Amorim de Carvalho Tese e Antítese TESE E ANTÍTESE Amorim de Carvalho TESE E ANTÍTESE1 Autor: Amorim de Carvalho Título: Tese e Antítese Edição patrocinada pela: Associação para a Divulgação da Cultura de Língua Portuguesa (Presidente: José Pereira Herdeiro) Ilustração da capa: desenho de Amorim de Carvalho Fixação do texto e revisão tipográfica: Júlio Amorim de Carvalho Colecção: Archivo ISBN da edição impressa: 978‑989‑656‑260‑1 ISBN da edição digital: 978‑989‑656‑259‑5 Depósito Legal: 368617/13 Data: Dezembro de 2013 Catalogação na Publicação: Biblioteca Nacional de Portugal CARVALHO, Amorim de, 1904-1976 Tese e antítese. – (Archivo ; 2) ISBN 978-989-656-260-1 CDU 1 EDICŌESECOPY Rua Actor Ferreira da Silva, 373/381 4200‑301 Porto [email protected] www.edicoesecopy.pt Impressão e acabamento: Digiprel INTRÓITO2 Este livro está longe de conter toda a matéria do que cheguei a anunciar com o título que mantenho – Tese e Antítese. Mas é, pràtica‑ mente, o mesmo livro com as linhas de força duma tentativa de novo pensamento dialéctico. A este pensamento chamei dialéctica mononó‑ mica ou monodialéctica, porque considera o Real como uma Tese (e não há senão uma única Tese) a que se opõe uma Antítese, o Nada, portanto fora do Real, sem possível síntese que concilie Tese e Antítese. A dialéctica mononómica, que proponho, recusa, com excepção da primeira e diferentemente interpretada, as características «essen‑ ciais» que Gurvitch considera como próprias de todas as «autênti‑ cas dialécticas»: 1.a) totalidade sinérgica do todo e das partes; 2.a) negação das leis da lógica formal; 3.a) instabilidade do Real; 4.a) ma‑ nifestação das oposições, conflitos, lutas, contrários e contraditórios – porque, se o Real não fosse fundamentalmente sem contradições ontológicas internas, a «totalidade sinérgica» seria ininteligível, sem se compreender sequer o primeiro momento dialéctico do Real. Aqui reside a dificuldade e as ingenuidades com que as «autênticas dia‑ lécticas», de que fala Gurvitch, forjam as contradições na Natureza (Engels e Lenine), pelo que os seus pensadores mais prudentes (Gurvitch e Sartre, por exemplo) recuam à limitação das interpre‑ tações apenas no mundo social, como estava em Marx, onde é fácil promover a contradições essenciais (pelo menos exteriormente fácil) o que não passa de oposições ontològicamente circunstanciais, em‑ bora espectaculares. Finalmente, toda a concepção da realidade terá, por força, de assentar nos princípios lógicos do próprio espírito que a concebe, o que se torna evidente pelo facto de o próprio esforço para provar a dialéctica das contradições nunca ter sido possível senão em termos discursivos da lógica formal. O pensamento, na sua função gnoseológica, espontâneamente ignora outra lógica. 7 Amorim de Carvalho Porque o vasto manuscrito, que era primeiramente Tese e Antítese, esteve largo tempo inédito, dele fui extraindo algumas passagens ou resumos que apareceram nos meus dois livros publicados: Fidelino: um filósofo da Transitoriedade[3] e De la Connaissance en général à la Connaissance esthétique, e aparecerão possìvelmente em outro, que preparo, de temas político‑sociais e históricos. Ter planos de publi‑ cação, ordenada e metódica, de obras de pensamento, não é coisa de realização fácil, nem talvez realizável num país tão pouco afeiçoado ao pensar e onde as obras de ideias contam pouco nas exigências do público, na cultura dos críticos, no entendimento dos políticos que governam a nação e, consequentemente, nos propósitos dos editores. Clima, este, particularmente favorável aos autores de livros sem ideias ou de poucas ideias em que o público medíocre se revê. Seja como seja, Tese e Antítese é o esboço dum sistema filosófico. Alguns pensadores de ensaios monográficos, e preguiçosos ou esqui‑ vos à reflexão demorada do aprofundamento e da relacionação dos diferentes aspectos da problemática do mundo e do homem no mun‑ do, pretendem desprestigiar as monolíticas construções filosóficas, ou repetem a ideia feita de que, na história da filosofia, já os sistemas terminaram, com o monumental e «último» sistema que foi o de Hegel. Isto não é exacto, por menos monumentais que tenham sido os sistemas posteriores, e se fosse verdade atestaria uma lamentável crise do pensamento – do pensamento na sua própria função de pensar, explicar ou propor explicações. Todo o pensar filosófico sério tende, pelo menos, a sistemati‑ zar‑se, contém em si, pelo