Correio Brasiliense – 21 de março de 2010 Prestes a ser

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Correio Brasiliense – 21 de março de 2010
Prestes a ser reconhecida no Brasil como uma
especialidade, a medicina paliativa se dedica a
tornar o fim da vida o mais confortável
possível
A ideia é amenizar quanto for possível o sofrimento do paciente e de seus
familiares
Márcia Neri
Publicação: 21/03/2010 07:00
Não é fácil aceitar e entender que a morte é parte de um processo natural da vida. Todos
morrem, e isso é tão certo quanto estar vivo nesse exato momento. O medo de enfrentar
o inevitável, no entanto, acompanha a maioria das pessoas desde a infância. As
faculdades de medicina treinam médicos para curar, para lutar contra as doenças. Muitas
vezes, quando a morte é iminente, tentativas para impedir que ela se concretize podem
chegar a extremos. A vida é mantida por métodos artificiais e o doente permanece em
uma unidade de terapia intensiva isolado do convívio de familiares. O quanto ou até
quando vale a pena viver dessa forma é uma discussão que divide opiniões.
Os profissionais da chamada medicina paliativa acreditam que é possível chegar à reta
final de forma mais digna, menos sofrida. Para eles, o foco é o doente e não mais a
patologia, por isso há sempre muito a fazer. É nessa hora, geralmente vivida com muito
desespero pelo paciente e por sua família, que uma equipe multidisciplinar pode entrar
em cena. O objetivo é assegurar que o momento da despedida chegue com dignidade e
sem dor, seja ela física ou emocional.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece e define cuidado paliativo como
uma abordagem integral de assistência aos reféns de doenças avançadas — que
ameaçam a continuidade da vida e geram sofrimento de natureza física, emocional,
social e espiritual. A equipe paliativista inclui médicos, psicólogos, nutricionistas,
enfermeiros, profissionais da área de reabilitação e assistentes sociais, que atuam para
aliviar todo e qualquer sofrimento enquanto a pessoa estiver viva. ―Os paliativistas não
controlam a morte. Não pretendem acelerá-la ou retardá-la. Nosso objetivo é humanizar
o tratamento de doentes terminais‖, diz a médica paliativista e coordenadora da
Academia Nacional de Cuidados Paliativos (Ancp), Maria Goretti Maciel.
Ela explica que uma enfermidade grave muda completamente o curso de vida do
paciente, que passa a necessitar de cuidados psicológicos e emocionais também.
―Ansiedade, medo e angústia são sentimentos muito próximos de quem se encontra
nessa situação. É natural que, diante de uma patologia avançada, a pessoa fique
fragilizada. O médico paliativista atua combatendo sintomas físicos, como a dor,
náuseas, vômitos, constipação. Mas ele é apenas parte de uma equipe, na qual todos se
ajudam em prol do bem estar do paciente‖, observa.
Mudança de papéis
Os paliativistas também se dedicam à família, que sofre tanto quanto o doente. Males
graves desencadeiam mudanças de papéis. Às vezes, quem era cuidado passa a cuidar.
―A abordagem paliativa se estende até o luto, quando necessário. O foco não é a cura,
mas promover a reflexão necessária para o enfrentamento da condição que ameaça à
vida. Trata-se de um olhar humanizado, de ver a pessoa e não a doença‖, acrescenta
Goretti. Em países como Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra e Japão, a terapia
paliativista é exercida há pelo menos meio século. No Brasil, as atividades relacionadas
a esses cuidados ainda não são regularizadas pelo Conselho Federal de Medicina.
Profissionais que a exercem são unânimes: no país, ainda impera grande
desconhecimento (1) e muito preconceito relacionado à prática entre os próprios
médicos, profissionais de saúde, gestores hospitalares e a população em geral.
