A crítica feuerbachiana da filosofia especulativa - Revista

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Volume 4, Número 4, Ano 4, Julho 2011
Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia
ISSN 1983-3946
A crítica feuerbachiana da filosofia especulativa*
†
Lúcia Aparecida Valadares Sartório
Resumo:
Este artigo trata da crítica de Feuerbach à filosofia especulativa destacando os seus
fundamentos, bem como os esclarecimentos sobre os fatores que contribuem para o seu
aparecimento na tentativa dos homens compreenderem a relação entre objeto e pensamento e
assinala a importância dessa reflexão para a retomada de uma posição ontológica, questão que
foi levada às últimas conseqüências por Karl Marx.
Palavras-chave: Filosofia, especulação, sensibilidade, ontologia.
Abstract:
This article deals with the criticism of speculative philosophy of Feuerbach
highlighting its foundations, as well as information about the factors that contribute to the
appearance of men in an attempt to understand the relationship between thought and object,
and highlights the importance of reflection for the recapturing of a ontological position, an
issue that has been carried to extremes by Karl Marx.
Keywords: Philosophy, speculation, sensitivity, ontology.
Na circunstância história em que vivemos faz-se uma filosofia que recusa qualquer
forma de teoria clamando com força apenas o que é pragmático e utilitário, e a partir de uma
visa empirista mecanicista, nivela no mesmo patamar toda produção teórica numa única
definição superficial de filosofia continental. Por recusarem a realidade empírica como apenas
uma parte aparente do fenômeno social em sua complexidade histórica, são incapazes de
perceber as múltiplas determinações que recortam a unidade no diverso. Apenas para suscitar
a reflexão sobre essas questões adormecidas, apresento esse artigo com o objetivo de
*
As questões desenvolvidas nesse artigo foram extraídas da dissertação de mestrado A antropologia de
Feuerbach e alguns delineamentos acerca de uma possível influência no pensamento de Marx, sob orientação do
Prof. Antonio José Romera Valverde.
†
É socióloga, mestre em filosofia e doutora em Educação, integrante do Núcleo de Estudos em História:
Trabalho, Ideologia e Poder – NETHIPO – PUC-SP e do Grupo de Pesquisa: Economia Política da Educação e
Formação Humana – GEPEFH – UFSCar e co-editora da Verinotio – Revista Online de Educação e Ciências
Humanas.
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explicitar a crítica a filosofia especulativa iniciada por Feuerbach, que posteriormente foi
levada às últimas conseqüências por Marx, desnudando todas as formas de mascaramento e de
estranhamento das relações sociais. Por ora, evidenciaremos neste artigo a originalidade do
pensamento de Feuerbach e sua atenção à determinação ontológica do ser, questão primordial
para Marx, como evidenciou J. Chasin.
A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa, ainda que tenha permanecido no
campo da crítica à religião, pôs em questão o resgate da objetividade como referência para o
pensamento, e atenção à determinação histórica do ser. Pelo fato de as posições
feuerbachianas terem clamado pelo resgate da ontologia como premissa necessária ao
pensamento que trazemos neste artigo alguns aspectos da crítica de Feuerbach à filosofia
especulativa, justamente numa circunstância em que a especulação alcança pleno vigor nas
diferentes tendências filosóficas. Desse modo, para melhor expor nossos argumentos
organizamos as questões tratadas aqui nos itens: 1. Reflexões Preliminares; 2. A relação da
filosofia especulativa com a religião; 3. A relação entre pensamento e natureza no pensamento
feuerbachiano; 4. Assinalamentos ontológicos; 5. A contraposição entre ser determinado e a
lógica da filosofia especulativa; 6. Considerações finais, como veremos a seguir.
1. Reflexões preliminares:
Ludwig Feuerbach (1804-1872) nasceu na cidade de Stuttgart-Bad Cannstatt, na
Alemanha. Segundo Weischedel Wilhelm‡, Feuerbach era filho de famoso advogado e foi
aluno exemplar. Dedicado aos estudos e de excelente educação, organizado e de caráter
íntegro, não foi difícil adquirir respeito intelectual no meio acadêmico. Estudou teologia, mas,
ao se ver diante da oposição existente entre liberdade e dependência, razão e fé, transferiu-se
para o curso de filosofia. Em Berlim recebeu influência de Hegel. Doutorou-se em 1828 com
a tese
De ratione, una, universali, infinita, contudo afastou-se gradativamente de suas
posturas iniciais para seguir nova orientação teórica e efetivar seu rompimento com Hegel.
Weischedel Wilhelm também faz menção a Gottfied Keller, filósofo alemão do século XIX,
por ter ressaltado a importância de Feuerbach para o seu tempo não só pela sua crítica à
filosofia especulativa, mas também porque esse embate consistiu na busca de uma geração
‡
- WILHELM, Weischedel – “Feuerbach: Oder Mensch Als Schöpfer Gottes”. In: Die Philosophische
Hintertreppe – 34 Grobe Philosophen in Altag Und Denken. Münche, Deutscher Taschenbuch Verlag. 1989, pp.
238/246.
2 – Idem., p. 241.
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melhor, liberta da religião, pois foi o primeiro filósofo a fazer do homem o assunto principal
da filosofia, em sua realidade e totalidade, motivo pelo qual foi denominado filósofo
antropológico§.
Herbert Marcuse (1898-1979) situou o pensamento feuerbachiano no contexto da
filosofia alemã, em seu clássico Razão e Revolução, partindo do princípio de que Feuerbach
permanece no âmbito da reflexão hegeliana, pois ao propor A Filosofia do Futuro, tal como
Hegel, concebe que a humanidade alcançou a maturidade para efetivar sua emancipação. Por
isso, diz que a filosofia de Feuerbach busca a efetivação lógica e histórica da filosofia de
Hegel: “A nova filosofia é a realização da filosofia hegeliana, e mais, de toda a filosofia
anterior”**. Nesse caso, Hegel transformou a teologia em lógica e Feuerbach transformou a
lógica em antropologia. Desse modo, Marcuse não reconhece no pensamento feuerbachiano
nenhuma autenticidade, senão a continuidade da filosofia hegeliana.
J. Chasin (1937-1998), em Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica
retoma o debate sobre o pensamento feuerbachiano, evidenciando sua posição crítica nas
Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia frente o pensamento hegeliano: “Quem não
abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana, segundo a
qual a natureza, a realidade, é posta pela idéia, só é a expressão racional da doutrina teológica,
segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é,
abstrato” (CHASIN, 1995, p. 348).
Chasin explicita várias passagens das obras
feuerbachianas, ressaltando como este,
mais uma vez em termos positivos, assinala o que vem a ser em seu
posicionamento o verdadeiro campo da ontologia: “O real, em sua
realidade ou enquanto real, é o real enquanto objeto (Objekt) dos sentidos,
é o sensível. Verdade, realidade e sensibilidade são idênticas. Só um ser
(Wesen) sensível é um ser verdadeiro, um ser real. Só mediante os sentidos
se dá um objeto (Gegenstand) em sentido verdadeiro – e não mediante o
pensar por si mesmo. O objeto dado pelo pensar ou idêntico a ele é apenas
pensamento”. Por isso, “A nova filosofia observa e considera o ser tal como
é para nós, enquanto seres não só pensantes, mas também realmente
existentes – por conseguinte, o ser enquanto objeto do ser – como objeto de
si mesmo” (...) Contundentes na crítica antiespeculativa, bem como na
viragem ontológica, as proposituras feuerbachianas são radicais quer pela
“coragem de ser absolutamente negativo” em relação ao passado filosófico
imediato, síntese de longo percurso idealista, quer afirmativamente, pelo
“imperativo de realizar o novo”, porque nele “reside a verdadeira
necessidade”, identificada esta “à necessidade da época, da humanidade”.
É nessa dupla condição de radicalidade, tanto na ruptura, como na vigorosa
**
- MARCUSE, H. – Razão e Revolução, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 247.
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impulsão a um universo ontológico qualitativamente novo, que as
proposições feuerbachianas não podem ser ignoradas, tal como o foram – o
que é decisivo por Marx” 9CHASIN, 1995, pp. 349-350).
