2002, p. 25). Há um vínculo
conhecimento, física, metafísica, mente e alma, ética, filosofia política e Deus.
5
Sabemos que dificuldades na compreensão da filosofia podem estar ligadas a muitas outras causas que podem ir
desde uma mera falta de atenção, passando por dificuldades no domínio das questões gramaticais da própria língua,
posse ou não de pressupostos necessários, e chegando mesmo a nossas próprias crenças (PORTA, 2002, p. 57-59).
6
Estamos nos dedicando especificamente ao volume três de sua coleção Uma nova história da filosofia ocidental e as
três seções correspondem às páginas 1) 123-132; 2)184-187; 3) 297-301.
7
Reconhecer que as perguntas postuladas carecem de objetividade, mas as consideramos úteis para
orientar nosso estudo.
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muito estreito entre como a filosofia se constitui e o problema. A necessidade de envolver o
problema na práxis filosófica funde suas raízes na própria natureza daquilo que a filosofia é.
O problema deve e pode ser sugerido, na base tanto da leitura quanto da produção
textual. Para Mario Porta, focando o estudo da filosofia, podemos dizer que independente de
quem seja o filósofo, de sua formação ou período, devemos começar perguntando: “qual é o
problema por ele proposto?” Talvez também seja necessário perguntar “por que o formula da
presente forma?” Então devemos ler sua filosofia como resposta a este problema. “Isso vale
para qualquer filósofo, sem exceções” (PORTA, 2002, p. 26). Somente dentro desse programa
o texto filosófico, com sua fama de impossível leitura, pode ser realmente compreendido.
Os escritos dos filósofos devem ser vistos dentro de uma tradição, de um fluxo
de reflexões e em suas interconexões nesse devir. Um intenso diálogo se desenvolve nos
bastidores do cenário intelectual, e sem atentar para estes bastidores não poderemos nos
“apoderar” de determinado texto. Entretanto, nem sempre os filósofos (desta tradição,
deste fluxo) evidenciam seus problemas como nós gostaríamos que o fizessem. Ainda que
ele o faça, raramente deixa suficientemente claro como ele se constitui (PORTA, 2002, p.
85). Muitas vezes, uma reconstrução8 do problema de nossa parte será necessária.
Reconstruir o problema [de um autor] é momento imprescindível de sua compreensão.
Problema compreendido é sempre problema “reconstruído”. Esta reconstrução é
mais necessária que a da tese e do argumento. Se estes podem ser lidos no texto, o
problema, por regra geral, tem de ser reconstruído a partir dele (PORTA, 2002, p. 86).
Não é possível entender um autor se não formos capazes de fixar seu problema.
No processo problema/solução, a solução só faz sentido na medida mesma em que se
apresenta em relação a um problema. De outra forma, passa a ser apenas doutrina, uma
nova opinião em que aquele filósofo difere de outro; e as soluções são lidas sem seu caráter de resposta, o que cria uma compreensão superficial do movimento filosófico.
É certo que podemos fazer da “história da filosofia” uma cronologia, uma mera
sucessão de nomes e obras; que isso é filosoficamente irrelevante e cumpre, no melhor
dos casos, uma função informativa, está fora de dúvida. […] Toda “história da filosofia”
só é história da filosofia […] por ser filosófica (PORTA, 2002, p. 79-80, grifo do autor)
Para ser filosófica precisa lançar suas raízes nos problemas. Se a ideia condutora
tanto do estudo da filosofia quanto do estudo do texto filosófico contém um vínculo tão
estreito com o problema, não é forçoso indicar que uma história da filosofia deveria privilegiar a mesma perspectiva. Se não é possível entender filosofia a não ser que se entenda o
problema abordado por um filósofo, tão pouco é possível entender a história da filosofia
se esta não se desenvolve em ligação com o devir dos problemas filosóficos.
Em seu livro o professor Mário Porta esclarece o que quer dizer por reconstrução racional e reconstrução histórica do problema (PORTA, 2002, p. 85-90).
8
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Estudar filosofia não é possuir um conjunto de “saberes” a respeito do autor. Posso
ter muitos “saberes” sobre Kant, Hegel ou Wittgenstein (saber, por exemplo, que
Kant afirma que espaço e tempo são intuições, que Hegel nega a existência das
coisas em si, ou que Wittgenstein defende a teoria pictórica da proposição) e, não
obstante, não ser capaz de fixar o problema desses autores; nesse caso, apesar de
todos os meus esforços, simplesmente não os entendi (PORTA, 2002, p. 27).
