a plenitude humana e a clínica integral na perspectiva de

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A PLENITUDE HUMANA E A CLÍNICA INTEGRAL NA
PERSPECTIVA DE VIKTOR FRANKL
INTRODUÇÃO GERAL AO TRABALHO
A presente dissertação aborda os temas da “plenitude humana” e do “cuidado integral”
no pensamento de Viktor Emil Frankl, médico e psicoterapeuta austríaco, considerado o
criador da Terceira Escola Psicoterápica de Viena. O interesse por estes temas partiu da busca
pessoal da autora por meios de superação dos limites da medicina contemporânea, ao lidar
com a dor de pessoas em situações de sofrimento em face das doenças estigmatizantes, dos
prognósticos sombrios e da morte. Percebia, na sua prática clínica em psicodermatoses e
oncologia cutânea, que destes pacientes emanava o inexprimível apelo por um cuidado para
além dos recursos técnicos que a medicina lhes destinava.
A busca pela compreensão deste clamor passou a ser a fonte da inquietação intelectual
da pesquisadora. A percepção da ausência da espiritualidade humana nas ciências médicas e
da sua intensa presença no enfrentamento diário à dor tornou-se seu leitmotiv, a motivação
constante e profunda que a conduziu a este estudo. O reconhecimento de que esta lacuna no
espectro do cuidado coincidia com a espiritualidade correspondeu ao primeiro passo em busca
do aclaramento da questão, tornando-se a bússola da nova jornada a ser empreendida. Seria
necessário encontrar meios para iluminar as razões dessa estreita concepção do humano na
medicina e, igualmente, do cuidado clínico restrito ao mensurável e ao quantificável. A
limitação do cuidado médico à dimensão psicofísica apontava em direção à visão de homem –
igualmente limitada - que fundamentava seu conhecimento e sua prática. A questão inicial
passou a se expressar na pergunta por uma antropologia médica abrangente em relação ao
ímus do humano, de onde parecia provir seu apelo por um especial cuidado.
Os esforços para tornar a espiritualidade abordável na área da Saúde sempre se
mostrariam dificultados em suas reais possibilidades. Inicialmente, foram sendo fundados na
experiência e empreendidos a partir da micro-realidade do cotidiano médico. Posteriormente
corresponderia às incursões a outros campos do saber, em busca de recursos para um cuidar
mais inteiro. Emergiu, dessa forma, a pressuposição de que a reflexão metódica sobre a
2
espiritualidade na medicina iria requerer uma antropologia médica abrangente, uma disciplina
lacunar na maioria dos currículos médicos atuais.
Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha incluído a espiritualidade em
seus protocolos e em seu conceito de saúde desde 1997, as esferas acadêmicas do contexto
brasileiro não contemplavam, até então, projetos de humanização da medicina - e da saúde em
geral - que considerassem a espiritualidade enquanto dimensão antropológica. A ampliação do
cuidado clínico tem sido frequentemente proposta no sentido do social, revelando a concepção
científico-naturalista do homem, assim visto como um fenômeno restrito às ordens do
biológico e do psicossocial. Além disso, as poucas tentativas que anteviam a importância da
espiritualidade, tendiam a tratá-la como um fenômeno cultural, quando não a confundi-la com
a religiosidade ou a identificá-la com o sobrenatural. Isto ilustra a indubitável dificuldade das
ciências médicas contemporâneas – como das ciências em geral - para lidar com os aspectos
intangíveis do humano, restringindo-se ao que é passível de apreensão na esfera do concreto.
Diferentemente, Viktor Frankl – escritor cujas obras foram apresentadas à autora após
longas jornadas de pesquisa - concebeu modalidades de cuidado nas quais a espiritualidade do
homem aparece como uma dimensão constitutiva da própria condição humana. Para Frankl, o
homem possuiria uma constituição multidimensional na qual estão reunidas as dimensões
somática (do grego sômathos, corpo), psíquica (do grego psukhê, 'sopro de vida', 'alma') e
noética (do grego noûs, 'intelecto', 'espírito'). Esta concepção de homem seria capaz de
subsidiar uma clínica abrangente e complementar, pela instituição de modalidades de cuidado
capazes de acolher o sofrimento humano não apenas de ordem física e psíquica, mas também
espiritual.
O estudo que ora apresentamos, como fruto desta reflexão sobre um cuidado
abrangente, tomou como objetivo geral conhecer as concepções franklianas acerca do humano
e do cuidado clínico. Seus objetivos específicos consistiram, primeiramente, em conhecer os
fundamentos epistemológicos e filosóficos da antropologia médica de Viktor Frankl; e, ainda,
pesquisar os pressupostos teórico-práticos da clínica por ele proposta. A metodologia, de
caráter qualitativo, se concentrou na pesquisa bibliográfica exploratória, uma vez que a obra
de Frankl e a dos seus principais intérpretes são pouco conhecidas no meio acadêmico
nacional. Consistiu na busca da compreensão do seu pensamento a partir da sua obra e de sua
biografia, que no caso de Frankl possui excepcional importância enquanto seu laboratório
existencial, como se pode observar no segundo artigo aqui incluso.
3
Para lidar com a dimensão espiritual do homem no campo clínico, Frankl lançou mão do
termo polissêmico logos, que em grego significa “sentido”, “razão”, “espírito” 1. Isto
possibilitou tratar a espiritualidade como dimensão antropológica e não necessariamente
religiosa, tornando-a compreensível e válida no contexto das ciências médicas. Inspirado
inicialmente pela psicopatologia de Karl Jaspers, Frankl doutorou-se em Filosofia,
familiarizando-se com a emergente corrente do pensamento fenomenológico existencial. Sob
a perspectiva médico-naturalista, o paciente é percebido com ênfase em sua dimensão
biológica - como qualquer espécie natural -, enquanto que na perspectiva de uma
psicopatologia existencial pode ser percebido como um ser singular, lançado em um mundo
fático, porém significativamente histórico e humano em seu fundamento (Dalgalarrondo;
2008).
O termo “existência” deriva do verbo latino existire, “aparecer, nascer, ter presença
real” (Houais, 2009). Significa “o que está aí” ou aquilo que “está fora”, pois algo existe
porque está, como coisa, “in re”, sendo que - neste sentido - a existência equiparável à
realidade. Segundo Abagnano (2007), possui o significado geral de “qualquer delimitação ou
definição do ser”, mas possuiria três outros significados: o primeiro compreende a existência
como “modo de ser determinado ou definido” (geralmente se referindo a algo que pode ser
observado e provado); o segundo, como “aquilo que na realidade é ou subsiste” (aquilo que
existe em si e não em outra coisa); e, finalmente, como “modo de ser do homem no mundo”.
Foi Sören Kierkegaard que tomou “existência” como modo de ser específico do homem – e
não de toda criatura – sendo, por isso, considerado o fundador da corrente filosófica
existencialista (Abagnano, 2007, p. 464).
O modo de ser próprio do homem - enquanto modo de ser no mundo, em situação
determinada – é analisável como possibilidade. Isto se tornou possível graças ao conceito de
“transcendência”, elaborado por Edmund Husserl, iniciador do pensamento fenomenológico.
Segundo sua concepção de transcendência, na relação entre o “sujeito cognoscente” e o
“objeto” - do conhecimento, do desejo ou da volição -, tal objeto não está dentro do sujeito,
mas dá-se a conhecer fora dele. Isto teria influenciado o pensamento existencial, segundo o
qual as relações entre o Dasein (o homem) e o mundo “sempre se configuram como
transcendência” (Abagnano, 2007, p. 468).
1
Um estudo mais minucioso sobre o termo Logos se encontra no Artigo II desta dissertação, na seção “Cuidar a
partir do espiritual”.
4
Estes esclarecimentos nos permitem compreender que a perspectiva de Viktor Frankl
lança raízes nas ricas possibilidades desta confluência entre as vertentes fenomenológica e
existencial do pensamento, que ele explora na tecedura de sua concepção de homem e de
transcendência. Existir, no contexto frankliano, significa “sair de si”, pôr-se “diante a si
mesmo”, de maneira que “o homem sai do nível da corporalidade psíquica e chega a si mesmo
passando pelo âmbito espiritual. A existência acontece no espírito” (Frankl, 1995, p. 63).