J. Chasin em seus estudos sobre a trajetória do pensamento marxiano procurou
identifica com maior precisão as circunstâncias e o próprio processo interno de reflexão que
impulsionaram Marx a realizar uma ruptura na história da filosofia e assumir uma nova
postura na sua relação com o mundo. O pensamento que se desenvolve a partir daí não
estabelece como centro da reflexão a constituição de um novo sistema filosófico, ao contrário,
põe como princípio a reflexão e a explicação do mundo como ele é, como ressalta Marx nas
teses Sobre Feuerbach: “As premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem
dogmas; são antes bases reais de que só é possível abstrair no âmbito da imaginação. As
nossas premissas são os homens reais, a sua ação e as suas condições materiais de existência”
(MARX, 1974, p. 18). Essas observações constituem, certamente, pontos que aproximam os
dois pensadores e se manifestam como referência analítica sobre o mundo em que vivemos. A
partir das inflexões apontadas por Chasin podemos perceber que o pensamento de Marx, a
partir de uma discussão travada com Feuerbach, institui um procedimento filosófico
completamente novo na história da filosofia, permeado pela objetividade em seus diversos
graus de conexão. A partir dessas referências apresentaremos a seguir, a crítica de Feuerbach
à filosofia especulativa.
2. A relação da filosofia especulativa com a religião
Em sua crítica a Hegel, Feuerbach compara a base teórica da filosofia especulativa à
religião, pois a filosofia especulativa é formulada utilizando-se dos mesmos procedimentos da
religião, por isso, torna-se também, uma forma de religião. Feuerbach não deixa de apontar as
diferenças existentes entre elas, mas esclarece que cometem os mesmos equívocos ao
justificarem a origem da matéria a partir do pensamento, e conseqüentemente discorrerem
acerca da oposição entre finito e infinito. Em verdade, querem justificar o seu pensamento
negando a origem do ser na própria matéria, procurando o seu fundamento na comprovação
do infinito.
Todavia, a teologia, ao tentar provar a existência do infinito através do finito,
termina por abrir um precedente pautado pelo reconhecimento da necessidade da
determinação:
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Deduzir o finito do infinito é determinar e negar o infinito e o
indeterminado; é admitir que, sem determinação, isto é, sem finidade, o
infinito nada é, é pois confessar que o finito se põe como a realidade do
infinito (...) O finito é a negação do infinito e, por seu turno, o infinito é a
negação do finito. A filosofia do absoluto é uma contradição
(FEUERBACH, 1988b, p. 24).
Feuerbach procura comprovar que a filosofia absoluta faz uma inversão, pois, é a
partir do finito que se põe o infinito, isto é, o infinito tem sua origem no finito. Contudo, a
tarefa da filosofia não é refletir sobre o infinito, mas sobre o finito -“transpor o infinito para
o finito” – não é discursar sobre o absoluto abstrato, a idéia, mas refletir o real, o existente, o
determinado.
Por isso, no confronto com a filosofia especulativa, Feuerbach põe a pergunta:
“Podes tu pensar, definir a qualidade, sem pensar numa qualidade determinada? Por
conseguinte, o primeiro não é o indeterminado, mas o determinado, pois a qualidade
determinada nada mais é do que a qualidade real; a qualidade real precede a qualidade
pensada” (FEUERBACH, 1988b, p. 24). Feuerbach aponta para a impossibilidade de a idéia
gerar a matéria, pois primeiro vem a qualidade real, depois vem a qualidade pensada. Todo o
movimento subjetivo provém do movimento objetivo. O conhecimento provém do sentido.
O infinito tem sua essência no finito. A verdadeira filosofia é aquela que consegue perceber o
universo empírico.
O infinito da religião sempre foi o finito, o determinado, porém
apresentado de forma mistificada, como indeterminado. E a filosofia trilha pelo mesmo
caminho, transfere para o infinito determinações e predicados que são próprios do finito.
A dificuldade em compreender a determinação do ser leva a filosofia a ficar perdida
no emaranhado religioso, a acreditar que da idéia pode originar a natureza. Assim como as
qualidades não estão fora do objeto, os conceitos genéricos não estão separados das coisas da
qual nós o abstraímos –
O sujeito, isto é, o ser existente é sempre o indivíduo, a espécie é apenas o
predicado ou a qualidade. Mas exatamente o predicado, a qualidade do
indivíduo é que o pensamento puro, a abstração separa desse indivíduo,
transformando-o num objeto em si mesmo, concebendo-o nessa sua
abstração como a essência dos indivíduos e determinando as diferenças dos
indivíduos entre si apenas como individuais, isto é, aqui casuais,
indiferentes, insignificantes, de forma que, para o pensamento, para o
espírito, todos os indivíduos são na verdade apenas um indivíduo, ou antes,
um conceito, pois o pensamento só retira o cerne e só deixa a casca para a
contemplação sensorial que nos revela os indivíduos enquanto indivíduos,
isto é, em sua multiplicidade, diversidade e individualidade, de forma que o
pensamento transforma o que na realidade é o sujeito, a essência, num
predicado, numa qualidade, num mero modo ou maneira do conceito
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genérico e, ao contrário, transforma o que na realidade é apenas uma
qualidade, um predicado, numa essência (FEUERBACH, 1989, p. 106).
Esse equívoco acontece porque o pensamento extrai a qualidade do ser e a
autonomiza, transformando-a num conceito genérico, suprimindo as diferenças individuais,
assim, o pensamento passa a girar em torno do conceito descolado do ser que o originou.
Feuerbach expõe a contraposição que normalmente ocorre entre pensamento e ser,
ou entre qualidade e ser, gerando a impressão de que o ser é simples extensão do pensamento,
por isso, apresenta a diferença entre a qualidade e o ser que tem a qualidade:
Não nego, para utilizar aqui novamente os exemplos anteriores, a
sabedoria a bondade, a beleza; nego apenas que possuam essência como
conceitos genéricos, como deuses ou atributos de Deuses, ou ainda como
idéias platônicas, ou conceitos hegelianos que estabeleceram a si mesmos;
apenas afirmo que só existem em indivíduos sábios, bons e belos, que são
então, como foi dito, somente qualidades de seres individuais, que não são
nenhuma essência em si mas atributos ou qualidades da individualidade,
que estes conceitos gerais pressupõe na individualidade e não vice-versa
(FEUERBACH, 1989, p. 108).
Assim, Feuerbach resgata a polêmica acerca da relação entre ser e pensamento
despontada na Antiguidade para marcar a posição ontológica, cujo ponto de partida está
relacionado à natureza, referência que perpassa as obras feuerbachianas, mantendo-o no
universo sensitivo e naturalista, como poderemos acompanhar no próximo item.
3. A relação entre pensamento e natureza no pensamento feuerbachiano
Para justificar suas críticas à filosofia especulativa Feuerbach apresenta seus
argumentos sobre os meios de constituição do pensamento. Assim, Feuerbach busca
comprovar que os conceitos representados em nossa mente são, antes de tudo, resultados da
apreensão que fazemos da realidade. Por isso diz que ter consciência é ter razão, mas a razão
não se faz por si só, ela se faz a partir do mundo existente, a partir da relação com a natureza:
o homem deve iniciar sua vida e seu pensamento com a natureza, que a
natureza não é o efeito de um ser diverso dela mas sim, como dizem os
filósofos, é a causa da mesma, que ela não é uma criação, fabricada ou
tirada do nada mas sim autônoma, compreensível por si mesma, só
derivável de si mesma, que o surgimento do próprio sol, se o pensarmos
como surgido, sempre foi um processo natural, que nós, para
compreendermos o surgimento de tais coisas, não devemos partir do
homem, do artista, do artífice, do pensador que constrói o mundo baseado
em suas idéias, mas sim da natureza (FEUERBACH, 1989, p. 148).
Para o filósofo, só pode existir no pensamento o que existe na natureza, o que
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acontece no mundo, pois é da natureza que deriva o homem e suas idéias. Em contraposição
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ao pensamento de seu tempo, Feuerbach procurou afirmar categoricamente que a consciência
advém da natureza. É ela que constitui a base dos sentidos e a fonte da razão. A compreensão
que o homem tem do mundo é resultado da sua relação com o mundo, a partir da apreensão da
objetividade da coisa como ela é. Dessa forma, é imprescindível ao ser as suas qualidades.
Só pode existir o ser que possui qualidades, que exerce sobre nós algum efeito. O ser só pode
possuir objetividade se possuir qualidades. Portanto, Deus como um ser determinado não
existe, a não ser como representação das qualidades humanas:
Existir é para o homem o princípio, a essência fundamental da sua
imaginação, a condição dos predicados (...) Tu és essência apenas como
essência humana; a certeza e a realidade da tua existência estão apenas na
certeza e na realidade de tuas qualidades humanas. O que é sujeito está
apenas no predicado; o predicado é a verdade do sujeito; o sujeito é apenas
o predicado personificado, existente. Sujeito e predicado distinguem-se
apenas como existência e essência (FEUERBACH, 1988d, p. 61).