Uma história da filosofia que prescinda do problema facilmente se torna um
amontoado de saberes, saberes que ficarão flutuando no ar da ignorância, que somente
poderiam fazer sentido quando postos em relação à pergunta para a qual são reposta,
ao problema para o qual são solução.
Assim, duas novas perguntas podem ser acrescentadas àquelas feitas no fim de
nossa introdução: 1) quanto “espaço” é dedicado à reconstrução dos problemas de Kant?
2) que tipo de reconstrução sua estrutura lógica parece sugerir?
Análise de três seções
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Passaremos agora à análise das três seções escolhidas para este trabalho. Seguiremos a ordem encontrada no livro de Kenny, mas não há qualquer motivo especial para
essa sequência. Vamos começar pela seção biográfica intitulada “Kant”; em seguida
vamos lidar com a seção “O a priori sintético de Kant” no capítulo sobre conhecimento;
e, finalmente, nossa atenção vai se voltar à seção “Kant sobre a moralidade, o dever e a
lei” no capítulo sobre ética.
Análise da seção biográfica
Esboço da seção
Os dois primeiros parágrafos9 são dedicados a uma breve apresentação de sua vida.
Logo nas primeiras linhas lemos que a vida de Kant foi “a história de suas ideias”, o que
parece ser uma justificativa ao pouco espaço dedicado à biografia de Kant. Nestes dois parágrafos vida e costumes são rapidamente apresentados. As informações mais recorrentes
sobre sua pontualidade, vida religiosa e de estudos são apontados em poucas linhas. Kant
era discípulo de Wolff; foi Privatdozent, ensinava lógica e metafísica embora seus primeiros
livros não tenham sido sobre filosofia, mas ciências.
Kenny passa (§ 3) ao período pré-crítico. Kant se dedica seriamente ao estudo da filosofia e seus primeiros escritos são do tipo cauteloso. Kenny se refere a dois livros do mesmo
ano de 1762: um sobre a silogística tradicional e outro com o título O único possível fundamento
para uma demonstração da existência de Deus – escritos “no espírito de Wolff e Duns Scotus”.
Em seguida (§ 4-5), Kenny desenvolve os prelúdios das críticas, embora ele
mesmo não faça ligação entre estes escritos e elas. O concurso da academia de Berlin
e o trabalho não premiado de Kant são mencionados, mas nenhuma sugestão de que
Para facilitar nosso trabalho enumeramos os parágrafos do texto de Kenny a partir do primeiro de cada seção
numerando cada parágrafos por menores que fossem e considerando citações recuadas como parágrafos.
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sementes de sua crítica poderiam estar germinando, ou de que havia um problema
se desenvolvendo sobre as verdades metafísicas. Mesmo as ideias do trabalho (não
premiado) de Kant são esboçadas, mas nada, além disso, é feito. Nenhuma conexão
ou preparativo para esclarecer o espírito da época.
Antes de passar para o período crítico, há ainda que se falar sobre Hume e de
seu sono dogmático. Sono de anos em que Kant “aceitara a filosofia de Leibniz e Wolff ”. Podemos adiantar que nem aqui, nem mais adiante este despertar reaparece para
esclarecimentos. Somente é dito que gradualmente Kant tornou-se cada vez mais cético
em relação a uma metafísica científica. O “Espectrus de um oráculo” em que Kant, na
esteira de Hume, enfatiza que as relações causais somente podem ser conhecidas por
meio da experiência e não por necessidade lógica é mencionado. Antes de passar para
o período crítico, naturalmente, a tese de 1770 é mencionada se afirmando sobre ela
que “ainda revela forte influência de Leibniz” (KENNY, 2009, p. 125). Kenny dedica
os parágrafos seis a vinte e três para uma descrição dos escritos relacionados à Crítica
da razão pura. O parágrafo seis apresenta três publicações: a primeira (1781) e a segunda
(1787) edição da Crítica da razão pura e os Prolegomenos a qualquer metafísica futura (1783).
