Tema 5 Rev. Medicina Desportiva informa, 2013, 4 (6), pp. 23–25 Lactatemia: origem, cinética, indicações clínicas e aplicabilidade desportiva (1/2) Prof. Dr. José Alberto Ramos Duarte Faculdade de Desporto, Universidade do Porto. Porto RESUMO / ABSTRACT Com este artigo pretende-se, de forma sumária, analisar os principais factores condicionantes da concentração sanguínea de lactato e da sua cinética em indivíduos saudáveis, quer em repouso quer durante o exercício físico. Por limitações de espaço, as indicações clínicas e aplicabilidade desportiva da lactatemia serão analisadas num próximo documento e, pelas mesmas limitações, não serão aqui feitas quaisquer citações no texto, estando todos os conceitos transmitidos ao longo do artigo baseados nas tês referências bibliográficas apresentadas no final. This manuscript aims to analyze briefly the main conditioning factors of the blood concentration of lactate and its kinetics in healthy individuals, whether at rest or during exercise. By space limitations, the clinical indications and the sports applicability of lactatemia will be reviewed in a future document and, by the same limiting reasons, it will not be made any citation in the text, being all the concepts transmitted throughout the article based on the three references listed at the end. Síntese celular de lactato PALAVRAS-CHAVE / KEYWORDS Limiar anaeróbio, recrutamento de unidades motoras, glicólise, estado estável. Anaerobic threshold, motor units recruitment, glycolysis, steady-state. Introdução O ácido láctico é um ácido monocarboxílico que no organismo humano resulta da metabolização celular da glicose com fins energéticos, sendo hoje considerado um composto intermediário (e não um composto final, como antigamente se pensava) do metabolismo energético dos hidratos de carbono. À semelhança dos restantes cetoácidos do metabolismo energético, também o ácido láctico tende, no ambiente orgânico, a perder um hidrogenião e a transformar-se no ião lactato, razão pela qual, do ponto de vista fisiológico, faz mais sentido falar-se em lactato do que em ácido láctico. Em situação basal de baixa exigência energética e à semelhança do que acontece com outros parâmetros fisiológicos, tais como a ventilação alveolar, a temperatura corporal ou o débito cardíaco, também as concentrações de lactato sanguíneo são estáveis no tempo e relativamente baixas, rondando os 1-2 mmol/L. Pela sua constância temporal, diz-se que estas concentrações estão em “estado estável” ou, mais comummente, em exigência energética imposta às células por unidade de tempo, estas optam por sintetizar lactato a partir do piruvato, por ação da enzima lactato desidrogenase. Em sujeitos normais, acredita-se que aumentos moderados na concentração sanguínea de lactato, motivados pela maior produção celular, sejam paralelamente acompanhados pelo incremento da depuração hepática. No entanto, pensa-se também que esta captação hepática fique rapidamente saturada quando as concentrações de lactato no sangue ultrapassem os 2 mmol/L, dando origem, assim, a elevações das concentrações sanguíneas deste composto. Desta forma, durante o exercício físico, a contribuição dos músculos esqueléticos e cardíaco na depuração do lactato sanguíneo aumenta substancialmente comparativamente ao repouso. situação de “steady-state”, sendo resultado do equilíbrio entre as taxas de produção tecidual com posterior difusão para o sangue (oriundo principalmente do cérebro, rins, músculos esqueléticos e eritrócitos) e de depuração sanguínea, efetuada principalmente pelo fígado e córtex renal, mas também com uma pequena contribuição, em repouso, do coração e dos músculos esqueléticos. Este equilíbrio basal, no entanto, pode alterar-se em consequência de determinadas patologias ou doenças que motivem uma maior taxa de produção tecidual de lactato (choque, insuficiência ventricular esquerda, enfarto agudo do miocárdio, cirurgia cardíaca, edema pulmonar, intoxicação pelo monóxido de carbono, anemia severa, entre outras) ou diminuição da depuração sanguínea (insuficiência hepática ou renal) e, no caso de indivíduos saudáveis, pode ser motivada pelo exercício físico ou pela exposição a ambientes rarefeitos de oxigénio. De facto, em situações de disfunção mitocondrial (por erros inatos de metabolismo, por ação de drogas, por redução da disponibilidade de oxigénio) ou por uma maior Do ponto de vista energético, é muito vantajoso para uma célula metabolizar oxidativamente a glicose até dióxido de carbono (CO2) e água (H2O), pois daí se obtém uma boa quantidade de energia química sob a forma de ATP (adenosina tri-fosfato). Em condições de funcionalidade basal, de baixa exigência energética e de adequada oxigenação tecidual, a grande maioria da glicose é metabolizada desta forma. Basicamente, a estratégia celular consiste em extrair átomos de hidrogénios à molécula de glicose (oxidação), de forma progressiva, em várias etapas, canalizando-os depois para a cadeia respiratória mitocondrial onde, para além de ATP, estes átomos de hidrogénio