Se na ausência de predicados o ser não existe, Feuerbach argumenta que Deus só
pode ser o resultado da própria atividade do pensamento do homem para explicar a sua
existência. Somente na natureza podemos encontrar a razão da nossa existência, que por sua
vez tem origem na carência que moveu o universo. Da natureza emana toda energia necessária
ao homem, pois
Natureza é luz, é eletricidade, é magnetismo, é ar, é água, é fogo, é terra, é
animal, é planta, é homem enquanto ser que age espontânea e
inconscientemente – nada mais, nada místico, nada nebuloso, nada
teológico compreendo na palavra natureza. Com essa palavra faço um
apelo aos sentidos. Júpiter é tudo o que tu vês, disse um antigo; natureza,
digo eu, é tudo o que tu vês e que não se origina das mãos e dos
pensamentos humanos. Ou, se quisermos penetrar na anatomia da
natureza, ela é o cerne ou a essência dos seres e das coisas cujos
fenômenos, exteriorizações ou efeitos (nos quais exatamente sua essência e
existência se revelam e dos quais constam) não têm seu fundamento em
pensamentos, intenções e decisões mas em forças ou causas astronômicas,
cósmicas, mecânicas, químicas, físicas, fisiológicas ou orgânicas
(FEUERBACH, 1989, p. 81).
A natureza tem sua explicação por si mesma, não por atribuições do pensamento,
como queriam a teologia e a filosofia especulativa. Contrário disso é viver no mundo da
imaginação, realizando especulações infundadas, tentando construir a natureza a partir de um
espírito.
A natureza é o ser do qual o homem surgiu originariamente até se transformar em
homem na forma como conhecemos. Podemos explicar a existência humana pela origem dos
seus antepassados, através das gerações que se sucederam uma a uma até chegar a nós. Mas as
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gerações não se confundem. Cada qual é determinada pelo seu tempo, suas características e
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particularidade: “Um homem do século XVII nunca poderia ser pai de um homem do século
XIX, mesmo que o tempo não existisse entre eles, porque a distância qualitativa, a diferença
entre os costumes, hábitos, idéias, intenções seria grande demais” (FEUERBACH, 1989, p.
82); não é possível ignorar as determinações históricas, pois o homem não existe em abstrato.
O homem é num tempo histórico determinado, sofre influências da cultura e das idéias que
circulam em sua época e também exerce influência sobre ela. Feuerbach põe em evidência a
objetividade do ser e o grau de conexão que ele possui no tempo e no espaço. O ser existe e
está em relação a outro ser.
O campo para o desenvolvimento do homem é a Terra – critério absoluto da
essência humana. A essência fundamental do homem é ter nascido na Terra. Feuerbach fala
de uma essência humana naturalizada, diretamente ligada à natureza – por comodismo o
homem não procura investigar a série de causas infinitas contida na natureza que enfim deu
origem à vida.
Podemos dizer que, da mesma forma que as qualidades humanas não são
idéias abstratas a serem alcançadas pelo homem, porque elas são atributos que pertencem ao
próprio homem, os conceitos também não existem fora do objeto. O pensamento é abstraído
dos sentidos,
mas muitos filósofos, como os especulativos, ainda acreditam que o
pensamento pode criar o mundo.
Só pode existir no pensamento o que existe na natureza e o que acontece no mundo.
É a partir da Terra que pode o homem desenvolver seu pensamento. O conceito advém dos
sentidos por meio da abstração – é da diversidade das coisas existentes no mundo que
podemos extrair um conceito para representá-las. Nesse sentido, Feuerbach faz crítica a
Hegel e aos hegelianos, dizendo que eles formam as coisas conforme os seus conceitos. O
que importa é definir os conceitos conforme as coisas são. Para Feuerbach, da natureza é
extraído o poder, a eternidade, a sobre-humanidade, a infinitude e a universalidade, assim
como as qualidades morais. É a partir da sua capacidade de abstração que o homem pode
abstrair da natureza e da realidade os conceitos genéricos, movido pela necessidade de
nomear coisas para determiná-la: ao invés de dizer “dê-me essa coisa”, prefere dizer “dê-me
essa fruta”, ou pêra. O homem é sujeito do pensamento. A filosofia especulativa tenta provar
que o pensamento é o sujeito. Quem afirma que a consciência é a medida de toda existência,
que algo só é real se existe na consciência , está submerso em completo delírio, vive no
completo idealismo sustenta Feuerbach. Para ele, a filosofia que não capta as coisas in
flagranti faz apenas especulação e não filosofia; precisa ser negada, pois não contribui para a
vida. Por isso ele faz de seu objeto a natureza, o homem, a psicologia que é ativa, “a
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psicologia relacionada somente com os objetos nos quais se manifesta a psyché do homem em
sua totalidade, portanto, somente em suas manifestações objetivas, em suas ações”
(FEUEERBACH, 1989, p. 288).
Se o conceito advém do ser, por que, então, a filosofia especulativa mantém a
mesma linha de pensamento que a teologia acerca dos conceitos, considerando-os criadores
do ser? Feuerbach levanta essa questão para compreender porque tanto a filosofia como a
teologia invertem e atribuem a um outro ser a nossa existência. A necessidade de encontrar
uma causa para a existência a partir da formulação dos conceitos levou o homem a encontrar
em Deus a essência abstraída do universo, como forma de sintetizar todas as diferenças entre
seres e objetos. Em Deus o homem pode abstrair todas as diferenças providas das diversas
coisas sensoriais existentes no mundo:
por ser apenas um conceito genérico, colocamos sempre sob esse conceito
geral de imagens das coisas sensoriais, representando assim a essência de
Deus ora como a essência da natureza em seu todo, ora como a da luz, a do
fogo, do homem, isto é, daquele homem velho e digno, da mesma forma
que em todo conceito genérico paira diante de nós a imagem dos indivíduos
dos quais abstraímos esse conceito (...) A existência tal como é atribuída a
Deus é a existência em geral, é o conceito genérico da existência, a
existência abstraída de todas as qualidades e atributos especiais e
individuais (FEUERBACH, 19889, p. 101).
Assim, Feuerbach ressalta que teólogos e filósofos atribuem uma existência
espiritual a Deus, mas a concepção da essência divina é extraída da essência sensorial. A
natureza fornece os elementos sensoriais para a formulação da filosofia e da teologia,
entretanto, permanece a recusa em ver o que é objetivo e sensível. Porém, não existe saída
para esse pensamento, a não ser o reconhecimento de que o conceito tem sua origem na
matéria:
Se então, como vimos até aqui, todas as qualidades, essências ou realidades
que reunidas formam a essência de Deus são abstraídas da natureza, se
então a essência, a existência, as características da natureza são o original
segundo o qual o homem esboçou a imagem de Deus, ou se, indo mais
fundo, Deus e mundo ou natureza só se distinguem como o conceito
genérico se distingue dos indivíduos, de forma que a natureza, tal como ela
é objeto para a percepção sensorial, é a própria natureza, a natureza ao ser
distinguida da sensorialidade na abstração de sua imaterialidade e
corporalidade é objeto para o espírito, o pensamento, é Deus; assim se
esclarece por si mesmo, assim está demonstrado que a natureza não surgiu
de Deus, que o ser real não surgiu do abstrato, que o ser material não surgiu
do espiritual (FEUERBACH, 1989, p. 102).
Entretanto, o segredo da teologia se baseia nessa inversão, justamente pelo fato de
buscar a causa primeira da sua existência, limitado a sua própria essência. Não percebe que o
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abstrato se desenvolve a partir do concreto e que o conceito genérico se forma a partir das
espécies e indivíduos. Assim, o conceito genérico é uma abstração, ele representa o objeto,
mas não é o objeto.
Ao contrário do que é dito pela teologia e filosofia especulativa, o homem através da
história demonstra como desenvolve o seu pensamento a partir da atividade com a natureza,
através das coisas reais o homem formula conceitos gerais –
O homem abstrai da natureza, da realidade, por meio da faculdade da
abstração, o que é semelhante, parecido, comum, separa-o das coisas que se
assemelham e que são de igual essência e em seguida o transforma num ser
autônomo, numa essência diversa das coisas. Assim, por exemplo, o
homem abstrai das coisas sensoriais espaço e tempo como conceitos gerais
ou formas nas quais todas as coisas se combinam por serem todas extensas
e mutáveis, todas separadas uma das outras e seguidas uma das outras
(FEUEERBACH, 1989, p. 103).