Segundo Kenny (§ 7), o objetivo de Kant em sua filosofia era “tornar a filosofia,
pela primeira vez, totalmente científica”. Matemática e física já haviam alcançado a vida
adulta, mas a metafísica “ainda estava muito longe da maturidade”. Ele pergunta: “Mas
poderia a metafísica tornar-se uma verdadeira ciência?” Nada mais é dito. Nenhuma relação é feita entre as três disciplinas. E Kenny prossegue (§ 8) falando sobre o “programa
kantiano” que vai culminar na revolução copernicana. “Em vez de indagarmos sobre
como nosso conhecimento poderia se adequar a seus objetos, deveríamos partir da suposição de que os objetos deveriam se conformar a nosso conhecimento.” A revolução
copernicana fica bem desvinculada de seu motivo no texto de Kenny.
Em seguida (§ 9), Kenny pontua as distinções a priori/a posteriori e sintético analítico,
para chegar ao fim do parágrafo à pergunta pelos juízos sintéticos a priori. Então (§ 10-23)
passa a seguir por divisões e subdivisões feitas por Kant em sua Crítica até chegar à dedução
das categorias. A divisão sentidos/intelecto e a subdivisão do intelecto em entendimento/
razão. A “experiência tem um conteúdo, fornecido pelos sentidos, e uma estrutura, determinada pelo entendimento”. Assim, quando divorciada da experiência a razão é pura.
Cada item da Crítica é comentado em suas possíveis divisões e subdivisões. Lógica transcendental, estética transcendental, analítica transcendental e dialética transcendental, dedução das categorias e sistema dos princípios. Aqui já estamos no parágrafo
13. Sobre a dedução das categorias (§ 14) é dito que Kant apresenta dois exemplos de
conceitos fundamentais (“causa” e “substância”) conceitos sem os quais, nas palavras
de Kenny, “não poderíamos conceituar ou entender nem mesmo a mais fragmentária e
desordenada experiência” (KENNY, 2009, p. 128).
“A segunda seção da analítica, o sistema de princípios, contém várias proposições
sintéticas a priori sobre a experiência.” Nesse parágrafo (§ 15), Kenny apresenta a crítica
de Kant a Hume. Hume errava ao pensar que primeiro percebemos a sucessão temporal
entre eventos e então passamos a tomar um como causa e o outro como efeito. Quando
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na verdade não podemos estabelecer uma sequência temporal objetiva a não ser que já
tenhamos uma relação causa e efeito estabelecida.
Mas (§ 16) o entendimento sozinho não pode estabelecer sua própria verdade.
Tudo que alguém pode estabelecer a priori é que se a experiência for possível, certas
condições deverão prevalecer. Kenny comenta então as antinomias apontadas por
Kant em três exemplos (psicologia, cosmologia e o um ser necessário) “testados até a
destruição” em sua dialética transcendental.
Depois da exposição, Kenny reconhece: “A Crítica da razão pura não é um livro de
fácil leitura”, Kant “estava excessivamente empenhado na invenção de termos técnicos e
[…] era muito ansioso para adequar as ideias em rígidos esquematismos” (KENNY, 2009,
p. 130). Programa que ele mesmo seguiu bem de perto.
No parágrafo 24 encontramos a passagem para uma nova temática. “Aos 60 anos,
Kant voltou sua atenção para a ética e a estética.” Ainda neste parágrafo três livros são
listados: 1) a Fundamentação da metafísica dos costumes, de 1785; 2) a Crítica da razão prática, de
1788; e 3) a Crítica do Juízo, de 1790. Obras que postulam os dois grandes temas que vão
ocupar os oito últimos parágrafos da seção biográfica de Kant, moral e estética.
O ponto de partida para a teoria moral de Kant (§ 25) é que a única coisa que seria
boa incondicionalmente é a boa vontade. Uma boa vontade é a vontade motivada pelo
dever. Agir por dever é agir por respeito à lei moral, um imperativo moral. Dois tipos de
imperativos são então apresentados: o hipotético e o categórico; e duas formulações do
imperativo categórico são apresentadas. Da segunda formulação, tratar o ser humano com
um fim em si mesmo, surge a ideia de reino dos fins. No entanto, a ideia não é desenvolvida.
Uma nota de rodapé na página 131 nos tranquiliza: “A filosofia moral de Kant é discutida
detalhadamente no capítulo 8 deste volume.” Mas enhuma referência à problemática subjacente à teoria ética é feita, nada senão uma rápida exposição da teoria moral.
Finalmente, a terceira crítica toma seu lugar (§ 28). Nelas Kant busca aplicar o tipo
de análise que fez nos conceitos científicos e éticos. Juízos de gosto estéticos repousam
sob sentimento, e, no entanto, reivindicam validade universal. Os dois parágrafos que
finalizam a seção apresentam os últimos escritos (1793 – Religião nos limites da simples razão;
1795 – Sobre a paz perpétua; 1798 – Conflito das faculdades; e, 1797 – Metafísica dos costumes) se
explica seus conteúdos e a lápide de Kant.
