c e n t r o d e i n f o r m a ç ã o d o m e d i c a m e n t o ORDEM DOS FARMACÊUTICOS Antipsicóticos atípicos – actualização INTRODUÇÃO Estes fármacos são utilizados no tratamento de curto termo de perturbações psicóticas agudas, mania, psicose-depressão, nos estados de agitação das demências e delírio e no tratamento de longo termo de doenças crónicas do foro psiquiátrico. Distinguem-se dos outros neurolépticos, e devem a sua denominação ao facto de os ensaios com a clozapina terem demonstrado um risco reduzido de efeitos extrapiramidais (EEP). Posteriormente surgiram outros fármacos, com diferenças químicas acentuadas e também algumas farmacológicas, mas que partilham a denominação. Na generalidade, todos se distinguem dos antipsicóticos típicos (AT) por causarem menos EEP (e secundariamente menos casos de acatisia e discinésia tardia, embora em grau variável conforme o antipsicótico atípico-AA) e, ainda, por o seu perfil clínico demonstrar eficácia contra os sintomas positivos (agitação, agressividade, alucinações, delírios, discurso e comportamento desorganizados, etc.) e negativos (embotamento do afecto, avolição, isolamento social, falta de motivação, etc.) da esquizofrenia. Contudo, o nível de diferença dos AA em relação aos AT e alguns dos mecanismos subjacentes não estão ainda esclarecidos. Sabe-se que bloqueiam os receptores dopaminérgicos (por ex.:D2, D4) e os receptores serotoninérgicos, especialmente o 5-HT2. Há 2 hipóteses farmacodinâmicas, que se baseiam na clozapina e que explicam as diferenças de actividade e eficácia dos AA – a primeira é a de que maior afinidade para receptores D4 e menor para D2 (relação inversa ao haloperidol) e a taxa de ocupação D4/D2 podem ser determinantes no perfil clínico do fármaco atípico. A segunda é de que fármacos com grande afinidade para os 5-HT2 e menor para D2 tendem a causar menos EEP. Entre AAs, há afinidades para outros receptores e coloca-se a hipótese de interactuarem com outros, ainda não identificados.1-4 BREVE CARACTERIZAÇÃO Amisulprida - Da classe das benzamidas substituídas, actua nos sintomas positivos e negativos da esquizofrenia e utiliza-se na esquizofrenia crónica e aguda. Não tem acção relevante nos receptores serotoninérgicos. Em doses baixas, bloqueia os D2 pré-sinápticos e em doses mais elevadas actua nos D2 pós-sinápticos. Pode mesmo ser um agonista parcial dos D2. Tal pode explicar as suas diferenças de acção, pois em doses baixas, como activador dopaminérgico, actua na distimia, depressão e nos sintomas negativos da esquizofrenia. Em doses normalmente acima de 400 mg/ dia actua como antipsicótico. As reacções adversas medicamentosas (RAM) mais comuns são a sedação, aumento de peso, obstipação, agitação, galactorreia e amenorreia. Em doses elevadas pode causar prolongamento do intervalo QT, dose-dependente. Potencia esse efeito se administrado com outros fármacos que o podem causar per si.5,6 Aripiprazol - Actua nos receptores D3, agonista parcial D2, bloqueia os 5-HT2A e é também agonista parcial 5-HT2. Também utilizado como estabilizador do humor. Indicado na esquizofrenia, no tratamento de manutenção e noutras psicoses, nalguns casos refractárias a outros AA. Não partilha o efeito de aumento do peso com os outros AA, sendo por isso útil em doentes diabéticos. As RAM mais comuns são tonturas, náuseas, vómitos, insónias, obstipação, hipotensão postural e acatisia.5,6 Clozapina - Bloqueia os receptores D2 e os 5-HT2A e interage com o 5-HT2 e 5-HT1A. Utilizada depois de terem sido mal sucedidos os tratamentos com AA de 1ª linha (risperidona, quetiapina, olanzapina, ziprasidona), por mecanismo não esclarecido, no caso da esquizofrenia refractária ao tratamento. Actua nos sintomas positivos e negativos da esquizofrenia não refractária e refractária e também como estabilizador do humor, reduz o risco de comportamento suicida recorrente e de comportamento violento. Como RAM graves causa miocardite e embolismo pulmonar e ainda agranulocitose em cerca de 1-2% dos doentes, o que obriga a hemogramas frequentes e monitorização dos doentes. A hipersalivação pode ser uma causa para má adesão terapêutica