menos, um sistema em embrião ou em nebulosa, conforme as ideias mostrem, na tendência para o sistema, linhas de força bem ou mal definidas. Da construção de uma hipótese à construção duma teoria, e da teoria ao sistema (no sentido pleno ou forte das três noções), vai tão só o alargamento da mesma inda‑ gação dos problemas que inquietam aquele que pensa; e menos pela extensão discursiva do que pela extensão implicadora de problemas, é que um sistema se distingue duma teoria e muito mais se distin‑ gue duma hipótese. Que uma simples hipótese filosófica possa ser mais válida do que uma teoria ou um sistema, é outra questão que 8 Amorim de Carvalho diz respeito à capacidade filosófica dos seus autores; e a hipótese, e a teoria, e o sistema, valem, os três, pelo que explicam da realidade ou pelo que no‑la fazem compreender. Mas a realidade ultrapassa de longe os mais vastos pontos de vista que são os sistemas filosóficos, como testemunha a variedade imensa de sistemas na história da filo‑ sofia. Muitos não serão tão semelhantes entre si quanto pareçam ser; muitos só coincidirão pelas mesmas palavras de sentido vago ou im‑ preciso; muitos só se diferenciarão pelas palavras que são diferentes; muitos não serão tão opostos como se pode imaginar – e, em todos os casos, e porque a realidade é objectivamente só uma para todos os que pensam, só uma sendo a condição lógico‑subjectiva do pensar, à Ecléctica (permito‑me substantivar a palavra para a designação dum sério propósito de filosofia) competirá estabelecer as relações dos di‑ ferentes sistemas, encontrando os seus denominadores comuns. O presente trabalho é um ponto de vista filosófico, no que se disse ser um sistema. Pelo menos um sistema em embrião ou em nebulosa. A ele se reportam muitas das ideias sistemáticas formula‑ das pelo seu autor em obras precedentemente publicadas, conforme também já se disse para justificar que algumas páginas tivessem sido suprimidas do manuscrito e outras resumidas, não se querendo agora demasiadamente repetir. Isto será então defeito, defeito mais deste livro do que do sistema que o ultrapassa para se completar ou tentar completar‑se noutros livros nossos já publicados, – sem que deixem existir os defeitos do próprio sistema, que serão os das suas insuficiências e suficiências, os das suas dificuldades não vencidas e até confessadas. Em todo o caso é o testemunho duma interpretação pessoal do mundo e da vida e do ser‑no‑mundo. Pessoal até onde se pode ser pessoal por individuação própria, mas perante e numa única Realidade que é a de todos nós, a que em todos nós pode suscitar, por isso, análogas reflexões. A sistematização filosófica, neste livro contida, foi precedida, e tornou‑se simultânea, duma dispersiva mas intensa actividade intelectual, desde a do poeta e novelista à do ensaísta e crítico nos mais diferentes domínios da literatura, da estética, da política, da sociologia e da filosofia. Tudo isto, quer pela espontaneidade da 9 Amorim de Carvalho organização lógica, quer pela reflexão bem consciente do pensamen‑ to sobre o pensamento, foi‑se ordenando em sistema, num processo que os sentimentos do poeta e do homem afectivo acompanharam, e acompanham, tantas vezes em conflito. Estará isso particularmente manifesto, creio, na minha poesia, e tanto mais, talvez, quanto de mais recentes datas. O filósofo deste livro nunca deixou de se sentir o poe‑ ta, e vice‑versa. Entre alguns casos destes na história da literatura e do pensamento portugueses está o meu caso, sem eu me preocupar com as comparações e as avaliações, mas tão só com os factos de natureza poético‑filosófica que se reportam ao nível da poesia com poder emo‑ cional de expressão do pensamento, na relação mais autêntica entre poesia e filosofia, – e de que eu não posso nem devo fingir desconhe‑ cimento, por uma modéstia cúmplice dos ocultadores. Este livro foi pensado e escrito nas mais difíceis e amargas con‑ dições de trabalho que sempre se oferecem ao intelectual português que na sua pátria não abdica da independência do pensamento, e não pactua com o grande público, para lhe dar temas banais, e não transi‑ ge com o pensamento político que governa, para receber o bem‑estar material, e não entra no grande concerto do elogio mútuo, para que não o silenciem ou ocultem. Este livro foi pensado e escrito – apesar de tudo isso. É preciso ter‑se nascido em Portugal para ter de se exprimir neste tom. Paris, 1975. A. de C. 10