Mielomeningocele cifose

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CIFOSES NA MIELOMENINGOCELE: CONCEITOS, TÉCNICAS DE TRATAMENTO E APRESENTAÇÃO DE CASOS
SEGUNDA SEÇÃO
ORTOPEDIA GERAL
Cifoses na mielomeningocele: conceitos, técnicas
de tratamento e apresentação de casos*
IVAN FERRARETTO1, DJALMA P. MOTA2, A.C. FERNANDES2, PAULO
RESUMO
A cifose congênita é a deformidade de coluna mais grave nos pacientes com mielomeningocele; ocorre em aproximadamente 10% dos pacientes. A cifose habitualmente
está presente no nascimento e pode tornar difícil o fechamento da bolsa. Em geral a curva se estende do nível torácico inferior até o nível do sacro, ficando o ápice da
curva na região lombar média. A deformidade é progressiva e normalmente maior do que 90 graus quando a criança chega aos dois anos de idade. Vários pacientes apresentam problemas persistentes ao sentar e rupturas de
pele. A ortótica da coluna não previne a progressão da
deformidade. São relatados altos índices de complicações
e recidivas da deformidade com o tratamento cirúrgico.
Os autores revisam a literatura, descrevem a técnica de
ressecção-osteotomia e relatam o tratamento de cinco pacientes submetidos a intervenções cirúrgicas em sua instituição. Nessa série de pacientes, utilizaram a instrumentação de Luque segmentar com a técnica de Dunn ou a
técnica de dois fios de Kirschner. Houve menos complicações no pós-operatório e os resultados foram satisfatórios
em todos os casos tratados.
SUMMARY
Kyphosis in myelomeningocele: concepts, treatment techniques and case reports
Congenital kyphosis is the most severe spinal deformity in
patients with myelomeningocele; it occurs in approximately
10% of patients. The kyphosis usually is present at birth and
* Trab. realiz. na AACD (Associação de Assistência à Criança Defeituosa),
São Paulo, SP.
1. Diretor Clínico da AACD, Hospital e Centro de Reabilitação.
2. Coord. das Clínicas de Escoliose e Mielomeningocele.
3. Méd. Assist. das Clínicas de Escoliose e Mielomeningocele.
Endereço para correspondência: Caixa postal 8334 – 01065-970 – São Paulo,
SP.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
DE
O. MACHADO2, JOÃO ALÍRIO T. SILVA JR.3
may make sac closure difficult. The curve generally extends
from the lower thoracic level to the sacral spine, with the
apex of the curve in the mid-lumbar region. The deformity is
progressive and usually is greater than 90 degrees by the
time the child is 2 years old. Several patients have persistent
seating problems and skin breakdown. Spinal orthotics do
not prevent progression of the deformity. High rates of complications and recurrence of the deformity are reported with
the surgical treatment. The authors reviewed the literature,
described the resection-osteotomy technique and reported the
treatment of 5 patients submitted to surgical treatment at their
institution. In this series of patients, they used the segmental
Luque instrumentation with the Dunn technique or 2 K-wires
technique. There were fewer postoperative complications and
results were satisfactory in all cases treated.
INTRODUÇÃO
Nas últimas duas décadas o número de crianças sobreviventes com graves seqüelas de mielomeningocele tem aumentado gradativamente, graças aos progressos da neurocirurgia, unidades de terapia intensiva neonatal e novos antibióticos.
Devido às malformações dos sistemas nervoso central e
esquelético, a mielomeningocele constitui doença altamente
complexa, envolvendo vários aparelhos, exigindo o concurso de equipe de especialistas, entre eles os neurocirurgiões,
pediatras, urologistas, ortopedistas, fisiatras, além de profissionais como fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, enfermeiras, assistentes sociais, técnicos em aparelhos ortopédicos, professores e orientadores vocacionais.
Todo esse grupo trabalha em conjunto no Centro de Reabilitação, formando a Clínica de Mielomeningocele. Essa
clínica proporciona à criança e a seus familiares atendimento uniforme e orientação segura para a família(3,4).
