A Crença como determinante do Ser em Hamlet

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ISSN 1678-0493
Diálogos & Ciência
w w w. f t c . b r / d i a l o g o s
A Crença como determinante do Ser em Hamlet
Douglas William Machado
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel, PR, Brazil
doi: 10.7447/dc.2013.016
INFORMAÇÕES
RESUMO
Histórico:
Recebido em
08/11/2012
Palavras-chave:
Ser, Crença, Hamlet,
Niilismo
O presente trabalho pretende refletir sobre a Crença como determinante do Ser focalizada na obra Hamlet
(1601), de William Shakespeare (1564-1616). A leitura proposta toma como base a filosofia de Friedrich
Wilhelm Nietzsche (1844-1900) e Arthur Schopenhauer (1788-1860), com suas visões ancoradas no
Niilismo e no Pessimismo, constituintes amplamente observados na obra do dramaturgo inglês, cuja escrita
- que influenciou os filósofos mencionados - temos como objeto de estudo. “Ser ou não ser, eis a questão.”
Tal citação norteia a problemática que instigou o desenvolvimento do presente trabalho. Os escritos de
Shakespeare vão ao âmago do que foi, posteriormente, popularizado e devidamente teorizado pela filosofia
existencialista que teve em Sartre (1905-1980), sob influência da fenomenologia de Heidegger (1889-1976),
sua teorização de fato, o que vale ser observado, uma vez que o termo já era usado por outras correntes
filosóficas (desde Sócrates até pensadores contemporâneos como Schopenhauer e Nietzsche), nas quais
encontramos seus elementos - a existência e o sujeito como ponto de partida para a explicação do mundo
tido como sem sentido e não passível de abstração. Discutir o que pode colocar a Crença como
determinante deste Ser para o autor contribui para o entendimento de um dos maiores cânones da literatura
universal.
AUTORES
ABSTRACT
DWM
[email protected]
Graduado em Letras
Português/Inglês
Mestrando do Programa de
Pós-graduação em Letras
TITLE: The belief as a determinant of the Being in Hamlet
This paper intends to produce a reflexive analysis of the belief as a determinant of the Being in Hamlet
(1601), by William Shakespeare (1564-1616). This discussion aims to suggest a reading based on the
philosophy of Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) and Arthur Schopenhauer (1788-1860) with their
visions of Nihilism and Pessimism, which are widely seen inside the play we have as our study object,
which influenced the mentioned philosophers. “To be or not to be, that’s the question.” This quote pushed
us into the theme we have used to develop this paper. The plays of Shakespeare unravel the essence of what
was, afterwards, popularized and properly theorized by the existentialist philosophy which had in Sartre
(1905-1980), under the influence of Heidegger’s (1889-1976) phenomenology, its theorization itself, what
is worth to be observed, once the term has already been used by various philosophical concepts (since
Socrates up to contemporary philosophers such as Schopenhauer and Nietzsche), in which we find its
elements – the existence and the subject as a starting point to explain the world itself, which is seen as
meaningless and not susceptible to be abstracted. The discussion of what may take the Belief as a
determinant of this Being to the author helps us in achieving the necessary understanding of one of the best
writers from what we call universal literature.
Keywords: Being, Belief, Hamlet, Nihilism
Revisado em:
12/03/2013
Aceito em:
12/06/2013
1. Introdução
William Shakespeare (1564-1616) é um dos maiores
escritores entre os que se tornaram cânones na literatura
universal. Sua atemporalidade influenciou grandes mentes de
seu tempo estendendo-se até os dias de hoje. Para Heliodora,
Quando pensamos no que escreveu, na riqueza de
imaginativa retratação de comportamentos humanos, somos
obrigados a voltar ao que aqui dissemos no primeiro capítulo: a
única explicação para o fenômeno Shakespeare é a do gênio, um
gênio cuja manifestação específica foi altamente favorecida
pelas condições características do teatro de seu tempo.
(HELIODORA, 1998, p. 133)
A citação, tirada de escritos de uma consagrada estudiosa
do dramaturgo no Brasil, Barbara Heliodora (1923-),
fundamenta o descrito acima, o que, por si só, justifica e nos
impele a adentrar a tragédia de Shakespeare em busca de uma
nova visão sobre alguns aspectos de sua obra.