A desinformação é tanta que muitos a confundem com a eutanásia. ―Cuidados paliativos
nada têm em comum com essa prática. Somos radicalmente contra ela. O compromisso
é com a vida. Nossa tarefa é dar conforto, tranquilidade, paz até que chegue o momento
da morte‖, reforça Goretti, que é clínica geral e trabalha como paliativista há 10 anos
em São Paulo. Ela assegura que o paciente que recebe cuidados paliativos atravessa o
período crítico da doença com mais serenidade e altivez. ―O ser humano não precisa
sentir dor, sempre é possível aliviá-la. É fundamental também assistir o paciente para
que ele fique ativo e saiba que não está sozinho. Tudo isso traz qualidade de vida,
mesmo em momentos tão delicados‖, diz.
Uma família
O motorista Manoel Joaquim da Silva, 55 anos, vem recebendo cuidados paliativos há
um mês no Hospital de Apoio do DF, único da rede pública local com 20 leitos
dedicados a essa abordagem. Um câncer no olho direito o obrigou a passar por uma
série de terapias que não trouxeram resultados positivos. Ele conta que, antes de chegar
à unidade, estava desesperado. ―Sentia muitas dores, me via sozinho, porque não tenho
apoio familiar. O medo de sofrer, de morrer à míngua, me aterrorizava. Agora, os
paliativistas viraram minha família. Esqueço que estou doente. Embora saiba que a
morte está à espreita, já que o câncer se espalhou pelo corpo e não adianta mais tratar,
aprendi a aproveitar cada momento. Sou medicado para não sentir dor. Tenho vivido
dias tranquilos, estou sempre no jardim do hospital, me traz conforto‖, relata.
Os paliativistas podem começar a terapia logo após o diagnóstico de doenças graves. A
clínica geral Anelise Pulschen, que atua no Hospital de Apoio, explica que a prática
ainda é mais direcionada aos pacientes cuja terapia curativa foi esgotada porque não há
leitos para todos. De acordo com ela, os pacientes com câncer são os que mais
demandam e recebem essa terapia porque 50% não deles não alcançam bons resultados
com o tratamento. ―É importante entender, no entanto, que os cuidados paliativos são
aplicáveis a doentes que sofrem com patologias crônicas, infecciosas, degenerativas e
problemas cardíacos ou pulmonares. Eles devem começar logo após o diagnóstico,
andar junto com o tratamento curativo. Muitos doentes que os recebem podem,
inclusive, chegar à cura‖, explica.
O Brasil tem quase 200 milhões de habitantes. ―Por ano, morrem cerca de 1 milhão de
pessoas, mas apenas 60 equipes trabalham com cuidados paliativos no país, a maioria
em hospitais públicos. Dedicados a essa abordagem, temos somente 300 leitos. Para
atender a demanda seria preciso cerca de 10 mil‖, aponta a paliativista de São Paulo.
Maria Goretti adianta ainda que o reconhecimento da medicina paliativa como um
especialidade médica está muito próximo. O CFM, a Comissão Nacional de Residência
Médica e a Associação Médica Brasileira já trabalham na criação de parâmetros para a
área de atuação do paliativista.
1 - A ajuda da novela
As médicas Ellen e Ariane, vividas pelas atrizes Danielle Suzuki e Christine Fernandes
na novela Viver a Vida, da TV Globo, são paliativistas. A abordagem do tema em
horário nobre tem contribuído para o melhor entendimento do propósito dos
profissionais que se dedicam aos cuidados paliativos, trabalho que ganha expressão à
medida que o tratamento curativo perde a efetividade. A Academia Nacional de
Cuidados Paliativos reconhece que o assunto tem sido mais discutivo e prevê que, nos
próximos anos, a abordagem será mais conhecida e melhor compreendida pela
população e pelos profissionais de saúde, fazendo com que mais brasileiros sejam
beneficiados por esse tipo de tratamento.
A negação da cultura
A paliativista Anelise Pulschen destaca que a abordagem ainda não é compreendida no
Brasil porque os médicos são formados somente para tratar a doença, buscar a cura,
salvar a vida. ―Mesmo com os avanços da medicina, as pessoas morrem. O problema é
que a cultura ocidental nega a morte. Os paliativistas trabalham com o potencial de vida.
Entendemos que devemos permitir que o paciente parta no momento em que a morte
chega, sem antecipar ou prolongar essa partida a qualquer preço‖, detalha.