Crítica à seção
Embora a seção pretenda ser uma apresentação biográfica de Kant, o texto como
um todo segue uma orientação bibliográfica, com esclarecimentos sobre o conteúdo dos
principais livros. Na altura do parágrafo sete, em que Kenny apresenta “o objetivo de
Kant em sua crítica”, a matemática, a física e a metafísica são colocadas em pauta, mas
apenas para dizer que a metafísica não havia alcançado a maturidade das outras duas.
Kenny não relaciona as disciplinas para formular o problema – simplesmente pergunta:
“poderia a metafísica tornar-se uma verdadeira ciência?” (KENNY, 2009, p. 125).
No parágrafo oito, a revolução copernicana é apresentada quase como uma opção
de Kant e não como a única opção, sem a qual não poderia explicar como verdades sinCentro Universitário Adventista de São Paulo - Unasp
téticas a priori são possíveis na física e na matemática, mas não na metafísica. Nitidamente
ela não é posta em relação ao problema. Além disso, as distinções a priori/a posteriori e sintético/analítico são feitas (§ 9) depois da apresentação da revolução copernicana. Quando
finalmente se pergunta se podem haver proposições que são sintéticas e, no entanto, a
priori, Kenny, responde que “Kant acredita que sim. Para ele, a matemática oferece exemplos” (KENNY, 2009, p. 126). Pode ser dito sobre Kenny que ele “comete o erro capital
de não ver que a física é parte integrante do problema” (PORTA, 2002, p. 113).
Quando Kenny passa aos esclarecimentos sobre a teoria moral de Kant, não faz
relação entre o problema prático e o teórico. Parece que não haver uma discussão sobre
a fundamentação da objetividade do dever, problema de universalidade e necessidade
da moral são passados por alto.
Por fim, não há uma indicação de como, com os ingredientes apresentados, Kant
teria tornado a filosofia científica. Que mudanças ele criou com sua virada copernicana?
Alguns itens esperados nem foram mencionados no texto: representação, fenômeno, dinge
an sich ou a ideia de que há conhecimento sintético a priori como produto humano.
Assim, quando procuramos responder à pergunta sobre quanto “espaço” é dedicado à
reconstrução dos problemas de Kant nesta seção nos sentimos seguros para dizer que não há tal
preocupação. As teorias de Kant são apresentadas como “teses que se sobrepõem”. E que tipo
de reconstrução sua estrutura lógica parece sugerir? Além de pinçar elementos tanto de uma
reconstrução racional quanto de uma reconstrução histórica, nada sistemático é desenvolvido.
Temos, entretanto, que ser indulgentes por um momento: embora a vida de Kant para
Kenny seja a história de suas ideias, a seção examinada não pretendia ser uma exposição das
teorias kantianas. Há dois outros textos em que suas contribuições para a ética e para a teoria
do conhecimento são “detalhadamente” apresentadas.
Análise da seção sobre o conhecimento
Esboço da seção
Depois de avaliarmos a primeira seção das exposições escolhidas, supomos que as
problemáticas de Kant seriam desenvolvidas em suas seções específicas, mas não é isso
que acontece. Temos aqui basicamente o mesmo programa. Kenny foca a estrutura da
resposta e deixa a pergunta em segundo plano. Vejamos:
Intitulada “O a priori sintético de Kant”, a seção que pretende expor a contribuição
de Kant sobre o conhecimento começa com o seguinte parágrafo:
Muitos leitores viram as conclusões de Hume como um pequeno paliativo para a sua
devastadora demolição de qualquer ordenamento racional de nossa experiência no
tempo. Nenhum ficou mais perturbado pelo desafio cético de Hume que Immanuel
Kant, e nenhum trabalhou mais duro para enfrentar o desafio e restabelecer a
função do intelecto no ordenamento de nossas percepções (KENNY, 2009, p. 184).
Em seguida, Kenny passa a esclarecer dois pares de distinções, uma distinção epistemológica (a priori/a posteriori) e uma lógica (sintético/analítico), que se referem, ele explica, a
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dois tipos de conhecimento e dois tipos de juízos. Segue-se alguma referência a críticas que
as distinções recebem desde sua formulação. Resumindo, “alguns filósofos posteriores tentaram fortalecer a distinção, enquanto outros tentaram destruí-la” (KENNY, 2009, p. 184).