A AACD há 20 anos criou no Brasil a primeira clínica de
mielomeningocele, onde esse atendimento está padronizado. O ortopedista é membro importante da equipe e sua res963
I. FERRARETTO, D.P. MOTA, A.C. FERNANDES, P.O. MACHADO & J.A.T. SILVA JR.
ponsabilidade é a de evitar e corrigir deformidades na coluna e membros inferiores.
CIFOSES
Raycroft & Curtiss(12) examinaram 130 crianças com mielomeningocele e descreveram dois tipos de deformidades
cifóticas: 1) as cifoses paralíticas devidas a paralisias musculares e 2) cifoses congênitas produzidas por alterações na
topografia e na estrutura das vértebras.
CIFOSES PARALÍTICAS
As cifoses paralíticas até os sete ou oito anos de idade são
flexíveis ou relativamente flexíveis, porém progressivas. O
exame clínico e o radiográfico mostram uma curva longa
sem malformações ósseas congênitas, com perda total ou
parcial de lordose lombar. Nos casos de grave paralisia da
musculatura do tronco surge o colapso vertebral, no qual o
paciente não consegue sentar-se sem o apoio manual.
Quando há perda total da lordose lombar, a pelve também
se apresenta cifótica. Clinicamente, há um colapso vertebral
e a criança praticamente se senta sobre seu sacro. Após um
período de relativa flexibilidade, a curvatura tende a estruturar-se progressivamente. Trinta e cinco por cento das crianças com nível neurológico T12 desenvolve cifose de raio longo(12) e não é raro examinarmos crianças com curvas de 90º
ou 100º (fig. 1).
CIFOSES CONGÊNITAS
As cifoses congênitas estão presentes já ao nascimento,
podendo medir cerca de 70º a 90º, chegando a até 160º a
180º por volta dos quatro ou cinco anos de idade. A incidência de deformidade é de 8% a 15% do total dos pacientes
com mielomeningocele e praticamente de 100% nos com
nível torácico de lesão(1,6-12,15). Clinicamente, as crianças apresentam uma grande protuberância em ângulo agudo na face
posterior do tronco e a cifose em seu prolongamento distal
inclui o sacro. O ápice das cifoses situa-se geralmente em
L1-L2, é rígido e o defeito produzido pela ausência das lâminas aparece nas últimas vértebras torácicas, prolongandose até o sacro. O que restou das lâminas continua ventralmente com os pedículos.
Mais lateralmente, encontram-se os processos transversos
hipotróficos. Ventralmente, está a musculatura extensora que,
devido à cifose, foi desviada para a frente e agora funciona
como musculatura flexora. Centralmente a esse defeito si964
Fig. 1
Caso 3 – E.R.T.C.,
8+4, cifose
paralítica,
medindo 95º, com
ápice da curva ao
nível de L2
tua-se o saco dural em contato direto com o corpo vertebral.
Posteriormente, esse saco está delimitado por tecido subcutâneo muito fino e por pele atrófica de cor violácea e pouco
resistente ao atrito, em que se nota a cicatriz cirúrgica do
fechamento da bolsa. O saco dural levemente túrgido pelo
conteúdo liquórico pode ser palpado através dessa pele. Se o
paciente ao sentar-se ou deitar-se em decúbito dorsal apoiar
por longo tempo a área cifótica totalmente, a pele local se
romperá, podendo dar início a uma escara que dificilmente
cicatriza. É esse risco de ferimento um dos principais fatores
na indicação do tratamento cirúrgico da deformidade.
Superiormente à cifose, aparece uma lordose compensatória também rígida, que se inicia em T9-T10 prologando-se
até as vertebras torácicas mais altas. O reconhecimento dessa lordose é importante para determinar a técnica do procedimento cirúrgico.
Essas crianças são extremamente fracas, com baixo peso
(12-15kg aos 7-8 anos de idade), anêmicas, apresentam infecções urinárias crônicas e pouco resistentes a qualquer outro tipo de infecção, principamente as respiratórias. Sua expansão pulmonar está prejudicada pela biomecânica anormal das costelas e do diafragma.
Radiograficamente, no perfil nota-se uma cifose de ângulo agudo, com a vértebra do ápice desviada tão posteriorRev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
CIFOSES NA MIELOMENINGOCELE: CONCEITOS, TÉCNICAS DE TRATAMENTO E APRESENTAÇÃO DE CASOS
mente que pode simular uma hemivértebra posterior ou espondilolistese torácica ou lombar alta.
