A convergência lógico-estrutural dos discursos

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A CONVERGÊNCIA LÓGICO-ESTRUTURAL
DOS DISCURSOS POLÍTICO E PUBLICITÁRIO
Resumo: O presente trabalho pretende demonstrar, com o auxílio das ferramentas oferecidas pela
sociossemiótica — em especial, a análise da estrutura de poder dos discursos sociais através da lógica
modal — a existência de uma similaridade natural entre as estruturas modais dos discursos político e
publicitário, similaridade esta ainda mais acentuada a partir da incorporação de técnicas de marketing
pelas campanhas políticas.
Introdução
A sociossemiótica é o ramo da semiologia que estuda os discursos sociais, vale dizer, discursos cujo
receptor é tido como coletivo, o que significa que o destinatário desse discurso não é um indivíduo
isolado ou um grupo pequeno de indivíduos, mas sim um grupo aberto e indeterminado de indivíduos,
que chamamos de público. Em muitos casos, o público-alvo de um discurso social assume dimensões tais
que se torna inviável o contato direto entre emissor e receptor, de modo que a veiculação desse tipo de
discurso tem de ser feita através dos meios de comunicação de massa, como os jornais, as revistas, o
rádio, a televisão, a Internet etc.
Este trabalho pretende mostrar como a sociossemiótica, servindo-se da lógica modal dialética,
aborda os discursos sociais, enfatizando o tratamento do discurso político, e assinalando a similaridade de
sua estrutura de poder (Pais, 1978 e 1993) com a do discurso publicitário, acentuada nas últimas décadas
com a incorporação efetiva de recursos e métodos da publicidade e do marketing pela propaganda
política.
Lógica modal e os discursos sociais
São vários os chamados discursos sociais, isto é, discursos cujo destinatário é um público. Os
discursos científico, jurídico, político, jornalístico, publicitário, religioso, literário, pedagógico, dentre
outros, são todos exemplos de discursos voltados ao público em geral. Por isso, podemos dizer que as
atividades que os caracterizam — a ciência, a literatura, a religião, a política, o jornalismo, a publicidade,
o ensino, a legislação — são atividades públicas. Cada uma dessas atividades possui uma diferente função
social, que lhe é atribuída pela própria sociedade. A função social específica de cada atividade, isto é, o
modo de atuação, a finalidade e o público-alvo dessa atividade, determina certas características típicas de
seus discursos, certas constantes e coerções que configuram uma norma, isto é, um modelo a ser seguido
por todo e qualquer discurso produzido por tal atividade. Assim, por exemplo, os textos jornalísticos, não
obstante sua diversidade, possuem todos algumas características comuns que nos permitem reconhecê-los
como tais, bem como cumprem todos uma mesma finalidade social. Todos os textos jornalísticos, sejam
eles verbais ou não-verbais (reportagens, fotos, imagens cinematográficas), representam um mesmo
modelo, a que damos o nome de discurso jornalístico. O mesmo raciocínio vale para os demais discursos.
A grande descoberta da sociossemiótica foi a possibilidade de descrever a função social de cada
discurso a partir de elementos da lógica modal. Isso equivale a dizer que, a partir da análise de um semnúmero de discursos sociais nas mais variadas línguas e culturas, chegou-se à conclusão de que a todo
discurso pertencente a uma mesma classe subjaz uma mesma estrutura. Como todo discurso é uma prática
social, pode-se entender a função social de cada classe de discurso como uma ação visando a um objetivo
específico. Toda ação pode ser lingüisticamente representada através de um verbo. Assim, as diferentes
funções sociais dos discursos podem ser resumidas em verbos como informar, convencer, persuadir,
seduzir, obrigar etc. Um dos princípios básicos da lógica modal é a possibilidade de traduzir qualquer
desses verbos numa combinação de verbos modais, representantes das modalidades simples, que são
aqueles verbos que modificam um predicado, dando a ele um caráter potencial ou efetivo.
Segundo Greimas (1976), todo discurso possui em sua base uma estrutura formada pela combinação
de modalidades simples, que numa abordagem atual são as seguintes:
MODALIDADES
VIRTUALIZANTES
dever
querer
MODALIDADES
ATUALIZANTES
poder
saber
MODALIDADES
REALIZANTES
ser
parecer
ter
fazer
crer
conhecer
A partir de todas essas modalidades, foi possível chegar ao conceito de estrutura de poder dos
discursos, também chamada de estrutura modal, isto é, o enunciado lógico, composto por uma
combinação ordenada de modalidades simples, que subjaz a cada gênero de discurso e que lhe confere o
status específico que o mesmo possui na sociedade em que é empregado.