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Outro importante teórico da literatura, admirador e
estudioso de William Shakespeare, é Harold Bloom (1930-),
que o coloca no centro do cânone ocidental, justificando a
afirmação ao longo de suas obras quando o compara com
outros escritores consagrados como o compositor d’A divina
comédia (não há certeza sobre o ano em que foi publicada),
Dante Alighieri (1265-1321) e outros nomes.
A obra do dramaturgo inglês ultrapassou a esfera literária
e alcançou os horizontes da filosofia, da psicanálise, da
psicologia e de outras ciências que tratam do ser humano.
Entrelaçaremos a visão teórico-literária com a filosófica. Para
isso, buscamos amparo nos escritos de Friedrich Wilhelm
Nietzsche (1844-1900) e Arthur Schopenhauer (1788-1860),
mentes relevantes para o pensamento do homem pós-moderno.
Ambos são influenciados por Shakespeare e usaram a
concepção do ser humano como concebida nas obras do
dramaturgo para embasar suas afirmações acerca do homem e
da existência em geral, tanto em seus aspectos físicos como
metafísicos, o que percebemos em passagem de Nietzsche
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(2000),
Saber esperar é algo tão difícil, que os maiores escritores
não desdenharam fazer disso um tema de suas criações. Assim
fizeram Shakespeare em Otelo e Sófocles em Ajax; se este
tivesse deixado o sentimento esfriar por um dia apenas, seu
suicídio já não lhe teria parecido necessário, como indica a fala
do oráculo; provavelmente teria zombado das terríveis
insinuações da vaidade ferida e teria dito a si mesmo: quem, no
meu lugar, já não tomou uma ovelha por um herói?
(NIETZSCHE, 2000, p. 60)
Trabalhar o Ser em Hamlet nos leva, além de buscar
compreender o que deu à obra seu aspecto trágico, entender o
pensamento do próprio William Shakespeare. Ser original ao
trabalhar uma peça desse porte é dever árduo e o cumprir é
contribuir para a compreensão de uma das maiores mentes do
mundo literário/dramático, fato que auxilia o desenvolvimento
tanto da esfera teórico-literária quanto filosófica do
conhecimento; necessidade constante que serve como impulso
para o intelecto humano.
A relação entre a literatura do dramaturgo inglês com a
filosofia dos autores mencionados vai além da intermediação
direta de um para com o outro. Bloom (2003), em sua obra
Um mapa da desleitura, relaciona diversos aspectos da
literatura com a filosofia de Nietzsche e Schopenhauer,
citando o pai da psicanálise Sigmund Freud (1856-1939) e
sua, também, relação com aqueles autores previamente
comentados, como vemos em,
Há o “antitético” enquanto contraposição de idéias rivais
em estruturas, frases e palavras equilibradas ou paralelas; e há
também o “antitético” como o antinatural, ou o “imaginativo”,
em oposição ao natural. O primeiro é o sentido de Freud,
quando investigou as “palavras primárias”; o segundo é o
sentido de Nietzsche, como desenvolvido por Yeats em Per
Amica Silentia Lunae, onde insiste que “o outro eu, o anti-eu
ou eu antitético, como se prefira chamá-lo, ocorre senão
àqueles que já não são enganados, cuja paixão é a realidade”.
(BLOOM, 2003 p. 102)
Vemos na passagem mencionada tanto a relação sobre a
qual comentamos como a multiplicidade de fatores levados em
conta por Bloom ao descrever suas teorias acerca da literatura.
Para que o leitor possa se aproximar da obra que
analisamos, colocaremos, aqui, uma breve síntese dos
acontecimentos nela ocorridos. É dividida em cinco atos, que
descrevem a trama de vingança do príncipe Hamlet contra o
tio, Cláudio, que havia assassinado seu pai – rei da Dinamarca,
local onde se sucedem os eventos – e tomado seu lugar no
trono. Além de usurpar o poder, o antagonista da história ainda
se casou, pouco tempo após o incidente, com aquela que
ocupava o posto de rainha. O príncipe descobre o ocorrido
através de uma mensagem que recebeu de um fantasma que
apareceu para os guardas do castelo em uma noite de vigília.