O próximo parágrafo (§ 6)10 começa perguntando sobre como os dois pares de distinções
se relacionam. Depois de apresentar as relações possíveis, Kenny chega aos juízos sintéticos a
priori e argumenta que “não há contradição na noção de uma proposição sintética a priori ”, e,
inclusive, “há muitos exemplos de tais proposições” (KENNY, 2009, p. 184) Ainda no mesmo
parágrafo, Kenny aponta verdades da matemática e da física como fontes de exemplos e conclui:
“Finalmente, uma autêntica metafísica não é possível a não ser que possamos ter conhecimento a
priori das verdades sintéticas” (KENNY, 2009, p. 185). Assim lemos na sequência imediata:
Como são possíveis tais julgamentos sintéticos a priori é o principal problema
para a filosofia. Sua solução será encontrada pela reflexão sobre o modo como
ó conhecimento humano resulta da operação combinada dos sentidos e do
entendimento que toma os objetos pensáveis (KENNY, 2009, p. 185).
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No mesmo parágrafo, Kenny passa a esclarecer que nossos sentidos determinam
o conteúdo e nosso entendimento, sua estrutura; que Kant usa os termos aristotélicos
– “matéria” e “forma”; que ambas são necessárias para o conhecimento humano e que
nenhuma dessas faculdades tem prioridade sobre a outra.
Discorrendo sobre o entendimento, Kenny esclarece “o entendimento é o poder de formar conceitos, o juízo é o poder de aplicá-los”, e continua: “as operações
do entendimento encontram sua expressão nas palavras individuais, já os juízos são
expressos em sentenças inteiras. Um conceito não é nada além de um poder de fazer
juízos sobre certas coisas” (KENNY, 2009, p. 186). Segundo o autor, há muitos tipos
de juízos e, depois de enunciar alguns deles, registra que correspondendo aos tipos de
juízos há diferentes tipos de fundamentais de conceitos: conceitos a priori são chamados
de categorias e juízos a priori são chamados de princípios. Kant, então, relaciona cada
categoria a um tipo diferente de juízo. “Estejamos convencidos ou não dessas ligações
específicas”, comenta Kenny, “não podemos negar a importância da afirmação geral de
Kant de que há alguns conceitos que são indispensáveis se se quer considerar algo como
a operação do entendimento. É essa afirmação verdadeira?” (KENNY, 2009, p. 186).
Ele escolhe responder à pergunta formulada de forma linguística, e defende que
há conceitos que encontram expressão em qualquer linguagem totalmente desenvolvida.
Depois de alguns exemplos, lhe parece certo afirmar que alguns “conceitos devem ser
fundamentais para todo entendimento”. Então arremata:
Kant prossegue argumentando que não somente há conceitos a priori que são essenciais
se queremos extrair um sentido da experiência, mas que há também juízos a priori, a que
A numeração dos parágrafos desta seção, assim como será na seção sobre ética, deve ser calculada sem continuidade numérica em relação à seção anterior.
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ele chama “princípios”. Alguns esses são analíticos, mas os princípios que são realmente
interessantes são aqueles que subjazem aos juízos sintéticos (KENNY, 2009, p. 187).
Crítica à seção
No sexto parágrafo, matemática, física e metafísica são mencionadas, mas nenhuma relação é feita entre elas. As três são apontadas como exemplos de disciplinas nas
quais sintéticas a priori podem ser notadas, mas Kenny não vai além de dizer que tais
juízos são possíveis na “autêntica metafísica”.
No sétimo parágrafo lemos: “Como são possíveis tais julgamentos sintéticos a priori
é o principal problema para a filosofia” (KENNY, 2009, p. 185), o que não está correto. O
problema é outro ou, pelo menos, é diferente. Não se trata de como julgamentos sintéticos a priori são possíveis, mas por que eles são possíveis na matemática e na física e não na
metafísica? Como a matemática e a física se tornaram fonte segura de saber, mesmo com
juízos sintéticos a priori e a metafísica continua sendo um eterno campo de batalhas. Não
basta que conhecimento sintético a priori seja possível para que a metafísica seja possível
como ciência. Mais uma vez precisamos notar (como em nossa crítica à seção biográfica)
que Kenny comete o erro de não ver a física como parte do problema teórico. Se tudo que se
está discutindo era a possibilidade ou não de tais juízos, não haveria um problema para Kant.