O discurso político
O discurso político faz querer: é o discurso da persuasão por excelência. No entanto, é preciso
ressaltar que a designação político dada a esse discurso não nos deve levar a associá-lo exclusivamente à
atividade político-partidária. Na verdade, qualquer discurso que tenha como objetivo básico criar nas
pessoas um desejo de fazer ou de não fazer algo possui um forte componente político. Ocorre que o
discurso que os políticos dirigem ao povo possui exatamente essa característica de persuasão, na medida
em que tenta convencer a opinião pública da necessidade de se realizar uma determinada obra, de se
adotar uma determinada política financeira, fiscal, educacional etc., ou mesmo da necessidade de se
eleger para um determinado cargo público o indivíduo que produz tal discurso.
A política é uma atividade pragmática cuja razão de ser é a administração do Estado. De fato, os
homens fazem política para chegar ao poder e influir no destino da sociedade em que vivem. Assim, o
que estamos aqui chamando de discurso político é, bem entendido, o discurso que o político dirige aos
eleitores quando em campanha, bem como o do parlamentar ou estadista em plenário ou em público.
Quando o discurso político, no âmbito do Poder Legislativo, dá origem a uma lei, transforma-se em
discurso jurídico; no âmbito do Poder Executivo, o discurso político gera um discurso burocrático, que
por sua vez origina ações não-discursivas, como a execução de uma obra, a implementação de uma
determinada política etc.
O discurso político, assim como também o discurso publicitário, constitui um tipo particular de
discurso indutivo, que têm na persuasão sua função principal. São discursos utilitários de um tipo
especial, pois, ao contrário dos discursos científico, tecnológico, jurídico, jornalístico etc., prestam um
serviço não ao receptor, mas sim ao emissor desses discursos. Eis por que, aliás, o discurso político vemse aproximando cada vez mais do discurso publicitário.
Nos discursos indutivos, o emissor envia uma mensagem cujo objetivo é fazer o receptor querer algo
(um produto ou serviço, no caso do discurso publicitário; um candidato, um partido ou um programa de
governo, no caso do discurso político). Embora esses discursos façam crer ao receptor que ele será
beneficiado se consumir o produto ou serviço anunciado, ou se votar no candidato ou partido emissor do
discurso, na verdade o que esses discursos realmente objetivam é o benefício de quem os enuncia, isto é,
o aumento das vendas de um produto, com o conseqüente aumento do lucro do fabricante e do
comerciante, ou a vitória do candidato ou partido nas eleições e sua conseqüente conquista ou
manutenção do poder. Desse modo, os discursos publicitário e político acabam sendo utilitários muito
mais para o emissor do que para o receptor.
Assim como o discurso publicitário, o discurso político caracteriza-se por ter como modalidade
principal o fazer querer. Chamamos de discurso político a todo discurso cujo objetivo seja conquistar
apoio para conduzir alguém ao poder. A política nasce quando o homem decide disciplinar a luta pelo
poder. No momento em que as sociedades humanas se organizam, surge a necessidade de administrar os
conflitos sociais e de regulamentar as disputas pelo poder, substituindo o uso da força pelo uso da
linguagem. À medida que a organização social vai se tornando mais complexa, o poder já não pode ser
exercido por um único indivíduo, nem esse indivíduo pode chegar ao poder sem o auxílio do corpo social
ou, pelo menos, de parte dele. Assim, a luta pelo poder passa a ser um procedimento semiológico: onde
quer que haja disputa pelo poder institucionalizado, há política e discurso político. Por conseguinte, o
discurso político não está circunscrito ao domínio do Estado, não é só o discurso dos membros da classe
política em campanha eleitoral ou no parlamento, mas é todo discurso social de caráter exortatório
visando à mobilização social em torno de um certo objetivo. Por exemplo, o discurso do líder sindical
incitando seus companheiros à greve é genuinamente um discurso político.
