DIREITO À VIDA X LIBERDADE DE CONVICÇÃO RELIGIOSA: TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHA DE JEOVÁ Luciana Jorge Gomes1 Cristiane Afonso Soares Silva2 Alda da Silva Barreiros3 RESUMO: A pesquisa aborda a questão do posicionamento da seita Testemunha de Jeová no que diz respeito à transfusão sanguínea, tratamento este que recusam, mesmo quando diante de iminente perigo de vida, diagnosticado pela sociedade médica, dispondo então, em nome da convicção religiosa, da própria vida ou daquela pela qual é responsável (menores, incapazes). Mediante o exposto, o artigo visa analisar a colisão entre o direito à vida e o direito à liberdade de convicção religiosa. Para tanto, buscou-se apresentar a abordagem teórica do Direito à vida e à liberdade, tendo em vista o Princípio da dignidade da pessoa humana, bem como as passagens bíblicas que fundamentam o entendimento dos pacientes fiéis da seita Testemunha de Jeová. Em seguida, discute-se a questão central, esclarecendo a colisão entre os direitos fundamentais e a aplicação do princípio da proporcionalidade perante o caso concreto e a descrição de como é aplicado. Dentre os resultados alcançados, destaca-se que, apesar de fundamental, o direito à liberdade religiosa não pode ser analisado de forma isolada, dada a sua interdependência com os direitos fundamentais e, em caso de colisão com o direito à vida, ainda que seja dever do Estado respeitar a liberdade de convicção religiosa, a vida deve ser elevada a um patamar naturalmente superior. PALAVRAS - CHAVE: Direito à vida, Direito à liberdade, Religião. 1 Acadêmica do Curso de Direito do IESI/FENORD, graduada em 2013. Mestranda em Gestão Integrada de Território (UNIVALE), especialista em Ciências Jurídicas, professora de Direito Civil do IESI/FENORD. 3 Especialista em Direito Civil, professora de Direito Civil do IESI/FENORD. 2 95 ABSTRACT: The research approaches the question of positioning the sect Jehovah's Witness with respect to blood transfusion, this treatment, that refusal, even when faced with imminent danger to life, diagnosed by the medical society, disposing then, in name of religious conviction, own life or that by which it is accountable (minors, incapable). By the above, the article aims analyze the collision between and the right to freedom of religious conviction. To this end, we sought to present the theoretical approach of the Right to life and liberty, in view of the Principle of human dignity, as well as the biblical passages that support the understanding of the faithful patients of sect Jehovah Witness. Then, discusses the central question, clarifying the collision between fundamental rights and the principle of proportionality to the case and the description of how it is applied. Among the results, it is emphasized that, although fundamental, the right to religious freedom can’t be analyzed separately, given their interdependence with the fundamental rights and, in case of collision with right to life, even though it is the duty of the State to respect the freedom of religious conviction, the life should be elevated to a higher level naturally. KEYWORDS: Right to life, right to liberty, religion. 1 INTRODUÇÃO É relevante, e porque não dizer, preocupante, a polêmica envolvendo o posicionamento da seita Testemunhas de Jeová, no que diz respeito à transfusão sanguínea, tratamento este que recusam, mesmo quando diante de iminente perigo de vida, diagnosticado pela sociedade médica, dispondo então, em nome da convicção religiosa, da própria vida ou daquela pela qual é responsável (menores, incapazes). Assim, justificada está a relevância deste trabalho, que tem como tema a recusa de transfusão de sangue nos pacientes a d e p t o s d a seita Testemunha de Jeová embasados, unicamente, em convicção religiosa. A pesquisa analisa a colisão entre a busca de uma vida digna e os direitos fundamentais, a saber, o direito à vida – indisponível, 96 inviolável, porém não absoluto e o direito à liberdade de convicção religiosa. A recusa a transfusão sanguínea por motivo religioso gera uma série de consequências que tornam o tema objeto de estudo dessa pesquisa, merecedor de atenção no âmbito jurídico, das academias aos tribunais, uma vez que envolve direitos à liberdade, à vida e ao princípio da dignidade humana, pressupostos intimamente ligados ao ser humano e protegidos constitucionalmente. Como