Segundo Porta (2002, p. 123), “a ideia-chave, que orienta a solução do problema
colocado na Crítica da razão pura, é metaforicamente denominada por Kant ‘inversão copernicana’”. Entretanto, a “inversão copernicana” sequer é mencionada pelo autor. Nesta
seção, a ideia, tão importante para entender a virada copernicana e o significado de Kant
para o conhecimento, de que somente podemos conhecer a priori aquilo que “depende de
nós” porque o “produzimos” (ideia de que deriva a inversão copernicana) encontra uma
única referência (isso para sermos otimistas) no parágrafo dez, onde lemos “o entendimento é o poder de formar conceitos” (KENNY, 2009, p. 186).
Voltando-nos mais uma vez às perguntas feitas no fim de nosso resumo sobre o papel
do problema na filosofia podemos notar que quanto ao “espaço” dedicado pelo autor à
reconstrução do problema temos de reconhecer que algum esforço parece ter sido feito. Não
obstante, o problema foi delineado de modo insuficiente e, o que pode ser ainda pior, de modo
incorreto. Sobre sua reconstrução, podemos dizer que Kenny procedeu a uma reconstrução,
embora insuficiente, de orientação meramente racional. Não há ligações com a física newtoniana ou à situação da metafísica racionalista, para darmos apenas dois exemplos.
Análise da seção sobre a ética
Esboço da seção
Ao iniciar a seção sobre a ética de Kant, Kenny a distingue de outras como de
Hume em que a felicidade ocupa papel fundamental. Segundo Kant a felicidade não pode
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Kenny em seguida apresenta e comenta dois exemplos de juízos sintéticos a priori:
1) “todas as experiências possuem extensão”; e 2) “em todas as aparições o objeto da
sensação tem magnitude intensiva”.
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ser o supremo objetivo da moralidade. Ela não pode orientar a moralidade uma vez que
os instintos (sem necessidade de razão) seriam suficientes para garantir sua conservação e
seu bem estar (em outras palavras, sua felicidade).
Seguimos no texto, assim, para o conceito abrangente na moralidade kantiana, a
saber, o dever. “A função da razão na ética não é orientar a vontade sobre como melhor
escolher os meios para fins posteriores, mas produzir uma vontade que é boa em si, e uma
vontade somente é boa se motivada pelo dever” (KENNY, 2009, p. 298). Mas de que se
trata uma boa vontade? Boa vontade é o único bem em si.
A boa vontade, para Kant, é a única coisa que é boa sem qualificação. Fortuna,
poder, inteligência, coragem e todas as virtudes tradicionais podem ser usadas
para fins maus. Mesmo a felicidade em si pode ser corruptora. Não é o que ela
adquire que constitui a bondade de uma boa vontade: a boa vontade é boa em
si (KENNY, 2009, p. 298).
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Uma boa vontade é uma vontade orientada pela razão para o dever. Kenny passa, na
sequência, a esclarecer a distinção kantiana entre atos por dever e atos conforme o dever. Atos
conforme o dever, embora corretos e amigáveis não têm, segundo Kant, nenhum valor moral.
O valor de um caráter é explicitado somente quando se faz o bem por dever, ainda que contrário
à própria felicidade ou outro desejo11 qualquer (KENNY, 2009, p. 298). Segundo o autor, a felicidade e o dever não são para Kant apenas motivações diferentes, mas motivações conflitantes.
Tendo desenvolvido sua exposição ao longo e sete parágrafos, Kenny usará os
próximos onze para desenvolver os imperativos. Os imperativos, segundo o autor, são a
maneira de testar se alguém está agindo por um sentimento de dever.
Kenny (2009, p. 299) distingue os imperativos (categórico e hipotético) e, depois de
esclarecê-los, foca sua atenção no primeiro tipo. No mesmo parágrafo, uma formulação citando o próprio Kant (1974b, p. 209) é dada: “Proceda sempre de maneira que você possa querer
também que a sua máxima se tome uma lei universal”. Kenny apresenta dois exemplos: 1) uma
falsa promessa para sair das dificuldades; 2) a indiferença de uma pessoa próspera diante do
convite à caridade – de como o imperativo categórico se desenvolveria na prática.
