A PRIORIZAÇÃO DA FAMÍLIA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Soraya Magalhães Pelegrini Oliveira1. Nayara Hakime Dutra Oliveira2. RESUMO A família contemporânea vem sofrendo inúmeras modificações no decorrer das décadas, seja em relação à sua configuração monoparental feminina, sem filhos, reconstruídas, homoafetivas, chefiadas pelos avós, tanto em relação à sustentação econômica que reflete a participação das mulheres no mercado de trabalho. Brevemente, no decorrer do trabalho, mencionaremos os programas destinados às famílias nas últimas décadas. Abordaremos a priorização das famílias pela política de assistência social e procuraremos desvendar o porquê dessa priorização. Trabalharemos com a perspectiva de famílias vulnerabilizadas por acreditarmos que é um termo que remete para além da renda e também por ser comumente empregado pela atual política de assistência social. Palavras-Chave: Política de Assistência Social; Família; Vulnerabilidade. 1 Assistente social, mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UNESP, Campus Franca/SP e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Famílias (GEPEFA). 2 Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP, Campus Franca/SP e vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Famílias (GEPEFA). 1 1 – INTRODUÇÂO Este artigo procurará refletir sobre a priorização das famílias nas políticas públicas, especialmente, na política de assistência social, trazendo aspectos referentes à legislação que normatiza a política da assistência social no Brasil, tais como a Constituição Federal de 1988, a Lei Orgânica da Assistência Social e Política Nacional de Assistência Social. Procuraremos ainda resgatar a visão de que as famílias não podem ser culpabilizadas pela situação de pobreza em que se encontram, visto que, esta situação se volta para o momento atual da sociedade capitalista, ou seja, sua face neoliberal que se reflete, dentre outros fatores, no baixo investimento em políticas públicas, fazendo com que as famílias assumam responsabilidades que seriam de responsabilidade do Estado, ficando sobrecarregadas em relação aos seus papéis, ou seja, havendo uma inversão dos mesmos. Dessa forma, as políticas sociais são insuficientes para atender as necessidades das famílias que utilizam os serviços sociais públicos. Abordaremos no decorrer do trabalho, as transformações que a família vem sofrendo, tanto na sua configuração (famílias chefiadas por mulheres, avós, famílias reconstruídas) quanto em relação à situação socioeconômica. Buscaremos apontar, de forma breve, as dificuldades de legitimação da política de assistência social e sua relação com as famílias usuárias dos serviços. Nesse sentido, que Para compreender as políticas para as família é preciso contextualizá-las no cenário socioeconômico, histórico e político amplo, bem como considerar as transformações da história da família e, ainda, a singularidade dos vínculos familiares, uma vez que os níveis universal, particular e singular não são desconectados, mas articulados em mútuas afetações (MOREIRA; PASSOS; PEREIRA, 2012, p. 47). 2- DESENVOLVIMENTO No período anterior à Constituição Federal de 1988, a assistência social não era tratada como política pública, partícipe do tripé da Seguridade Social. Era vista como uma benesse da sociedade para com aqueles que se encontravam em situação de pobreza. A assistência era desenvolvida por meio de programas residuais voltados, principalmente, à oferta de benefícios eventuais e aos adolescentes em conflito com a lei. Para José Filho (2002, p. 35), 2 “No Brasil, as políticas assistenciais no âmbito do atendimento e programas à família sempre se caracterizaram por uma descontinuidade, por falta de verbas. Fragmentadas, as políticas sociais desmembram a família em segmentos que não são suficientemente atendidos”. Em 1988, a política de assistência social foi regulamentada com os artigos 203 e 204 da Constituição Federal que prevê em seu artigo 203 que “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (...)”