Desta forma, este sair ao encontro de si mesmo foi visto por Frankl como meio de
enfrentamento de enfermidades que afetam o psicofísico, o que ilustra sua estratégia de trazer
o pensamento filosófico para o campo da saúde com o objetivo de abrir novas frentes de
cuidado.
Neste âmbito, deixou-se influenciar principalmente pelos pensamentos de Max Scheler e
de Martin Heidegger para a construção do seu próprio horizonte filosófico. A clínica que
concebeu, cunhando então o termo Existenzanalyse, se constituiu no que denominou de
“aspectos da Análise Existencial e da Logoterapia”, modalidades de cuidado que possibilitam
uma visão integral do humano. Estas formas de cuidar foram pensadas por Frankl como
resposta ao crescente vazio existencial que emergiu após as duas Grandes Guerras, suscitando
novas formas de sofrimento e desafiando as ciências da saúde a repensar seus fundamentos
epistemológicos, sua antropologia e seu conceito de cuidado clínico.
O cuidado do humano tem se apresentado historicamente como uma questão prática e
teórica multifacetada, de constante atualidade e relevo. Ainda nos primórdios da civilização
os homens dispensaram cuidados aos seus semelhantes, seja de forma direta - como a atenção
aos feridos de guerra, aos enfermos e desvalidos -, ou de forma indireta, implícita aos fazeres
e às estruturas que foram surgindo nas sociedades – como a pedagogia, a arquitetura e a
própria justiça. Curar, auxiliar, prover, ensinar e proteger se constituem em expressões do
cuidar presentes em todas as culturas e povos, ainda que motivadas por diferentes causas e
através de modos diversos.
A contemporaneidade2, seja considerada modernidade tardia ou pós-modernidade, se
caracteriza como uma época inusitada na qual o avanço do domínio técnico se dá
proporcionalmente à desoneração em relação ao legado da tradição. Sabe-se que, se por um
lado a civilização da produção trouxe a alguns setores um inegável acesso aos bens materiais
2
Adotaremos a noção de contemporaneidade proposta por Vaz, que considera “quase universalmente aceita” a
concepção de “filosofia contemporânea” como aquelas correntes filosóficas desenvolvidas “durante os séculos
XIX e XX, ou seja, do período pós-kantiano aos nossos dias” (Vaz, 2009, p. 97).
5
e progresso social, por outro lado vulnerabilizou os bens imateriais da humanidade. Já não
podendo lançar fundamentos existenciais na tradição, o homem contemporâneo busca modos
impessoais de enfrentar sua angústia constitutiva através do projeto histórico oferecido pela
modernidade que, apesar dos esforços técnicos para a previsibilidade da vida, não elimina o
paradoxo da maior incidência de tédio e vazio de sentido.
Os valores elididos, as crenças enfraquecidas e os hábitos esquecidos já não podem
constituir certezas capazes de abrandar a angústia intrínseca à existência. Os fenômenos da
massificação e da mundialização, ao compelir o indivíduo à inserção em estruturas cada vez
mais globalizantes, suscitam no espírito humano duas espécies de sentimentos paradoxais: por
um lado, uma relativa sensação de proteção pelo todo, do qual é parte; e, por outro lado, a
angústia perante a ameaça de dissolução da sua singularidade na totalidade amorfa. Cuidar do
homem que caminha sobre o fio desse dilema e sem certezas em relação ao alvo para o qual
avança – exceto a finitude – torna-se imperativo em todas as esferas do mundo
contemporâneo. Encoberta ou não por artifícios, a angústia ganha hoje uma magnitude sem
precedentes. O próprio humano e a necessidade de cuidá-lo tornou-se, como nunca, uma
questão urgente e complexa.
O mundo humano, em cujo centro de visibilidade se encontra o Estado moderno, resulta
do projeto de uma “razão legislativa” que tem por objetivo uma sociedade “racionalmente
planejada”, segundo advoga Zigmunt Bauman (1999, p.29). Este autor declara concordar com
Hans Jonas na observação de que o sucesso deste projeto representa um risco mais real para o
humano do que as suas falhas, uma vez que a ambiguidade do homem seria indissociável da
sua humanidade e eliminá-la seria, portanto, destruir também sua liberdade. A pretensão de
total controle encontraria seus limites nas ambivalências, nas quais residem “a única força
capaz de salvar a civilização tecnológica moderna de suas próprias consequências, planejadas
ou não intencionais” (Bauman, 1999, p. 61).
O cuidado, neste contexto de ambivalências e incertezas, tem surgido como um dos
temas mais abordados nos meios acadêmicos da atualidade, tanto nas áreas tradicionalmente a
ele relacionadas – a exemplo da área da saúde – quanto em outros espaços onde emerge como
um interesse novo. É natural, portanto, que se procure responder ao desafio - quer através do
agir, quer através do pensar - de conceber novas e mais abrangentes formas de cuidar, capazes
de atender não apenas às dores físicas e psíquicas do homem de hoje, como também ao seu
sofrimento de natureza espiritual. Na própria área do cuidado psiquiátrico, segundo o autor
Paulo Dalgallarrondo, a diversidade teórica não é uma fragilidade, mas uma necessidade para
6
o aclaramento das ideias no complexo campo da psicopatologia, para que as teorias únicas e
cabais não deformem o fenômeno psicopatológico (Dalgalarrondo, 2008).
Compreendendo a íntima relação entre a concepção de homem e a clínica que se planeja
para este homem, Frankl desenvolveu sua Análise Existencial e sua Logoterapia. Todas as
modalidades de cuidado propostas por Frankl, que serão examinadas no curso deste trabalho,
partem de uma concepção de homem que tem na espiritualidade sua dimensão fundamental.
Frankl apresenta a espiritualidade como uma dimensão antropológico-ontológica e não uma
dimensão “sobrenatural” no sentido tradicional deste termo. Contudo, defende a adoção de
uma “política de portas abertas” em relação à fé dos pacientes, para não inibir sua
religiosidade espontânea (Frankl, 2003b, p. 337, nota 29).
Frankl foi um cuidador de largo espectro e um pensador de fronteiras. Transitou, na
prática profissional, entre a neuropsiquiatria e a psicoterapia, assim como, no campo teórico,
entre o empirismo objetivante das ciências naturais e a agudeza da filosofia existencial
fenomenológica. Sua logoterapia e sua análise existencial seriam, para ele, “um campo
fronteiriço entre medicina e filosofia”, assim como a sua direção médica de almas “entra na
fronteira ente filosofia e religião” (Frankl, 2003, p. 318). Ademais, foi capaz de transformar
sua marcante experiência como prisioneiro de campos de concentração da II Grande Guerra
em uma produção teórica radicalmente comprometida com o cuidado do humano. Desta
forma, a obra de Frankl se constitui uma relevante contribuição à temática do cuidado, a ser
considerada tanto na academia quanto na sociedade em geral.
Os recursos franklianos, contudo, permanecem pouco conhecidos no contexto
acadêmico do nosso país, enquanto constam dos currículos de muitas universidades europeias,
americanas e de diversos países latino-americanos - destacadamente México, Argentina,
Chile, Colômbia e Uruguai – nas quais numerosas iniciativas de trabalho social e de políticas
públicas estão relacionadas a projetos acadêmicos inspirados nos aspectos sociais da obra
deste autor. Tais recursos possibilitam que médicos e psicólogos incluam - na relação de
cuidado -, a dimensão espiritual, da qual procede o vazio existencial que tem levado grande
parte da população ao adoecimento, ao consumo de drogas e à violência (Frankl, 1995).
A escolha por tratar, neste trabalho, da questão do cuidado na área de saúde e, dentro
desta, especificamente das clínicas médica e psicoterápica, se deve a dois principais motivos.