e morte por asfixia, especialmente em doentes idosos, com diminuição das capacidades físicas e cognitivas. Outras RAM são as tonturas, sedação, aumento da sudorese, cefaleias e hipotensão.3,5,6 Olanzapina - Estrutural e farmacologicamente semelhante à clozapina, à excepção de uma afinidade superior para receptores D2 e antagonismo dos receptores 5-HT2C. Utilizada na esquizofrenia, doença bipolar, noutras psicoses e em casos refractários. Não se conhecem eventos de agranulocitose com este fármaco. As RAM mais comuns são aumento de peso, sedação e efeitos antimuscarínicos.3,5,6 Quetiapina - Único da classe das dibenzotiazepinas utilizado na esquizofrenia crónica e aguda e como estabilizador do humor. Além dos já descritos para a olanzapina, tem afinidade para os receptores H1 e α1-adrenérgicos, mas ao contrário da clozapina e olanzapina tem fraca afinidade para os receptores muscarínicos. As RAM mais comuns são sedação (mais acentuada do que com outros AA), cefaleias, obstipação, hipotensão postural e aumento de peso (menos acentuado do que com outros AA).3,5,6 Risperidona - Bloqueia os receptores D2 e os 5-HT2A e antagoniza os receptores α2-adrenérgicos. Actua nos sintomas positivos e negativos da esquizofrenia, na mania, noutras psicoses e como estabilizador do humor e tem actividade antidepressora. Algumas RAM da risperidona são dores abdominais, e EEP e hiperprolactinémia dose-dependentes.3,5,6 Ziprasidona - Bloqueia os receptores D2 e os 5-HT2A e in- Janeiro/Fevereiro 2006 Boletim do CIM Director: J. A. Aranda da Silva Boletim do CIM Janeiro/Fevereiro 2006 terage com os receptores 5-HT2C, 1A e 1D, o que pode explicar a eficácia nos sintomas cognitivos e afectivos em alguns doentes. Utiliza-se na esquizofrenia, mania aguda e noutras perturbações psicóticas. Apresenta menor potencial de aumento de peso, em comparação com outros AA e parece não ser um factor de risco para diabetes e dislipidémias. Parece também não ser tão sedativa como outros AA. As RAM comuns são tonturas, náuseas, astenia, hipotensão ortostática e boca seca.5,6 Zotepina - Bloqueia os receptores D2 e os 5-HT2A e inibe especificamente a recaptação da noradrenalina. Utilizada no tratamento da esquizofrenia, da mania e de outras psicoses. A sedação e o aumento de peso são RAM comuns. Ansiedade, agitação, obstipação, sudorese e hiperprolactinémia dose-dependente são também possíveis.5,6 Formulações depot - A risperidona está disponível em diferentes dosagens. Estas formulações apresentam a vantagem de os doentes poderem estar activos na comunidade, com uma dose total menor, sem o risco de má adesão à terapêutica e sem hipótese de má utilização ou sobredosagem de formas orais. No entanto, os EEP parecem ser mais comuns com estas formulações e no caso de uma RAM importante, o fármaco não pode ser rapidamente eliminado do organismo.3,6 UTILIZAÇÃO EM POPULAÇÕES ESPECIAIS Adolescentes e crianças - Não está estabelecida a sua eficácia e segurança, antes dos 16-18 anos, dependendo dos AA. Há relatos da utilização do aripiprazol, olanzapina, quetiapina, ziprasidona e principalmente da risperidona em crianças e adolescentes com perturbações do comportamento, com resultados positivos.5,6 Geriatria, insuficientes renais e hepáticos - Normalmente deve-se iniciar a titulação com doses mais reduzidas, e podem ser efectivos deste modo, nestas populações.5,6 Nos idosos com demência verificou-se em ensaios clínicos um aumento do risco de AVC/AIT com a olanzapina e com a risperidona 7,8 Aleitamento - Presume-se que todos os AA são excretados no leite materno; por isso, as mulheres medicadas, com recém-nascidos, devem alimentá-los com leite artificial, ou o seu médico deve procurar alternativa terapêutica, se tal for possível. Gravidez - Por regra, não são recomendados, mas a utilização destes fármacos durante a gravidez depende da avaliação benefício-risco, já que não há muitos estudos nesta área. Existem alguns dados referentes a exposições acidentais à clozapina, no início da gravidez, sem problemas aparentes.5,6,9 RAM MAIS COMUNS São relacionáveis com a farmacodinamia. O bloqueio dos receptores D2 no corpo estriado