a Constituição garante a liberdade de crença religiosa como um direito fundamental, bem como o direito à vida, no caso da recusa transfusional, perante iminente risco de vida, criado está o conflito de interesses entre estes princípios fundamentais. Diante desses conflitos principiológicos, a solução encontrada por muitos autores é a utilização da técnica de ponderação de interesses, técnica esta que atribui pesos a princípios conflitantes na decisão entre quais prevalecerão. A dificuldade em orientação jurídica pela qual passam a maioria dos autores consiste no fato de não existir nenhuma previsão legal referente à transfusão de sangue, bem como o fato dos direitos individuais de hierarquia constitucional somente poderem ser limitados por expressa disposição constitucional ou por meio de lei ordinária, promulgada com fundamento imediato na própria constituição, fazendo assim com que surja a necessidade da prestação jurisdicional a fim de que seja feita uma interpretação dos valores e elementos envolvidos nessa questão, na busca da solução ao conflito existente. Dessa forma, para tratar o problema central da pesquisa, o artigo aborda primeiramente o direito à vida e à liberdade religiosa, passando em seguida a apresentar as passagens bíblicas que fundamentam o entendimento dos pacientes Testemunhas de Jeová. A terceira seção do trabalho trata de forma específica o tema central, buscando a elucidação da colisão entre os dois direitos fundamentais referidos e focalizando a aplicação do princípio da proporcionalidade perante o caso concreto e como ele é aplicado. E por fim, de forma sucinta, é tratada a responsabilidade médica diante da transfusão de sangue contra a vontade do 97 paciente, considerando-se o dever médico legal de primar pela vida. Na última parte, apresentam-se os resultados alcançados que certamente não se apresentam como soluções definitivas, mas trazem apontamentos sobre os aspectos jurídicos em questão, analisando, tanto o posicionamento jurisprudencial; doutrinário e médico; quanto as convicções pessoais e religiosas dos pacientes e seus familiares, contribuindo, assim, para o fomento do tema, dada a sua relevância, vez que envolve valores basilares da sociedade contemporânea trazidos pelos princípios constitucionais da liberdade e da dignidade. 2 OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 2.1 O direito à vida Assim como a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, prevista no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988, juntamente com a inviolabilidade do direito à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, a inviolabilidade do direito à vida, suporte indispensável para que sejam usufruídos todos os direitos existentes no nosso ordenamento, é garantida a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país. Bulos ensina que: Seu significado é amplo, porque ele se conecta com outros, a exemplo dos direitos à liberdade, à igualdade, à dignidade, à segurança, à propriedade, à alimentação, ao vestuário, ao lazer, à educação, à saúde, à habitação, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (BULOS, 2007, p. 410) A garantia de direito fundamental à vida permite dizer que ela é inviolável, ou seja, tanto o Estado de Direito quanto os particulares devem se privar da realização de procedimentos que possam atentar contra o direito à vida. Em regra, a humanidade compartilha o sentimento de que a vida é um bem de valor inestimável. Ocorre, porém, que mesmo sendo 98 reconhecido como o mais importante dos direitos fundamentais, admite-se também que, como qualquer outro direito, ele não é absoluto, assim, são consideradas hipóteses em que a inviolabilidade pode ser afastada para contemplar outros interesses. Assim, tem-se que ele não é soberano, nem sempre prevalecerá sobre os demais direitos, a depender do caso concreto. Nas palavras de Walber de Moura Agra: Como nenhum direito é absoluto, podendo ser restringido ou até mesmo retirado em razão de relevante interesse público, o direito à vida sofre exceção em caso de guerra declarada, havendo a tipificação dos crimes de deserção ou traição ( AGRA, 2006, p. 115). É destaque do Supremo Tribunal Federal Reputou inquestionável o caráter não absoluto do direito à vida ante o texto constitucional, cujo art. 5º, XLVII, admitiria a pena de morte no caso de guerra declarada na forma do seu artigo 84, XIX. No mesmo sentido, citou previsão de aborto ético ou humanitário como causa excludente de ilicitude ou antijuricidade no Código Penal, situação em que o legislador teria priorizado os direitos da mulher em detrimentos dos do feto. Recordou que a proteção ao direito à vida comportaria diferentes gradações, consoante o que estabelecido na ADI 3510/DF. (STF – Pleno – ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão: 11 e 12-42012, Informativo STF nº 661).