Este fantasma se assemelha a seu pai e revela o real motivo da
sua morte, que até então era dada como causa desconhecida. O
único que tem ciência da real situação é o próprio Hamlet, que
é um indivíduo que por muito pensar acaba por não agir, e
suas ações levam ao desfecho trágico em que todos os
envolvidos diretamente na situação acabam mortos. Entre os
fatos apresentados há outros personagens igualmente
importantes, como Ofélia, que caracteriza a figura da mulher
subordinada e oprimida de uma sociedade patriarcal, como
bem representa Shakespeare. Basicamente, este é o enredo da
história, que apresenta outros fatores que analisaremos ao
longo do trabalho.
Organizamos a pesquisa da seguinte forma: trabalharemos
primeiramente com a definição de Ser para a filosofia, para em
seguida nos debruçarmos especificamente na obra que é nosso
objeto de estudo. Como o objetivo do trabalho é tanto
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filosófico quanto literário, em si iremos nos abster de
comentários aristotélicos acerca da natureza trágica da obra,
nos focando nas características que formam o Ser como
construído por Shakespeare e as peculiaridades quanto ao que
o forma.
Após os passos mencionados, tomaremos como base
alguns dos principais fatores com o qual o homem se relaciona
para definir o modo com que julga a existência, seja quanto a
seu valor, seu sentido, suas origens ou seus propósitos. Por
mais que tais conceitos não tenham como ser definidos
empiricamente, conseguimos abstrair alguma ordem ao
observar como o ser humano lida com a existência, a razão de
“escolher” um modo para embasar suas decisões. É em razão
dessa relativização que denominamos o trabalho como uma
análise reflexiva, nos permitindo propor determinadas
interpretações, que serão esmiuçadas ao longo do texto.
A partir das considerações acerca destes pressupostos
buscaremos o Ser – e daremos ênfase na relatividade deste –
em sua relação com tais fatores e como isto constrói o modo
de ser dos principais personagens da obra e além: uma leitura
possível sobre como Shakespeare, em si, os concebeu ao
escrever uma das mais conhecidas de suas tragédias.
Inicialmente, buscamos a ideia de conceituação do Ser, o
que se mostrou infundado diante da impossibilidade de
obtermos o conceito de um termo metafísico de tamanha
relatividade. Adentramos uma vertente de pesquisa com mais
possibilidades de fundamentação, ainda assim propondo uma
pesquisa reflexiva, de onde buscamos empiricamente as bases
do que afirmamos. Dentro deste pressuposto, julgamos
eficiente a descrição do conceito de Ser como visto para a
filosofia, e como previamente comentado, observaremos as
definições necessárias em Abbagnano (2000), para embasar
nossas afirmações acerca do que forma o Ser.
2. Discussão
O Ser na filosofia
Antes de adentrarmos a obra, convém discutir o termo que
é base de análise: O Ser para a filosofia. Uma vez que se trata
de pura metafísica, não há como estabelecer um conceito
absoluto e fechado em si. Cabe-nos propor uma interpretação
tomando como referência os aspectos filosóficos
existencialistas sobre os quais nos debruçaremos na tentativa
de propor uma análise reflexiva de Hamlet sob a perspectiva
do empirismo. Segundo Abbagnano,
Preliminarmente, convém distinguir os dois usos
fundamentais desse termo: 1º) o uso predicativo, em virtude do
qual dizemos “Sócrates é homem” ou “a rosa é vermelha”; 2º) o
uso existencial, em virtude do qual dizemos “Sócrates é”
(=existe). Embora nem sempre explicitamente formulada, essa
distinção é assumida ou pressuposta quase universalmente.
(ABBAGNANO, 2000, p. 878)
Dentre os dois usos, o que mais se aproxima da visão
pretendida é, então, o existencial. Na sequência, Abbagnano,
usando como referência Kant (1724-1804), Aristóteles (384 a.