. Assim, a partir dessa orientação, a política de assistência social voltou ainda mais seu olhar para as famílias que necessitavam desta política devido à vivência de situação de pobreza. Após a Constituição Federal de 1988, tivemos a Lei Orgânica da Assistência Social, lei n. 8742 de 1993, que também se voltou para as famílias, tendo em seu artigo 2º, inciso I, uma redação parecida com o artigo da Constituição. Diante desse contexto, a assistência social segue o mesmo percurso do Sistema de Proteção Social, ou seja, se desloca de um modelo meritocrático-particularista para institucionalredistributivista, na medida que coloca em pauta a LOAS como política pública na tentativa de universalizar cada vez mais os direitos sociais. Esquematizar tal processo em uma sociedade acostumada com um forte nível de clientelismo e assistencialismo é muito difícil. A partir dessa nova atribuição é exigida uma melhor qualificação dos profissionais da área, um reordenamento da infraestrutura e um melhor redirecionamento dos recursos públicos. assim, foi necessária a criação de conselhos, fundos e planos municipais, tendo como base a descentralização da assistência social (SARTORI, 2012, p. 91). Após quase uma década de luta pela formulação da Política de Assistência Social esta foi publicada através da Resolução CNAS n. 145 de 15/10/2004, nesta, a família ganhou especial destaque sendo considerada público prioritário para a intervenção social, sendo considerados usuários desta política: (...) cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade dos vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; 3 diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal ou informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social (BRASIL, 2005, p. 33). Percebemos que todas as características anteriores que caracterizam o público da política de Assistência Social estão presentes nas famílias, dessa forma, a matriciliadade sociofamiliar passou a ser um dos eixos estruturantes dessa política: Embora haja o reconhecimento explícito sobre a importância da família na vida social e, portanto, merecedora da proteção do Estado, tal proteção tem sido cada vez mais discutida, na medida em que a realidade tem dado sinais cada vez mais evidentes de processos de penalização e desproteção das famílias brasileiras. Nesse contexto, a matricialidade sociofamiliar passa a ter papel de destaque no âmbito da Política Nacional de Assistência Social – PNAS (BRASIL, 2005, p. 41). Atualmente, os equipamentos públicos tanto da área da assistência social (CRAS – Centro de Referência da Assistência Social e CREAS – Centro de Referência Especializado da Assistência Social), tal como da área de saúde (ESF – Estratégia Saúde da Família) apostam no acompanhamento social às famílias para superação das vulnerabilidades inerentes às suas áreas. Na mesma direção reflexiva apresentada pela Política de Assistência Social, na visão de Carvalho (2010, p. 270), Também as políticas de combate à pobreza elegeram família e comunidade. A consciência geral de que a pobreza e a desigualdade castigam grande parcela da população brasileira estão a exigir políticas públicas mais efetivas e comprometidas com sua superação. Nesse compromisso, buscam assegurar uma rede de proteção e de desenvolvimento socioeconômico voltado às famílias e às comunidades vulnerabilizadas pela pobreza. Os diversos programas de renda mínima, por exemplo, visam garantir ao grupo familiar recursos suficientes que permitam uma cesta alimentar e a manutenção dos filhos na escola, inibindo o trabalho precoce de crianças e adolescentes. Entretanto, sabemos que as vulnerabilidades sociais e econômicas, bem como, as limitações sofridas pelas famílias não são decorrentes da vontade das mesmas, mas são fruto do modelo de produção capitalista que culpa os indivíduos pela situação de pobreza, 4 naturalizando a desigualdade social. Esta visão de sociedade disseminada nos veículos de comunicação tratam as famílias em situação de vulnerabilidade como ociosas e sem vontade de trabalhar. Ao mesmo tempo em que se elege a família como foco de atuação também vivenciou um período de pouco investimento nas políticas, recuperando o conservadorismo anteriormente existente. A tendência, hoje, é restringir os gastos públicos por parte do governo aos programas de assistência, o que consequentemente irá colocar a família em uma situação complexa. A maioria das famílias não recebem o suficiente para garantir a manutenção de sua sobrevivência. A distribuição de renda não garante o mínimo necessário às famílias para ter acesso à educação, alimentação, saúde, habitação (JOSÉ FILHO, 2002, p. 35). Dessa forma, pensar o alcance da política de assistência social se faz necessário para que possamos compreender as reais necessidades das famílias que frequentam os serviços sociais. Nesse sentido é que no decorrer deste trabalho, optamos por tratar de vulnerabilidades e não apenas a situação de pobreza, por entendermos que as vulnerabilidades são para além da renda, inserção no mercado de trabalho, mas envolvem também os ciclos de vida, os vínculos relacionais, o grau de escolaridade, a moradia, a alimentação, condições de saúde, entre outras. Na verdade, concordamos com Carvalho (2014, p. 24) no sentido que: Um