Primeiramente porque foram estes os contextos originais de Frankl, nos quais germinou a suas
concepções de homem e de cuidado, que são os alvos do nosso estudo. Depois, porque estes
âmbitos correspondem à esfera de experiência e atuação da autora, de cuja realidade
7
germinaram as inquietações motivadoras do presente trabalho. Embora a compreensão
adotada acerca do cuidado seja ampla - envolvendo não só as profissões da área de saúde em
geral, mas estendendo-a a todos os fazeres que lidem diretamente com o humano3-, a pesquisa
se concentrou nas áreas médica e psicológica por questões de especificidade e pertinência ao
tema. Contudo, não se perde de vista as possibilidades somar esforços com pesquisadores das
diferentes profissões da saúde para a conquista de modos mais abrangentes e humanizantes de
cuidar.
As vias metodológicas usadas para atingir os objetivos definidos pela pesquisa partem
da adesão à metodologia qualitativa, para a realização de um trabalho teórico
operacionalizado através de pesquisa bibliográfica. Os aspectos pertinentes foram buscados na
obra de Viktor Frankl e de alguns dos seus principais intérpretes e discípulos diretos ou
indiretos. O tema se distribui em dois artigos que tratam, respectivamente, das concepções do
humano e do cuidado no âmbito do pensamento frankliano. Esta divisão foi usada como
recurso facilitador, embora se soubesse que os temas - em muitos aspectos e em diversos
momentos da pesquisa - seriam tratados simultaneamente, em virtude das suas várias
implicações mútuas. Decidiu-se, assim, reservar espaços privilegiados para a ênfase particular
e a reflexão diferenciada, tanto para a problemática do humano quanto para a questão clínica
do cuidado.
O primeiro artigo procura explicitar as bases antropológicas e filosóficas da concepção
do humano no pensamento de Frankl, a partir da sua obra e dos seus relatos biográficos. É
importante esclarecer que, ao examinar a antropologia frankliana, a autora seguiu a abertura
interdisciplinar do próprio Frankl, que transita livremente entre a Antropologia Médica e a
Antropologia Filosófica por ele concebidas. O artigo estuda, sob esta perspectiva alargada, os
caminhos percorridos por Frankl para inclusão da dimensão noética e para a apresentação do
humano como unidade-totalidade. Enfoca a ideia de Unitas multiplex, tomada a Tomás de
Aquino para definir o homem como “unidade apesar da multiplicidade” assim como a
ontologia dimensional de Frankl, pela qual se identifica os aspectos constitutivos do humano
através de analogias geométricas ao modo de Spinoza (Frankl, 2006a; p. 158). Identifica os
aspectos constitutivos deste homem movido pela vontade de sentido e que, exatamente em
virtude de sua humanidade, pode ser capaz de “[...] erguer-se sobre a dor e de tomar uma
3
Sabe-se que, há muito, os fundamentos da análise existencial frankliana ultrapassaram os limites da própria
área de saúde e têm inspirado inúmeras pesquisas e práticas em áreas as mais diversas, tais como a pedagogia, o
serviço social, o aconselhamento pastoral e a psicologia organizacional.
8
atitude significativa em relação a ela” (Frankl, 2011; p. 96). Estuda como essa concepção
frankliana acerca do homem - renunciando aos determinismos e reducionismos da psicanálise
freudiana e da psicologia individual adleriana -, busca ultrapassar os limites das ciências
naturais e apreender o homem na tri-unidade que tem o espiritual como força integradora e
dimensão distintiva propriamente humana. Este artigo não toma a antropologia frankliana
como modelo de uma integralidade absoluta, mas vislumbra, a partir da mesma, uma
significativa contribuição à construção interdisciplinar de um cuidado mais abrangente.
O segundo artigo trata das modalidades do cuidado propostas por Viktor Frank,
categorizadas segundo as indicações iniciais do próprio autor. Examina a atualidade de cada
uma, observando as demandas por cuidado para as quais Frankl desenvolveu suas propostas.
O artigo também estuda a visão do humano que subsidia cada forma de cuidado, questionando
sua abertura à diversidade da experiência humana. Além disso, observa as repercussões
práticas da inclusão noética no cuidado clinico, procurando entender os corolários desta
perspectiva aberta à dimensão propriamente humana e os meios de acesso aos seus recursos
terapêuticos, tais como a capacidade de autodistanciamento e de autotranscendência (Frankl,
2003).
Assim, os dois artigos temáticos que serão examinados a seguir compõem os elementos
textuais do trabalho e contêm os resultados das pesquisas empreendidas. As conclusões e as
referências bibliográficas parciais, específicas para cada um dos artigos, serão incluídas no
final de cada um dos textos, como seus fechamentos. O trabalho como um todo, por sua vez, é
finalizado por uma reflexão conclusiva comum a ambos os artigos, seguida de uma
bibliografia geral. Foram inseridas algumas representações gráficas desenhadas pela autora
com finalidade didática, contendo elementos inspirados nos vários modelos e nos textos de
Viktor Frankl, consultados para a elaboração deste trabalho.
A pesquisa que ora apresentamos possui caráter exploratório em sua temática específica,
em vista da limitada difusão do pensamento frankliano no âmbito acadêmico nacional. Sem
pretensões de abrangência, este trabalho alcançará suas metas se vier a inspirar novas
pesquisas acerca de uma clínica mais ampla e inclusiva. Ademais, os nossos esforços
encontrarão sentido se trouxerem maior visibilidade à obra de Viktor Frankl e ao seu
investimento existencial na tarefa de contribuir para a construção interdisciplinar do cuidado
clínico capaz de acolher a plena humanidade do homem.
9
Artigo I
A PLENITUDE HUMANA NA PERSPECTIVA
DE VIKTOR FRANKL
Calheiros, M. E. Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica. Universidade Católica
de Pernambuco. Recife, PE.
[email protected]
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Resumo
Este artigo teve como objetivo geral compreender a concepção do humano na perspectiva de
Viktor Frankl. Os objetivos específicos foram estudar os fundamentos filosóficos e
antropológicos do seu pensamento sobre o homem; pesquisar os significados do seu
Experimentum Crucis; e, ainda, elucidar a sua Ontologia Dimensional. O estudo optou pela
metodologia qualitativa na perspectiva fenomenológica existencial, através de pesquisa
bibliográfica realizada a partir de obras selecionadas pela concernência ao tema, na literatura
do autor e de alguns de seus principais intérpretes. Lançou-se mão do método analítico de
Critelli para a compreensão do Experimentum Crucis frankliano. As conclusões revelaram
elementos filosóficos agostinianos e tomísticos na concepção frankliana de “plenitude
humana” como autotranscendência, assim como mostra fortes influências da axiologia de
Max Scheler e da ontologia fundamental de Martin Heidegger. Contudo, apesar da influência
de uma gama de autores com perspectivas epistemológicas diversas, este estudo revela a
originalidade e a unidade interna do pensamento de Viktor Frankl sobre o humano.
Palavras-chave: Experimentum Crucis; Ontologia Dimensional; Antropologia de Viktor
Frankl; Plenitude humana; Autotranscendência.
11
Abstracts
The general intention of this article was to understand the concept of human being in the
thought of Viktor Frankl. In particular, the aims were to study the anthropological and
philosophical foundations of his thinking about the man, research the meaning of his
Experimentum Crucis, and also clarify his Dimensional Ontology. The study used a
qualitative
methodology
in
existential
phenomenological
perspective,
involving
bibliographical research into those writings of Frankl and some of his principal interpreters
which are relevant to the theme. The Critelli’s analytical method was employed in seeking to
understand Frankl’s Experimentum Crucis. Conclusions reveal Augustinian and Thomist
philosophical elements in Viktor Frankl's conception of "human fulfillment” as selftranscendence, as well as shows strong influences of Max Scheler's axiology and Martin
Heidegger's fundamental ontology. However, despite the influence of a range of authors with
diverse epistemological perspectives, this study reveals the originality and internal unity of
Frankl’s thought about human.
Keywords: Experimentum Crucis; Dimensional Ontology; Viktor Frankl’s Anthropology;
Human fulfillment; Self-transcendence.
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APRESENTAÇÃO
A antropologia implícita a uma prática psicoterápica possui clara importância para sua
efetividade, uma vez que a perspectiva teórica do humano com a qual se trabalha tenderá a
circunscrever o alcance do cuidado na realidade clínica. Em concordância com este fato, a
razão do nosso estudo sobre a concepção do humano no pensamento de Viktor Frankl é a
implicação direta que esta possui na compreensão das práticas clínicas por ele propostas. Não
se trata, portanto, de um interesse puramente teórico ou de uma simples revisão teórica da
obra do autor. Trata-se de uma pesquisa dirigida aos conteúdos de sua obra que compõem a
sua visão de homem, seja como antropologia, seja como ontologia.