C.-322 a. C.), Platão (426/427 a. C.–348/347 a. C.) e outros
consagrados nomes da filosofia, esmiúça o termo entre seus
usos. Buscamos subterfúgios que explicitem a visão
existencial, que, para ser devidamente delimitada deve ser
usada em conjunto com o conceito de Existência, pelo mesmo
autor, que é,
Em geral, qualquer delimitação ou definição do ser, ou
seja, um modo de ser de algum modo delimitado e definido.
Este, que é o significado mais geral, também pode ser
considerado um dos significados particulares do termo, do qual
é possível, então, enunciar três significados: 1º o modo de ser
determinado ou determinável; 2º o modo de ser real ou de fato;
3º o modo de ser próprio do homem. (ABBAGNANO, 2000, p.
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Dentro da Existência como postulada, nos focamos no
terceiro modo, que é explicitado na sequência. Abbagnano
utiliza o descrito pelo filósofo Kierkegaard (1813-1855), que,
dentre as delimitações citadas, é a mais pertinente para o
presente trabalho,
O terceiro significado específico desse termo é o que
restringe ao modo de ser do homem no mundo. Esse significado
encontra-se no existencialismo (v.) como filosofia, cujo tema é
a análise desse modo de ser. Já nos séculos XVIII e XIX a
alguns filósofos ocorreu insistir no significado específico da E.
como modo de ser das criaturas finitas, dos entes criados. “[...]
Para um animal, uma planta, um homem, a E. (Ser ou não Ser)
é algo de muito decisivo; o indivíduo por certo não tem uma
existência conceitual” [...]. Mas a E. como individualidade é
apenas a E. humana. No mundo animal, é mais importante a
espécie do que o indivíduo; no mundo humano o indivíduo não
pode ser sacrificado à espécie. Nesse sentido, a singularidade
da E. torna-a modo de ser fundamental do homem.
(ABBAGNANO, 2000, p. 399-400)
É nesse sentido que trabalharemos com o Ser na obra de
Shakespeare. Como o “[...] modo de ser fundamental do
homem.” (ABBAGNANO, 2000, p. 400). Sobre a questão
filosófica dos termos mencionados acima (Ser/Existência),
poderíamos nos alongar indefinidamente, uma vez que
percebemos a complexidade do problema, não o faremos por
ser necessário aqui apenas delimitar o viés sob o qual o tema
será tratado.
O existencialismo em Hamlet teve repercussão muito além
do seu tempo. Dois escritores alemães do século XIX, Arthur
Schopenhauer e Friedrich Wilhelm Nietzsche foram
influenciados pelos feitos e pela genialidade trágica
encontrada na obra, como previamente comentado.
Respectivamente, um contribuiu majoritariamente para a
escola do que foi denominado pessimismo, o outro criou
Zaratustra e propôs um novo modo de conceber o Niilismo, o
da transvaloração dos valores. Ambos os filósofos tiveram em
Shakespeare referência essencial para a composição de suas
obras (afirmação que será justificada em excertos citados
adiante) e tratam da temática do Ser e da Existência nos
critérios que apresentamos, como vemos em Schopenhauer,
A questão acerca da realidade do mundo exterior, tal qual a
consideramos até agora, sempre se originou de um engano da
razão consigo mesma, alçado a confusão geral, de modo que a
questão só podia ser respondida mediante o esclarecimento de
seu conteúdo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 58)
Do mesmo modo, temos tal temática em Nietzsche,
referente ao existencialismo, tratando do homem em si e de
como este percebe o Existir em seus modos mais humanos,
como vemos na seguinte passagem,
Quanto menos os homens estiverem ligados pela tradição,
tanto maior será o movimento interior dos motivos, e tanto
maior, correspondentemente, o desassossego exterior, a
interpenetração dos homens, a polifonia dos esforços. Para
quem ainda existe, atualmente, a rígida obrigação de ligar a si e
seus descendentes a um lugar? Para quem ainda existe algum
laço rigoroso? (NIETZSCHE, 2000, p. 32)
Além da temática, tanto dos filósofos quanto de
Shakespeare, tratar basicamente do mesmo, a relação entre os
autores que compõem o núcleo deste trabalho é maior do que
apenas esta. Há citações de Schopenhauer em Nietzsche, de
Shakespeare em Schopenhauer e faz-se necessário o
entendimento sobre um deles, para compreender com
eficiência os outros. Adiante, em sub-tópicos, trataremos mais
especificamente sobre como é abordado o Ser nas obras, tanto
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de Schopenhauer quanto de Nietzsche e como são
relacionados ao dramaturgo.