cidadão ou grupo social é vulnerável quando possui poucos vínculos e conexões no microterritório que habita, na cidade e mesmo fora da cidade. Um cidadão com maiores vínculos, para além das suas condições de renda e moradia, está mais potente para caminhar com autonomia. Há algumas décadas, as políticas públicas como um todo tem se voltado para a família como uma saída encontrada pelo capital para justificar o baixo investimento em serviços sociais públicos, muitas vezes culpabilizando a família pelo não cumprimento do seu dever enquanto provedora e mantenedora de seus membros e em outras vezes responsabilizando-a como geradora de proteção social através dos laços de amizade e confiança mutua como a família extensa e vizinhança. Se, em toda sociedade brasileira, a família é um valor alto, entre os pobres, sua importância é central, e não apenas como rede de apoio ou ajuda mutua, diante de sua experiência de desamparo 5 social. A família para eles vai além; constitui-se em uma referência simbólica fundamental, que organiza e ordena sua percepção do mundo social, dentro e fora do mundo familiar (SARTI, 2010, p. 33-34). Pereira (2010) compartilha a mesma visão de Sarti, no sentido de que considera a família como um agente de proteção social. Por isso, a necessidade de se fortalecer a família para que ela consiga desenvolver sua função protetiva. É claro que com o aporte do Estado. Nesse sentido, esta autora nos aponta que: Desde a crise econômica mundial dos fins dos anos 1970, a família vem sendo redescoberta como um importante agente privado de proteção social. Em vista disso, quase todas as agendas governamentais preveem, de uma forma ou de outra, medidas de apoio familiar, particularmente as dirigidas às crianças, (...)” (PEREIRA, 2010, p. 26). Em consonância com o pensamento de Pereira (2010), Sawaia (2010, p. 41) nos aponta que a família “continua sendo, para o bem ou para o mal, a mediação entre indivíduo e sociedade. E mais, assiste-se hoje um enaltecimento dessa instituição, que é festejada e está em evidência nas políticas públicas, e é desejada pelos jovens”. De fato, com as incertezas do modelo econômico neoliberal, a proteção social como um todo vem se esfacelando há algumas décadas, os direitos sociais estão flexibilizados e as garantias sociais estão se tornando cada vez mais mínimas, num ciclo cada vez mais perverso do capital. Nesse contexto de desmonte das políticas públicas, podemos inferir que: o Estado isentando-se dos deveres de prover o cuidado dos cidadãos, sobrecarrega a família, conclamando-a a ser parceira da escola e das políticas públicas, e a sociedade, atônita, na ausência de “lugares com calor”, elege-a como o lugar da proteção social e psicológica (SAWAIA, 2010, p. 42). Dessa forma, observamos que o Estado se desresponsabilizar pelas políticas sociais de forma geral é decorrente do fato que: o Brasil chegou ao cenário da crise social e mudanças estruturais no mercado de trabalho da década de 1990, sem ter aprofundado as estruturas básicas do Welfare State, em que se estabelecia um notável equilíbrio entre as forças do mercado e sociedade, e se instauravam políticas sociais pautadas na universalização e 6 equidade dos direitos sociais (ALENCAR, 2010, p. 72). E ainda temos como maiores prejudicadas as famílias em situação de vulnerabilidade social. Guimarães e Almeida (2010, p. 129) apontam que “Entre as famílias pobres, as ameaças sempre foram mais presentes e o desemprego muito mais constante; contudo, num mundo de economia globalizada e pobreza regionalizada segundo as especificidades locais, elas são hoje mais duramente atingidas pelo desemprego”. Na mesma direção de análise dos autores acima, Alencar (2010, p. 63-64) nos informa que: Na ausência dos direitos sociais, é na família que os indivíduos tendem a buscar recursos para lidar com as circunstâncias adversas. Dessa forma, as mais diversas situações de precariedade social, desemprego, doença, velhice, encaradas como dramas da esfera privada, tenderam a ser solucionadas na família, como responsabilidade de seus membros. Na maioria das vezes, a responsabilidade recai sobre as mulheres, tornandoas responsáveis pelo cuidado dos filhos menores, dos idosos, doentes e deficientes, sobrecarregando-a ainda mais, considerando-se que grande parte das famílias são chefiadas por mulheres. Com as transformações ocorridas no mundo contemporâneo, dentro da família, o Estado tem priorizado alguns seguimentos. Neste caso, a autora abaixo se refere às crianças: Desde a crise econômica mundial que teve lugar em fins dos anos 1970, a família vem sofrendo transformações e sendo reconhecida como um importante agente