A partir dessa premissa, Feuerbach se coloca contrariamente às posições de Kant,
quando este afirma que os homens criaram o conceito de tempo, pois o tempo não se encontra
nas coisas existentes, mas na mente dos homens, isto é, “o tempo é a condição subjetiva da
intuição das coisas, já que não posso justapor as coisas a menos que tenha a idéia de
justaposição. ‘Se a condição particular de nossa sensibilidade for suprimida, desaparece
também o conceito de tempo, que não adere aos próprios objeto mas apenas ao sujeito que o
institui’” (GIANFALDONI & MICHELETTO, 1999, p. 388).
Para Feuerbach, ao contrário, os homens retiraram o conceito de tempo do próprio
movimento da matéria. O filósofo ressalta que essa é uma das questões mais difíceis da
filosofia. O homem abstrai espaço e tempo das coisas espaciais e temporais, das coisas que
possuem extensão e movimento, o tempo é abstraído do corpo que se move. Porém o homem
põe a atividade da abstração no início do processo. Assim, os conceitos de tempo e espaço
tornam-se os primeiros fundamentos e condições de existência das coisas.
Por isso imagina ele o universo, isto é, o cerne das coisas reais, a matéria, o
conteúdo do mundo como surgido em espaço e tempo. O próprio Hegel só
permite que a matéria surja não só em mas a partir de espaço e tempo.
Exatamente pelo fato de o homem pressupor espaço e tempo das coisas
reais e estabelecer os conceitos gerais abstraídos das coisas particulares na
filosofia como entidades universais, na religião politeisticamente como
deuses, monoteisticamente como qualidades de Deus, exatamente por isso
fez também de espaço e tempo um deus ou identificou-os com Deus
(FEUERBACH, 1989, p. 103).
O homem põe a atividade da abstração em primeiro plano, mas em verdade ela é
conseqüência. Ele só pode estabelecer conceitos, nomear, abstrair,
a partir
das coisas
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sensíveis. É das coisas reais, sensíveis que o homem formula conceitos gerais. É nessa direção
que o filósofo busca referências na história da filosofia para resgatar posicionamentos
ontológicos.
4. Assinalamentos ontológicos
Feuerbach chama a atenção para o fato de que existe uma tendência muito forte em
se fazer um uso arbitrário das palavras, mas também porque o idioma em seu uso corriqueiro
tende a generalizar, a universalizar as particularidades. Por isso é importante contemplar o ser.
A universalidade não existe apenas na língua, na imaginação do homem. O universal pertence
à existência, independente do pensar humano, o que não impede o homem apreendê-lo,
transformá-lo em pensamento. O homem pode realizar esse empreendimento porque “possui
o número exato de sentidos que é suficiente para que ele apreenda o mundo em sua
totalidade”.
É através dos sentidos que o homem pode apreender as coisas existentes.
Entretanto, os homens de modo geral, ao tentar definir os conceitos, se perdem e acabam por
inverter as situações. Em verdade,
é inerente à natureza do pensamento, do idioma, até mesmo à própria
necessidade da vida o fato de usarmos sempre abreviaturas, de
substituirmos sempre a impressão real por um conceito, o objeto por um
símbolo, uma palavra, de substituirmos o concreto pelo abstrato, o múltiplo
pelo uno e, conseqüentemente, múltiplos e diversos indivíduos por um
indivíduo ou representante dos outros (...) Mas não se deve salientar
apenas essa necessidade em si e isolada, abstraída de outros fenômenos,
idéias e representações que se fundam nessa mesma necessidade que, por
sua vez, reconhecemos como subjetiva, isto é, como fundada na natureza
específica do imaginar, pensar e falar, pelo que não lhe atribuímos uma
validade e uma existência objetiva, exterior a nós (FEUERBACH, 1989,
p.86).
Porque o idioma às vezes confunde? Ele é universal e não particular, por isso pode
iludir. Muitos homens ocupados com o cotidiano da vida não conseguem observar o ser real
como ele é. Tampouco conseguem perceber que a palavra é uma abstração, porém, retirada
dos objetos sensíveis:
A palavra, o nome, é um produto da imaginação (que atua naturalmente
com a razão e após a impressão dos sentidos), a imagem de um objeto. No
idioma, o homem imita a natureza; o som, o tom, o barulho que o objeto
provoca é por isso o primeiro que o homem capta da natureza, que ele
transforma em característica através da qual ele imagina o objeto, com a
qual ele nomeia (FEUERBACH, 1989, p. 158).
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A palavra constitui, assim, um elemento da abstração, é a representação abstrata do
que existe na objetividade. Por isso, Feuerbach diz anteriormente que a natureza fornece para
o homem os elementos para sua reflexão, porque ela é apreendida pelos homens através dos
sentidos associados à razão, e como resultado temos a formação das palavras que os homens
aprimoram sempre mais para explicar o mundo existente.
Essa questão, entretanto, transformou-se num labirinto, tomando como refém a
filosofia. Feuerbach, em A História da Filosofia Moderna, apresenta as várias circunstâncias
em que a filosofia se debruçou diante da aparente oposição entre ser e pensamento. A Idade
Moderna, por exemplo, contraditoriamente, tornou-se subordinada à teologia (vinculando-se
aí, à lógica das palavras). Enquanto no campo experimental se desenvolviam pesquisas
extraordinárias, no campo mais complexo da abstração, na busca da causa primeira, apoiavase na justificativa religiosa. Tais suposições não se encontram nem nas obras de Aristóteles
nem de Platão. Eles sabiam discernir muito bem entre o que era pensamento e o que era
objetividade. Mesmo a Escolástica, subordinada aos princípios da Igreja, exerceu o papel de
quebrar a parcialidade limitada e opressora de suas leis, para demonstrar e defender um
espírito livre e científico. Fez dos objetos da fé objetos do pensamento. Ela tira o homem da
esfera da fé condicional e o leva para a esfera da dúvida, da análise e da sabedoria. A
Escolástica, procurando demonstrar as coisas da simples fé, recorre à utilização de
argumentos para fortificá-la, por isso pôde estabelecer a autoridade da consciência, sem
mesmo ter noção de sua importância. E através disso ela estabelece um outro princípio no
mundo, o princípio do espírito pensador, reflexivo, da consciência; mesmo que por meio de
perguntas absurdas, ela possuía um espírito sedento por ver a luz ††. Por isso não podemos
aceitar simplesmente o domínio da idéia sobre o ser sem acompanhar o seu embate na
história.
Podemos dizer que essa inversão teve início com os neoplatônicos, e nela se
fundamenta boa parte daqueles que se perdem no campo do pensamento.
Feuerbach reconstitui o processo pelo qual a filosofia especulativa caminha,
resguardando a particularidade de cada filósofo. Na modernidade, o primeiro nome a se referir
à religião foi Bacon, que sempre procurou distinguir as pesquisas realizadas na Física, na
teologia e na fé, isto é, procurou distinguir o campo da ciência, defendendo seu livre
desenvolvimento, da fé, resguardando-a de qualquer interferência. Mas foi Leibniz quem
criou o elo de transição entre a Idade Média e a Moderna e trouxe novamente a filosofia sob
- FEUERBACH, L. – “Die Scholastik als Wissenschaft des Mittelaiters”. In: Geschichte der Neueren
Philosophie, Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann Verlag Günther Holzboog, 1959, p. 9
††
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os pés da teologia, conseguindo certo respaldo no pensamento de Descartes. Espinosa foi
crítico de Leibniz, mas inaugurou a filosofia especulativa, posteriormente restaurada por
Schelling e levada às últimas conseqüências por Hegel.
Na filosofia de Espinosa, Deus dá origem ao pensamento e à matéria, ele é a
substância que dá origem ao todo existente. Hegel distingue sua filosofia da filosofia de
Espinosa por “ter insuflado à coisa morta e indolente da substância o espírito do idealismo”,
isto é, deu ao espírito a atividade que atua sobre o mundo permanentemente. “Hegel em
particular, fez da auto-atividade, da força de auto-distinção, da autoconsciência, um atributo
da substância” (FEUERBACH, 1988b, p. 20) – somente nesse princípio Hegel distingue-se
de Espinosa, pois para os dois pensadores toda a matéria existente é conseqüência, tem sua
origem na substância, Deus. Deus é a consciência de si que origina a matéria e o pensamento.
Enquanto
Espinosa considera a matéria como originada da substância, divina, Hegel
considera apenas “consciência como essência divina”.
A filosofia especulativa não se
distingue do que já foi aplicado na religião: sempre o predicado é o sujeito, e o sujeito é o
objeto e princípio. Feuerbach mostra que a filosofia especulativa faz uma inversão, pois o que
ocorre é justamente o contrário, a consciência é o predicado, e o ser o sujeito. O ateísmo é o
“panteísmo invertido”, é a doutrina que afirma que a matéria cria o pensamento.