Em Hamlet, Shakespeare aborda o Ser de um ponto de
vista que acaba por lidar com o que há de mais essencial na
espécie humana, sua origem e seu propósito – ou despropósito.
Entre solilóquios que nos remetem ao mais profundo
sentimento dos personagens da obra em questão, o dramaturgo
nos revela tanto os pontos mais altos da existência humana,
quanto os mais baixos – trágicos – como vemos no trecho a
seguir,
Oh, se esta carne sólida, sólida demais, pudesse derreter,
evaporar e voltar à terra como orvalho! Se o Eterno não tivesse
erguido a sua lei contra o suicídio! Deus! Meu Deus! Quão
tedioso, inútil, vazio, estéril é o mundo, para mim, com todos os
seus hábitos. Que horror! Jardim de ervas daninhas, vegetação
obscena que se espalha e domina. (SHAKESPEARE, 1997, p.
19)
Percebemos no supracitado considerações acerca de
crença, costumes e sobre o mundo em que o personagem
Hamlet vivia e passava pela dor de perder um pai, e ainda pior,
a dor de saber que o assassino de seu pai agora senta no trono
do reino que antes era de sua vítima.
A Crença como determinante do Ser em Hamlet
A Crença pode não ser parte de nossa “essência”, mas o
questionamento que a gera é; e a importância de sua
concepção para cada personagem em Hamlet, principalmente
no príncipe, definiu significativamente o enredo da obra, então
a colocamos como outro determinante para formação e
compreensão do Ser na peça, como vemos justamente no
momento em que o erro trágico se concretiza – o filosofar em
excesso do príncipe – quando ao medir prós e contras em
determinada oportunidade de executar a tão ansiada vingança
contra o tio acaba por dar ouvidos ao que obteve de sua crença
associada à Fé na mitologia judaico-cristã,
O momento é oportuno, agora que está rezando poderia
cair em cima dele. É o que farei, mas aí ele vai direto para o
céu... Seria então esta a minha vingança? Preciso pensar no
assunto. Um miserável mata meu pai, e por isto mesmo eu, seu
único filho, mando o infame para o céu. Não, isto seria um
prêmio, um presente, não uma vingança. Ele surpreendeu meu
pai de boca cheia: no germinar de todos os seus pecados viçosos
como maio em flor; e só Deus sabe como ficaram as suas
contas. Agora, por como andam as coisas e pelas circunstâncias,
podemos pensar que bem grave foi o seu fardo. E terei eu
vingança ferindo o impostor enquanto purifica o seu espírito e
se acha pronto e disposto à última jornada? (SHAKESPEARE,
1997, p. 61-62)
A Crença em um deus julgador e na posteridade da vida
norteia toda a obra a partir do momento citado, como notamos
pelos pensamentos de Hamlet. Percebemos todo o processo de
raciocínio – extenso como é característico do príncipe –
levá-lo à não-ação, fato que, no decorrer da obra, culmina em
tragédia. Trazemos aqui o que na filosofia caracteriza-se como
Crença e como esta está relacionada à Fé, segundo Abbagnano
(2000),
No significado mais geral, atitude de quem reconhece
como verdadeira uma proposição: portanto, a adesão à validade
de uma proposição qualquer. A C. não implica, por si só, a
validade objetiva da noção à qual adere nem exclui essa
validade. Tampouco tem, necessariamente, alcance religioso,
nem é, necessariamente, a verdade revelada, a fé; por outro
lado, também não exclui essa determinação e, nesse sentido,
pode-se dizer que uma C. pode pertencer ao domínio da fé (v.)
(ABBAGNANO, 2000, p. 218)
O trecho supracitado define o que pretendemos afirmar
como determinante do Ser na obra, afinal, foi através do
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excesso de pensamento e com fins na Crença religiosa que o
príncipe deixou de executar sua vingança no momento mais
oportuno. Vale ressaltar a força que tem tal fator, uma vez que
é capaz de anular a vontade de vingança que corroia o príncipe
em prol da execução posterior em nome de um fim mais
doloroso, segundo as concepções do personagem.