O exame dos caminhos pelos quais Frankl chegou à sua concepção de homem e as
fontes originais nas quais se inspirou se constituem em importantes pistas para a compreensão
do homem frankliano. Estas vias mostram, especialmente, como se originaram a compreensão
do homem como tri-unidade, a sua Ontologia dimensional e a vivência da sua experiência
crucial descrita como Experimentum Crucis.
A antropologia procedente das ciências naturais modernas, hegemônica na área de saúde
na contemporaneidade, restringe os recursos terapêuticos às esferas física e psíquica do
homem e condiciona - tanto quem recebe o cuidado, quanto quem o dispensa – ao
esquecimento da dimensão espiritual, exatamente aquela que detém os mais ricos atributos e
possibilidades criativas no humano. Para a compreensão da situação da espiritualidade no
contexto acadêmico moderno, tornam-se necessárias algumas compreensões de natureza
histórica e sócio-políticas.
A modernidade se constituiu, segundo Zigmunt Bauman (2001, p. 9), em um processo
de liquefação dos elementos tradicionais, através da libertação dos resíduos históricos
“solidificados” na realidade, rejeição da tradição e profanação da sacralidade. Bauman
observa que a intenção moderna em destituir as concretudes herdadas não foi para substituílas pelo autenticamente novo, mas para a criação de outro conjunto que, aperfeiçoado, fosse
inalterável e possibilitasse um mundo inteiramente previsível e administrável. As lealdades
tradicionais provenientes do mundo medieval decadente – com suas responsabilidades mútuas
entre os homens - deram lugar a um novo campo no qual a economia passou a predominar.
Bauman registra uma invasão desta racionalidade instrumental e lembra que o domínio
13
econômico se converteu (conforme expresso pelo marxismo) na “estrutura” da sociedade, que
passou a determinar os demais domínios, os quais passaram a ser considerados apenas uma
“superestrutura” (Bauman, 2001, p. 10).
Em vista dessas afirmações, observamos que no contexto moderno a espiritualidade
partilha a mesma condição de “adereço” superestrutural com as manifestações culturais em
geral. No âmbito das ciências passa a vigorar apenas o potencial técnico de um sistema
econômico fundamentado no princípio da “realização” e no ethos utilitarista, segundo
Krishan Kumar (1997, p. 113). No mesmo texto, este autor, recorrendo às ideias de Herbert
Spencer e Talcott Parsons, ressalta que a modernidade diferenciou a sociedade em
subsistemas nos quais princípios próprios poderiam ser aplicados com liberdade desde que na
vigência específica dos diferentes “reinos”.
Isto indica que a espiritualidade passou a ter uma legitimidade regulada, restrita às
instituições religiosas e - no âmbito acadêmico -, à normatividade disciplinar enquanto
ciências da religião ou teologia. Isto implica, na nossa percepção, que a inibição da
espontaneidade no trato da espiritualidade e a ausência de fluxo interdisciplinar privaram
várias áreas do conhecimento de se enriquecerem a partir da fecundidade da dimensão
espiritual humana. Este fato repercutiu muito especialmente na área da saúde, na forma de
reducionismo antropológico e da sua consequente insuficiência no cuidar.
O esvaziamento da espiritualidade na modernidade, contudo, extrapola o âmbito do
conhecimento e ressoa em todo o mundo humano. O mundo da técnica representa um
progresso de aparência, na qual o sentido profundo da vida se perdeu e se obscureceram os
problemas fundamentais da existência. A aparência ganhou estado de realidade e o homem
passou a crer em sua autossuficiência, em meio a uma sociedade que tudo sacrifica em função
de sua autojustificação histórica, indiferente a toda dor que isto possa representar (Teixeira,
2005).
Os
vários
fenômenos
frequentemente
apontados
como
característicos
da
contemporaneidade, como aqueles relativos à perda dos referenciais pessoais e familiares; ao
crescimento exponencial da violência e da drogadição; à emergência de novas formas de
sofrimento psíquico; à massificação e ao paradoxal individualismo que a acompanha, podem
ser expressões do vazio de sentido de um mundo humano imerso em ameaçadora crise do seu
próprio nível constitutivo, segundo, o neuropsiquiatra austríaco criador da Logoterapia, Viktor
Emil Frankl (1995). Um sentimento generalizado de carência de sentido, mais que a própria
carência de condições materiais, estaria por trás dos estados de sofrimento de muitas pessoas -
14
de todas as classes sociais - que buscam primordialmente não o sustento “pelo qual viver”,
mas uma causa “para a qual viver” e que lhes dê sentido à vida. Frankl afirmou antever e
descreveu este vazio existencial décadas antes de se tornar uma “neurose de massa em escala
mundial”, quando a sociedade industrial e de consumo passou a satisfazer – e mesmo a gerar as necessidades materiais do homem, sem responder à mais humana de todas as necessidades,
que permanece em estado de frustração: a vontade de sentido (Frankl, 1995, p. 259).
A orientação para um sentido e para o futuro seria, para Frankl, fundamental para a
própria sobrevivência no mundo atual, uma vez que no vazio existencial tende a “proliferar
aquela tríade neurótica de massas composta de depressão, vício e agressão” (Frankl, 1995, p.
260-261). Frankl assevera que mesmo a juventude denominada no future generation - uma
geração sem futuro – é recuperável. E acrescenta que estes jovens apreciam serem “exigidos”
nas situações concretas em que são postos diante de uma missão que lhes seja adequada.
A busca por novas e mais abrangentes concepções do humano - que respondam às
grandes demandas pessoais e sociais pelo sentido do existir -, tornou-se uma questão de
importância cardinal. A proposta psicoterápica de Viktor Frankl vem ao encontro desta
pungente realidade, portando uma antropologia inclusiva em relação ao espiritual, que
subsidia práticas terapêuticas e preventivas voltadas para a atual profunda crise de sentido. O
autor José Benigno Freire destaca que a espiritualidade, conforme proposta por Frankl, não
apenas distingue o que seja o humano, mas ainda constitui o núcleo dos atos e do existir do
homem (Freire, 2007).
O principal objetivo deste estudo é interpelar esta antropologia capaz de tematizar a
espiritualidade no próprio âmbito das ciências da saúde e de, na forma de cuidado integral,
propor saídas para a dor humana em meio à complexa crise do mundo contemporâneo.
15
1 A CONCEPÇÃO DO HUMANO EM VIKTOR FRANKL
Viktor Frankl apresenta o homem como um ser complexo que, além de possuir as
dimensões corporal e psíquica – das quais a medicina e a psicologia se ocupam
principalmente - ainda existe enquanto ser espiritual. Frankl se viu insatisfeito com os limites
impostos pelo que considerava os reducionismos presentes na antropologia médica moderna,
nas formas de biologismo, psicologismo ou sociologismo (Frankl, 2008b, p. 134). Para ele, o
contexto científico e profissional de sua época refletia uma realidade na qual os fenômenos
especificamente humanos haviam se tornado “meros epifenômenos”, sendo o amor tratado
como “instintos reprimidos”; a consciência nada mais que o “superego”; Deus apenas uma
“imagem paterna”; a religião uma “neurose” e a espiritualidade uma “forma elevada” de
função cerebral (Frankl, 2008b, p. 135). Em resposta a estes fatos, concebeu uma psicoterapia
que não apenas reconhecia a espiritualidade, mas partia exatamente desta dimensão (Frankl,
1995; 2009). A esta forma abrangente de psicoterapia, denominou Logoterapia - do grego
logos, que tomou como “sentido”, constituindo uma proposta psicoterápica aberta à dimensão
do exclusivo fenômeno humano.
Para distanciar sua teoria da conotação religiosa, escolheu chamar a espiritualidade de
“dimensão noética” (do grego noûs, ‘razão’, ‘espírito’), classificando-a claramente como uma
dimensão propriamente antropológica e não sobrenatural ou teológica (Frankl, 2007b). O
termo noûs provém do grego , que significa “ver discernindo” (Ferrater Mora, 2004, p.
