A DESUMANIZAÇÃO DA HUMANIDADE

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A DESUMANIZAÇÃO DA HUMANIDADE
Ubiratan J. Iorio
A crise de valores que se abate sobre o mundo é oriunda do afastamento
paulatino, porém progressivo, da experiência da transcendência por parte do homem de
nossos dias. O pensamento do filósofo alemão Eric Voegelin a respeito é de uma clareza
tão cristalina que chega a espantar que a civilização dita moderna não se dê conta do
fato de que, à medida que se afasta dos valores transcendentais e da tradição herdada de
gerações passadas, ela está assumindo a própria desumanização.
Fiquemos apenas em nosso país. Quando lê ou ouve as notícias do dia a dia do
Brasil, a maioria das pessoas fica espantada e até revoltada com a podridão que parece
corromper as atividades humanas nos campos da política, da economia e da (dita)
cultura. São ministros multiplicando seu patrimônio a velocidades que lhe dariam
direito ao Nobel de Economia, lutas entre aliados para ocupar postos na administração
pública, prêmios aos não contemplados com os cargos pretendidos na forma de emendas
e nomeações para novos cargos públicos que são criados à custa dos pagadores de
impostos, o Supremo Tribunal Federal promovendo a soltura de um bandido, Cesare
Battisti, condenado em seu país de origem por assassinatos, esse mesmo tribunal dando
apoio a marchas pela maconha, a mídia em peso incentivando em massa leis chamadas
de “anti-homofóbicas”, cotas para esses e aqueles em concursos públicos, políticos que
conseguem manter-se no poder há décadas, uso da máquina pública para fins
partidários, crimes em profusão, violência espantosa e uma série interminável de
notícias que podem levar os mais fracos a abandonarem a luta por um mundo melhor e
render-se às circunstâncias e, algumas vezes, a adotarem as práticas que eles mesmos,
no fundo de suas almas, condenam. Condenam porque sabem que estão erradas.
A triste verdade é que a justa busca pela felicidade individual parece estar se
convertendo a um campeonato de egoísmo em que valem todas as regras,
principalmente as que passam ao largo da ética e dos valores morais consagrados. A
triste verdade é que está acontecendo uma enorme mudança de ênfase no entendimento
do que vem a ser a realidade - a “primeira realidade” de Voegelin -, em que a realidade
da razão e do espírito, que se manifesta na noética e na pneumática, cede lugar a um
conceito de realidade – a “segunda realidade” – baseada na existência espaço-temporal.
A triste verdade, enfim, é que a humanidade está se desumanizando.
Como observa Voegelin com bastante propriedade em Hitler e os Alemães, a
ênfase da realidade mudou para o ser imanente e isso envolveu a monopolização dos
termos “ciência” e “experiência” por aqueles que vivem nessa segunda realidade. A
experiência transformou-se na ciência das coisas imanentes do mundo e os símbolos da
Filosofia e da revelação, em que há espaço para a experiência da transcendência,
tornaram-se indiferentes sob o ponto de vista da experiência. Ou seja, o sentido clássico
da episteme parece que desapareceu.
Porém, mesmo que a vida do espírito sucumba no mundo diante da razão
“iluminada” e os símbolos de transcendência sejam deformados e desacreditados, a
verdadeira ordem do ser continuará sendo o que sempre foi. Mesmo que Hegel, Marx e
Nietzsche matem Deus e escrevam muitas páginas para provar que está morto, Ele
permanecerá eterno e o homem – nem que seja no último instante de sua vida terrena –
terá que lidar com as questões de sua vida marcada por sua criação e pela morte.
Quando a busca desenfreada pela felicidade transforma-se em egoísmo e muda a ênfase
da realidade, ela fantasia uma falsa imagem da realidade. E quando o homem tenta viver
nessa segunda realidade, ou seja, quando tenta se transformar de imago Dei em imago
hominis ele está inexoravelmente entrando em conflito com a primeira realidade, aquela
que é verdadeira.
Isso significa que o homem torna-se desumanizado e termina sofrendo com a
falta de sentido de uma existência abandonada por Deus, o que o leva a fantasias
concupiscentes e a criações estapafúrdias como a do “novo homem” de Marx e do
“super-homem” de Nietzsche.
O que escrevemos acima não está em desacordo com a defesa das liberdades
individuais, de que sempre fomos fervorosos adeptos. Mas não podemos nos esquecer
que há dois tipos de liberdade, a exterior, que implica fazermos o que nos der na telha e
a interior, aquele que significa vivermos livremente, porém de acordo com a nossa
consciência, já que os impedimentos que enfrentamos não estão fora, mas dentro.
Assim, uma pessoa é livre interiormente quando pode guiar-se pela luz da sua
consciência, sem obstáculos interiores que a impeçam de agir dessa forma. Para
alcançar a liberdade interior, é preciso vencer a ignorância e as manifestações de
fraqueza, para que a consciência funcione bem, para que descubra a verdade e seja
capaz de estabelecer uma ordem entre os direitos e os deveres.
Em suma, a questão fundamental a ser enfrentada pelos que desejam que o
mundo reverta o quadro de deterioração política, econômica e cultural em que se debate
é de natureza essencialmente moral. Os paradigmas da política e da economia precisam
ser mudados radicalmente, mas isso só poderá dar resultados se as mudanças
respeitarem o que a tradição da transcendência sempre ensinou.
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