Shakespeare, ao escrever a obra, tinha suas crenças em
questionamento, dada a situação trágica pessoal do momento
pelo qual passava, como mencionamos anteriormente em
Holden (2003). O dramaturgo vivia em um tempo em que as
crendices da mitologia judaico-cristã eram imposições de
instituições, e não havia como atingir a massa popular sem
entrar nos seus domínios. O personagem Hamlet demonstra
um misto de revolta e resignação, uma vez que bloqueia suas
ações por levar em conta o “divino” – aparecendo aqui como o
deus julgador do judaico-cristianismo – e as põe em dúvida
por diversas vezes, como ainda veremos. Não pretendemos
entrar nos méritos excessivamente históricos da composição
da obra, nem pessoais do autor, primeiramente por não haver
fontes que comprovem com exatidão suficiente as crenças de
Shakespeare, e em segundo lugar por não podermos relacionar
diretamente tais fatores com o que se apresenta na obra.
O dramaturgo se destacou justamente por criar obras que
se explicavam por si mesmas e independiam majoritariamente
de fatores exteriores a si para serem compreendidas como um
todo. Como vemos em Bloom (2001), sua genialidade só
poderia ser atemporal se independesse do estado daquele que a
criou para existir. Observado tal fato, ainda atentamos para a
possibilidade de interpretação exterior à obra para
compreendermos o que é superficialmente demonstrado em
seu enredo, só poderemos nos aprofundar nela se tomarmos
como base o contexto sob o qual foi produzida.
Retornamos ao ponto Crença da obra. Além de aspectos
referentes à mitologia judaico-cristã, como os impedimentos a
que os personagens estão sujeitos, assim como o mencionado
por Hamlet ao amaldiçoar a proibição do suicídio, temos
referências claras à mitologia greco-romana, fato que é
decisivo para tornar os clássicos o que eles são, ao
observarmos que era critério de qualidade o autor dissertar
fazendo referência a esta no tempo em que Shakespeare
escreveu. Comprovamos esses dizeres com passagens como a
seguinte, “Cometas de fogo riscaram o céu, houve desastres no
sol, orvalhos de sangue, e o pálido astro que governa o
império de Netuno pareceu apagar-se num eclipse que mais
parecia o dia do Juízo Final.” (SHAKESPEARE, 1997, p. 15).
Percebemos ao longo de toda a obra tal resgate à mitologia dos
deuses do Olimpo. Em tal passagem, há uma clara referência à
Hades, o inferno greco-romano, do qual foram usurpadas
características
no
sincretismo
forçado
pelo
judaico-cristianismo em séculos antes do nascimento do
dramaturgo.
Como afirmamos, a obra apresenta, em relação à Fé, um
caráter tanto de revolta como de resignação. Há considerações
críticas acerca da instituição religiosa que pode não ser
exatamente uma consideração acerca da Crença em si nos
personagens, mas se faz válido apresentá-la para comprovar o
constante pensar crítico demonstrado na peça, e a visão geral
sobre o problema dentro da instituição que era vigente naquele
momento,
anteriormente comentadas em relação à figura feminina no
geral.
Manifestações sobrenaturais e sua influência na psique
humana, assim como o que julgamos como certo e errado com
o que norteamos nossas ações: todos estes fatores têm
justificativa na Crença dos indivíduos, e como visto em
Abbagnano (2000), tal aspecto não se limita apenas à
considerações sobre religião e Fé, mas primordialmente à
adesão a certos princípios e proposições. O filósofo Nietzsche
comenta sobre o que é a Crença no geral, e sua capacidade de
moldar nossas Vontades, seja para manifestações positivas
destas, ou negativas,
Um dos mais freqüentes erros de raciocínio é este: se
alguém é verdadeiro e sincero conosco, então ele diz a verdade.