(BRASIL, STF, 2012). A ideia atual trazida pelos direitos humanos exalta a dignidade, de modo que, sob a obrigação de zelo e respeito, todo o sistema estatal esteja vinculado ao princípio da dignidade humana. Nesse sentido, diz Ingo Wolfang Sarlet, Pautado no direito à vida, a dignidade da pessoa humana é o direito fundamental mais fortemente empregado da visão ideológica e política. Por isso, o 99 preceito da dignidade da pessoa humana causa especiais dificuldades que resultam não apenas dos enraizamentos religiosos, filosóficos e históricos da dignidade da pessoa humana, como também da dependência da respectiva situação global civilizacional e cultural sociedade ( SARLET, 2005, p. 159). A cada ser humano deve-se reconhecer a dignidade da pessoa humana, fazendo assim, com que cada pessoa seja alvo de respeito e valorização pelo Estado e pela sociedade em geral, gerando direitos e deveres fundamentais para que seja levada a efeito a proteção da pessoa ante qualquer ato que possa inviabilizar a existência de condições básicas para uma vida benéfica perante a sociedade. Dito isso, conclui-se que é de extrema importância o uso correto dos meios disponíveis para a efetivação e gozo dos direitos garantidores da dignidade da pessoa. 2.2 Do direito à liberdade religiosa Instalada na primeira geração de direitos fundamentais, a liberdade é um adjetivo que diferencia a homem de todos os outros seres existentes no planeta, indispensável para efetivação desses direitos, impulsionando o cidadão brasileiro a lutar por aquilo que acredita desde que, é claro, não prejudique a liberdade de outros. Decorre da liberdade, os direitos à liberdade de expressão, de pensamento, de propriedade e finalmente, liberdade religiosa. A liberdade religiosa foi tutelada no artigo 10 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, disfarçada de liberdade de opinião, ao dizer que “ninguém deve ser inquietado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (FERREIRA FILHO, p.13). No mesmo sentido, o Brasil em sua Constituição de 1967 protegia a liberdade religiosa, contanto que não atentasse contra a ordem pública e os bons costumes. 100 A liberdade de crença, assegurada pela Constituição de 1988, compreende a liberdade de optar por uma religião, de apoiar-se em alguma seita religiosa, de mudar, caso queira, de religião, bem como a liberdade de descrença, assim entendida como a liberdade de não se firmar, de não ter apoio espiritual de religião alguma, de ser ateu ou expressar o agnosticismo. No entanto, ela não permite que se atrapalhe o exercício da religião, de crença de outra pessoa, pois a liberdade só se estende até onde não interfira na liberdade dos outros. Já a liberdade de culto, diz respeito à liberdade de cultuar o deus no qual se crê, cada religião, cada seita à sua maneira. E por último, a liberdade de organização religiosa, pressupõe a possibilidade de fundação e organização das igrejas e seus vínculos com o Estado. A liberdade leva a entender que o ser humano é quem escolhe como deve agir. Tanto é que em meio a seus valores e entre as diversas condutas de serem por ele concretizadas através de suas ações, opta pela prática daquelas que mais condizem com aquilo que realmente deseja. Entendido dessa forma, nota-se que a liberdade, em conjunto com a igualdade, é fonte da democracia, uma vez que apesar da autoridade do regime, o indivíduo tem a possibilidade de manifestar a sua personalidade. Nas palavras de Norberto Bobbio, “a maior ou menor democraticidade de um regime se mede precisamente pela maior ou menor liberdade de que desfrutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdade existente entre eles”( BOBIO, 1996, p.7). Apesar de breves, importantes se fazem os esclarecimentos prestados sobre a Liberdade religiosa, visto que a problemática desse trabalho consiste em ponderar a aplicação dos direitos fundamentais à vida e à liberdade religiosa, e pelo que se percebe, a recusa das Testemunhas de Jeová se pauta nessa liberdade garantida pela nossa Constituição, do contrário, dúvida nenhuma se teria de que o certo é sempre optar pela vida, bem maior protegido pelo Estado. 