Feuerbach tenta evidenciar a proximidade existente entre Hegel e Espinosa. Assim,
em Espinosa, o predicado da substância é a própria substância, em Hegel, o predicado do
absoluto, do sujeito, é o próprio sujeito. Eles unificam Deus (absoluto, sujeito, substância) e
matéria. “O absoluto é, segundo Hegel, ser, essência, conceito (Espírito, autoconsciência)”.
Entretanto, o absoluto é um ser, e precisa ser analisado e refletido sob uma categoria, é
absorvido por ela, sendo assim, o que é o absoluto, senão um nome? Em Espinosa, o absoluto
é o predicado, é o atributo, é o todo existente, e não o pensamento como aparece em Hegel.
Sendo assim, o absoluto ainda é perceptível.
Para a psicologia, a filosofia especulativa é apenas o absoluto indeterminado, é
abstração de todo o determinado, ao mesmo tempo que distinto desta abstração. Separa
matéria e espírito para depois unificar. “Mas à luz da história, é apenas o velho ser ou
monstro teológico-metafísico, não finito, não humano, não material, não determinado, não
qualificado – o nada pré-mundano posto como ato” (FEUERBACH, 1988b, p. 21).
O
absoluto é o nada que aparece como atividade criadora, é a velha metafísica renovada. “A
lógica hegeliana é a teologia reconduzida à razão e ao presente, a teologia feita lógica”
20
(FEUERBACH, 1988b, p. 21) – Hegel procura encontrar na natureza e na história, elementos
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que justifiquem o espírito absoluto; transfere a lógica formal para o espírito absoluto. “Tudo
o que existe sobre a Terra reencontra-se no céu da teologia. Tudo o que existe sobre a
natureza reencontra-se no céu da teologia – assim também tudo o que existe na natureza
reencontra-se no céu da lógica divina: a qualidade, a quantidade, a medida, a essência, o
quimismo, o mecanismo, o organismo” (FEUERBACH, 1988b, p. 21). Na teologia a lógica
aparece de forma abstrata e concreta. Hegel reproduz esse processo - a coisa aparece como
objeto da lógica e como objeto do espírito.
Feuerbach, através dessa reflexão, traduz o significado do que a teologia e a filosofia
especulativa fazem com o homem. Na teologia a essência do homem é jogada para fora de
si. Na filosofia de Hegel, a essência do homem é transcendente. O homem é pensado não a
partir de si, mas fora de sua essência, o pensamento é alienado, lançado para fora do homem.
Assim como na teologia, o espírito absoluto é um espírito finito, abstrato, separado de si. Mas
o espírito absoluto também pode se manifestar na subjetividade. É possível perceber a sua
presença através da arte, da religião, da filosofia. Entretanto, arte e religião estão interligadas
com a sensação, com a fantasia e a intuição humana, assim como ocorre entre a filosofia e o
pensamento. O que Feuerbach quer mostrar é que tudo isso é realizado pelo homem,
entretanto, Hegel transfere esse leque de atividades humanas para o espírito, que nada tem a
ver com o homem. Em verdade, não é possível separar “o espírito absoluto do espírito
subjetivo ou da essência do homem (...) sem nos levar a tomar o espírito absoluto por um
outro espírito, diferente do ser humano, isto é, como um fantasma de nós mesmos existindo
fora de nós (...) A teologia é a fé nos fantasmas” (FEUEERBACH, 1988B, p. 22).
A
observação feita por Feuerbach argüi que a abstração feita por Hegel é a abstração da
essência do homem fora do homem, e da mesma forma ele abstrai a natureza. Hegel aliena o
homem do próprio homem. Hegel realiza a separação entre os seres porque sua filosofia é
desprovida de mediação e unidade, de certeza e verdade. A abstração feita por Hegel não tem
nenhuma mediação com o sensível, ela se dá meramente no campo do pensamento, enquanto
que a teologia ainda se pautava pela imaginação a partir do sensível.
A filosofia especulativa transforma a religião em resolução racional e teorética, isto
é, procura através da lógica justificar o espírito transcendente – “A essência da filosofia
especulativa nada mais é do que a essência de Deus racionalizada, realizada e atualizada. A
filosofia especulativa é a teologia verdadeira, conseqüente, racional” (FEUERBACH, 1988c,
p. 39). Deus, em verdade, é a essência da própria razão, transformada pela teologia numa
entidade autônoma ao homem, como uma abstração que ganha vida própria. A razão
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autonomizada ganha aspecto divino – nela se deposita a essência
e o sagrado, para se
distinguir da razão do homem. Este é o fundamento da filosofia especulativa.
Para a teologia comum Deus é um objeto e é um sujeito humano que cria coisas fora
de si, relaciona-se consigo e com outros seres existentes fora de si.
Para a filosofia
especulativa, Deus aparece não humano, um ser acima dos homens supra-humano, isto é,
uma abstração. A especulação transformou a imagem de um ser ilusório e longínquo para a
representação pré-mundana presente na lógica, na geometria, álgebra etc.
Surgiu uma
desavença entre o teísmo e a filosofia especulativa pelas diferenças com que ambas tentavam
falar de Deus.
Entretanto, ambas falam das mesmas coisas.
Antes de existirem, a
matemática, a fração, o peso e a medida já estavam no entendimento de Deus. A filosofia
especulativa incorpora o ser divino da teologia, transforma a religião em lógica. Retira de
Deus a paixão e introduz a atividade do pensamento. Tanto a teologia como a filosofia
especulativa abstraem o real, porém, na teologia a abstração é uma abstração sensível, e na
filosofia especulativa é uma filosofia (abstração – melhor: um produto do pensamento)
pensada, é uma abstração espiritual, seu significado é apenas científico ou teorético, não
prático.
Feuerbach designa a filosofia cartesiana como mais uma a contribuir para o início da
filosofia especulativa, quando propôs a abstração da sensibilidade da matéria.
Descartes e Leibniz consideravam esta abstração apenas como uma
condição subjetiva para conhecer o ser divino imaterial; representavam
para si a imaterialidade de Deus como uma propriedade objetiva,
independente da abstração e do pensamento; colocavam-se ainda do ponto
de vista do teísmo, faziam do ser imaterial apenas o objeto e não sujeito,
não o princípio ativo, nem a essência real da própria filosofia
(FEUERBACH, 1988c, p. 45)
Deus era considerado apenas como um primeiro motor, um ser externo e abstrato ao
homem, mas que em nada interferia no mundo objetivo. Leibniz e Descartes são idealistas
apenas quando pensam a causa primeira da matéria, mas são integralmente materialistas
quando pensam no desenvolvimento da matéria.
Leibniz também considera que o homem também possua um pouco de idealismo,
pois possui entendimento, além das outras faculdades, como a sensibilidade e a própria
imaginação. O entendimento, para Leibniz, “é um ser imaterial, puro, porque pensante; só
que o entendimento do homem não é perfeitamente puro, não é puro quanto à intensidade e
infinidade como o entendimento ou o ser divino” (FEUEERBACH, 1988c, p. 46); quando
22
Leibniz afirma que o entendimento é um ser imaterial puro, lembra um pouco a afirmação de
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Feuerbach sobre a importância da consciência, considerando-a como uma entidade autônoma
e soberana - o pensamento é imaterial. Mas Leibniz acredita num Deus separado do homem e
criador do universo e Feuerbach, não. Para Feuerbach, o entendimento não se constitui em
algo abstrato, mas é a própria essência do homem.
Com Leibniz, a filosofia especulativa encontra sua continuidade. Sua filosofia
pensa o homem, o seu entendimento do mundo e o seu raciocínio para justificar a autonomia
do pensamento em relação aos sentidos:
“Quem não tem o entendimento cortado dos
sentidos e não considera os sentidos como limitações também não representa para si como o
entendimento mais elevado e verdadeiro o entendimento privado dos sentidos”
(FEUERBACH, 1988c, p. 46) – para Leibniz os sentidos possuem limitações, pois só é
possível alcançar o entendimento mais elevado se o homem se afastar dos sentidos. A idéia
precisa estar isenta de qualquer influência ou limitação da realidade efetiva; eis aí a raiz dos
limites do entendimento humano. Estar relacionado ao mundo sensível, segundo Leibniz, leva
ao obscurantismo. Ao passo que, quando está consigo mesmo pensando, isolado do mundo,
pode alcançar, um entendimento puro, alcançar assim , o entendimento divino. A filosofia
especulativa transformou a filosofia de Leibniz
em completa abstração,
não é mais
necessário pensar, tendo como parâmetro a sensibilidade. As coisas do real são transformadas
em coisas imaginárias.