2100). É usado em muitos textos filosóficos em sentidos diversos - desde os pré-socráticos à
atualidade -, mais frequentemente como “inteligência”, “espírito” e “sabedoria”. Em Plotino é
tomado como “visão inteligível do Uno”; em Aristóteles refere-se à “parte superior da alma”;
e, ainda, em Santo Agostinho, aparece como “vida interna do espírito” (Ferrater Mora, 2004,
p. 2117). Frankl se refere a uma noologia orientada em “linha metafísica”. Esclarece, contudo
que não se trata de um “metafísico por trás do físico”, usando a compreensão que compartilha
com Max Planck de que a realidade metafísica não se acha atrás dos dados da experiência,
mas dentro deles (Frankl, 2006, p.92-93).
A visão frankliana de mundo encontrou expressão na filosofia da existência e na
fenomenologia, principalmente pela influência de Max Scheler e pela aproximação às obras
de Martin Heidegger, Karl Jaspers e Nicholai Hartmann. Sabe-se que a comunidade de
16
pensadores fenomenológico-existenciais da primeira metade do século XX, anunciou o
período crítico do espírito europeu, que culminaria historicamente com as duas grandes
guerras. O pensamento de Edmund Husserl sobre a cultura europeia e sua missão em relação
ao Ocidente se expressou nas suas conferências proferidas em Friburg (1917-1918), nos
artigos publicados na revista japonesa Kaizo entre 1923-1924 e na conferência de Viena em
1935, reunidos no conhecido opúsculo denominado A Crise da Humanidade Europeia e a
Filosofia, segundo informa Mário Alves (2006; pp. 3-10) na introdução à edição portuguesa.
A reflexão husserliana, pioneira entre as vozes de outros pensadores, prenunciava
acontecimentos que se seguiriam a esta crise, centrada especialmente na ideia de uma
profunda decadência, mas também na possibilidade de um revigoramento do mundo espiritual
europeu (Husserl, 2008).
Este foi um período crítico para toda a intelectualidade vienense. No âmbito acadêmico,
Frankl fez parte de uma geração antecipadora da inquietação metodológica que se firmaria na
segunda metade deste século, descrita por Norman Denzin como “uma grande inquietação
entre alguns pesquisadores qualitativos com o abandono dos padrões científicos
convencionais” (Denzin, 2006, p. 372). Frankl vivenciou intensamente esse período - como
intelectual e como médico – e sua obra demonstra preocupação com o niilismo crescente no
pensamento europeu, mas também com a sua repercussão na dimensão do cuidado. Revelou
inquietação não apenas por uma nova perspectiva, mas pela conquista de um olhar mais
compreensivo sobre a realidade humana, implicado em uma atitude mais vivencial e inclusiva
dos modos de conhecer e de validar o conhecimento, o que viria a encontrar nas vertentes
fenomenológicas existenciais, as quais passavam a inspirar a psicoterapia de então.
No seu primeiro livro publicado após a guerra, afirma que uma das missões mais
importantes da psicoterapia seria “evocar esse ser-livre perante as condições falsamente todopoderosas”, denunciando que a filosofia estaria sendo injuriada ao ser classificada como
“nada mais que sublimação da sexualidade reprimida”, sendo ela capaz exatamente de
“mostrar ao paciente o caminho para uma elucidação desta liberdade” (Frankl, 2003, p. 3940). Seu pensamento foi marcado pelo contexto histórico crítico, mas sua ênfase foi, por
excelência, na preocupação com um revigoramento da visão integral do humano, capaz de
inspirar um cuidado abrangente em relação à espiritualidade do homem.
A logoterapia e a análise existencial refletem uma mesma realidade, constituindo as
“duas faces de uma mesma teoria”, segundo Frankl (1995, p. 60). A primeira é caracterizada
como método psicoterápico e a segunda como uma linha antropológica de pesquisa. Frankl se
17
refere ao Dasein como forma especial de compreensão do humano, para o qual a filosofia
contemporânea reservou o termo “existência” (Existenz), sendo considerado pela logoterapia
neste mesmo sentido (Frankl, 2003, p. 179).
A reflexão filosófica da qual procede a Logoterapia é elaborada por Frankl na forma de
uma analítica existencial própria. Esta analítica tem por função primordial sustentar
teoricamente seu método logoterápico e dela emerge uma visão do homem enquanto
ontologia, como reflexão acerca do sentido do ser humano e da sua existência. Frankl
esclarece que a análise existencial não significa uma análise da existência, mas uma forma de
compreendê-la e explicá-la tanto ôntica quanto ontologicamente (Frankl, 1995, p. 60-61). A
expectativa de Frankl não consistiu em substituir os modelos existentes de psicoterapia, mas
oferecer um meio complementar para o acolhimento da dimensão espiritual, que percebia
como negligenciada pelas modernas profissões da saúde. A psicoterapia estritamente
científico-empirista, afirmava Frankl, seria cega em relação ao sentido e aos valores
espirituais (Frankl, 1966) 4.
O caminho metodológico para a elucidação da concepção frankliana do humano, a
qual representa o cerne dos nossos objetivos neste texto, se mostrou inicialmente como uma
tarefa simples. Revelou sua complexidade, porém, à medida que identificávamos a
multiplicidade das fontes de conhecimento às quais nosso autor teve acesso, provenientes de
diferentes campos ou mesmo pertencentes a tradições paradigmáticas consideradas opostas.
Compreendemos também que o estudo da obra de Frankl tendo como finalidade específica
elucidar sua concepção acerca do humano, possuíam alguns obstáculos a serem transpostos
além da sua intrínseca complexidade. Dentre estes obstáculos, que preferimos tomar como
desafios - com os quais nos deparamos desde o início da pesquisa bibliográfica -, dois se
apresentaram como mais importantes, dos quais trataremos a seguir.
O primeiro desafio, mais óbvio, corresponde à relativa dispersão em que se acham os
textos alusivos ao tema, ao ser considerado o todo da obra em exame. A obra frankliana não
possui um traçado didático convencional que facilite a pesquisa de um determinado aspecto
do seu pensamento. Não encontramos a concepção frankliana do humano delineada ou
esboçada conclusivamente em um só texto, mas entremeada aos demais aspectos que
constituem sua tecedura teórica. Inicialmente, atribuímos este fato à notória espontaneidade
4
Esta afirmação consta da introdução à segunda edição norte-americana do livro The Doctor and the Soul
(Ärtzliche Seelsorge), na qual Frankl sintetiza sua conferência de apresentação da sua teoria à Royal Society of
Medicine, Section of Psychiatry, em 15 de junho de 1954 (Londres).
18
da produção intelectual do autor, configurada pari passu com a vida, como resposta tanto às
questões acadêmicas quanto às demandas práticas do seu tempo. Isto tem se resolvido, em
grande parte, graças ao trabalho colaborativo de pesquisadores de vários idiomas e
nacionalidades, que avançam no sentido do mapeamento bibliográfico da obra de Frankl.
Percebemos que este princípio atua igualmente na construção de sua perspectiva sobre o
humano: uma realidade teórica que é entregue ao leitor através de muitas cintilações, de forma
quase lúdica, possivelmente à medida que ele mesmo as vislumbrava. No curso do nosso
investimento na leitura sistemática de suas obras descobrimos que havia outras causas para
essa aparente dispersão as quais estariam relacionadas com o que considerávamos a segunda e verdadeiramente significativa – dificuldade, como veremos a seguir.
O que identificamos como o segundo desafio requer um tratamento mais sutil.