pode causar os efeitos adversos motores e na hipófise pode aumentar os níveis de prolactina. O bloqueio dos receptores histaminérgicos H1 no cérebro pode causar sedação e aumento de peso e o bloqueio dos α1-adrenérgicos pode causar tonturas, sedação e hipotensão. O bloqueio dos receptores muscarínicos causa por ex. visão turva, boca seca e obstipação5,6,9 Aumento de peso - Crê-se haver um mecanismo desconhecido com vários AA. É uma das razões de má adesão e abandono da terapêutica, especialmente nas mulheres. Secundariamente, é factor de risco de dislipidémias e diabetes tipo 2. Parece ainda haver um mecanismo independente e desconhecido que implica os AA no surgimento destas patologias. No entanto, a vida sedentária e alimentação desregrada, comuns nestes doentes, podem também desempenhar um papel importante neste problema.5,6,10 Síndroma maligno dos neurolépticos - Todos os AA têm potencial para o causar, com diferenças no grau de probabilidade. É um síndroma cerebrotóxico com risco de vida, caracterizado por palidez, hipertermia, rigidez muscular e distúrbios vegetativos, como pressão sanguínea lábil, taquicardia e sudorese. Tratamento de emergência e paragem imediata da medicação.1,5 INTERACÇÕES MEDICAMENTOSAS IMPORTANTES A administração de álcool, depressores do SNC ou antidepressivos tricíclicos pode aumentar o risco de convulsões, sedação e efeitos cardiovasculares. O tabaco é um indutor enzimático, que conduz à diminuição da sua eficácia. O mesmo pode suceder com a administração concomitante de barbitúricos, omeprazol, rifampicina, carbamazepina e glucocorticóides. Os AA podem antagonizar a levodopa e os agonistas da dopamina e potenciar o efeito dos fármacos anti-hipertensores. Alguns AA podem aumentar o risco de prolongamento do intervalo QT, quando utilizados com outros fármacos com esse potencial ou isoladamente, de modo dose-dependente. Para cada AA existe ainda um número alargado de interacções específicas de importância e gravidade variável.5,6,9 Sobredosagem - Não há antídotos específicos. Aplicam-se medidas de suporte geral.5 CUIDADOS E ACONSELHAMENTO FARMACÊUTICOS No controlo do peso por dieta e exercício físico, dislipidémias e controlo da glicémia, cessação tabágica, controlo dos possíveis hábitos de consumo de álcool e interacções medicamentosas. NOTAS FINAIS Como o tratamento da esquizofrenia e de outras psicoses é bastante individualizado e varia ao longo da vida do doente, optou-se por não apresentar doses de tratamento, embora os intervalos terapêuticos constem nos RCM dos medicamentos. Também o tempo que medeia entre o início da terapêutica e a efectividade máxima pode demorar de 1 a várias semanas, conforme o fármaco e o indivíduo.5,6 Cristina Castilho e Cunha Farmacêutica Hospitalar, Hospital Júlio de Matos Bibliografia: 1. Gardner D.M., Baldessarini R.J., Wairach P. CMAJ, 2005; 172(13): 1703-1711. 2. Remington G. J Psychiatry Neurosci, 2003; 28(4): 275-284. 3. Maguire T., McCaw B. Drugs acting on the Central Nervous System. The School of Pharmacy. Belfast, The Queen’s University of Belfast, 2001, pp. 32-35. 4. Anon. Bol Ter Andaluz, 2002; 18(4): 13-15. 5. Stahl S. M. Essential Psychopharmacology-The Prescriber’s Guide. Cambridge, Cambridge University Press, 2005. 6. Sadock B.J., Sadock V. A. Kaplan & Sadock’s Pocket Handbook of Psychiatric Treatment. 3rd ed. Philadelphia, Lippincott Williams & Wilkin’s, 2001. 7. Circular Informativa Infarmed, nº 030/2004 de 10/03/04. 8. Circular Informativa Infarmed, nº 027/2004 de 09/03/04. 9. Bazire S. Psychotropic Drug Directory 2005-Organon, Fivepin, Salisbury, 2005. 