PRIMEIRO CAPÍTULO (Tema e explicação do problema) O problema mente-corpo decorre da assunção de dois conjuntos de premissas plausíveis, mas cuja conjunção não o é: a) o mundo natural é regido por leis causais, pode ser conhecido objetivamente, não admite causalidade extrafísica b) a imagem da pessoa humana envolve noções de transparência cognitiva, autodeterminação da vontade, subjetividade. O primeiro conjunto corresponde aos dados fundamentais do objeto de estudo das ciências naturais, a totalidade das coisas tal como se apresenta em um panorama fisicalista; já o segundo diz respeito a traços de comum atribuição ao mental. A tensão surge porque esses dois grupos de características parecem ser incompatíveis entre si, ao passo que não parece haver lugar para um reino do mental distinto, em substância, do corpóreo. As ciências cognitivas demonstraram que a ligação entre mente e cérebro é muito mais estrita do que se sabia na época do cartesianismo. Ademais, as dificuldades da posição interacionista - a que alega, com Descartes, que há uma substância mental que interage com uma substância física distinta - são bastante radicais. O primeiro ponto da dissertação consiste em mostrar que há um problema filosófico real neste panorama, e que sua relevância lhe recomenda a investigação. Logo em seguida, deve-se explicar que o núcleo do problema reside na questão a respeito do status ontológico da consciência, conforme delineado nos primeiros capítulos de The Conscious Mind. Ao largo do fenômeno da consciência, existe um campo do mental menos opaco, acessível aos métodos experimentais correntes que também pode ensejar questões filosóficas: é a área já dominada pelo estudo das ciências cognitivas correspondendo aos domínios especializados em que se investigam o processo de obtenção de informação, a memória, o controle do comportamento, entre outros dados. David Chalmers demarca a singularidade do hard problem da consciência, distinguindo-o de outros que se movem nestas áreas. Seguimos suas observações. Portanto, a abordagem para essa primeira seção é exegética. O segundo ponto consiste em mostrar que essa tensão, já focalizada na consciência, desloca-se ao apelar-se para dois conceitos inter-relacionados de mente. Por um lado, Chalmers a explica em termos psicológicos, referindo-se às suas funções dentro do esquema interação de dados de input e output comportamental, analisadas de acordo com a metodologia funcionalista. O mental, assim considerado, pode ser objeto de explicação integral pelas ciências cognitivas com seus métodos objetivos, quantitativos, heterofenomenológicos. Neste compasso, não há nenhuma divergência significativa com a abordagem desenvolvida por autores como Armstrong, Putnam e outros. Um dos propósitos deste capítulo também será apresentar essa abordagem, de forma sintética, e mostrar como a obra de Chalmers a pressupõe. Não obstante, ele sustenta que existem facetas do mental que não podem ser alcançadas pelos mesmos métodos. Estas agrupam-se sob a denominação de conceito fenomênico da mente, a indicar a experiência consciente subjetiva, qualitativa, ontológica e epistemologicamente irredutível a formatos de investigação estritamente objetivos. Por esta razão, faz-se mister elaborar uma ciência da consciência (vale dizer, da base da experiência subjetiva) capaz de alcançá-la sem tergiversar diante da singularidade de sua natureza. Os fundamentos dessa ciência são lançados na obra supracitada. SEGUNDO CAPÍTULO (Questões exegéticas) Para construir a nova ciência da consciência, Chalmers recupera a noção de sobreveniência, ferramenta usual na filosofia da mente desde Davidson e Kim, utilizada para explicar o modo como propriedades mentais se relacionam com propriedades físicas do cérebro. O segundo capítulo da dissertação traz breve análise das definições clássicas de Kim, duas das quais importam particularmente: a de sobreveniência forte e fraca. Ele as obtém através de uma extensa discussão no ensaio Concepts of Supervenience, que reproduzimos com menor riqueza de detalhes no corpo do texto. Estes dois conceitos correspondem parcialmente aos de sobreveniência natural e lógica em The Concept of Mind e são, dentro da literatura especializada, seus antecessores. Mas, Chalmers emprega outra linguagem. Cito-o Propriedades-B sobrevêm a propriedades-A se não há duas situações possíveis que sejam idênticas em relação às suas propriedades-A enquanto diferem em suas propriedades-B1 Este conceito geral bifurca-se em dois: sobreveniência lógica e natural. A primeira estabelece que se um conjunto de propriedades-B sobrevém a um conjunto A, então é inconcebível que B varie sem variar A. Isto decorre da impossibilidade lógica dessa variação, uma vez que, segundo entende o autor, os limites do que é logicamente possível identificam-se aos limites do concebível: não se pode conceber algo logicamente impossível como um quadrado-redondo, e vice-versa - o que se pode conceber é logicamente possível. Exemplo desse gênero de sobreveniência lógica é a existente entre 1 B-properties supervene on A-properties if no two possible situations are identical with respect to their A-properties while differing in their B-properties fatos biológicos e físicos. Para os primeiros variarem, necessariamente e para todos os mundos possíveis, é preciso que os segundos também o façam. Já a sobreveniência natural depende das regras de funcionamento do mundo. Quando um conjunto de propriedades superiores sobrevém naturalmente a uma base, há um liame mais fraco do que o da sobreveniência lógica. Afirmase que essa variação não pode ocorrer dada as configurações do mundo atual, e não que ela é inconcebível em qualquer cenário