Referimo-nos à forma com que Frankl lidou com diferentes campos epistemológicos e
paradigmáticos, sem que estes fossem apenas sincreticamente agregados. Estas diferenças
mostraram-se dispostas de modo a formar um todo harmonioso, em cuja trama era possível
perceber as fímbrias de algumas tradições do pensamento filosófico e de outros autores que o
influenciaram, porém de forma a estarem surpreendentemente “amalgamadas”. Suas fontes
provinham tanto da sua vivência pessoal - particularmente marcante - quanto da dupla
especialização profissional em neurologia e a psiquiatria, disciplinas epistemologicamente
distanciadas. A esta diversidade epistemológica foram acrescentados novos horizontes
paradigmáticos, alcançados pelo seu doutoramento em filosofia. Seria preciso descobrir como
Frankl equacionou aportes tão diversificados para construir uma visão coerente do humano e,
principalmente, saber se possuía – como suspeitávamos - uma concepção prévia e
autenticamente sua, como uma matriz, à qual vieram aderir suas diversas influências.
Recorremos a trabalhos de outros pesquisadores com o objetivo de conhecer o estado da
arte em relação aos aspectos que enfocamos na obra de Frankl e, sobretudo, em busca de
percepções que viessem reiterar as nossas observações pessoais. Encontramos na literatura de
Mario Caponnetto, médico e escritor argentino especializado em estudos tomísticos e
logoterápicos, observações análogas nossas, em sua obra Viktor Frankl, una antropología
médica. Este autor afirma que as grandes vertentes filosóficas da modernidade podem ser
percebidas “assimiladas” e “transfiguradas” em “um núcleo originário que é genuinamente
frankliano”, a partir do qual Viktor Frankl outorgou “o tom, o ritmo e a chave à Logoterapia”
(Caponnetto, 1995; p. 11).
19
Os relatos biográficos acerca de Viktor Frankl mostram que ele investiu as primeiras
décadas de sua vida intelectual na construção e amadurecimento de sua perspectiva acerca do
homem, chave das formas de cuidado que posteriormente projetou. Embora tenha se
preocupado desde a juventude com a questão do sentido, somente a partir da década de 1950
Frankl formalizou seu pensamento e engendrou a logoterapia com base na sua analítica
existencial. A visão do humano, que resultou nas suas propostas teóricas e práticas, teve
origem na convergência entre sua realidade pessoal e o conhecimento adquirido, ambos
imersos no contexto da Viena do início do século XX. Conhecer estas duas realidades
convergentes possibilitar-nos-á uma mais apurada compreensão do seu pensamento. As
próximas sessões permitirão ver emergir, a partir da vida e a partir da obra de Viktor Frankl,
essa antropologia que busca integralidade.
20
2 A VISÃO DO HUMANO QUE EMERGE DA VIDA
As condições histórico-pessoais de um autor são sugestivas fontes de conhecimento e
frequentemente valorizadas para a compreensão do seu pensamento. Esta importância se torna
capital no caso de um autor que tome suas experiências concretas como um verdadeiro
“laboratório existencial” para comprovar a validade das suas teorias. Este é o caso inusitado
de Viktor Frankl; a experiência foi a situação extrema por ele vivida como prisioneiro de
campos de concentração; e, por fim, a teoria que ele julgou comprovar é a que toma o ser
humano como portador - além das dimensões corporal e psíquica -, de uma dimensão mais
abrangente, dotada de uma surpreendente força de resistência. Frankl afirma que o ser
humano, elevando-se “acima de toda a sua condicionalidade”, é capaz de conferir sentido à
existência mesmo nas situações extremas e de resistir, apoiado na força que denomina “o
poder de resistência do espírito” (Frankl, 2003b, p. 41).
A
esta
experiência
existencial,
historicamente
desenrolada
no
âmago
dos
acontecimentos da II Guerra Mundial e socialmente vivenciada em vários guetos e campos de
concentração como os de Dachau e Auschwitz, Viktor Frankl denominou Experimentum
Crucis. A importância das peculiaridades biográficas deste autor está, evidentemente,
magnificada neste caso. Conhecer suas especificidades se torna uma exigência e uma
premissa à compreensão de seu pensamento.
2.1 Biografia
Viktor Emil Frankl nasceu em Viena no ano de 1905, filho de uma família de judeus
observantes, tendo acesso à cultura judaica no ambiente doméstico, através do pai Gabriel
Frankl, um funcionário do Ministério da Educação, e de sua mãe, Elsa Lion, cujos parentes
descendiam de um conhecido rabino polonês. Segundo o analista existencial Alfried Längle,
seus pais sempre viveram no distrito municipal dois de Viena, típico de judeus pobres
emigrantes do século XIX. Embora sendo de posição humilde e tenham passado necessidades
durante a Primeira Guerra, costumavam viver em habitações amplas e bem iluminadas,
21
próximas do centro da cidade (Längle, 2000, p. 39). Em suas próprias memórias, Frankl se
refere a uma infância vivida em clima de serenidade e afeto, que o tornou profundamente
ligado à casa paterna. Refere-se à mãe como uma “alma bondosa” e “devota de coração” e ao
pai como um homem de caráter espartano - apesar da natureza igualmente devota -, que foi
um dos primeiros judeus liberais da Áustria (Frankl, 2006b; p. 7,11). Segundo o autor José
Benigno Freire, este ambiente familiar saudável e terno proporcionou a Frankl o
desenvolvimento de uma personalidade equilibrada e ponderada mesmo nas difíceis situações
que viria a experimentar (Freire, 2007; p. 32).
A influência do seu pai se mostraria na missão de psicohigiene que Frankl assumiu junto
aos jovens deprimidos e com tendências suicidas no período após a I Grande Guerra. De fato,
o jovem Viktor Frankl iniciou precocemente alguns trabalhos sociais que demonstraram sua
visão antecipadora e sua inquietação em relação ao sofrimento humano. A educação laica de
Frankl se deu na Viena do início do século XX, cujos ambientes cultos foram especialmente
favoráveis ao florescimento da psicoterapia e emblemáticos por serem o berço de Freud e
Adler (Freire, 2007). Aos quinze anos Frankl iniciou sua comunicação com Sigmund Freud
através de carta, e no ano seguinte já proferiu uma palestra com suas reflexões iniciais sobre o
sentido da vida. Em 1924, aos dezenove anos, frequentou os círculos da psicanálise e teve seu
primeiro artigo científico publicado por indicação de Freud, no periódico Internationale
Zeitschrift für Psychoanalyse. Atuava, então, como líder junto à juventude obreira socialista.
No ano seguinte ingressou na Associação Internacional de Psicologia Individual - na
companhia de Oswald Schwarz e Rudolf Allers -, participando como palestrante em diversos
eventos estudantis e sendo eleito vice-presidente de uma associação acadêmica em prol da
Psicologia Médica. Inaugurou, em 1929, por iniciativa de Hugo Sauer e com o apoio de
Charlotte Bühler, diversos centro de assistência gratuita para jovens com necessidade de apoio
psicológico no período entreguerras, cujo modelo foi levado a diversos países vizinhos.
As reflexões filosóficas despontaram cedo na vida de Frankl, sendo significativo o
episódio no qual, durante uma aula, aos treze anos, o professor afirmou que a vida seria
apenas um “processo de oxidação”. A esta declaração, Frankl redarguiu com a fundamental
pergunta sobre o sentido da vida, segundo sua própria narrativa (Frankl, 2008b). O jovem
Frankl já demonstrava uma forte convicção em relação à dignidade do homem e de um
apurado senso de dever, uma espécie de “mandato social” que ele abraçara como próprio. Os
períodos correspondentes à sua produção precoce (antes da Segunda Guerra), mediana (entre
a Segunda Guerra e a década de 1950) e a tardia (até os anos noventa) parecem evidentes,
22
porém a constância com que abordou os temas da integralidade humana e do “sentido da
vida” é um dos fatores que induz a considerá-la de forma contínua, uma vez que seu
pensamento mostra uma crescente e coerente maturação, mais que fases de construção.
O ano de 1930 fez coincidir o último ano do curso médico e os primeiros estudos de
Frankl sobre axiologia, nos quais definiu os valores que configuram o sentido da vida (valores
de criação, de vivência e de atitude). Frankl passou a atuar com Otto Pötzl na Clínica
Neurológica da Universidade de Viena e com pacientes suicidas no Hospital Psiquiátrico de
Viena. Em 1933 engendrou o conceito de Análise Existencial (Existenzanalyse), embora só
tenha chegado a publicá-lo em 1938, o mesmo acontecendo com o termo Logoterapia.