Esses dois exemplos ilustram os dois diferentes modos em que opera o
imperativo categórico. No primeiro caso, a máxima viciosa não pode ser
universalizada porque sua universalização leva a uma contradição: se ninguém
cumpre promessas, não existe algo como prometer. No segundo caso, não há
nada de autocontraditório na ideia de ninguém nunca ajudar a outra pessoa, mas
ninguém poderia racionalmente querer estabelecer tal situação. Kant diz que os
dois diferentes tipos de caso correspondem a dois diferentes tipos de deveres:
os deveres estritos (como o de não mentir) e os deveres meritórios (como o de
ajudar os necessitados) (KENNY, 2009, p. 300, ênfase do autor).
Kenny não usa a palavra “desejo” em toda sua seção sobre a moral kantiana.
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Centro Universitário Adventista de São Paulo - Unasp
Uma segunda formulação do imperativo categórico é apresentada: “Age de tal modo
que sempre trates a humanidade, seja em tua própria pessoa ou na pessoa de outrem, nunca simplesmente como um meio, mas sempre simultaneamente como um fim” (KENNY,
2009, p. 300). Esta formulação tem a virtude de banir o suicídio, a escravidão e as guerras
agressivas. Kenny faz algum esforço para esclarecer o que se pretende ao dizer que devemos tratar as pessoas “simultaneamente como um fim”. Não sou apenas um fim em mim
mesmo, mas um fim no reino dos fins. A lei universal é feita por vontades racionais como
a minha e surge uma ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns,
um reino. No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem preço pode
ser substituído por um equivalente, mas as coisas que tem dignidade estão acima de qualquer
substituição (KENNY, 2009, p. 301). Segundo Kant, citado por Kenny (2009, p. 301),
Portanto, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas
coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho têm um preço venal,
a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm um preço de afeição; pelo
contrário, a lealdade nas promessas, o bem-querer fundado em princípios (e não no
instinto) têm um valor íntimo.
Finalmente, no último parágrafo da seção, Kenny registra que Kant abriu espaço
para uma legislador, que seguramente é Deus, mas a quem nenhum papel especial é dado.
“Os sucessores de Kant em séculos posteriores, que foram atraídos pela ideia da vontade
autônoma como o legislador moral, descartaram em silêncio o soberano e transformaram
o reino dos fins numa república” (KENNY, 2009, p. 301).
Crítica à seção
Quando analisamos a seção biográfica de Kant em seu trecho sobre a teoria moral
constava uma nota de rodapé na página 131 que nos tranquilizava: “A filosofia moral de
Kant é discutida detalhadamente no capítulo 8 deste volume.” No entanto, embora sua
exposição seja muito esclarecedora, alguns detalhes ficaram flutuando na atmosfera teórica.
Kenny expôs a teoria moral de Kant na base do que devo, deixando de lado o por
que devo. A pergunta do por que devo não foi respondida, na realidade nem mesmo foi
formulada. Ao iniciar a seção, passou tão rapidamente a abordar a mudança de foco entre
felicidade (foco de éticas como de Hume e Aristóteles) e o dever que não há relação a um
problema sobre a fundamentação da objetividade do dever.
Outra dificuldade encontrada no texto é a ausência da noção de um saber a priori,
assim como o problema de sua possibilidade, os quais desempenharam um papel decisivo
no campo teórico, e não voltaram a aparecer na exposição da ética. Mesmo a inversão que
provocou o abandono de uma busca por instâncias transcendentes (externas a mim) para
basear o dever na razão não é desenvolvida. Parece não haver um problema de fundamentação da ética, apenas outra visão é exposta, outra maneira de se dirigir a conduta. A liberdade,
tão fortemente vinculada ao conceito de vontade e de autodeterminação, e, principalmente,
a antinomia a ela ligada, não é mencionada quanto mais discutida em seu texto.
Acta Científica, Engenheiro Coelho, v. 20, n. 3, p. 105-117, set/dez 2011
RESENHA
O KANT DE ANTHONY KENNY: LEITURA E ANÁLISE EM BUSCA DOS PROBLEMAS DE KANT
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KLAUDINEI LUIS ENGELMANN
Voltando às duas questões que têm finalizado nossas análises, podemos dizer
que o “espaço” dedicado à reconstrução do problema é nulo. Podemos dizer ainda
que há um problema de fundamentação do dever. Kant simplesmente rejeitou a felicidade como supremo objetivo da moralidade, pois para esse fim seriam suficientes os
instintos. A razão, superior aos instintos, coloca a felicidade como uma consequência
secundária em relação ao cumprimento do dever.