contrafactual. Um exemplo é a fórmula dos gases ‘pV = KT’, a qual poderia ser falsa se a constante K tivesse um valor diferente. Após esta seção, apresenta-se o argumento bidimensional, que retoma o arcabouço da metafísica dos mundos possíveis. Por meio deste, Chalmers tentará mostrar que os fatos sobre a consciência - relevantes para a construção da ciência da consciência - não sobrevém logicamente aos fatos físicos cerebrais, estudados pelas neurociências. O objetivo é sustentar um caráter singular da consciência dentro do problema mente-corpo. Parece importante assinalar que o filósofo australiano assume uma opinião segundo a qual o mundo físico forma um sistema causal fechado. A pretendida impotência de se determinar a existência (ou natureza) de certa propriedade fenomênica a partir do conhecimento do mundo físico também deve poder ser extraída como desdobramento na interpretação do argumento. São também expostos outros ataques ao reducionismo que recebem tratamento unificado a partir da plataforma bidimensional. Alguns deles visam a provar que não é possível construir uma ciência estritamente objetiva da consciência, visto que, em certas condições, não se pode conhecer alguns fatos qualitativos subjetivos apesar de se conhecerem todos os fatos objetivos a respeito da estrutura do cérebro. A esta consequência acima descrita, denomina-se gap epistemológico que, juntamente com o gap ontológico, caracterizam a posição de Chalmers como sendo de tipo dualista não reducionista. Um dos problemas dessa posição, e do não reducionismo em geral, é o problema da causação mental, investigado detidamente no terceiro capítulo. Este problema pode ser formulado à maneira de perguntas: como é possível que a mente, cujas propriedades não são redutíveis às propriedades físicas, exerça um poder causal sobre o cérebro, que é físico e regido (supostamente) pelo princípio do fechamento causal? Lembremos que este princípio postula que todo efeito físico tem uma causa física. Se a causa física é suficiente, como parece de fato ser para todo o resto do mundo, então, como não elidir os poderes causais da mente? Cumpre assim mostrar, nesse ponto do percurso da dissertação, como surgem essas perguntas (Algumas pistas: conjunção do princípio do fechamento causal com premissas que apontam poderes causais para a mente; necessidade de assegurá-los para se preservar a imagem da pessoa humana; interface com o anomalismo davidsoniano e sua preocupação em manter a garantia kantiana da autodeterminação da vontade. Ao longo da dissertação isto fica claro). Também se deve mostrar a sua relevância e vigor. Basicamente, ela emerge de uma nova tensão entre elementos fundamentais da imagem de mundo e homem, e não só fundamentais, mas igualmente plausíveis à semelhaça dos dois grupos de premissas antinômicas iniciais. Finalmente, chegamos um ponto chave da obra de Chalmers: a resposta à resenha de Searle, na qual ele afirma que o problema da causação mental não lhe é particularmente relevante. Entretanto, nesta mesma réplica ele também sugere que há um leque de respostas possíveis (o que mostra a compatibilidade de uma que preservasse estes poderes causais, embora em alguns trechos dos seus livros tenhamos a impressão que ele defende uma espécie de posição epifenomenalista). Ainda além, pode-se notar que os dois princípios centrais da ciência da consciência - o da coerência estrutural e da invariância organizacional, explicados ambos no corpo do texto - não implicam em nenhum exercício de poderes causais. Ao contrário, menciona-se frequentemente a correlação neuronal como se houvesse duas telas superpostas. O mistério dessa coerência pode residir, todavia, em algum tipo de liame causal que não ataque a validade do princípio do fechamento na interpretação mínima que recebe dentro do argumento bidimensional. TERCEIRO CAPÍTULO Dadas estas explicações, alcança-se o ponto em que surge nitidamente um problema contrastante às características gerais do sistema de Chalmers (sublinho: o objetivo da investigação é pensar em soluções compatíveis com este sistema. Soluções genéricas existem sobejamente). Neste terceiro capítulo, ainda em fase inicial de construção, serão estudadas soluções para o problema da causação mental. Tais soluções serão analisadas conforme dois critérios distintos, mas complementares: 1) seu poder explicativo 2) A coerência com o projeto de Chalmers. Como se pôde constatar, é uma questão aberta no sistema do autor. Idealmente, admite uma resposta que preserve a estrutura construída e exigida para uma nova ciência da consciência nestes moldes. BIBLIOGRAFIA ARMSTRONG, D. M. A Materialist Theory of the Mind, Routledge and Kegan Paul, 1968 CHALMERS, David. Phenomenal Concepts and the Explanatory Gap. Artigo publicado em Phenomenal Concepts and Phenomenal Knowledge: New Essays on Consciousness and Physicalism. Oxford University Press, 2006. CHALMERS, David. Philosophy of Mind – Classical and Contemporary Readings. Oxford. Oxford Univesity Press, 2002 CHALMERS, David. The Character of Consciousness. Oxford University Press. 2010 CHALMERS, David. The Conscious Mind. Oxford University Press. 1996 DAVIDSON, Donald. Mental Events in Actions and Events, Oxford. Clarendon Press, 1980 DESCARTES, René. Meditações Sobre Filosofia Primeira. Campinas. Ed.Unicamp, 2001 MCGINN, Collin. The Character of Mind. An Introduction to the Philosophy of Mind. New York. Oxford University Press. 2Ed, 1996 RYLE, Gilbert. The concept of Mind. New York. Routledge, Ed, 2009 SEARLE, John. Why I am not a Property Dualist. Journal of Consciousness Studies, n 09, n.12, 2012, p.57-64 SEARLER, John. The Mystery of Consciousness. New York Review of Books, 1997