Fundou, em parceria com Pötzl, a Associação Médica para Psicoterapia, que tem entre seus
primeiros membros Anna Freud, Alexandra Adler e Rudolf Allers (Frankl, 2008b).
Os anos que antecederam a Segunda Grande Guerra foram tensos no contexto social de
Frankl, especialmente no círculo judaico de então, quando muitos intelectuais judeus foram
aconselhados a emigrar. Frankl deixou vencer, em 1939, o seu visto para os Estados Unidos
por haver decidido permanecer com os pais e protegê-los durante o período de adversidade
que já claramente se divisava. Assumiu a direção da seção de Neurologia do Hospital
Rothschild em 1940 e, no ano seguinte, casou com Tilly Grosser. No final do ano de 1942 foi
detido pelos nazistas e deportado com seus parentes, para guetos e campos de concentração.
Seu pai faleceu já em Theresienstadt, antiga fortaleza na Boêmia transformada em gueto
judaico. Durante os meses em que a família Frankl esteve no gueto de Theresienstadt, foi
possível a Frankl cuidar de seu pai até os últimos instantes. Posteriormente, Frankl e sua mãe
foram trasladados para Auschwitz, onde esta faleceu em 1944 (Frankl, 2006b).
Iniciou-se o período em que, destituído de tudo que havia conquistado até então, Frankl
viveu uma experiência que posteriormente veio a considerar seu Experimentum Crucis, ou
seja, uma experiência crucial para comprovação de sua teoria.
2.2 O Experimentum Crucis
Frankl compreendeu que as experiências por ele vividas nos campos de concentração se
constituíam em uma prova de que há uma dimensão espiritual operante no humano. No
23
prefácio à edição de 1984 do seu livro Em busca de sentido, afirma que o relato de suas
experiências no campo de concentração serve como “validação existencial” de suas teorias e
que a segunda parte que acrescentou ao livro – de natureza teórica, contendo os principais
conceitos da logoterapia – possibilita que as duas partes confiram credibilidade uma à outra.
Relata que seu objetivo ao escrever esta obra foi comunicar a ideia de que a vida possui um
sentido incondicional, mesmo nas situações mais adversas. Frankl tinha em mente que a
“capacidade de resistência do espírito” teria possibilitado sua sobrevivência às condições de
extrema adversidade e, portanto, comprovar sua tese no contexto de um campo de
concentração poderia ajudar as pessoas com tendência ao desespero (Frankl, 2008b; ps. 9 e
10).
As leituras fugazes da obra de Frankl, no entanto, levam frequentemente à interpretação
do termo Experimentum Crucis apenas como alusivo à dimensão simbólica da cruz, como
“experiência de sofrimento”. Deixa-se de atentar para o seu significado metodológico, como
experimento empírico crucial, ou seja, cabal e conclusivo, capaz de provar uma determinada
hipótese e legitimá-la, ao tempo que refuta todas as demais. O lógico britânico William
Stanley Jevons afirma que podem ser classificados como Experimentum Crucis “qualquer
experimento que decida entre duas teorias rivais” (Jevons, 2003; p. 519) 5.
Observa-se, portanto, que o termo Experimentum Crucis aponta, no contexto da obra de
Frankl, para dois significados que, por sua vez, indicam os dois eixos com que este construiu
sua teoria: inicialmente aponta para a experiência como vivência pessoal de sofrimento
(primeiro eixo) e, depois, como experimento científico (segundo eixo). Esta aparente
dualidade constitui um expressivo exemplo de como Frankl tratou, de forma natural e
simultânea, os objetos da ciência e os fenômenos da existência no seu pensamento. Por este
motivo, no que tange ao seu Experimentum Crucis, Frankl lidou simultaneamente com
circunstâncias e com vivências, segundo as especificidades de cada uma. Pode-se, assim,
inferir que Frankl compreendia que as circunstâncias devem ser “provadas” (porque possuem
causa) enquanto que as vivências requerem ser “compreendidas” (porque possuem motivos),
5
A expressão Experimentum Crucis é comumente relacionada no meio acadêmico ao sexto experimento
realizado por Isaac Newton (1642-1727) sobre refração da luz, em 1666, sob o título de “A nova teoria sobre luz
e cores” (Thompson, Evan. Colour vision: A Study on Cognitive Sciences and the Philosophy of Perception.
New York: Routledge, 1995; p. 4). Na verdade a expressão foi usada primeiramente por Francis Bacon (15611626) em seu Novum Organum, em 1620, segundo relata Augusto de Morgan, levantando as suposições de que
Newton adotou o termo de Bacon ou, conforme outra vertente, ambos o teriam extraído de seus próprios estudos
alquímicos (Morgan, Augustus de. A Budget of Paradoxes. Vol. 1 - ; 2ª ed. Reimpressa. New York: Dover
Publications, 1969).
24
em consonância com o que, segundo Creuza Capalbo (2008), propõe Jaspers em sua
Psicopatologia, fazendo uso da distinção husserliana entre motivos e causas.
Uma questão metodológica se apresenta como imprescindível a respeito do
Experimentum Crucis frankliano e se refere à legitimidade deste experimento ocorrido no
curso espontâneo da vida. Sendo possível prever que tal experimento se mostre estranhável no
âmbito científico, esta questão deve - na medida do possível - ser tratada com vistas ao
esclarecimento. A mais plausível das possibilidades parece-nos ser a interpretação desta
concepção frankliana segundo o método fenomenológico, o qual – em relação aos métodos
científicos empiristas - implica em modos inteiramente diversos de olhar a própria realidade.
Segundo Dulce Critelli, toda possibilidade de ser e de conhecer tem como fundamento a
existência humana enquanto coexistência, onde o seu ser-no-mundo-com-os-outros se
constitui no fundamento para o movimento fenomênico, pelo qual se dá a possibilidade do
real como acontecimento (Critelli, 2007). As coisas que existem se tornam reais quando se
mostram, pelo “movimento de realização do real”, na concretude da história, entre homens
igualmente concretos e históricos.
Através deste movimento, algo se torna real quando é desvelado por alguém, revelado a
outros e, uma vez testemunhado pelos outros, é por estes publicamente veracizado e
autenticado, pela vivência afetiva e singular dos indivíduos. Critelli afirma que a metafísica
cartesiana que embasa toda a ciência moderna, seria essencialmente impessoal, o que exige
uma nova reflexão sobre as oposições “entre indivíduo e coletivo, universal e particular,
subjetivo e objetivo.” Acrescenta que “pela relevância dada à experiência dos indivíduos”,
esta experiência adquire “valor de fidedignidade” (Critelli, 2007; p. 101). No âmbito da
pesquisa fenomenológica, o experimento frankliano, atende às exigências de todos os
momentos do acima descrito “movimento de realização do real”. Assim compreendida, a
experiência frankliana é referendada (veracização) e efetivada (autenticação) pela vivência de
milhares de leitores-testemunhas de seu comunicado escrito que, na forma do livro de
memórias, narra uma realidade que lhe foi desocultada na ambiência concreta dos campos de
concentração. Diante do modo como Frankl vivenciou estes fatos, podemos concluir – do
ponto de vista metodológico - que o Experimentum Crucis frankliano possui o valor de
fidedignidade necessário à aceitação da sua legitimidade. É do ponto de vista do seu
significado existencial profundo, porém, que tais acontecimentos abrem amplos horizontes
interpretativos para testemunhar a riqueza de possibilidades de uma vida que - em medidas
humanas - encontra sua plenitude de sentido.