Associadamente, podemos encontrar também disrafias espinhais como diastematomielia, hemivértebras, barras ósseas
ou malformações tão complexas que até a sua descrição é
difícil (fig. 2).
CIFOSES PARALÍTICAS
Indicações e tratamento
Como já assinalamos, as curvas são progressivas. Inicialmente, porém, pode ser tentada uma órtese toracolombossacra, cuja finalidade é apenas de manter a coluna melhor alinhada no plano sagital e permitir uma posição sentada mais
satisfatória. São importantes os cuidados com a pele e a proteção do ápice da cifose.
Fig. 3 – Caso 1 – A e B) Paciente sentado com cifose lombar grave. À tração manual, nota-se pequena flexibilidade da curva. C e D) Radiografias
pré-operatórias em ântero-posterior e perfil (cifose medindo 160º).
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
Fig. 2 – Caso 5 – A) Malformações complexas de vértebras torácicas e lombares (hemivértebras, barras ósseas, ausência de arcos posteriores). B) Perfil
– cifose lombar com ápice ao nível de L2-L3.
Fig. 4 – Caso 1 — A e B) Radiografias transoperatórias após ressecção de
corpos vertebrais (L3-L4) e fixação com dois fios de Kirschner cruzados. C)
Radiografia em perfil com 15 anos de pós-operatório (cifose medindo 95º).
D) Aspecto clínico após 15 anos de seguimento.
965
I. FERRARETTO, D.P. MOTA, A.C. FERNANDES, P.O. MACHADO & J.A.T. SILVA JR.
Fig. 5 – Preparação e elevação do saco dural. A) Anatomia antes da ressecção. B) Saco dural isolado distalmente e refletido proximalmente.
C) Saco dural descolado do canal e ligado o mais baixo possível.
Quando a curvatura aumenta e chega próxima dos 50º ou
60º, deve-se proceder à artrodese vertebral associada imprescindivelmente à instrumentação, preferentemente pela técnica de Luque-Galveston ou Dunn-Luque(2). A fusão deve
abranger de T2 ou T3 até o sacro.
CIFOSES CONGÊNITAS
Indicações e tratamento
O tratamento dessas cifoses visa fundamentalmente três
objetivos:
1) Retificar e estabilizar a coluna sobre a bacia, permitindo uma posição sentada estável; 2) retirar a proeminência
óssea da coluna; e 3) melhorar o rearranjo das vísceras na
cavidade abdominal.
A única maneira de obter esse realinhamento vertebral é
através da osteotomia-ressecção vertebral de toda a área cifótica e mais uma, duas ou três vértebras acima do ramo superior da cifose, vértebras estas que já fazem parte da área
lordótica correspondente à zona de início da curva superior
de compensação.
Sharrard(13,14), em 1968, foi o primeiro autor a relatar um
caso de osteotomia-ressecção vertebral de cifose congênita
em uma criança recém-nascida.
Após esse primeiro relato, outros autores incorporaram
importantes contribuições à técnica(5,6,8,9,12,13).
966
Em nosso meio, Ferraretto et al.(4) descreveram em 1980 o
que talvez seja o primeiro caso na literatura nacional, quando procederam a uma osteotomia-ressecção vertebral em cifose congênita por mielomeningocele (figs. 3 e 4).
Atualmente, adotamos a técnica de Dunn(2) usando as hastes de Luque especialmente modeladas, seguindo os princípios de Lindseth & Steltzerl(8).
AVALIAÇÃO E CUIDADOS PRÉ-OPERATÓRIOS
A cuidadosa avaliação pré-operatória é de fundamental
importância. A válvula de derivação ventrículo-peritoneal
deve estar permeável e a hidrocefalia compensada. O estado
geral e as funções respiratórias devem estar em boas condições. A função renal deve estar equilibrada e a infecção urinária, tão freqüente nesses casos, também deve estar controlada. Aconselhamos a cultura e o antibiograma de urina e o
início da antibioticoterapia profilática com cefalosporinas de
2ª ou 3ª geração pelo menos três dias antes. A equipe cirúrgica deve ser treinada em cirurgia de coluna com anestesista
experiente, pediatra e UTI especializada em hospital com
recursos e tecnologia moderna. A cirurgia é de grande porte
e o sangramento por vezes é abundante, podendo ultrapassar
o volume total circulante da criança (400-800ml) e a transfusão é quase sempre necessária.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
CIFOSES NA MIELOMENINGOCELE: CONCEITOS, TÉCNICAS DE TRATAMENTO E APRESENTAÇÃO DE CASOS
TÉCNICA CIRÚRGICA
Paciente em decúbito ventral sobre coxins com o cuidado
de evitar a compressão da válvula de derivação ventrículoperitoneal pelo coxim contra a clavícula ou costelas.