10. Birt J. Ann Clin Psychiatry, 2003; 15(1): 49-58. Todos reconhecemos que a resposta ao medicamento difere entre indivíduos. A idade, o sexo, o estilo de vida, o funcionamento de determinado órgão, a interacção com outros fármacos, a natureza da doença, são factores que contribuem para essa variabilidade. Os primeiros artigos que documentaram a componente genética na variação do efeito dos fármacos foram publicados nos anos 50,1 dando origem à farmacogenética e posteriormente à farmacogenómica. Hoje estima-se que a componente genética contribui entre 20 a 95% para a variação, tanto da eficácia como dos efeitos adversos dos medicamentos.2,3 Estamos ainda na infância daquela que será, seguramente, a era mais revolucionária em termos de novas abordagens terapêuticas. Em apenas 50 anos tudo mudou. Em 1953 Watson, um jovem americano, de 25 anos, ambicioso, de mente flexível, que sabia “alguma biologia”, e Crick, britânico, 37 anos, que dominava mais a física, analisaram dados recolhidos por outros cientistas que tinham sido pouco valorizados e, em poucos meses, fizeram uma das maiores descobertas cientificas de todos os tempos – a estrutura do ADN. 4 Em 1978 o Prémio Nobel da Medicina foi atribuído aos cientistas que descobriram as enzimas de restrição que permitem cindir o ADN em pontos precisos. A humanidade podia fazer o que os retrovírus fazem há muito tempo: inserir um gene num cromossoma, inicia-se a era da biotecnologia. Surgem diversas empresas como a Genentech, a Cetus, a Biogen, de entre outras, para explorar a nova técnica que permitia que as bactérias fossem induzidas a produzir proteínas humanas para uso médico, alimentar ou industrial. Os exemplos mais comuns de fármacos resultantes da biotecnologia são: insulina, hormona do crescimento, interferões, interleucina, factores de coagulação, vacina da hepatite B. Apesar de não ter correspondido às expectativas iniciais, a biotecnologia acumulou muita informação relativa ao ADN humano, permitindo a criação de uma “biblioteca” de fragmentos sobrepostos de genoma humano. Estes dados estão na génese do Projecto Genoma Humano liderado pelo Centro Sanger do Wellcome Trust (obra de caridade médica) que contou com a colaboração de milhares de cientistas dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Japão e China e com a competitividade de uma empresa privada americana, a Celera Genomics (detentora do maior supercomputador privado do mundo) para, em tempo recorde, 1998-2003, e num processo inédito de divulgação apresentarem ao mundo a sequência final do genoma humano.5 O Genoma Humano é a “fotografia” dos 3 biliões de pares de bases que constituem os cerca de 25.000 genes (muito menos que os 100.000 esperados) e que é compartilhado por 99,9% da Humanidade; ou seja, apenas diferimos em 0,1% dos nossos genes e a diferença entre os genes humanos e de um chimpanzé é de apenas 1,5%. “Essencialmente somos todos gémeos” afirmou Craig Venter, o presidente da Celera. A diversidade do género humano tem de ser procurada no meio ambiente e nas interacções humanas e não na genética; o genoma é um guia para a compreensão da génese e constituição do organismo humano. Entrámos na Era Pós Genómica, o Projecto Proteoma é a análise tridimensional e funcional do genoma, da sua regulação proteica, dependente do estado celular, da interacção entre proteínas, dos estímulos ambientais, da doença, etc. A sequenciação do genoma é um processo dinâmico e multifactorial. Foram descobertos mais de 1,4 milhões de SNIPs (single nucleotide polymorphisms) na sequenciação inicial do genoma. Os SNIPs não são mais do que uma alteração no correcto emparelhamento das quatro bases (adenina+timina e citosina+guanina); alguns destes SNIPs já foram associados a alterações substanciais na resposta a fármacos e alguns já estão a ser utilizados para prever a resposta clínica. Em Outubro de 2002 foi apresentado um novo e ambicioso projecto (HapMap) que pretende criar um mapa humano dos polimorfismos.6 Estes polimorfismos podem ser agrupados em conjuntos – haplótipos.7 Este projecto já terminou a sua primeira fase com o mapeamento de 1 milhão de polimorfismos, estando prevista na segunda fase mais 2 milhões de SNIPs. Foram envolvidos mais de 200 cientistas dos EUA, GB, Canadá, Japão, Nigéria e China e foram usadas amostras de ADN de 269 pessoas da Ásia, África e dos EUA. Este mapa permite compreender melhor a base molecular das doenças e reduzir em cerca de 20 vezes o tempo necessário para descobrir polimorfismos relacionados com a doença, uma vez que os agrupa em zonas de maior probabilidade de ocorrência. Toda a informação recolhida é partilhada pela comunidade científica, que