privado de proteção social. Tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina, bem como em boa parte do mundo, a estrutura familiar vem passando por mudanças profundas, é o que podemos chamar de Família Contemporânea. E a partir de tais transformações, começou-se a pensar no atendimento ao grupo mais vulnerável que faz parte da família: as crianças. Com isso, entram em cena as políticas de atendimento ao grupo familiar, como programas de redução da pobreza infantil, políticas de valorização das relações familiares, tentativas de diminuição dos riscos e desagregação familiar, dentre outras medidas de caráter preventivo e corretivo (SARTORI, 2012, p. 210-211). Ao priorizar apenas um segmento da família, as políticas fragmentam a oferta de serviços à família. Nesse contexto, a família tem sido a maior prejudicada, pois seus membros 7 acabam desempregados e dependendo, muitas vezes, de programas de transferência de renda para sobreviver e dessa forma, mas não só por isso, a família passa a ser estigmatizada, sendo que um dos termos adotados é a família “desestruturada”, pois foge do padrão imposto pela sociedade atual. Sobre as famílias alcunhadas como “desestruturadas”, José Filho (2002, p. 32), menciona que A família ideal faz parte dos padrões culturais da nossa sociedade, pois envolve valores, normas e práticas que se manifestam mediante objetivo e formas de agir e de pensar, sendo estes transmitidos de geração em geração. E como um padrão cultural, faz com que as pessoas façam valer as normas estabelecidas e aqueles que não se enquadram dentro das normas são punidos por mecanismos disciplinares (comentários maliciosos, fofocas e outros) que agridem a individualidade, o respeito, a honra e a dignidade das pessoas. Já Mioto corrobora com a visão de José Filho ao afirmar que Diante disso, pode-se afirmar que não é apenas por uma questão semântica que o termo “famílias desestruturadas” continua sendo de uso corrente. Cada vez mais ele é utilizado para nomear as famílias que falharam no desempenho de suas funções de cuidado e proteção dos seus membros e trazem dentro de si as expressões de seus fracassos, como alcoolismo, violências e abandonos. Assim, se ratifica a tendência de soluções residuais aos problemas familiares (MIOTO, 2010, p. 54). Outro fato marcante é que grande parte das famílias vulnerabilizadas são chefiadas por mulheres, haja vista a preferência dos programas sociais em colocar a mulher como referência da família, pois acredita-se que – apenas um dos argumentos - as mulheres podem fazer melhor uso do recurso financeiro do que os homens. Para as autoras Moreira, Passos e Pereira (2012, p. 39), “Nas famílias monoparentais femininas, as mulheres buscam nas políticas públicas e nos programas sociais parceria e apoio material e simbólico para que possam realizar as tarefas de provedoras e de cuidadoras de suas crianças e adolescentes”. No decorrer da história, as famílias sempre foram responsabilizadas pela provisão material, cuidado e proteção de seus membros, independente de não ter condições para isso. Nesse sentido, Mioto (2010, p. 51) nos coloca que pode haver uma diferenciação entre as famílias capazes e as incapazes, sendo que este último estereótipo de família quase sempre é 8 alvo da intervenção do poder público. Para Iamamoto (2010, p. 265), “A capacidade da família prover as necessidades de seus membros encontra-se estreitamente dependente da posição que ocupa nas relações de produção e no mercado de trabalho”. Nesse interim, podemos afirmar que as famílias com menor capacitação, tende a ter mais dificuldades de se inserir no mercado de trabalho e quando se inserem, a inserção se dá de forma precária, exercendo trabalhos informais ou ocupando subempregos. Na ausência de um verdadeiro Sistema de Proteção Social é na família que os indivíduos tendem a buscar recursos para lidar com as circunstâncias adversas. A partir da grave crise econômica estabelecida no início dos anos 1990, expressa no desemprego crescente, rebaixamento de salários, precarização das condições e relações de trabalho, desregulamentação de direitos sociais, observa-se uma fragilidade da família em dar conta dessa ampla gama de demandas sociais. O Estado, com isso, não pode simplesmente sobrecarregar as famílias, mas sim fornecer as condições mínimas para a sua sobrevivência, reputando-lhes papel central na elaboração de políticas públicas eficazes, ao torna-las alvo de políticas que realmente levem em consideração as novas configurações da questão social no país (SARTORI, 2012, p. 250-251). Nesse sentido, a formação da família brasileira sofreu muitas mudanças no decorrer da