Então, em que consiste o segredo da filosofia especulativa? Os objetos e as coisas
não se distinguem do ser pensante. Deus é o ser que a si mesmo se pensa, em unidade
ininterrupta consigo mesmo – unidade entre o pensante e o pensado.
Não se distingue
pensamento da coisa pensada. Os objetos são movimentos do próprio pensamento – “Os seus
objetos são apenas determinações do pensar, mergulham puramente no pensamento, nada têm
para si que permaneça fora do pensar” (FEUEREBACH, 1988c, p. 47). Existe similitude entre
a essência de Deus e essência da lógica. Em ambos os casos, o que existe é um ser abstrato,
superior, que a tudo engloba numa essência abstrata. Mas todo ser abstrato e espiritual tem
o seu limite: o pensamento. É o pensamento que gera toda a imaginação do sujeito. O mundo
existente é completamente distinto da imaginação teológica. O pensamento divino, teológico,
é um pensamento representado, por isso, constitui-se enquanto um pensamento invertido.
Apesar de estarem próximos, Feuerbach procura mostrar as diferenças existentes
entre a filosofia especulativa e o pensamento teológico, e ainda pontua as diferenças de ambos
com a nova filosofia, que procura pensar o ser como é, o pensamento pautado pelo real.
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Existe uma diferença radical entre o pensar de Deus e o pensar do homem. O pensar de Deus
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é estabelecido a priori, como criação dos seres e das coisas, pela filosofia especulativa. E o
saber do homem é estabelecido a posteriori, a partir do que é dado pelo empírico. Pois o
pensamento só pode pensar aquilo que existe, a coisa acontecida. Por isso, Feuerbach esforçase em distinguir a qualidade da lógica especulativa das qualidades do ser determinado.
Contraposição entre ser determinado e a lógica da filosofia especulativa
Para a filosofia especulativa Deus é uma idéia que se mantém em unidade com a
coisa pensada, insensível; para o teísmo, Deus existe enquanto ser pensante e enquanto ser
sensível, está diretamente ligado aos fenômenos naturais como realização de sua vontade. A
expressão do poder sensível resulta na produção do mundo real, material. Na teologia
especulativa o conceito reproduz a si, desdobra-se até se concretizar na produção material,
enquanto para o teísmo o mundo é resultado da obra divina através do tempo. Na teologia
especulativa o advento da natureza só aparece conforme a determinação do espírito de forma
atemporal. Assim, no teísmo, Deus já existia antes da criação do mundo e este surge por uma
circunstância, ao acaso. Na filosofia especulativa, o mundo é criado por uma decisão, pela
lógica. O conceito é que é determinante e não a substância, a matéria.
O teísmo não constitui Deus apenas pelo saber especulativo, mas também pelo saber
sensível e empírico – o teísmo pôde, assim, influenciar tanto a filosofia especulativa como o
desenvolvimento das ciências empíricas em curso na Idade Moderna. Feuerbach compara a
filosofia especulativa à teologia.
Santo Tomás de Aquino, ao afirmar que Deus é
omnisciente, porque conhece as mínimas coisas, está afirmando que tudo está sob controle de
Deus. Assim também ocorre na filosofia especulativa, porém aqui o saber de Deus não é
apenas a fantasia da cabeça dos homens, mas um saber científico. O saber científico é
utilizado para conhecer a natureza e justificar a existência de Deus.
Para Feuerbach, faltam à filosofia especulativa pressupostos para sustentar o seu
pensamento. À semelhança da teologia, procura explicar as propriedades de Deus, mas vai
além, “transforma todo o ser de Deus em atividade, mas em atividade humana” – a filosofia
especulativa não tem pressuposto. Em verdade, a filosofia especulativa utiliza-se dos objetos
sensíveis para desenvolver o mais alto grau da abstração. O seu começo é o real, mas isso é
invertido, para posteriormente partir da abstração. Deus é o ser abstraído de todos os objetos
– o homem só pode alcançar Deus a partir da abstração dos objetos. “O homem, para chegar
a Deus, deves libertar-te a ti de tudo aquilo de que Deus é livre”, porque, o homem possui
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uma vida subordinada na realidade, por isso “só te libertas realmente quando para ti o
representas”, quando o homem transfere o seu desejo de liberdade para a existência de Deus.
“A propriedade que transferes para Deus é uma propriedade do teu pensamento”.
A
propriedade do homem é agir. Mas tanto em Fichte como em Hegel o pensamento aparece
ausente de pressuposto, puro e independente em si mesmo. Hegel, entretanto, vai mais longe.
Transforma o ser divino da antiga teologia em essência atual, ativa e pensante do homem.
Por estar vinculada à teologia, a filosofia especulativa é simultaneamente afirmação
e negação de Deus. É teísmo e ateísmo: enquanto representa Deus como um ser autônomo
distinto do ser e da natureza, se posiciona-se como teísta, quando nega Deus é panteísmo. “O
que separa o teísmo do panteísmo é apenas a imaginação, a representação de Deus como ser
pessoal. Todas as determinações de Deus (...) são determinações da realidade, ou da natureza,
ou do homem, ou dos dois conjuntamente” (FEUERBACH, 1988c, p. 51). Mas o panteísmo
não distingue Deus da natureza, nem dos homens. Deus só se distingue do mundo pela sua
personalidade, nas suas determinações é idêntico ao mundo.
No teísmo existe uma contradição entre aparência e essência, entre representação e
verdade. No panteísmo existe a unidade entre ambos. Assim, o panteísmo é o teísmo
conseqüente. Para o teísmo, Deus é o criador do mundo porque assim o desejou. Mas não
pensou o entendimento, as razões que Deus teve para a criar o mundo e “sem entendimento
não há objeto algum”. Também é dito que todas as coisas que Deus criou já estavam em seu
entendimento, como seres inteligíveis. Mas como pode se fazer exterior o entendimento de
Deus se as coisas estão no seu entendimento?
E se são conseqüências do seu entendimento, porque não hão de ser
conseqüências da sua essência? E se, em Deus, a sua essência é
imediatamente idêntica com a sua realidade efetiva, se a existência de
Deus não se pode separar do conceito de Deus, como haveria então de
separar-se o conceito da coisa e a coisa real no conceito que Deus tem das
coisas?(FEUERBACH, 1988c, p. 52).
Assim, Feuerbach apresenta a diferença entre o entendimento de Deus e a sua
exteriorização. Se não é possível exteriorizar o seu entendimento, também não é possível
exteriorizar a sua essência. Se Deus é imaterial e está no mundo existente, a matéria é nada,
por conseguinte, é o mesmo que querer justificar o nada. Mas a matéria existe, então fica a
questão: como Deus criou a matéria? “As coisas materiais só podem deduzir-se de Deus se o
próprio Deus se determinar como um ser materialista. Só assim é que Deus, de uma causa
puramente representada e imaginada, se transforma na causa efetiva do mundo”
(FEUERBACH, 1988c, p. 53).
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Por isso, Feuerbach apresenta o contraponto: o ser existente e objetivo. Só é possível
pensar aquilo que existe. Um ser sem determinação é um ser distante e inacessível, sem
qualidades, sem relações, portanto, inexistente. Retirar as propriedades de Deus é o mesmo
que retirar o ser de Deus. Retirar a propriedade de Deus é uma religiosidade parcial, pois
Deus só existe se é um ser-para-mim, e o homem um ser-para-ele. Para homem empírico
nada é real a não ser o que é. Recusa transferir para Deus o que é ativo e presente, perceptível.
A razão é matéria. Se não existisse a matéria, não existiria a razão, pois na matéria existem
todos os elementos essenciais para o homem pensar. Se eliminar a matéria, também se
elimina a razão.
O pensamento idealista percorre o caminho inverso: o ser existente precisa da
consciência para dar o veredicto, porque só é real um objeto real, enquanto objeto da
consciência. A consciência é a medida da existência. Em Descartes, por exemplo, Deus é o
princípio, mas como uma vaga representação. Em Fichte, o mundo aparece como sendo
produto do eu. Em Kant, o mundo é uma obra ou produto da nossa intuição e entendimento,
para quem a compreensão da natureza depende da experiência. A existência e a natureza
dependem do entendimento; por sua vez, é do entendimento que resulta a natureza. Kant
também faz uma realização teológica na medida em que “O entendimento não tira as suas
leis (a priori) da natureza, mas prescreve-lhes” (FEUERBACH, 1988c, p. 59). Por isso
Feuerbach diz que não é possível negar apenas o idealismo divino. É preciso negar também o
idealismo terreno, porque o “idealismo nada é a não ser o teísmo racional ou racionalização”
(FEUERBACH, 1988c, p. 59).