A incisão é em forma de “S” longo, que se inicia superior
e lateralmente à linha espondílea na altura de T6 e T8, cruzando centralmente o ápice da cifose, em geral L1, descendo
contralateralmente até o sacro. A pele do ápice da cifose freqüentemente está ulcerada, mas pode ser incisada, pois após
a ressecção haverá encurtamento da coluna e a pele ficará
frouxa, podendo ser ressecada. A exposição subperiostal é
cuidadosa e inicia-se em processos espinhosos normais acima do ápice da cifose. Expõem-se assim quatro ou cinco
lâminas normais até chegar ao ápice.
Nesse local não existe lâmina e centralmente encontramos o canal medular, tendo como limite anterior os corpos
vertebrais preenchidos pelo saco dural, cuja lesão deve ser
evitada.
A dissecção nessa área é lateral e deve abranger somente
os processos transversos à direita e à esquerda até abordarmos o que sobrou das asas do sacro. A dissecção dos processos transversos é bastante sangrante, pois devemos expor os
forames de conjugação, onde existe a artéria do forame que
deve ser coagulada com bisturi bipolar. A dissecção continua no sentido da região anterior do corpo, rigorosamente
subperiostal, rente à face anterior do corpo vertebral. Essa
dissecção é feita bilateralmente até que a goiva de Cobb possa atravessar a zona anterior do corpo de lado a lado.
Durante essa liberação anterior deve-se tomar cuidado com
os vasos arteriais e venosos maiores (aorta e cava), que, apesar de estarem fora do campo, mais anteriormente, podem
ser lesados. Essa manobra deve ser repetida por duas ou três
vértebras acima do ápice e uma ou duas abaixo do ápice, até
expor totalmente e anteriormente os corpos vertebrais interessados.
Em seguida, o saco dural deve ser descolado do canal e
ligado o mais baixo possível (fig. 5). Posteriormente, é elevado até a altura do corpo limite, que será ressecado (T9 ou
T10). Lembrar que pelo menos um corpo da área lordótica
superior compensatória da cifose deve ser ressecado conforme a técnica de Lindseth(8). A ressecção agora é fácil, sendo
feita com osteótomo. Todos os corpos previamente selecionados devem ser excisados. Após a osteotomia-ressecção, os
segmentos superior e inferior da coluna são facilmente afrontados usando-se duas pinças Backauss. Com essa manobra a
cifose praticamente desaparece (fig. 6).
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
Fig. 6 – A) Saco dural (SD) fixado por dois fios de sutura. B e C) Após a
ressecção dos corpos vertebrais, os segmentos superior e inferior da coluna
são facilmente afrontados. *CV = canal vertebral.
Segue-se a osteossíntese da osteotomia pela técnica de
Dunn(2) (figs. 7, 8, 9, 10).
As hastes são mantidas retas em seu maior comprimento.
Em sua extremidade distal ela é dobrada em dois ângulos em
forma de “degrau”; o ramo distal do degrau pode ser levemente encurvado para a frente, para dar maior aderência à
face anterior da asa do sacro. O comprimento horizontal do
degrau é igual à espessura da asa do sacro (fig. 11). O ramo
vertical mede de 3,0 a 3,5cm.