2.3 Do princípio da dignidade da pessoa humana Inicialmente, cumpre dizer que a dignidade da pessoa humana, dada a impossibilidade de conceito universal, portanto, analisada 101 num contexto histórico- cultural é, além de o ápice do sistema jurídico brasileiro, irrenunciável e inalienável, um elemento qualificador do ser humano, do qual emana a necessidade de respeito à integridade física, psíquica e intelectual do indivíduo. A ssim, dizse que não pode ser postulada, mas tem o dever de ser garantida, reconhecida, protegida e efetivada, não podendo de forma alguma ser retirada do ser humano, uma vez que faz parte de si. A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público. Conforme coloca Luiz Alberto David Araújo: [...] a expressão dignidade da pessoa humana tem um forte conteúdo moral, mas os autores constitucionalistas procuram deixar claro que não foi esse aspecto que o legislador pretendeu evidenciar. O que se buscou enfatizar foi o fato de o Estado ter, como um de seus objetivos, proporcionar todos os meios para que as pessoas possam ser dignas. (ARAÚJO, 2000, p. 102). Por serem valores inerentes a cada pessoa, é no campo intersubjetivo que a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais encontrarão efetividade da proteção e reconhecimento que lhes é dado no âmbito jurídico, devendo para tanto, obviamente, utilizar-se da cautela para que os direitos de uns não se sobreponham aos de outros, evitando o que chamamos de desigualdade por parte do Estado e da Sociedade. No que diz respeito à valorização dada aos direitos humanos e fundamentais, Sarlet acrescenta O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação de poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e 102 esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças ( SARLET, 2000, p. 61). Um fator essencial ao gozo do termo dignidade é a autonomia, que nada mais é do que o poder que cada ser humano traz consigo de fazer suas próprias escolhas, de se autodeterminar, encontrado no art. 1º da Declaração Universal da ONU de 1948, perante o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, bem como o que garante a nossa Constituição Federal de 1988, ao expor que “todos são iguais perante a lei”. A dignidade pode por um ângulo ser considerada um meio de expressar a autonomia inerente a cada ser humano e por outro necessita da proteção da comunidade ou do Estado ocorrendo a possibilidade de o indivíduo não se encontrar em plenas condições de exercê-la por si mesmo, ou mesmo quando preciso for a ajuda do Estado para que seja efetivada em sua totalidade. Considerando-a como princípio fundamental que é, a dignidade da pessoa humana faz nascer direitos subjetivos que semelhantemente a ela devem ser respeitados e causados pelo Estado e até mesmo por particulares, “seja pelo reconhecimento de direitos fundamentais específicos, seja de modo autônomo, igualmente haverá de se ter presente a circunstância de que a dignidade implica também [...] a existência de um dever geral de respeito [...]” (SARLET, 2002, p. 115). E como direito subjetivo, passaremos à análise do direito de liberdade religiosa. 3 RECUSA À TERAPIA TRANSFUSIONAL POR MOTIVAÇÃO RELIGIOSA 3.1 Justificativa religiosa Baseado em singular interpretação bíblica, sustentam as Testemunhas de Jeová que ao receber sangue de outro indivíduo ou de seus componentes primários, bem como coleta e armazenamento 103 pré-operatório de sangue para reinfusão, proibidos pela lei divina e se desobedecida, serão consideradas impuras em seu meio social, isso com base na interpretação dos ensinamentos bíblicos, um ordenamento, que segundo a crença dos testemunhos, foi dado à humanidade desde a origem do homem e por diversas outras ocasiões. Afirmam que seu posicionamento diante da recusa em transfundir sangue, nada tem a ver com suicídio ou mesmo eutanásia, uma vez que para eles um ser humano que decide morrer não procura atendimento hospitalar para ser tratado dessa ou daquela forma, pelo contrário, fica em casa, consciente de sua necessidade de procurar tratamento, porém inerte, aguardando tão-só a hora da morte. O que desejam, segundo