A dona de casa Letícia Gomes da Silva, 71 anos, confirma. Durante um mês, ela
acompanhou o marido no Hospital de Apoio e admite que aprendeu a enfrentar o
momento, a se sentir mais preparada para aceitar a partida do companheiro, com quem
vivia há quatro décadas. ―Embora o momento seja triste, o ambiente não é pesado no
hospital. Os paliativistas ajudam com uma palavra de apoio, agilizam questões
burocráticas, aliviam a dor e seguram nossa mão nas horas difíceis‖, relatava Letícia na
quarta-feira.
O marido dela, o caminhoneiro José Oleriano da Silva, 62 anos, tinha câncer. Escondeu
a mazela da família por muito tempo e não conseguiu se curar. ―Ele negou a doença,
sofria muito com a possibilidade de morrer e chegou a ter dores que o impediam de
dormir. Graças à atenção recebida pela equipe, ele passou a entender a vida e a morte.
Não sentia mais dores e estava tranquilo, voltou a sorrir. Sou grata por ele ter tido
tempo para isso‖, dizia Letícia. Na sexta-feira pela manhã, a vida seguiu seu curso. José
morreu, ao lado da família e dos médicos.
Ouça entrevista com a paliativista Anelise Pulschen
» Palavra de especialista
Quando o trem descarrilha
Uma doença grave, potencialmente mortal, representa um ataque à integridade física,
psíquica e social do paciente. É uma ruptura na vida, como se o vagão do trem
descarrilhasse. O objetivo da abordagem paliativa é valorizar o paciente como sujeito de
uma história de vida, não taxá-lo como prisioneiro de uma doença. Com os cuidados,
mesmo sabendo que a morte se aproxima, o que se pretende é que fazer dos últimos
momentos de vida os mais dignos e confortáveis possíveis. A proposta da psicologia
dentro da equipe de cuidados paliativos é oferecer um espaço de escuta. A partir daí, é
possível trabalhar os recursos psíquicos de enfrentamento, mediar comunicações e
despedidas — muitas vezes silenciosas — e acolher o sofrimento. É fundamental que os
sentimentos e o sofrimento sejam legitimados e acolhidos, sem juízos de valores. O
limite emocional de cada um deve ser respeitado. Cuidar de pacientes e familiares no
enfrentamento, do que talvez seja o momento mais difícil de suas vidas, não é fácil. A
dor e o sofrimento do outro também dói no profissional. No entanto, saber que nosso
trabalho minimiza esse sofrimento é gratificante, e empatizar com a dor do outro é um
dos pré-requisitos do bem cuidar.
Débora Genezini, coordenadora da comissão de psicologia da Academia Nacional de
Cuidados Paliativos (ANCP)
Assistência integral
# O que são cuidados paliativos?
São aqueles que consistem na assistência ativa e integral a pacientes cuja doença não
responde mais ao tratamento curativo, sendo o principal objetivo a garantia da melhor
qualidade de vida, tanto para o paciente quanto para seus familiares.
Profissionais envolvidos
# Médicos de diversas especialidades
# Enfermeiros
# Psicólogos
# Assistentes sociais
# Fisioterapeutas
Ações envolvidas
# Medidas terapêuticas para o controle dos sintomas físicos da doença
# Intervenções psicoterapêuticas
# Apoio espiritual
# Apoio social
Objetivos
# Proporcionar alívio da dor e de outros sintomas angustiantes
# Ajudar no entendimento da morte como um processo natural
# Integrar aspectos psicológicos e espirituais da assistência ao paciente
# Oferecer um sistema de apoio para ajudar pacientes/família a viver com qualidade de
vida até a morte
Especialidade
# Na Europa e nos Estados Unidos, a medicina paliativa é reconhecida como uma
especialidade médica. No Brasil, as atividades ralacionadas à prática ainda não são
regularizadas pelo Conselho Federal de Medicina, mas alguns hospitais já contam com
profissionais especializados na área.
Fontes: Instituto Paliar e Academia Nacional de Cuidados Paliativos
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