Em seguida, o ramo distal da haste é colocado na face
anterior do sacro, deslizando em sua superfície com manobra semelhante à da colocação sublaminar de um gancho de
Harrington. Essa manobra é executada à direita e à esquerda
do sacro. Como existe uma cifose residual do sacro que não
foi corrigida pela osteotomia, ao tentar-se aproximar da haste das lâminas superiores, o ramo mais longo do degrau, por
967
I. FERRARETTO, D.P. MOTA, A.C. FERNANDES, P.O. MACHADO & J.A.T. SILVA JR.
Fig. 7
Haste de Luque
modelada antes da
colocação sobre a
face anterior da
ala sacral,
conforme descrito
por Dunn
Fig. 8 – Desenho demonstrando área onde deve ser feita a
ressecção óssea. A vértebra
apical é ressecada juntamente
com pequena porção vertebral acima e abaixo
Fig. 9 – Desenho
da fixação distal
e redução da
cifose após colocação
das hastes e
arames segmentares
macanismo de alavanca, pressiona a face anterior do sacro
para trás, corrigindo a cifose. As duas hastes na região mais
longa e na área da cifose devem ser encurvadas lateralmente, para que entrem em contato somente com os processos
transversos e não pressionem o canal medular. As hastes são
fixadas às lâminas por amarrias sublaminares pela técnica
de Luque. A fixação é sólida e é importante que os segmentos osteotomizados tenham bom contato (fig. 12). Na zona
da cifose, as hastes também podem ser fixadas com arames
que passam pelos forames de conjugação. O saco dural é
recolocado em seu leito e procede-se à artrodese das lâminas
superiores e processos transversos na área de osteotomia até
o sacro, usando-se como enxerto palitos do segmento ósseo
ressecado e, se necessário, osso de banco ou mesmo enxerto
materno, retirado no mesmo tempo cirúrgico por outra equipe na sala ao lado. O fechamento por planos é fácil e a drenagem a vácuo é recomendada.
O curativo deve ser bem acolchoado e é opcional a colocação de uma goteira gessada protegendo o tronco. No 2º dia
a criança já pode sentar-se. A partir do 8º dia é confecciona968
Fig. 10
Aparência final
após a
instrumentação e
a redução da
cifose
do um colete infra-axilar bivalvado em polipropileno para
proteger a integração do enxerto (fig. 13).
É fundamental que, no plano sagital, os segmentos superior e inferior da coluna estejam num mesmo eixo coincidente com o sacro. Quanto mais anterior for este, maior será
a probabilidade de o tronco da criança desviar-se anteriormente e facilitar eventual perda de correção.
Outra técnica alternativa que usamos em nossos primeiros
casos e que atualmente abandonamos, mas que pode ser empregada em uma emergência, é a seguinte: após a aproximação dos dois segmentos com Backauss, estes são fixados com
dois ou mais pinos de Kirschner rosqueados, que se cruzam
no foco da osteotomia. Esses pinos são passados a “cego” e
se fixam nos corpos vertebrais, técnica descrita por Sharrard(13) e citada por Ferraretto et al.(4). Outra técnica usada
por nós em dois pacientes é a cerclagem dos corpos vertebrais com aramagem de aço de 1,2mm associada à fixação
de dois pinos de Kirschner cruzados.
Em todos os casos é importante uma rígida imobilização
já no pós-operatório imediato.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
CIFOSES NA MIELOMENINGOCELE: CONCEITOS, TÉCNICAS DE TRATAMENTO E APRESENTAÇÃO DE CASOS
Fig. 11
Posicionamento da
haste de Luque
após ser dobrada e
colocada sobre a
face anterior do
sacro
Fig. 12 – A) Redução após osteotomia-ressecção. B) Instrumentação com
hastes de Luque (fixadas com fios sublaminares e através dos forames de
conjugação).
RELATO DOS CASOS
Os casos estão resumidos na tabela 1.
Caso 1 – F.P., sexo feminino, com diagnóstico de seqüela
de mielomeningocele em nível torácico, com hidrocefalia
derivada. Inicialmente avaliada em março de 1976, com idade de cinco meses. Foi submetida à correção da mielomeningocele oito dias após o nascimento. No exame inicial apresentava pés eqüinovaros, quadris luxados e cifose lombossacra. Ficou afastada da AACD de outubro de 1976 a abril de
1979, quando ao reexame constatou-se grave cifose lombossacra. As radiografias mostravam curvatura cifótica T1-L5
de 160º com com ápice em L4.