o que entendem, é a submissão a tratamento alternativo, mas como a medicina ainda não dispõe de alternatividade para todos os casos, eis que surge o choque entre os direitos fundamentais. Assim, percebe-se a gravidade da escolha a ser feita pelos médicos: respeita- se a autonomia de vontade do paciente ou intentase salvar a vida? 4 COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITO À VIDA X LIBERDADE DE CONVICÇÃO RELIGIOSA 4.1 Princípio da proporcionalidade É relevante e porque não dizer, preocupante, a discussão do tema nas áreas jurídica, social e também religiosa, quando é feita uma análise do número de pessoas integrantes dessa religião. Segundo o Ano de Serviço de 2011, as Testemunhas de Jeová tiveram um auge de 7.659.019, sendo adeptos em 236 países e territórios autônomos; estima-se que só nos últimos dez anos mais de três milhões de pessoas foram batizadas, uma média de cinco mil novos membros por semana. No Brasil, que é considerado na atualidade um dos países com maior número de Testemunhas de Jeová, somam 742.425 pessoas, que se distribuem em 10.926 congregações. Como não ter cautela na busca de soluções, se não pacíficas, no mínimo mais adequadas a um possível conflito de 104 direitos e interesses que pode surgir da imposição das convicções religiosas desse grupo tão abrangente em nosso país? A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 16 exprime que: “Não tem Constituição a sociedade na qual não são assegurados os direitos (fundamentais) nem estabelecida separação dos poderes”. Aceitar o Estado como tutor e garantidor da observância dos direitos fundamentais tidos como indisponíveis, função esta que exerce através da emissão de leis positivas que devem ser obedecidas, não simplifica a problemática a que este trabalho se propõe. Sábios os dizeres de François Ewald (1993, p.790), ao expressar “o direito não é uma lei”, “... a vontade do legislador se revela como sendo expressão da dominação temporária de uma maioria”, e por assim dizer, a vontade da lei pode não mais corresponder à vontade da sociedade, que evidentemente, com o avanço temporal, e consequentemente, com as descobertas tecnológicas passou a compartilhar valores diferentes. Enfim, fato é que a lei não acompanha os princípios sociais em tempo real. O que temos de concreto, é que a lei não pode ser vista como única fonte normativa. Pacífico é o entendimento de que os princípios incorporados à ordem jurídica possuem força normativa. O Estado deixa de ser apenas de Direito, levando consigo o papel e a nomenclatura de Estado Democrático de Direito. Face isso, é fácil afirmar que a atividade da hermenêutica do direito para resolução de casos concretos vai além da aplicabilidade de uma lei retirada do nosso ordenamento jurídico. É preciso ponderação de princípios e definição de prevalência em cada caso específico. É preciso uma cautela em “dizer o direito”, para que assim possam ser evitados abusos e distorções, sob a falsa invocação de argumentos que trazem consigo fundamentos exclusivamente estatais. E da mesma forma que inúmeras atrocidades já foram cometidas de forma legal, uma violação ao direito de recusa a tratamentos por meio de transfusões de sangue pelas Testemunhas de 105 Jeová pode ensejar violações aos direitos de qualquer pessoa em recusar outro tratamento de saúde futuramente. O vocábulo “proporcional” é utilizado em seu sentido real, de equilíbrio, harmonia, ponderação entre dois interesses conflitantes diante de um caso concreto. A possível colisão de direitos surge exatamente quando a opinião daqueles que defendem a recusa invocando direitos como direito à vida digna, à liberdade expressa em nossa Constituição, a não obrigação de fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei e a existência de tratamentos alternativos diverge com opinião daqueles que repelem a recusa ao tratamento hemoterápico, trazendo fundamentos como o direito à vida biológica ser considerado irrenunciável, não se confundindo, portanto, com uma mera liberdade, e, consequentemente, nele não se incluindo o direito de optar por não viver e, ainda, ser a necessidade de transfusão de sangue um respeito à própria vida, visto que nem sempre é possível a aplicabilidade das alternativas existentes à transfusão sanguínea. Enfim, ocorre no exato momento em que um direito fundamental interfere diretamente no âmbito de proteção do