Assim, Feuerbach, ao retomar a história da filosofia, reconstitui o processo pelo qual
“a filosofia moderna realizou e suprimiu o ser divino separado e distinto da sensibilidade, do
mundo e do homem – mas só no pensamento, na razão e, claro está, numa razão igualmente
separada e distinta da sensibilidade, do mundo, do homem” (FEUERBACH, 1988c, p. 60).
Feuerbach afirma claramente: a filosofia não pensa o mundo, está inteiramente separada do
homem e da vida. Além disso, transfere o entendimento e a razão para um ser divino e
absoluto, criando um pensamento autônomo da realidade, e não como um resultado da
realidade.
Tanto a filosofia de Hegel quanto a de Espinosa se mantêm presas à teologia, pois o
ser imaterial se mantém objeto do conhecimento, e é tido como o ser verdadeiro e absoluto. A
própria matéria de Espinosa é uma coisa metafísica, porque a matéria para ele é a extensão de
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Deus. Hegel desenvolve a diferença que existe na relação do ser imaterial e o ser sensível.
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Para os primeiros teólogos e filósofos, Deus era um ser separado da natureza, livre da matéria
e
da sensibilidade. Cabia ao filósofo o papel de desenvolver a abstração e superar a
sensibilidade para alcançar o espírito liberto. Na liberdade do sensível, viam a virtude do ser
humano, e conseqüentemente viam a beatitude do ser divino - “Hegel, pelo contrário, fez da
atividade subjetiva a auto-atividade do ser divino” (FEUERBACH, 1988c, p. 62) – o ser
absoluto é a atividade do pensamento que se torna realidade e verdade. Não é possível separar
matéria e Deus. A matéria está em Deus porque Deus está na matéria.
A matéria é a
alienação do espírito, que se põe de forma radical em certos momentos, em outros se anula,
descola-se da matéria e da sensibilidade e volta para si, só assim assume sua verdadeira
figura e forma.
É a negação da natureza corrompida, assim como ocorre com o pecado
original da teologia. Quando se exterioriza, está
se alienando do espírito e,
conseqüentemente, negando-o.
Para a filosofia especulativa, Deus
só é Deus quando passa pela superação e
negação da matéria, “a qual constitui a negação de Deus. É só a negação da negação é,
segundo Hegel, a verdadeira posição”. De outro modo, faz com que o pensamento teológico
prevaleça, tornando ainda mais forte a filosofia teológica. Hegel desenvolve a crítica à
teologia, mas a estabelece através da crítica à filosofia. Em outras palavras, ele nega a
teologia através da filosofia, mas volta à teologia para concretizar a sua lógica – “A filosofia
hegeliana é a última grandiosa tentativa para restaurar o cristianismo já perdido e morto
através da filosofia e, claro está, mediante a identificação, tal como em geral acontecia nos
tempos modernos, da negação do Cristianismo com o próprio Cristianismo” (FEUERBACH,
1988c, p. 64). Quando a filosofia afirma a identidade do espírito e da matéria, do finito e do
infinito, do divino e do humano, nada mais faz do que tentar enlaçar a fé e a descrença, a
teologia e a filosofia, a religião e o ateísmo, para camuflar a contradição entre o real e a
imaginação – “é que esta contradição, em Hegel, se desvanece e obnubila aos olhos, porque
faz da negação de Deus, do ateísmo, uma determinação objetiva de Deus – Deus determina-se
como um processo e como um momento do processo do ateísmo” (FEUERBACH, 1988c, p.
64). A cartada final da filosofia especulativa é a tentativa de comprovação da existência de
Deus. Dessa forma, consegue equiparar a essência divina à essência do homem separado dos
limites da natureza. A filosofia especulativa torna independente a subjetividade que é pautada
pelo sensível e pelo entendimento do real,
e
o pensamento se desenvolve totalmente
desvinculado do mundo sensível.
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No pensamento de Kant, os homens podem através dos sentidos abstrair
o
entendimento de um objeto, mas não esgotar a sua essência. O entendimento pode apreender
os fenômenos e reconhecer sua existência (a coisa em si), que está por trás da representação
dos fenômenos. Mas “os objetos dos sentidos, da experiência, são para o entendimento
simples fenômeno e não verdade alguma, portanto não satisfazem o entendimento, isto é, não
correspondem à sua essência” (FEUERBACH, 1988c, p. 65) – dessa forma, o entendimento
está totalmente desvinculado dos sentidos. O que parece ser não é, então, a coisa sensível não
é tomada como fenômeno. Para Feuerbach, a filosofia kantiana é a contradição de sujeito e
objeto, de essência e existência, de pensamento e ser. Há uma separação entre essência e
existência: “A essência incide aqui no entendimento, a existência nos sentidos”
(FEUERBACH, 1988c, p. 65). Porém, a existência sem a essência é um simples fenômeno,
assim como a essência sem a existência é um simples pensamento – os noumena. Existem só
no pensamento, falta-lhes a existência, a objetividade. São coisas em si e não reais. Portanto,
não podem ser conhecidas em suas determinações.
O pensamento de Kant é contraditório porque tenta separar a verdade da realidade.
Para superar a contradição entre a verdade e a realidade, Kant defende uma filosofia da
identidade, na qual a coisa pensada é a coisa real; “onde a essência e a constituição do objeto
do entendimento corresponde à essência e à constituição do entendimento ou do sujeito”
(FEUERBACH, 1988c, p. 65). O sujeito já não se guia mais pela matéria que existe fora dele
e contradiz a sua essência, o sujeito é livre de qualquer limite, não é mais finito, “já não é o
eu, a que se contrapõe o objeto – é o ser absoluto, cuja expressão teológica ou popular é a
palavra Deus” (FEUERBACH, 1988c, p. 65). Feuerbach, mais uma vez, consegue alcançar o
ponto nevrálgico da filosofia especulativa e identifica seu fundo teológico, assim como no
idealismo subjetivo. E o que se revela é o pensamento desvinculado da matéria, que se
autonomiza, realizando assim, uma especulação, pois dá ao pensamento livre curso para
imaginar o que bem entender sobre o mundo existente.
Por isso, Feuerbach também identifica na filosofia especulativa uma forma de
opressão, pois, como a religião,
desapropria e aliena o homem da sua própria essência, da sua própria
atividade! Daí a violência, a tortura, que ela inflige ao nosso espírito. O
que é nosso devemos pensá-lo como não nosso, devemos abstrair da
determinidade em que algo é o que é, devemos pensá-lo sem sentido,
devemos tomá-lo no não sentido do absoluto. O não-sentido é o ser
supremo da teologia, tanto da comum como da especulativa (FEUERBACH,
1988c, p. 66).
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Sob esse pensamento o homem sucumbe a própria vida, não reconhece a si
mesmo, pois se subordina à um pensamento que ele mesmo criou e o transformou em
autônomo de si.
Além disso, a filosofia especulativa comete a arbitrariedade de usar os conceitos do
real sem nomear as fontes. Usa elementos do real para construir sua lógica teórica para depois
negar qualquer vínculo com a realidade. Cria nomes paranovos conceitos para se afastar dos
conceitos que nomeiam categorias do real. Constrói uma língua paralela para nomear os seus
conceitos, já que a consciência comum não consegue se aproximar desses conceitos por
possuírem representações mentais
que não correspondem aos conceitos da filosofia
especulativa. Muitos poderão dizer que esse problema é de responsabilidade da linguagem,
que não dá conta de explicar a lógica da filosofia. A essas questões Feuerbach responde: o
nome de uma coisa não é simplesmente um conceito abstrato, é antes de tudo designação de
uma categoria existente na esfera objetiva ou subjetiva (FEUERBACH, 1988c, p. 67).
Hegel, ao contrário, distingue o singular e o universal, mas não como nós
concebemos.
Para ele o singular pertence ao ser e o universal, ao pensar.
Na
Fenomenologia, “o isto” não pode sofrer discernimento pelo pensamento. Atribui o universal
ao pensamento e o singular ao ser. Por isso, a Fenomenologia não deixa de apresentar uma
contradição, pois o “isto” está totalmente identificado com o pensar. Entretanto, existe uma
grande diferença entre o objeto do pensar abstrato e o objeto da realidade efetiva.