Foi internada em fevereiro de 1980 para correção cirúrgica da cifose. Operada em março de 1980, quando foi realizada a ressecção dos corpos vertebrais de L3 e L4 e artrodese
L2-L4 fixada com dois fios rosqueados cruzados. As radiografias pós-operatórias mostraram curvatura L1-L5 medindo 80º, ou seja, correção de 47%.
Houve como intercorrência no pós-operatório a saída de
secreção serosa no local de passagem dos fios rosqueados;
um dos fios migrou para a região glútea esquerda, sendo retirado no 6º mês de pós-operatório. Usou colete bivalvado
em polipropileno para suporte do tronco durante dois anos.
Fez acompanhamento na clínica durante 15 anos. Nesse
período, evoluiu com fraturas do colo do fêmur direito e tíRev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
Fig. 13 – Caso 3 – A e B) Colete infra-axilar em polipropileno (proteção até
a integralização do enxerto)
bia do mesmo lado, todas tratadas conservadoramente com
gesso. Evoluiu com obesidade importante, porém com bom
equilíbrio de tronco sentada. Manteve leve postura cifótica;
a última avaliação radiográfica, com 15 anos de seguimento,
mostrou curvatura cifótica medindo 125º, mas continuava
com bom equilíbrio de tronco e sem formação de escaras no
ápice da deformidade.
Caso 2 – G.S.V., sexo feminino, mielomeningocele em
nível torácico, hidrocefalia derivada, luxação dos quadris e
articulações artrogripóticas. Primeira consulta no grupo de
malformações raquimedulares aos quatro meses de idade (3010-1989). Nasceu com fratura bilateral dos fêmures e pés
eqüinovaros, além de cifose congênita rígida. Na época já
969
I. FERRARETTO, D.P. MOTA, A.C. FERNANDES, P.O. MACHADO & J.A.T. SILVA JR.
apresentava flexo de quadris medindo 30º e flexo de joelhos
(35º) bilateralmente.
Submetida a vários procedimentos cirúrgicos para revisão
da válvula de derivação ventrículo-peritoneal, além de evoluir com infecção (meningite). Aos dois anos e três meses de
idade, estava compensada do ponto de vista neurocirúrgico,
sendo submetida a tratamento cirúrgico da cifose. Em 8-81991 foi submetida a cirurgia para ressecção da cifose. Durante o ato cirúrgico, notou-se a dura-máter muito afilada e
aderida ao subcutâneo (escasso). Na tentativa de descolamento da dura-máter houve lesão desta, além de sangramento profuso do plexo venoso epidural. Na tentativa de descolamento do saco dural proximalmente para permitir a ressecção óssea, ocorreu sangramento profuso ainda maior. Após
perda sanguínea de cerca de 1.500ml (uma volemia e meia),
conseguimos hemostasia com eletrocautério bipolar, bolos
de algodão e surgicel. Suspendemos a manipulação durante
alguns minutos devido ao desequilíbrio hemodinâmico. Optamos por remover parte do tecido ósseo mais proeminente
utilizando-se Cobb e saca-bocados, removendo também as
saliências ósseas laterais para diminuir a pressão sobre a pele.
Após colocação de osso esponjoso no local da ressecção,
feito fechamento de pele com mononáilon 4-0 e confecção
de leito gessado. Evoluiu bem no pós-operatório, alta da UTI
em dois dias e alta hospitalar dez dias após, usando colete
bivalvado em polipropileno.
Apesar da boa evolução clínica no pós-operatório, houve
persistência da cifose quando comparamos as radiografias
pré e pós-operatórias, além do aparecimento de novas escaras no ápice da curva. Decidimos indicar nova intervenção
cirúrgica para correção quatro meses após a primeira cirurgia. Durante a cirurgia (dezembro de 1992), fizemos a ressecção de três corpos vetebrais. Em relação à instrumentação, tentamos introduzir uma haste de Luque pré-moldada
na extremidade distal dentro do canal vertebral. A haste mostrou-se inadequada pelo tamanho em relação ao sacro. Optamos pela redução da deformidade, manutenção com lambotte, passagem de dois fios rosqueados cruzados e amarrias
com fios de aço. Notamos excelente correção e estabilidade.