outro. É de bom alvitre salientar que, inexiste regra geral a ser observada em todas as situações de conflito. Havendo um impasse, deve-se aplicar o princípio da concordância prática ou da harmonização. Somente no caso concreto promover-se- á a conciliação dos direitos. O princípio em comento se fundamenta na Constituição Federal em seus artigos 5º, II, 37 e 84, IV, no princípio da legalidade. Aquele mesmo princípio, segundo Nishiyama (2012, p. 115) quer dizer: O princípio da proporcionalidade está relacionado com a relação adequada entre um ou vários fins da norma e os meios utilizados para a consecução daquele (s). Haverá violação da regra da proporcionalidade, com a ocorrência de arbítrio, sempre que os meios destinados a lograr determinado fim não forem apropriados e/ou quando houver desproporção manifesta entre os meios e o fim. Na relação meio-fim deve-se sempre controlar o excesso. 106 Utilizar do princípio da proporcionalidade como forma de ponderar os direitos fundamentais deve ser ato a ser realizado diante de um caso concreto, onde se possa visualizar uma colisão entre esses mesmos direitos, sem que se faça necessária a concordância entre si, como é o caso do tema tratado nesse trabalho, a recusa da transfusão de sangue pelas pessoas aderentes da religião Testemunhas de Jeová. E por inexistir hierarquia entre os direitos fundamentais, dada a dignidade semelhante entre as normas, decorrente do princípio da unidade da Constituição, surge a problemática do tema em estudo, vez que quando provocado o Judiciário, a solução fica a cargo do julgador, que provavelmente se atentará para a ponderação dos bens envolvidos no litígio, pautado no princípio da proporcionalidade e razoabilidade. Partindo da premissa de que não há hierarquia entre normas e princípios constitucionais, pergunta-se: o que fazer quando dois ou mais princípios se colidem? O Estado, garantidor dos direitos fundamentais, pode permitir que um indivíduo disponha de sua vida em prol da dignidade humana ou mesmo de um fundamento religioso? Na prática, ao utilizar-se do princípio da proporcionalidade, isso não significa descarte daquele direito que foi sobreposto. O que ocorre, na verdade, é que devido às circunstâncias do caso concreto, dos cuidados que ele requerer, deve ser buscada a harmonia e equilíbrio entre ambos. No momento da decisão, para aqueles que acreditam que o direito à vida é primordial, a dignidade se encontra presente nele, sem que se negue o direito à liberdade religiosa. A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas. A estrutura interna do raciocínio ponderativo ainda não é bem conhecida, embora esteja 107 sempre associada às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas (BARROSO). A questão principal discutida é a dignidade da pessoa humana sob o ponto de vista daquela pessoa envolvida, quais as consequências da aplicação de um princípio em detrimento do outro pode ocasionar àquela pessoa, dentre elas sua aceitação ou não em seu seio de convivência; seu pensamento futuro quanto a si mesmo, uma vez que poderá ou não ser visto como transgressor das leis divinas, uma vez certos valores estão tão profundamente ligados a um determinado grupo, de modo que, a sua inobservância representa uma afronta à honra subjetiva daquelas pessoas, um verdadeiro desrespeito de foro íntimo. 4 A RESPONSABILIDADE MÉDICA DIANTE DA TRANSFUSÃO DE SANGUE CONTRA A VONTADE DO PACIENTE POR MOTIVO DE CRENÇA RELIGIOSA 4.1 - Dever de zelar pela vida do paciente No tocante à responsabilização do médico, na esfera do direito penal, a atitude de realizar o tratamento em paciente pertencente à religião Testemunha de Jeová, verificado o risco de vida, ainda que tal paciente traga consigo documento que expresse sua recusa quanto ao procedimento transfusional, não há de ser considerada crime de constrangimento ilegal, previsto no código penal em seu artigo 146. Nesse diapasão, nos diz Rogério Greco: Na hipótese de ser imprescindível a transfusão de sangue, mesmo sendo a vítima maior e capaz, em caso de recusa, tal comportamento deverá ser encarado como uma tentativa de suicídio, podendo o médico intervir, inclusive sem o seu consentimento, uma vez que atuaria amparado pelo inciso I do § 3º do art. 146 do Código Penal, que diz não se configurar constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. (GRECO, 2008, p. 401). 