Feuerbach põe em questão a fundamentação do direito. O que ele tenta mostrar é a
separação que é feita entre o conceito genérico e a própria realidade. Por exemplo, o objeto
enquanto propriedade é real, mas enquanto definição apenas do objeto é um conceito
genérico. A palavra é uma representação do pensamento. É universal porque a palavra
representa a coisa em sua diversidade (por exemplo, a palavra “casa” representa diferentes
tipos de casa, ou a palavra “mesa” em relação a todas mesas existentes). No pensamento de
Hegel, o ser em si é ignorado, só ganha atenção quando se trata do direito, da propriedade.
Até então, o “isto” se mantinha indiferente e indeterminado, mas o direito trás a delimitação.
Feuerbach faz referência ao direito natural, no qual não existe a propriedade, o que pertence a
este ou aquele, não existe diferença entre esse ou aquele. O direito surge para distinguir os
homens.
A fenomenologia é a contradição entre o conceito, a palavra, que é universal, e a
coisa, que é o singular. O pensamento, portanto, faz parte dessa contradição. A palavra apenas
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representa a coisa, dá a idéia da coisa, mas não é a coisa. Hegel pensa apenas do ponto de
vista teórico, mas a questão que aqui se trata é do ponto de vista prático, de sobrevivência do
próprio homem.
O nosso ser é tirado pelo direito, também não podemos permitir que seja
levado pela lógica. É preciso que a lógica reconheça o ser para superar a contradição com o
real. Pois, quando é de interesse, a fenomenologia se utiliza do ponto de vista prático – comer,
beber – para refutar a verdade do ser sensível.
A lógica de Hegel é uma construção lingüística desprovida de conteúdo, sem
sentido. Um ser que não pode ser explicado, construído num emaranhado de palavras que não
podem ser traduzidas é um ser inexistente. Ao superar o conjunto de palavras vazias é
possível ver o ser como ele é e a vida que o circunda. E mesmo antes das palavras o ser já
existe em si, independentemente de atribuições conceituais, o ser existe por si mesmo. Esta é
uma resposta, também, para Kant, que defende a idéia de que o objeto exterior só existe a
partir do momento que recebe um valor do sujeito. Para Feuerbach, a existência tem sentido
e razão, a vida pode ser explicada e possui um sentido, independentemente do sujeito.
Feuerbach traz para o centro da filosofia o ser enquanto fundamento do pensamento;
todavia, o ser está intimamente vinculado à sensibilidade. A filosofia nova tem por objetivo o
ser que é ser, não apenas pensante, mas ser existente – ser dos sentidos, da intuição, da
sensação, do amor. Feuerbach entende o ser como segredo da intuição, da sensação do amor.
O ser é sensação, é sentido. Feuerbach identifica sensação ao amor que pode ser definido,
põe-se como singular, algo finito que se põe como infinito – “só no amor é que o Deus que
conta os cabelos da cabeça é verdade e realidade. O próprio Deus então é apenas uma
abstração do amor humano, apenas uma imagem do mesmo” (FEUERBACH, 1988c, p. 80).
Aí se revela o segredo do ser: no valor absoluto do amor – “o amor é paixão, e só a paixão é o
critério de existência. Só existe o que é real ou possível – objeto da paixão” (FEUERBACH,
1988c, p. 80). O pensar que não tem como premissa a sensação e a paixão não consegue
perceber essa diferença entre ser e não ser. Só o amor percebe essa diferença. Porque quem
não ama é sempre indiferente ao que existe. Feuerbach faz crítica à especulação, mas ainda se
prende ao aspecto subjetivo. A distinção do ser e do não-ser está no amor. Só no amor pode-se
apresentar um ser distinto de mim.
Feuerbach se perde no puramente empírico. O amor permite “ver” a objetividade e
“ver” o que existe na representação e na realidade. Através da dor do amor é possível
compreender a relação entre o subjetivo e o objetivo – eles não são idênticos. Feuerbach vê a
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necessidade dos homens se relacionarem entre si, mas é a necessidade de amar e ser amado
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que mantém a convivência social e fazer a distinção entre objetividade e subjetividade. O
coração necessita de objetos e seres reais sensíveis – não meras abstrações ou seres
metafísicos. Toda a busca de Feuerbach consiste em compreender a consciência humana,
pois, para pensar, o homem precisa do mundo sensível. Assim, o mundo sensível é requisitado
enquanto relação com a consciência, com a essência do homem.
A filosofia antiga afirmava: o que não pode ser pensado não pode existir. Feuerbach,
em resposta, diz: o que não pode ser amado não pode existir. O amor permite ao homem se
ver como ser sensível. O corpo em sua totalidade pertence ao homem e revela a sua essência:
o amor. A verdade está na sensibilidade, por conseguinte no amor. Para o filósofo antigo, o
corpo não pertencia à essência. Para o novo filósofo, só é real o ser sensível, o corpo não
pode ser ignorado. A filosofia antiga procura exercer uma repressão sobre o sensível. O
filósofo novo pensa em sintonia com os sentidos. A filosofia antiga admitia a verdade da
sensibilidade – pensava Deus como ser fora do espírito. Reconhecia a sensibilidade, mas
negando-a; a nova filosofia se baseia na filosofia sensível. A filosofia moderna não aceita
qualquer pressuposto, sem fundamento. A nova filosofia se fundamenta na autoconsciência –
que é, em outras palavras, colocar o seu pensamento no lugar de Deus. A autoconsciência tem
como pressuposto o ser que tem dúvida. A abstração é medida pelo sensível. O que é certo é
apenas o sensível – os sentidos, a intuição, o sentimento. Feuerbach mostra que os sentidos
trazem a certeza para a dúvida. O segredo do saber imediato é o sensível.
Considerações finais:
Assim, Feuerbach elabora a crítica à filosofia especulativa, concomitantemente à sua
reconstituição na história da filosofia; trabalho que exerce grande contribuição para o
entendimento do processo em que se conduz a filosofia, pois evidencia o ser como precursor
do pensamento. Todavia, torna-se evidente que sua crítica não ultrapassa a esfera da relação
entre consciência e mundo sensível. Quando diz: “só existe o que pode ser amado”, revela
que a sensibilidade possui sentido e verdade em consonância com o coração do homem, isto é,
em consonância com sua essência e consciência. Por isso, não reflete com maior acuidade a
multiplicidade de elementos que envolvem a objetividade, mas sim uma análise sobre o
objeto sensível, pois este pode se relacionar diretamente com a consciência.
Feuerbach constrói uma antropologia, e por isso,
volta-se apenas para o
conhecimento do homem, precisamente de sua consciência e essência afetiva, que o permite
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recorrer a um querer. Sua grandeza consiste em trazer a baila a existência do homem sensível,
em contraposição à filosofia especulativa, entretanto, não conseguiu apreender também o
mundo sensível como resultado da construção dos homens em sua interação social. Por isso,
em nossas análises, acabamos por concordar com os apontamentos realizados por J. Chasin,
ao ressaltar as relevantes referências que Feuerbach desenvolveu acerca da ontologia que de
certo modo contribuíram para que Marx realizasse uma virada em seu pensamento, rompendo
definitivamente com a filosofia da autoconsciência e e enveredasse radicalmente para o
desenvolvimento de uma produção ontológica.
Referências Bibliográficas:
CHASIN, J. “Marx – estatuto ontológico e resolução metodológica”. In: TEIXEIRA,
Francisco José Soares. Marx – Uma Leitura Crítico-comentada de o capital. São Paulo:
Editora Ensaio, 1995.
FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a Essência da Religião. Campinas: Papirus Editora,
l989.
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Edições 70, Lda., 1988.
___________. A Essência do Cristianismo. Campinas: Papirus Editora, l988d.
___________. Geschichte der Neueren Philosophie. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann
Verlag Günther Holzboog, 1959.
___________. Pensamientos Sobre Muerte e Inmortalidad. Madrid: Alianza Editorial, 1993.
GIANFALDONI, Monica H. T. A. & MICHELETTO, Nilza. “As posibilidades da razão:
Immanuel Kant”. In: ANDERY, Maria Amélia (Org.). Para compreender a ciência – uma
perspectiva histórica. 9ª Ed. São Paulo: EDUC/Espaço e Tempo, 1999.
KELLER, Gottfield. “Feuerbach: Oder Der Mensch Als Schöpfer Gottes”. In: WILHELM,
Weischedel. Die Philosophische Hintertreppe – 34 Gobe Philosophen in alltag Und
Denken. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1989, p. 238/246.
MARCUSE, H. – Razão e Revolução, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MARX, K. – “Teses sobre Feuerbach”. In: Textos Filosóficos, Portugal, Brasil: Editorial Presença,
Martins Fontes, 1974.
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