As lâminas próximas à área de osteotomia foram decorticadas, aposta boa quantidade de enxerto ósseo, fechamento da
fáscia e plano muscular com Vicryl 1, fechamento de pele
TABELA 1
Resumo dos casos
Caso
Sexo
Idade
(anos +
meses)
Nível
neurológico
1
F
4+5
Torácico
2
F
3+6
3
M
4
5
970
Cirurgia
de
coluna
prévia
Indicação
para
cirurgia
Cifose
(pré-operatória)
Ápice
da
curva
Vértebras
ressecadas
Tipo
de
instrumentação
Cifose
(pós-operatória)
Tempo
de
seguimento
(meses)
Complicações
Resultados
Não
Progressão da
deformidade
160º
L4
L3-L4
2 fios
rosqueados
(cruzados)
125º
185
Infecção
superficial
Satisfatório
Torácico
Ressecção
parcial de
2 vértebras
no ápice
Progressão e
escaras de
repetição
no ápice
130º
L1
L1-L2-L3
2 fios
rosqueados
cruzados +
amarria com
fios de aço
192º
142
Migração dos
fios rosqueados
Satisfatório
8+4
Torácico
Não
Progressão da
deformidade e
escara no ápice
195º
L2
L2-L3
Luque
(Dunn)
115º
110
Deslizamento
lateral na área
de osteotomia e
rotação da haste
(E)
Satisfatório
F
10+1
Torácico
Não
Progressão da
deformidade
90º
L3
L3
Luque
(Dunn)
142º
118
Nenhuma
Satisfatório
F
8+10
Torácico
Não
Progressão da
deformidade e
escara no ápice
155º
L2-L3
L2-L3
2 fios
rosqueados
cruzados +
amarria com
fios de aço
112º
116
Nenhuma
Satisfatório
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 12 – Dezembro, 1998
CIFOSES NA MIELOMENINGOCELE: CONCEITOS, TÉCNICAS DE TRATAMENTO E APRESENTAÇÃO DE CASOS
com mononáilon 4-0, curativo e enfaixamento. Evoluiu bem,
sem complicações no pós-operatório imediato. Evoluiu com
consolidação ao nível da osteotomia. As radiografias finais
mostraram cifose medindo 92º e não houve mais recorrência
das escaras ao nível do ápice.
Caso 3 – E.R.T.C., sexo masculino, diagnóstico de seqüela de mielomeningocele em nível torácico e hidrocefalia derivada. Fez exame inicial na clínica com oito meses de idade, quando apresentava cifose toracolombar, contratura em
flexo-abdução dos quadris, flexão dos joelhos de 30º e pés
calcâneo-valgos. Fez acompanhamento irregular na clínica
de mielomeningocele; aos quatro anos e quatro meses de idade
fez radiografias de coluna, que mostraram, na incidência em
perfil, cifose medindo 55º (L1-L5), flexível em torno de 50%.
Seu equilíbrio de tronco era instável, necessitando de apoio
com membros superiores.
Evoluiu com progressão da deformidade. As radiografias
feitas aos sete anos e seis meses de idade mostraram progressão da cifose lombar para 95º, quando foi indicado tratamento cirúrgico com ressecção vertebral e artrodese por via posterior. No dia 6-5-97 foi submetido a tratamento cirúrgico,
fazendo-se artrodese com instrumentação de T3 a S1 segundo a técnica de Dunn, sem intercorrências no ato cirúrgico.
Durante o procedimento cirúrgico, a perda sanguínea foi de
800ml. No período pós-operatório imediato parmaneceu na
UTI, tendo alta no 1º dia pós-operatório. No 4º dia de pósoperatório foi colocado na posição sentada. No 6º dia de pósoperatório, foi feito molde para confecção de colete em polipropileno.
As radiografias de controle antes da alta no 10º dia pósoperatório mostraram deslizamento lateral para a esquerda
da coluna lombar na área da ressecção vertebral. Concomitantemente, houve rotação da haste (E) sobre o próprio eixo,
porém sem soltura das amarrias. Optamos pela confecção de
gesso de Risser ao invés da utilização do colete bivalvado.
Utilizou o gesso por três meses, quando foi colocado colete
de polipropileno bivalvado (uso 23 horas/dia). Após o 5º mês
de pós-operatório, passou a usar o colete durante o dia, pois
as radiografias mostraram intregração do enxerto. Continua
usando o colete até o momento (março de 1998).