108 É complemento do renomado Pedro Lenza, [...] se estiver o médico diante de urgência ou perigo iminente, ou se o paciente for menor de idade, pois, fazendo uma ponderação de interesses, não pode o direito à vida ser suplantado diante da liberdade de crença, até porque, a Constituição não ampara ou incentiva atos contrários à vida. (LENZA, 2009, p. 208). Encontra-se no teor do Código de Ética Médica a exigência de que o médico, no exercício de seu dever legal, mesmo diante de impedimento embasado em consciência religiosa, faça uso do tratamento mais adequado à conservação da vida e saúde do paciente. Assim, justificada a necessidade de suprimento de consentimento judicial. Vê-se no supracitado código: É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Ora, NESSA DIREÇÃO preservar as convicções religiosas É dispor do bem maior a ser protegido pelo ordenamento jurídico: O direito à vida. DESSA FORMA partindo do princípio lógico de que sem A VIDA nenhum outro direito se faz possível, A PROIBIÇÃO DA INTERVENÇÃO MÉDICA NO CASO EM TELA não se justifica. O que se percebe, portanto, é que além do risco iminente de vida, ALGUNS pacientes que não podem, mesmo que momentaneamente, manifestarem o seu desejo de optar ou não pela transfusão sanguínea, A S S IM S E N D O , é dever do médico 109 primar pela vida do paciente, sem que se leve em consideração a crença religiosa. 5 CONCLUSÃO A meta do estudo apresentado foi a recusa dos testemunhos de Jeová por motivo religioso ao tratamento de sangue e os conflitos que essa privação faz nascer entre os direitos fundamentais, quando essa recusa ocorre diante de iminente perigo de vida, por maior capaz ou representante legal de menor ou incapaz, já que quando não há perigo, a vontade do paciente prevalece. O trabalho monográfico tem início com o estudo dos direitos à vida e à liberdade religiosa, direitos esses consagrados fundamentais pela Constituição de 1988 e apesar de assim serem, não são absolutos, podendo, no caso demonstrado no desenvolvimento textual, o direito à liberdade religiosa sofrer privações quando concretizado o descumprimento de obrigação legal imposta a todos os conviventes em sociedade, bem como das prestações alternativas fixadas em lei ou quando para ser exercido ameaçarem o direito à vida, uma vez que não há como dissociar o princípio da liberdade do princípio da legalidade, pois se complementam quando diante de um flagrante desrespeito à vida. Avançando, foram colocados os motivos, passagens bíblicas invocadas pelas Testemunhas de Jeová para justificarem sua incontestável recusa diante do tratamento com sangue ou de seus componentes primários na idealização do princípio da liberdade e da dignidade da pessoa humana, mesmo considerando que, sem a vida, qualquer outro direito poderá surgir. No tocante à dignidade humana, conclui-se que ela deve ser reconhecida individualmente, de forma que cada ser humano seja merecedor de valorização pelo Estado e pela sociedade no âmbito de convivência. Ele invoca um complexo de direitos e deveres fundamentais a serem protegidos contra qualquer ato que possa intervir nas condições mínimas para uma vida saudável e democrática. Quando todos os aspectos inerentes a esse princípio são devidamente 110 considerados, é possível afirmar que é um princípio fundamental à existência e que dele decorrem o direito à vida e à liberdade religiosa. É conclusivo também que, apesar de fundamental, o direito à liberdade religiosa não pode ser analisado de forma isolada, dada a sua interdependência com os direitos fundamentais e, em caso de colisão com o direito à vida, ainda que seja dever do Estado respeitar a liberdade de convicção religiosa, a vida deve ser elevada a um patamar naturalmente superior. Dessa colisão, buscando a solução, quando provocado o judiciário, conclui-se pela aplicação do princípio da proporcionalidade, com uso de técnicas que melhor se adequem ao caso, onde, indiscutivelmente, o valor que mais pesa na balança de pesos e medidas é o direito à vida, que dá lugar a todos os outros direitos protegidos e reconhecidos constitucionalmente, no mais, impensável seria o descarte da vida por motivos religiosos na visão ocidental de um país laico. REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ARAÚJO, Luiz Alberto David. A Proteção Constitucional do Transexual. 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