assume, nos mais diversos projectos, a importância desta gigantesca tarefa. O desenvolvimento de chips que permitem o varrimento de 100.000 SNIPs em poucas horas e a bioinformática que processa todos os dados, permitem o tratamento permanente da informação. Esta informação tem sido direccionada principalmente para projectos na área da saúde, mas também na área da ecologia e da produção de energia; o projecto “Genomes to Life” pretende construir uma fonte energética que seja simultaneamente não poluente e consumidora de poluição. Afinal as células possuem os motores mais poderosos e limpos. A farmacogenómica/farmacoproteómica encerra expectativas muito positivas: a esperança de podermos vir a contar com terapêuticas individualizadas, mais eficazes e com menores efeitos adversos, podendo assim diminuir drasticamente o número de mortes por reacções adversas a medicamentos (RAMs) que nos E.U.A. matam cerca de 100.000 pessoas anualmente. Um exemplo recente é o da importância de determinados polimorfismos no doseamento da varfarina e consequente redução dos seus efeitos adversos.8 Os métodos actuais de monitorização terapêutica baseados essencialmente no peso, idade, alteração da função renal ou hepática, serão complementados pela administração de doses, baseadas, também, nas características genéticas. A possibilidade de conhecimento do código genético individual permitirá determinar a susceptibilidade a determinadas doenças, permitindo a modificação do estilo de vida, a utilização atempada da terapêutica e o correcto seguimento do doente. Ao nível da prevenção, o farmacêutico poderá ser solicitado a monitorizar mais rigorosamente as pessoas predispostas a determinadas patologias. Como exemplo, sabe-se que no cromossoma 19 existe uma família de genes Janeiro/Fevereiro 2006 Terapêutica e farmacogenómica/ farmacoproteómica – desafios do futuro Boletim do CIM Janeiro/Fevereiro 2006 (apolipoproteínas – APOE) que se associaram à predisposição para níveis aumentados de colesterol e para a doença de Alzheimer. Um indivíduo que possua genes E4/E4 tem susceptibilidade aumentada para a doença relativamente a um doente com E2/E2 que responderá melhor às alterações da dieta9 (deverá ser educado e motivado a alterar os seus hábitos alimentares). Este conhecimento do perfil genético ajudará na abordagem terapêutica ao doente mas coloca outro tipo de questões: se uma empresa empregadora ou uma seguradora tiver conhecimento que consta do mapa genético do indivíduo um factor que aumenta a hipótese de vir a sofrer de doença de Alzheimer pode existir discriminação. A utilização da informação contida no genoma individual deverá ser escrupulosamente discutida pelas comissões de ética e o conceito de segurança desses dados deverá ser definido. Quem assegura a privacidade dos dados individuais? O próprio? O Estado? O sistema de saúde? Se existirem marcadores que indicam probabilidade aumentada para um determinado tipo de cancro (ainda sem tratamento disponível) dever-se-á passar essa informação ao doente? As seguradoras passarão a exigir o perfil genético do seu segurado, além dos testes médicos que já exigem? Actualmente os custos associados aos testes genéticos ainda são elevados, apesar de diminuírem para metade a cada 2 anos. A promessa de baixar a barreira dos 1000€ para sequenciar todo o genoma será cumprida numa década, passando a informação genética a constar dos registos clínicos. Ao contrário de outros exames, como uma endoscopia ou colonoscopia, a determinação do perfil genético de um doente apenas necessitará ser feita uma vez. A área da oncologia será, provavelmente, uma das mais visadas pela farmacogenómica. Existem actualmente diversas terapêuticas apenas eficazes numa pequena percentagem de doentes, que são submetidos a tratamentos prolongados, sucessivamente alterados devido a ausência de resposta. A possibilidade de iniciar o tratamento com o fármaco mais eficaz pode salvar uma vida e essa escolha dependerá da classificação exacta do tipo de tumor ao nível da sua variabilidade molecular. A conjugação da informação genética com a história clínica e familiar deverá ser a abordagem