Assim a criança acredita no julgamento de seus pais, o cristão
nas afirmações dos fundadores da igreja. De igual maneira, não
se quer admitir que tudo o que os homens defenderam com o
sacrifício da felicidade e da vida, em séculos passados, eram
apenas erros: talvez se diga que eram estágios da verdade. Mas
no fundo as pessoas acham que, se alguém acreditou
honestamente em algo e lutou e morreu por sua crença, seria
bastante injusto se apenas um erro o tivesse animado.
(NIETZSCHE, 2000, p. 56)
Vemos aí, além de tudo, uma das principais características
pela qual Nietzsche é conhecido: a constante tentativa de fazer
o ser humano observar os próprios equívocos, frutos de algo
que denomina-se “convicção”, e no trecho supracitado vemos
a justificativa pela qual deve-se sempre ter olhos abertos para
a mentira que se faz verdade, pensamento que se perpetua em
outros escritores, e que Shakespeare foi responsável por ajudar
a criar, dada a influência que exerceu no filósofo, como
mencionado no início deste trabalho.
É necessário “crer” na possibilidade de visões de espectros
para que a visão de um possa ser concretizada aos nossos
olhos, seja por psicose ou pelo fator patológico que for, a
manipulação de nossa mente tem grande potencial em nossa
vivência – e sobre isso, nos limitaremos apenas a esta
afirmação, dado que esta área está longe do que estamos a
analisar, entrando nos domínios neurológicos do
conhecimento. Dissertando em ordem cronológica sobre a
peça, temos o inicial contato com o fantasma, que faz de um
Hamlet entristecido pela morte de seu pai um indivíduo
sedento por vingança durante toda a peça.
Retornando a algo já comentado, mas sobre o qual
queremos dar ênfase, podemos refletir sobre a possibilidade de
o fantasma estar inserido na peça apenas como mecanismo
para tornar o enredo amplo em seu tempo, em que era comum
o apelo a tais aparições como mensageiros de notícias que não
havia como trazer à tona com os eventos do quotidiano.
Afinal, era Shakespeare alguém que cria em eventos
sobrenaturais, ou foi esse apenas um recurso usado para
difundir seus escritos em seu tempo? Como afirmado, só
podemos nos questionar e refletir
Percebemos ainda no início da obra aspectos relacionados
à Crença e colocados como verdade, quando o cantar de um
galo manda o fantasma de volta ao submundo, o que é
explicitado por Horácio em uma de suas falas
[...] não faças como certos indignos padres da igreja que
nos incitam ao árduo e sofrido caminho do céu, enquanto eles
mesmo, emproados e abusados libertinos, seguem a prazenteira
trilha da leviandade e permanecem surdos aos seus próprios
conselhos. (SHAKESPEARE, 1997, p. 22)
Dizem que quando o galo, arauto da manhã, acorda com a
sua voz aguda e penetrante o deus do dia e lança o seu grito de
alarme, os espíritos errantes na terra, no ar, no fogo e no mar
apressam-se a voltar para os seus obscuros confins. O que
acabamos de ver confirma a verdade da lenda.
(SHAKESPEARE, 1997, p. 16)
Tal citação se refere a uma conversa de Ofélia com seu
irmão Laertes, fato que traz à tona o lado “menos submisso”
da personagem, como contrariamente visto em relação às suas
ações ao longo da obra, decisivas para a tragicidade da peça e
A Crença, agora especificamente a que é voltada à Fé, se
faz presente e é usada sem moderação quando se faz
necessário consolar alguém sobre a perda de um ente querido.
Temos em Hamlet, diversas falas que dissertam a respeito da
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morte do antigo soberano: tanto do novo rei para com Hamlet
– objetivando o conciliamento com este que é um dos mais
afetados pela trágica morte – assim como de sua mãe para com
ele, como vemos nos seguintes trechos, sobre os quais
teceremos mais comentários abaixo, “[...] a moderação
prevaleceu à natureza e fez com que pensássemos nele [no
finado Rei] com mais serena tristeza e voltássemos a nos
lembrar de nós mesmos.” (SHAKESPEARE, 1997, p. 16), isto
sendo dito pelo Rei; agora da Rainha para com o príncipe
Hamlet
Meu doce Hamlet, tira do corpo essa cor noturna, deita
olhos amigos sobre a pátria e o rei, deixa de buscar
continuamente, de olhos baixos, o teu nobre pai no pó da terra.