geram também H2O, por reação com o oxigénio. O CO2 é também outro produto final (Figura 1). Esta Figura 1 – Estratégia celular de metabolização energética da glicose (C6H12O6). via metabólica energética ocorre em duas fases, localmente e sequencialmente distintas, uma primeira ocorrendo no citosol e outra, a segunda, na mitocôndria (Figura 2). A primeira fase tem como principal objetivo a transformação de cada molécula de glicose em duas moléculas de piruvato, composto este que é posteriormente translocado para o interior das mitocôndrias para dar início à segunda fase (Figura 2). Por cada molécula de glicose, na fase citosólica, para além das duas moléculas de piruvato, há também ganho de duas moléculas de ATP e de duas co-enzimas reduzidas (NADH+H+). Esta fase origina muito pouca quantidade de energia química da molécula de glicose (2 ATP, apenas), mas tem a particularidade de ser muito rápida. Porque não depende da presença de oxigénio, esta fase é também denominada “anaeróbia”. Na fase seguinte, o piruvato é translocado para a mitocôndria e transformado em Acetil-CoA e esta, via ciclo de Krebs, totalmente oxidada até CO2 e H2O, dando origem a uma grande quantidade de energia (cerca de 36 moléculas de ATP). Esta fase mitocondrial ocorre de forma muito mais lenta (Figura 2). Nesta fase, a síntese de ATP está diretamente dependente da funcionalidade da cadeia respiratória e intimamente dependente da disponibilidade de O2 como aceitador final dos hidrogénios provenientes da cadeia respiratória (originando H2O), razão pela qual também é denominada por fase “aeróbia”. Apesar destas duas fases normalmente surgirem em sequência, nem sempre o piruvato, formado no citosol, entra na mitocôndria para seguir a segunda fase da via metabólica. Assim, em situações de disfunção mitocondrial ou de uma maior exigência energética por unidade de tempo, as células optam por transformar o piruvato em lactato, fazendo assim uma quebra entre as duas fases da via metabólica energética. (Figura 2). Com a transformação de piruvato em lactato, a célula recicla as concentrações citosólicas de NAD+, ultrapassando assim a limitada capacidade mitocondrial de reciclagem daquela co-enzima, e permite que a fase rápida continue a ocorrer, de forma independente da fase lenta. Com esta estratégia, apesar de retirar menos energia por molécula de glicose, a célula consegue fazer muitas fases rápidas (25 a 30) enquanto ocorre uma só fase lenta, isto é, consegue, durante curtos períodos de tempo, degradar muito mais moléculas de glicose por unidade de tempo e, dessa forma, gerar maiores quantidades de energia, fazendo assim face a situações de grande exigência energética, como aquelas que ocorrem com exercícios físicos intensos. Síntese de lactato pelo músculo esquelético No músculo esquelético, apesar de todas as fibras musculares terem a capacidade de sintetizar lactato a partir do piruvato, elas tendem, grosso modo, a especializar-se metabolicamente numa das duas fases acima referidas. Por exemplo, existem fibras musculares onde a densidade de volume mitocondrial é muito grande (motivando, por isso, maiores velocidades da fase mitocondrial) enquanto a atividade enzimática da fase citosólica é relativamente baixa (são as chamadas fibras vermelhas, oxidativas, de contração lenta ou tónicas), permitindo que a maioria do piruvato formado na fase rápida da via metabólica possa ser facilmente oxidada pelas mitocôndrias, sem acumulações de lactato. Curiosamente, este tipo de fibras musculares utiliza o lactato libertado por fibras adjacentes, captando-o do espaço intersticial, transformando-o em piruvato e oxidando-o nas suas mitocôndrias, para dele obter energia (Figura 3). Pelo contrário, existem outras fibras musculares (chamadas fibras brancas, glicolíticas, de contração rápida ou fásicas) onde a atividade enzimática da fase citosólica é muito elevada e a densidade de volume mitocondrial muito baixa, propiciando assim, durante a sua contração, grandes acumulações de piruvato e, consequentemente, de lactato, por incapacidade de resposta mitocondrial ajustada. Assim, facilmente se entende que durante o exercício físico, a maior ou menor produção de lactato pelos músculos esqueléticos e, consequentemente, a sua maior ou menor difusão para o sangue, está dependente não só da massa muscular solicitada mas, sobretudo, do número e tipo de fibras musculares recrutadas em cada instante. O lactato que se difunde para o sangue é posteriormente depurado pelo fígado, coração e por outros músculos esqueléticos activos (Figura 3). Figura 3 – Redistribuição do lactato produzido no músculo esquelético durante o exercício físico. MCT1 e MCT4: transportadores membranares de monocarboxilatos, tipo 1 e tipo 4. Figura 2 – Fases citosólica e mitocondrial da via metabólica energética da glicose. Limiares aeróbio e anaeróbio vez maiores até que, a partir de uma determinada intensidade de exercício (Maximal Lactate Steady State, Quando se inicia um exercício físico MLSS), mesmo mantendo a intende intensidade muito