Em princípio, qualquer um que deseje mobilizar um grupo de pessoas a fazer algo, especialmente
algo que requeira a sua liderança, utilizando para isso apenas o discurso, precisa lançar mão de
argumentos convincentes, precisa fazer o grupo acreditar na necessidade e na oportunidade de se fazer
esse algo. Assim, o pretenso candidato a liderar o grupo nessa empreitada deve expor os motivos que
tornam necessária a ação proposta, isto é, os problemas que essa ação se propõe resolver. Se ele for um
indivíduo honesto, exporá aos companheiros os fatos reais que exigem deles a ação em questão, e
somente estes. Então, nosso “líder político”, se podemos assim chamá-lo, fará saber aos seus liderados as
razões que o levam a propor aquela ação e a maneira como tal ação deverá se dar. Mas, para que os
membros do grupo passem efetivamente à ação, eles precisam em primeiro lugar querer essa ação. E eles
só quererão entrar em ação se acreditarem que tal ação é realmente a melhor solução para resolver o
problema apresentado. Desse modo, o discurso político ideal aponta à sociedade os problemas que a
afligem, bem como propõe soluções para esses problemas (poder fazer saber), tenta convencer a
sociedade da importância dos problemas e da necessidade de aplicar as soluções propostas, bem como do
benefício que tais soluções trarão (poder fazer crer), para, então, finalmente incitar a sociedade a aceitar
essas soluções e, portanto, a conferir poder de ação àquele que irá implementá-las (poder fazer querer).
No entanto, na prática, nenhum discurso político funciona como o discurso ideal: na verdade, os
enunciadores do discurso político fazem o público acreditar — e muitas vezes eles próprios acreditam —
que a adoção das medidas que defendem trará reais benefícios à sociedade como um todo, mas o que o
discurso político realmente objetiva é fazer prevalecer a tese defendida por seu emissor. Nesse sentido,
analogamente ao discurso publicitário, o discurso político é apenas aparentemente utilitário para o
público, quando, em verdade, ele é realmente utilitário para o seu emissor e para o grupo que ele
representa. Além disso, no discurso político ideal, o emissor limita-se à verdade, isto é, expõe a situação
tal qual ela é. No discurso real, o emissor não hesita em falsear ou em manipular as informações para
conseguir a adesão da sociedade. Assim, paralelamente ao poder fazer saber, existe nesse discurso um
poder fazer parecer, isto é, a elaboração de uma ficção — de uma mentira, se se preferir —, de modo que
a crença do receptor poderá recair tanto sobre verdades quanto sobre inverdades. Sendo a política um
contrato entre desiguais, e sendo o discurso político essencialmente o discurso da ocultação, fica evidente
a utilização de estratégias discursivas similares às do discurso religioso: inculcação de ideologia,
doutrinação, dogmatismo, imposição de crenças de origem não-racional (pense-se, a esse respeito, nas
pregações políticas de cunho racista) etc. Teremos então que a estrutura modal do discurso político é a
seguinte:
poder fazer saber
Discurso político =
para fazer crer para fazer querer
poder fazer parecer
O discurso publicitário
O discurso publicitário utiliza-se dos mais variados recursos verbais e audiovisuais, tomados de
empréstimo à arte, tais como o uso de slogans, imagens (fotos, vídeos) e sons (música, ruídos) com forte
apelo poético, para capturar a atenção do público-alvo de suas mensagens. Pode-se dizer, assim, que o
discurso da propaganda incorpora o discurso artístico, fazendo da função estética da arte (poder fazer
(a)parecer para poder aprazer) um instrumento, um meio de chamar a atenção do provável consumidor
para o conteúdo da mensagem publicitária. Nele, há duas modalidades em jogo: o saber e o crer.
Dizemos que o discurso publicitário tem o poder de fazer o consumidor saber da existência do
produto/serviço e de suas características; em outras palavras, o discurso informa sobre a existência e o
desempenho da coisa anunciada. Ao mesmo tempo, a mensagem publicitária procura agregar à imagem
dessa coisa uma espécie de imponderável, o chamado “algo mais”, as características diferenciais do
produto ou serviço, aquilo que ele oferece a mais do que os seus concorrentes, e que em geral são
qualidades não comprováveis pelos meios racionais (por exemplo, pela experimentação); por essa razão,
o discurso da publicidade lança mão dos chamados argumentos emocionais. É assim que, por exemplo,
um simples automóvel pode oferecer mais do que economia, conforto, potência, segurança ou
durabilidade, qualidades comprováveis; ele oferece status, oferece o prazer de dirigir, oferece ao
motorista a sensação de poder absoluto, de não haver limites nem barreiras para seu desejo de conquista.