história, ganhando novas configurações, passando de um modelo de família nuclear para modelos mais abertos tais como famílias monoparentais, homoafetivas, chefiadas por mulheres, tendo como principais provedores do lar os/as avós, entre outros. Para Pereira (2010, p. 39), “As famílias, a partir dos anos de 1990, tornaram-se efêmeras e heterogêneas. Assumiram uma variedade de formas e arranjos, e exigiram revolucionárias mudanças conceituais e jurídicas”. Assim, o perfil das famílias brasileiras se encontra em profundas mudanças que ocorrem em relação à lugar e ao tempo. Nesse sentido, a própria Política de Assistência Social deverá acompanhar as mudanças nas famílias para que o trabalho social possa ter sucesso em sua realização. A mudança nas configurações familiares não está em evidência apenas no Brasil, segundo informação de Pereira (2010, p. 26), Alguns países dão especial suporte material às famílias monoparentais com crianças e dependentes adultos. Outros 9 incentivam a reinserção da mãe trabalhadora no tradicional papel de “dona-de-casa”, com o chamativo apelo da importância do cuidado direto materno na criação saudável dos filhos. Como mencionamos anteriormente, há uma tendência, principalmente, no que tange os programas de transferência de renda brasileiros de considerar as mulheres como a responsável familiar, pois consideram que as mulheres sabem gerir melhor o benefício, o que confirmamos com a análise de Pereira (2010, p. 29), Todos os Estados de Bem-Estar estiveram baseados em um modelo familiar, no qual as formas de proteção eram asseguradas por duas vias: uma, mediante a participação (principalmente masculina) do chefe da família no mercado de trabalho e a sua inserção no sistema previdenciário; outra, pela participação (em sua maioria feminina) dos membros da unidade familiar nas tarefas de apoio aos dependentes e na reprodução de atividades domésticas não remuneradas. Na realidade atual, as mulheres casadas ou não participam ativamente do mercado de trabalho, estando presentes em inúmeras profissões. Porém, sabemos que as mesmas possuem jornada ampliada no sentido que ao chegar em casa devem dedicar-se às tarefas domésticas e à criação dos filhos. A visão idealizada da família acarreta uma sobrecarga de tarefas e expectativas sobre as mulheres e uma desresponsabilização dos homens, especialmente quando houve uma ruptura com o laço conjugal. Por outro lado, a visão idealizada da família produz uma desqualificação da família real, tratada como ‘desestruturada’, bem como uma culpabilização, especialmente das mães, pela situação das crianças e adolescentes. A família que vive em condição de vulnerabilidade é desqualificada e torna-se objeto de tutela e controle social. Nesse sentido, a política para a família deixa de ter efeito emancipatório, de promoção de autonomia e de cidadania, e gera dependência e perpetuação de práticas assistencialistas (MOREIRA; PASSOS; PEREIRA, 2012, p. 40). Atualmente, outra configuração familiar bastante frequente são os/as avós que são chefes de família, as avós, principalmente, acabam assumindo o cuidado dos netos quando a 10 família não se encontra em condições de manter a subsistência ou ainda em casos de divórcio, no qual a mulher acaba retornando para a casa dos pais. Para Vitale (2010, p. 96), “o aumento do número de crianças que vivem com os avós é fato. A pobreza, o desemprego, o aumento da desigualdade social, a insuficiência das políticas públicas e sociais podem ter levado ao aumento de sua contribuição na rede familiar”. Na verdade, quando as famílias voltam a morar juntas significam que estão em busca de proteção e também uma estratégia de sobrevivência. E ainda segundo essa mesma autora: As novas dimensões da vida familiar – tais como as mudanças nas relações de casamento e monoparentalidade – parecem também colocar em evidência muito mais os laços intergeracionais e destacar a presença de avós nas cenas familiares. Nas famílias pobres, isto se aguça: a vulnerabilidade vivida pela família impede, tanto para os membros mais jovens como para os idosos, movimentos na direção de maior autonomia. Por sua vez, essas famílias, desprovidas de proteção social, têm necessidade de incrementar as trocas intergeracionais para responder às exigências dos diversos momentos de seu ciclo de vida. Os avós, como já apontado, participam ativamente dessas trocas (VITALE, 2010, p. 100). José Filho (2002) considera que uma das funções principais desenvolvidas pelas famílias é a função reprodutora das relações sociais, ou seja, é por meio dela que o indivíduo conseguirá estabelecer relações dentro da sociedade. Para entendermos o grupo familiar é de suma