Bem sabes que é fatal: tudo o que vive é fadado a morrer
passando da natureza para a eternidade. (SHAKESPEARE,
1997, p. 17-18)
Observamos aqui a tentativa de tirar alguém do sofrimento
de perder um ente querido, o que envolve colocar a razão em
segundo plano, e fazer da Crença o apoio necessário para a
volta à normalidade desejada. Ainda percebemos tal
característica em outro trecho, em que o Rei fala diretamente
com o príncipe Hamlet com o mesmo intuito, porém, de um
ponto de vista diferente – em trecho que inclusive já
utilizamos previamente para tecer comentários acerca de outro
ponto, mas que julgamos pertinente a ele retornar,
que o seu “pensar demais” acabou anulando certas
possibilidades de ação na obra, fato já comentado e dissertado
por Heliodora (1998).
Enfim, percebemos aqui a importância de aspectos
relacionados à Crença dentro de uma das maiores obras de
William Shakespeare. Dado o que foi afirmado ao longo do
sub-tópico seguimos a algumas considerações acerca de
alguns outros aspectos importantes na peça, como a análise do
solilóquio mais consagrado do príncipe Hamlet.
3. Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do
tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1998.
HOLDEN, Anthony. William Shakespeare. São Paulo:
Ediouro, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado
humano: um livro para espíritos livres. São Paulo:
Companhia da Letras, 2000.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como
representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
SHAKESPEARE, William. Hamlet: o príncipe da
Dinamarca. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997.
É digno de tua natureza generosa, Hamlet, guardar assim
esse luto por teu pai. Mas, bem deverias saber disto, teu pai
perdeu um pai, este perdido pai também perdera um pai;
espera-se que quem sobrevive demonstre por algum tempo o
seu sofrimento; mas manter-se em luto obstinado é teimosa
manifestação de impiedade; (SHAKESPEARE, 1997, p. 18)
O Rei traz à tona a efemeridade da vida, na qual somos
impotentes diante do sofrimento em potencial que carrega.
Faz-se importante a fala daquele que Shakespeare coloca
como detentor de sabedoria ainda que atuando como
antagonista; o que causa estranhamento no leitor confuso
diante de palavras verdadeiras em sua essência, porém, vindas
de alguém que teve na mentira o amparo para conseguir o
poder que detém. Tal efemeridade é amplamente trazida à luz
pelos filósofos nos quais buscamos referências.
A Crença judaico-cristã sobre o inferno também é usada
para causar impacto no leitor quando da conversa entre
Hamlet e o espectro de seu finado pai, em que este descreve o
sofrimento por que passa nas chamas do inferno, artifício que
instiga no leitor a criação de ainda mais ressentimento em
relação ao Rei que causou tal morte sem que sequer a vítima
do assassino pudesse se utilizar do recurso da confissão e se
arrepender dos seus pecados – ato necessário, dentro da crença
judaico-cristã, para levar o indivíduo ao paraíso tão ansiado
após a morte – fato que o levou ao inferno como é descrito,
Eu sou a alma de teu pai, condenada a andar vagabunda
durante um determinado período da noite, e a jejuar no inferno
de dia, até que os crimes de que me manchei durante a vida
natural sejam apagados pelas chamas da purificação. Se não me
fosse proibido revelar os segredos da minha prisão, far-te-ia tal
relato que a mais inócua palavra despedaçaria a tua alma,
gelaria o teu jovem sangue, faria saltar das órbitas, como
estrelas, os teus olhos, destruiria a harmonia simétrica do teu
penteado e faria erguer em pé cada um dos teus cabelos, como
os dardos de um porco-espinho enfurecido. (SHAKESPEARE,
1997, p. 26)
Previamente nos foi apresentado o trecho no qual ocorre o
erro trágico da obra, e a Crença foi um dos elementos
fundamentais para conter Hamlet ao cogitar o assassinato do
tio regicida. Isso juntamente com o fato de ele ser
caracteristicamente reconhecido como “procrastinador”, visto
Diálogos & Ciência, no 34, junho de 2013
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