A estrutura de seu texto segue muito próxima às exposições de Kant, principalmente da Fundamentação da metafísica dos costumes, mas não reflete (como já sugerimos) uma
reconstrução do problema, nem um vínculo com uma reconstrução do problema teórico.
Crítica geral à exposição de Kenny sobre Kant
116
Embora apenas três seções de Kenny sobre Kant tenham sido analisadas no presente
trabalho, não poderíamos deixar de tecer algumas considerações sobre o todo das seções. Além
das três partes analisadas, há descrições da filosofia de Kant nos capítulos sobre física, metafísica,
mente e alma e Deus. De modo geral, o que vimos nas primeiras seções se repete em cada uma
delas: a reconstrução do problema está ausente ou desfocada; poucos elementos sobre o contexto histórico são dados; e a exposição segue um roteiro basicamente de sucessão de teses.
Podemos entender, e mesmo concordar com a escolha que estrutura o livro, mas
ela oferece dificuldades – o que se torna visível em Kant. Rupturas teóricas podem ser encontradas em toda sua extensão. Por rupturas, nos referimos ao isolamento dos conceitos
que compõem o pensamento de Kant. Conhecimento, física, metafísica e ética estão tão
isolados, que a reconstrução do problema não aconteceu, e se pensarmos que o leitor as
fará, isso foi tremendamente dificultado. Talvez por receio de ser repetitivo, Kenny tenha
deixado de reapresentar conceitos presentes em outras seções – por vezes quando estes
se tornavam indispensáveis. Por exemplo, as palavras “a priori”, “metafísica” e “liberdade”
nem mesmo são mencionadas na seção sobre ética. A “física”, embora mencionada na
seção de Kant sobre conhecimento, não é relacionada ao problema, ficando reservada
quase exclusivamente para o capítulo com seu nome.
Considerações finais
Quando idealizamos esta resenha, postulamos que ela tinha o objetivo de avaliar, à
luz da centralidade do problema proposto por Porta, alguns dos trechos da obra de Kenny
referentes a Kant, e notar em que medida o problema kantiano esteve presente em sua exposição. Para isso, precisamos lembrar que na introdução nós fizemos duas perguntas basilares.
Em primeiro lugar, perguntamos em que medida as três seções sobre Kant selecionadas da obra de Kenny estavam relacionadas aos problemas de Kant. Podemos
responder à questão parafraseando Porta (2002, p. 15): de modo geral o problema esteve
pressuposto e, na maioria das seções, foi simplesmente ignorado. Não pudemos diagnosticar esforços para esclarecê-lo. Não poucas vezes, no lugar da sua explicação encontramos
rótulos vazios: o a priori sintético de Kant etc.
Em seguida, perguntamos se as teses de Kant foram apresentadas em sua relação com
os problemas, preservando seu caráter de solução. Se a filosofia se constitui da relação proCentro Universitário Adventista de São Paulo - Unasp
O KANT DE ANTHONY KENNY: LEITURA E ANÁLISE EM BUSCA DOS PROBLEMAS DE KANT
Referências bibliográficas
KENNY, A. Uma nova história da filosofia ocidental: o despertar da filosofia moderna. São
Paulo: Edições Loyola, 2009. v. 3.
RESENHA
blema/solução, podemos ver que Kenny, ao ignorar o problema e focar a solução, extraiu
dela seu caráter de resposta. Devemos reconhecer: “não é incomum situar a tese em um lugar
privilegiado do saber filosófico, centrando nela o estudo do autor” (PORTA, 2002, p. 33).
De modo geral, o texto de Kenny é apreciável: seu estilo flui naturalmente e devemos
reconhecer que sua leitura é recomendável para assentar as bases da história da filosofia. Entrementes, se a atenção ao problema de que trata um filósofo não é necessária apenas para
entender o autor em particular, mas o próprio movimento filosófico ao longo da história
(PORTA, 2002, p. 34), será necessário que tal estudante, que queira assentar as bases dos
saberes sobre a história da filosofia estudando-a em Kenny esteja atento a problemas não
desenvolvidos pelo autor e os reconstrua ele mesmo paralelamente à sua leitura.
PORTA, M.A.G. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
CIVITA, V. (Ed.). Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. In: Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1974a, v. 25.
. (Ed.). Fundamentação da metafísica dos costumes. In: Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1974b.
Acta Científica, Engenheiro Coelho, v. 20, n. 3, p. 105-117, set/dez 2011
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