Em suma, o discurso publicitário faz saber, isto é, informa, através de dados comprováveis, e faz crer,
mediante um processo de sedução comparável ao do discurso religioso. Esse saber e esse crer são
incutidos no público com o objetivo de fazê-lo querer o produto ou serviço oferecido. Assim, o desejo de
consumo nasce do emprego de argumentos tanto racionais quanto emocionais. A estrutura modal do
discurso publicitário é, portanto:
fazer saber
Discurso publicitário = poder fazer parecer para fazer gozar para
para fazer querer
fazer crer
A convergência entre os discursos político e publicitário
O discurso político tem o condão de persuadir a opinião pública a querer um determinado programa
de ação e a lutar por sua adoção. É assim que o discurso político, ao nível do poder legislativo, dá origem
a um discurso jurídico, isto é, a vontade do grupo que o parlamentar representa, expressa em seu discurso,
transforma-se em lei. Ao nível do poder executivo, a vontade do grupo, representada pelo discurso do
administrador público, dá origem ao discurso burocrático, que é um discurso interno à máquina
administrativa, e que vai pôr em prática as ações necessárias à execução do programa. Entretanto, a
finalidade do discurso político é conduzir alguém ao poder através da promessa de que as ações
desempenhadas por esse alguém representarão as soluções dos problemas da comunidade, e não resolver
os problemas da comunidade. Em outras palavras, o discurso político é o discurso da promessa de ação e
não o discurso da ação. Por isso, um político bom de discurso, isto é, dotado de boa competência retórica,
não é necessariamente um bom administrador ou legislador. Igualmente, um candidato sem grande talento
retórico pode perfeitamente revelar-se um bom administrador ou legislador. Os eleitores deveriam refletir
muito sobre esse ponto antes de votar em alguém apenas em função de seu discurso.
O advento da cultura de massas e, mais recentemente, da cultura globalizada fez com que não
apenas os bens materiais — artesanais ou industrializados — fossem elevados à condição de produtos
mercáveis, mas também os bens não-materiais se tornassem objetos de consumo de massa. É, pois,
natural que o marketing tenha chegado a setores da vida social que antes pareciam totalmente
desvinculados da idéia de compra e venda. Assim, por exemplo, o marketing político surgiu como
auxiliar do discurso político tradicional. Seu objetivo é “vender” um produto não-material, qual seja, a
imagem de um candidato ou de um partido político; para conseguir tal objetivo, o marketing foi
aproximando cada vez mais o discurso político do discurso publicitário, tratando um político ou uma
plataforma de ação como um produto que precisa, de um lado, adequar-se às demandas do mercado — no
caso, o eleitorado —, isto é, oferecer o que o público quer, e, de outro lado, tentar criar para o produto
uma disposição psicológica favorável do mercado, vale dizer, conquistar a simpatia dos eleitores para o
político e sua plataforma. Desde que a política descobriu o marketing — ou o inverso —, o discurso
político entrou em simbiose com o discurso publicitário, o qual não hesita em lançar mão de argumentos
emocionais e em apelar para a paixão, tornando assim o processo político um processo passional muito
mais do que racional.
Conclusão
Se, como vimos, o discurso político, por sua própria natureza, é um discurso persuasivo-sedutivo,
que se baseia nas modalidades do parecer, do crer e do querer, modalidades, por sinal, também presentes
e essenciais no discurso publicitário, a incorporação dos recursos discursivos da publicidade pelo discurso
político era inevitável. Compete às ciências da comunicação em geral, e à sociossemiótica em particular,
mostrar à sociedade onde está o “pulo do gato” desses discursos e, com isso, contribuir para a formação
tanto de consumidores quanto de eleitores conscientes.
Referências bibliográficas
GREIMAS, A. J. (1976) Semiótica do discurso científico: Da modalidade. São Paulo, DIFEL.
PAIS, C. T. (1978) Estruturas de poder dos discursos: elementos para uma abordagem sócio-semiótica.
Língua e Literatura, n.º 7. São Paulo, FFLCH-USP.
_______ (1993) Conditions sémantico-syntaxiques et sémiotiques de la productivité systémique, lexicale
et discursive. Paris, Université de Paris, Sorbonne. /Tese de Doutorado de Estado/
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