mais correcta, como já acontece com a interpretação do teste BRCA1 em que a probabilidade de uma mulher, que positivou no teste, desenvolver cancro da mama é melhor definida pela sua história familiar.10 Espera-se que a indústria farmacêutica possa utilizar a medicina molecular para descobrir novas terapêuticas, mais eficazes e com menos efeitos adversos. Normalmente os fármacos são aprovados para serem utilizados por toda a população, contudo apenas são eficazes em cerca de 60%, na melhor das hipóteses. Os próprios ensaios clínicos são utilizados para aferir a magnitude de efeitos adversos que podem ocorrer durante o tratamento em contraponto com a efectividade que demonstram no combate a determinada doença ou sintoma. Com o perfil genético é possível abreviar o tempo necessário para os respectivos ensaios clínicos, através da selecção de doentes com perfil respondedor e sem predisposição para sofrerem os efeitos indesejáveis. A indústria poderá vir a direccionar produtos para os 40% de não respondedores, criando assim oportunidades de negócio. Este processo deveria reduzir os custos com a investigação clínica (reduziria o número de doentes a incluir na fase III dos ensaios clínicos de milhares para poucas centenas) e consequentemente baixar o custo das novas moléculas. Já existe um exemplo em que a genómica “salvou” uma molécula. O gefitinib, investigado para tratamento do carcinoma do pulmão, não conseguiu provar qualquer benefício para a maioria dos doentes; contudo veio a demonstrar-se que tinha resultados surpreendentes para um determinado grupo de doentes com genótipo especifico.11 Os problemas de equidade no acesso às novas moléculas, em virtude da tecnologia necessária, pode agravar ainda mais as diferenças entre “primeiro” e “terceiro” mundos e o acesso à tecnologia terapêutica, nomeadamente no tratamento de doenças actualmente incuráveis, deverá ser o mais universal possível. Contudo, é errado considerar que a genómica pouco interessará aos países menos desenvolvidos, uma vez que a sequenciação do genoma dos mosquitos transmissores, bem como o conhecimento dos factores genéticos que determinam a resistência à malária12 estão a ser estudados, antevendo uma melhoria na sua prevenção e tratamento. A discussão sobre o impacto que a farmacogenómica terá na sociedade deverá ser fomentada; a formação na área da genómica deverá ser ampliada nas licenciaturas da área da saúde e ciências sociais. Prevê-se que o impacto dependerá da maneira como a sociedade conseguir lidar com os aspectos éticos e sociais, uma vez que em termos de compreensão, prevenção e tratamento da doença parece ser um desejo de toda a comunidade científica que se proporcione melhor qualidade de vida a todos os cidadãos. Estão já a ser utilizados nos hospitais portugueses medicamentos “nascidos na medicina molecular”. A doença está a ser melhor compreendida. Em apenas 3 anos após a sequenciação do genoma humano já se notam alterações. Ainda não é a erradicação da doença, nem a descoberta da fonte da eterna juventude, mas são pequenos passos que permitem ter esperança num futuro melhor. Nós, como farmacêuticos, estamos no centro desta espiral, quer seja como agentes ligados à investigação, produção, comercialização ou utilização destas novas tecnologias terapêuticas, e a nossa contribuição será sempre importante. Vamos acreditar que o melhor ainda está para chegar... Armando Alcobia Martins Farmacêutico Hospitalar Bibliografia 1. Kalow W. Lancet 1956; 2:576-577. 2. Kalow W., Tang B. K., Endrenyi I. Pharmacogenetics 1998; 8: 283-289. 3. Price Evans D.A. Genetic factors in drug therapy: clinical and molecular pharmacogenetics. Cambridge, England: Cambridge University Press, 1993. 4. Watson J. D., Crick F. H. Nature. 1953; 171: 737-738. 5. Collins F. S., Morgan M, Patrinos A. Science. 2003; 300: 286-290. 6. International HapMap Consortium. Nature. 2003; 426: 789-796. 7. Crawford D. C., Nickerson D. A. Annu Rev Med. 2005; 56: 303-320. 8. Rieder M. J., Reiner A. P., Gage B. F., et al. N Engl J Med. 2005; 352: 2285-2293. 9. St George-Hyslop P. H. 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