baixa e conssidade do exercício constante, as tante, a situação de “steady-state” concentrações de lactato no sangue observada em repouso rapidamente vão aumentando sempre progresse altera, com um aumento das sivamente, indicando uma taxa de concentrações de lactato sanguíprodução e difusão para o sangue neo até aos primeiros 3-5 minutos proveniente dos músculos muito de exercício, tendendo até a descer exacerbada, em cada instante supeligeiramente depois, mantendo-se rior à taxa de depuração. Ou seja, a estáveis a partir daí, ou seja, readquire-se a situação de “steady-state”, partir de uma dada intensidade de esforço, perde-se a capacidade de mas agora com valores ligeiramente atingir o “steady-state” de lactato superiores aos de repouso. Com a sanguíneo, motivando concentrarealização de exercício de intensições crescentes deste composto dade ligeiramente superior e conscom o tempo de exercício, mesmo tante, as concentrações de lactato mantendo a mesma intensidade do sanguíneo aumentam ainda mais exercício. do que na situação anterior até aos No caso de exercícios com intensi3-5 minutos, tendendo a manter-se dade crescente (Figura 4B), é notório estáveis a partir dessa altura (Figura que as concentrações de lactato 4A). Ou seja, a situação de “steadysanguíneo pouco ou nada se alte-state” perdida com o início do ram relativamente aos valores de exercício é, de novo, readquirida, sigrepouso enquanto a intensidade nificando que apesar da maior taxa é muito baixa. Contudo, a partir de produção de lactato proveniente de determinado momento (limiar dos músculos recrutados, a depuraaeróbio), à medida que aumenta ção sanguínea aumentou também, o trabalho muscular também as equilibrando a taxa de difusão de concentrações sanguíneas de lactato lactato para o sangue. Se o mesmo exercício for repetido com intensida- começam a aumentar, de forma des crescentes e constantes ao longo linear. A partir de determinada altura, as concentrações sanguído tempo, o comportamento das neas de lactato passam a aumentar, concentrações de lactato sanguínão de forma linear, como até aqui, neo segue um padrão semelhante, mas agora de forma exponencial à tendendo a atingir o “steady-state” medida que a intensidade do exercícom concentrações sanguíneas cada cio aumenta. A intensidade do esforço correspondente a esta modificação no comportamento do lactato sanguíneo é denominado por limiar anaeróbio e acredita-se que corresponda à intensidade de exercício a que se atinge o MLSS. O intervalo de intensidade de esforço entre a ocorrência dos limiares aeróbio e anaeróbio é vulgarmente designado por zona de transição aeróbia-anaeróbia (Figura 4B). O comportamento sanguíneo de lactato, observado quer em exercícios de intensidade constante, quer em exercícios de intensidade crescente, pode ser explicado pelo padrão de Figura 4 – Comportamento da lactatemia, em função do tempo, durante exercícios de intensidade recrutamento de fibras constante (A) e de intensidade crescente (B). musculares, o qual se vai modificando com a exigência do exercício físico. De facto, em exercícios de baixa intensidade, são recrutadas pelos músculos solicitados muito mais fibras oxidativas do que glicolíticas, motivando pouca produção de lactato pelos músculos esqueléticos e, consequentemente, baixas concentrações sanguíneas. Para além disso, sendo um substrato energético utilizado pelas fibras lentas, quando o exercício é realizado a baixas intensidades, muito pouco do lactato produzido pelas fibras glicolíticas e libertado para o espaço intersticial, se difunde para o sangue, sendo metabolizado pelas fibras oxidativas adjacentes que estão a ser recrutadas. À medida que a intensidade do exercício vai aumentando, também aumenta o número de fibras glicolíticas recrutadas, com crescente produção de lactato muscular e maior difusão para o sangue, originando concentrações deste metabolito progressivamente maiores. A depuração sanguínea de lactato também aumenta, à custa do fígado (até 2 mmol/L), do coração e de outros músculos esqueléticos ativos. Acima do limiar anaeróbio, o recurso a fibras glicolíticas passa a ser muito acentuado, situação que motiva elevações exponenciais (e não lineares, como até aí acontecia) de lactato no músculo e no sangue. Assim, durante o exercício físico, apesar do comportamento das concentrações sanguíneas de lactato em indivíduos saudáveis poder ser influenciado por vários factores, tais como a temperatura corporal e os níveis séricos hormonais, é essencialmente o padrão de recrutamento de unidades motoras que o explicam. Bibliografia 1. Beneke R, Leithäuser RM, Ochentel O. Blood lactate diagnostics in exercise testing and training. Int J Sports Physiol Perform. 2011;6(1):8-24. 2. Billat VL, Sirvent P, Py G, Koralsztein JP, Mercier J. The concept of maximal lactate steady state: a bridge between biochemistry, physiology and sport science. Sports Med. 2003;33(6):407-426. 3. Faude O, Kindermann W, Meyer T. Lactate threshold concepts. How valid are they? Sports Med. 2009; 39(6): 469-490.