Caso 4 – L.S.M., sexo feminino, atendida inicialmente na
clínica com um ano e três meses de idade. Foi submetida a
cirurgia para fechamento da bolsa com 15 dias de vida e com
30 dias para instalação de válvula de derivação ventrículoperitoneal. Evoluiu com infecção do sistema, fazendo quatro trocas de válvula.
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Ao exame físico, apresentava tronco com deformidade (cifose) toracolombar, contratura em flexo-abdução dos quadris, flexo de joelhos (20º bilateralmente), além de pés calcâneo-valgos. Evoluiu com piora das deformidades de membros inferiores, além de progressão da cifose, que media 60º
(L2-L5) com quatro anos e quatro meses de idade. Concomitantemente, evoluiu com escaras sacrais de repetição.
Evoluiu com progressão da deformidade (80º com oito anos
e três meses de idade) e 90º com dez anos e um mês, sempre
apresentando escaras de repetição na região sacral.
Em junho de 1996, foi operada para correção de flexo dos
quadris.
Submetida a tratamento cirúrgico em janeiro de 1997 para
correção de deformidade (ressecção vertebral de L3 e artrodese por via posterior de Dunn). Evoluiu bem durante o ato
cirúrgico (durou nove horas) sem intercorrências, com perda
sanguínea de 900ml. Alta da UTI no 2º dia pós-operatório.
Permaneceu internada na enfermaria com quadro de infecção urinária durante 13 dias. No 14º PO, teve alta hospitalar
utilizando colete bivalvado de polipropileno 23 horas por
dia. Está hoje com oito meses de pós-operatório, as radiografias mostram cifose medindo 42º. Após a cirurgia cessou
a formação de escaras sacrais, apresenta excelente equilíbrio
de tronco, com eixo occipitossacro mantido. Consideramos
o resultado satisfatório e o plano é mantermos o colete no
período diurno (12 horas/dia).
Caso 5 – T.C.C.S., sexo feminino. Diagnóstico de mielomeningocele em nível torácico; atendida inicialmente na
AACD em agosto de 1989, com dez meses de idade. Foi
submetida à correção da mielomeningocele em outro serviço, com dois dias de vida.
No exame ortopédico inicial, apresentava membros superiores normais, membros inferiores em flexão, abdução e
rotação externa, flexo de joelhos (15º) redutíveis parcialmente
e pés eqüinovaro-adutos. O exame do tronco mostrou cifose
lombar rígida. O exame urológico na época mostrou ectasia
renal, com hidronefrose bilateral.
Permaneceu afastada da clínica durante três anos; no retorno, apresentava fratura supracondiliana do fêmur esquerdo tratada em outro serviço com gesso, além de escara no
ápice da cifose lombar e infecção urinária em curso.
Indicamos o tratamento cirúrgico quando a paciente tinha
seis anos de idade. Retornou para reavaliação aos oito anos
de idade, quando apresentava cifose lombar com ápice em
L2-L3 medindo 155º. Foi submetida a tratamento cirúrgico
com idade de oito anos e um mês (ressecção de três corpos
vertebrais e fixação com dois fios rosqueados cruzados e
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I. FERRARETTO, D.P. MOTA, A.C. FERNANDES, P.O. MACHADO & J.A.T. SILVA JR.
amarria com fios de aço). Evoluiu bem durante a cirurgia,
apresentando sangramento de 750ml (considerado normal).
Permaneceu hemodinamicamente estável na UTI, tendo alta
para a enfermaria no 2º dia pós-operatório. No 9º dia de pósoperatório, teve alta hospitalar utilizando colete bivalvado
de plástico (polipropileno).
Evoluiu bem, com cicatrização da incisão cirúrgica e saída espontânea dos fios rosqueados, que foram retirados à tração manual com quatro meses de pós-operatório. Os fios de
cerclagem mantiveram o posicionamento. No momento, com
seis meses de pós-operatório, continua usando colete e retorna à clínica de três em três meses para seguimento. As radiografias com seis meses de seguimento mostraram cifose medindo 112º; a paciente está sentando melhor e permanece
sem formação de escaras no ápice da deformidade.
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