relevância considera-lo dentro da complexa trama social e histórica que o envolve. Uma consideração importante é que independente de sua forma, a família constitui-se em torno de uma necessidade material: a reprodução biológica ela promove também a reprodução social: é na família que os indivíduos são educados para que venham a continuar, biológica e socialmente, a estrutura familiar. É por isso que ela ensina aos seus membros como se comportar fora das relações familiares em toda e qualquer situação. A família é pois, “construtora” do cidadão (JOSÉ FILHO, 2002, p. 26). Diante das transformações que a família brasileira vivencia, considerando os rebatimentos da precarização do trabalho na vida delas e ainda o baixo investimento nas políticas públicas, as famílias vem sofrendo cada vez mais por não conseguirem manter sua 11 função protetiva e prover as necessidades mínimas aos seus membros. Essa tendência se acirra e se legitima no Brasil a partir da chegada da concepção conservadora, encampada pelo ideário neoliberal na Europa e nos Estados Unidos, a qual afirmava que a sociedade e a família teriam, desde então, papéis decisivos na redução das desigualdades sociais e ao Estado caberia os ‘mínimos sociais’. Com a crise do modelo de Welfare State a partir dos anos 1980, essa situação se torna cada vez mais comum em países como o Brasil. Com isso, o governo Collor de Mello inaugura, juntamente com a abertura econômica, a entrada do neoliberalismo na agenda social brasileira e seu sucessor reafirma ainda mais tais ideais, ao deixar a cargo do Estado somente as questões sociais básicas, como foi o caso da criação do Bolsa-Escola, dentre outros programas sociais, no referente período (SARTORI, 2012, p. 213). Foi neste cenário complexo que a política de assistência social nasceu, porém, teve quase uma década de adormecimento, executando apenas programas focalizados. É claro que muito temos que avançar no trato com as famílias dentro dos serviços de assistência social, pois, ao priorizá-la também se corre o risco de culpabilizá-la. Nesse sentido, acreditamos que é possível o empoderamento dessas famílias através de um profícuo trabalho social com famílias numa perspectiva emancipatória baseada nos ensinamentos de Paulo Freire, mesmo não sendo comum nas políticas públicas. Porém, sabemos que este trabalho se encontra na contracorrente, pois é contrário ao que é pregado e instituído pelo capital, mas não é impossível de ser realizado. Nesse sentido, desvendar este cenário às nossas famílias se faz urgente. Por isso, devemos ser perseverantes na resistência e propositivos no enfrentamento. 3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com o exposto, consideramos que as famílias se tornaram no decorrer das décadas do século XX e XXI, público prioritário das políticas públicas. O movimento de se voltar à família foi não só reforçado como também imposto pelo Estado devido ao desmonte dos direitos sociais e em decorrência das políticas públicas que no Brasil nunca chegaram a se efetivar na íntegra de fato. Dessa forma, as famílias se veem como responsáveis pelo provimento de seus membros, seja como promotora da educação, seja como promotora de 12 saúde, emprego, entre tantos outros fatores. A política de assistência social está imbricada nesse contexto, devido ao seu objetivo de proteger e promover as famílias em situação de vulnerabilidade social, assim, sabemos que a política de assistência social enfrenta um momento desfavorável para se afirmar na defesa dos direitos sociais e das famílias, pois a lógica do mercado em parceria com o Estado é de desmonte. Nesse sentido, priorizar as famílias na política de assistência social requer ir além do simples acompanhamento e inclusão em programas de transferência de renda, requer que as priorizemos no sentido da emancipação social. Dessa forma, consideramos que o maior desafio é tornar as famílias realmente como sujeitos de direitos e cidadãs de fato. Sabemos que não conseguiremos de uma hora para outra, mas nos dizeres de José Filho: A educação para a formação da cidadania é um processo lento e profundo que poderá levar gerações para se perpetuar concretamente dentro do espaço social. A dimensão de construção é muito ampla e longa, pois trata-se de construir “gente”, além de meros trabalhadores treinados e alienados, estamos falando de construir “pessoas” informadas e conscientes de sua situação e condição dentro da sociedade a qual lhe atribui direitos e deveres sociais (JOSÉ FILHO, 2002, p. 76). 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ACOSTA, A. R.; VITALE, M. A. F. (orgs.). 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