25
3 A VISÃO DO HUMANO QUE EMERGE DA OBRA
A construção da concepção acerca do homem no pensamento de Viktor Frankl se dá em
um continuum, sem significativas rupturas, de modo que até mesmo os aportes marcantes –
como seu doutoramento em filosofia – parecem acrescentar-lhe apenas uma nova capacidade
para articular e expressar aquilo que já estava latente em suas ideias. Anteriormente, no curso
deste trabalho, referimos às percepções análogas às nossas, encontradas em Caponnetto, em
relação à forma como Frankl teceu as múltiplas influências por ele recebidas. Para a nossa
atual observação acerca da continuidade temporal do corpus teórico de Frankl, novamente
encontramos respaldo junto ao referido autor, que assevera haver tal unidade interna na obra
frankliana que qualquer divisão nela operada resultará em uma sobreposição inevitável de
diversos aspectos (Caponetto, 1995). Em virtude deste fato resolvemos não demarcar o
desenvolvimento teórico de Frankl em etapas, mas acompanhar a urdidura de sua concepção
do humano pela dupla perspectiva antropológica e ontológica. Nossa proposta examina cada
uma delas à parte, apenas como momentos necessários de reflexão, com a finalidade de
perceber como as diversas influências vieram se somar às ideias originais de Frankl. Portanto,
embora enfocando certas questões ontológicas e antropológicas separadamente - como
“estações” de uma jornada - não renunciaremos à constante remissão ao percurso completo,
ou seja, ao desenvolvimento da concepção do humano no todo da obra de Frankl.
3.1 A antropologia frankliana
A visão de Viktor Frankl sobre a questão do humano começa a se diferenciar em sua
obra desde o primeiro de seus escritos, o livro Ärztliche Seelsorge. Esta obra teve os seus
originais perdidos durante a guerra e foi rapidamente reescrita no após-guerra, a partir de
pequenos pedaços de papéis retirados do lixo dos campos de concentração, nos quais Frankl
foi reconstituindo suas ideias. A sua antropologia vai se configurando teoricamente em uma
época em que a Antropologia filosófica começada a se caracterizar como disciplina (pelos
trabalhos de Scheler) e a Antropologia médica ainda não havia sequer se constituído
formalmente.
26
A Antropologia é, em seu sentido lato, reconhecida como a ciência que estuda o homem.
Diferenciada enquanto disciplina moderna no século XIX restringiu-se às características
físicas do humano, o que se refletiu no uso frequente dos métodos antropométricos, segundo
Ferrater Mora (2004), compilando dados que subsidiaram a chamada antropologia cultural, a
qual também os colhe da etnografia e da arqueologia, estudando as culturas humanas.
A Antropologia médica, disciplina incipiente e em busca de um nível mais elevado de
sistematização (Caponetto, 1995, p.13), estuda o homem no contexto saúde-doença, buscando
conhecer as ideia implícitas às práticas médicas. O termo antropologia, que segundo Houaiss
(2009) deriva dos radicais gregos ánthrópos ('homem') e logía (‘saber’), ainda pode nos
revelar que o próprio antepositivo ánthrópos procede de antrum ('caverna') e tropo
(“afinidade por”), evidenciando sua relação com as ciências naturais evolucionistas. É
conhecido o fato de que o homem é considerado, no âmbito científico moderno, o animal
racional que, após estar por longos períodos abrigados em cavernas, delas saiu para
desenvolver os contextos socioculturais em que vive.
Em oposição a estes desenvolvimentos está a antropologia filosófica, que surgiu nos
primórdios da cultura ocidental enquanto interrogação fundamental sobre o humano, em torno
do século VIII A.C., segundo o relato de Henrique Lima Vaz (2009). Este autor lembra que a
própria pergunta “o que é o homem?” já faz emergir a “singularidade própria do homem que é
a de ser interrogador de si mesmo”. Esclarece Vaz que a Antropologia filosófica não toma o
homem como mero objeto de seu discurso, mas procura construir esse discurso fazendo com
que o homem, objetivado, mantenha sua “natureza de sujeito”. Portanto, a Antropologia
filosófica intenta “construir o discurso sobre o homem-objeto (epistemologicamente),
formalmente considerado como sujeito (ontologicamente)", ainda segundo Vaz (2009, p. 3).
O encontro, no final do século XVIII, com as emergentes ciências humanas e as ciências da
vida, exigiu deste questionamento filosófico sobre o homem um posicionamento
epistemológico em relação às teorias e métodos dos novos saberes. A crise desencadeada por
estes fatos tinha natureza histórica (nas muitas “imagens do homem” dominantes no decorrer
da civilização ocidental) e natureza metodológica (pela fragmentação do “objeto da
Antropologia filosófica” na diversidade das várias ciências do homem), segundo Vaz (2009,
p. 4).
Max Scheler, considerado o instituidor da Antropologia filosófica contemporânea,
estudou atentamente esta crise, demonstrando que a falta de uma “ideia do homem” provém
da pluralidade das ciências que se especializaram em estudá-la, pois esta pluralidade
27
encobriria sua “essência” mais que ajudaria a iluminá-la. Considerando a grande
complexidade para o estudo do homem na contemporaneidade, Scheler se dispôs a tentar
construir uma nova Antropologia filosófica, de base “maximamente ampla” (Scheler, 2003, p.
6). De fato, em seu livro A posição do homem no Cosmos (o conhecido Die stellung des
menschen im Kosmos), Scheler trata a Antropologia filosófica como uma “ponte estendida
entre as ciências positivas e a metafísica”, na expressão de Ferrater Mora (2004). Scheler
destaca que a missão da antropologia consiste em mostrar como a estrutura fundamental do
ser humano explica todos os “monopólios” do homem: a linguagem, a consciência moral, a
justiça, a arte, a religião, a ciência, a historicidade e a sociabilidade. Considerando que pulsão
e sentido se compertencem, Scheler afirma que todo racionalismo pleno está fundado no
“ideal ascético”, sendo por isso que o homem é o “asceta da vida”, o único ser capaz de dizer
“não” à mera realidade. Este homem aprimora seu ser assumindo uma postura de indiferença
perante as contingências existenciais para, no equilíbrio de uma eterna tensão entre ímpeto e
espírito, encontrar a “verdadeira vida” e “verdadeira determinação” (Scheler, 2003, p. 53).
Torna-se claro que o homem apresentado por Frankl sofreu profunda influência
scheleriana. Frankl conheceu seus escritos no grupo de Adler, segundo registra Längle (2000),
afirmando que a logoterapia e a análise existencial franklianas se fundamentam na
fenomenologia, na filosofia e na antropologia de Scheler. Ainda segundo Längle, o conceito
de “consciência” em Frankl corresponderia à “ética dos valores” de Max Scheler, que atribui à
pessoa a capacidade de percepção do valor; a ideia de “antagonismo psiconético” do primeiro
equivaleria à “dualidade espírito-natureza” do segundo; para Scheler é através do espírito que
o homem encontra a “abertura ao mundo”, o que em Frankl passaria a ser “abertura ao
sentido” (Längle, 2000, p. 51).
Frankl, segundo nossa observação, construiu sua antropologia a partir de várias
influências e não teria aplicado diretamente nenhuma delas. Como já destacamos neste
trabalho, percebemos uma tecedura mais sutil, em que seu pensamento é registrado com
marcas próprias que, em alguns aspectos, são inovadoras. Para conhecê-las, prosseguiremos
na descrição de algumas de suas configurações teóricas mais importantes sobre o humano.
28
3.2 Sentido e Valor
A principal característica da ideia frankliana acerca do humano é sua vigorosa afirmação
da natureza espiritual e incondicionada do homem, em contraste com as perspectivas
deterministas e materialistas (Caponetto, 1995, p. 7). A espiritualidade é apresentada como
dimensão noética - significando tanto “razão” quanto “espírito” -, a dimensão dos fenômenos
propriamente humanos (como as faculdades da autoconsciência, da volição, do juízo, da
criação), constitutiva e distintiva do humano. Esta dimensão confere ao homem - dotado da
capacidade de inteligir e julgar -, o poder orientar-se por valores, assim como de encontrar e
realizar sentido.
O termo “sentido” deriva do verbo “sentir”, do latim sentìo, sensum, sentíre (significa,
geralmente, “perceber pelos sentidos, conhecer, experimentar uma sensação ou sentimento”),
sendo usada comumente também como “direção” (Houaiss, 2009). Do ponto de vista
filosófico seu emprego se torna mais complexo, uma vez que se trata de um conceito-limite,
na expressão de Ferrater Mora (2004). Este autor afirma que “o conceito-limite contraposto a
e complementar de “sentido” é o conceito de “ser”, esclarecendo que ‘sentido’ e ‘ser’ são dois
nomes de conceitos-limites para caracterizar e situar tipos de realidades” (Ferrater Mora,
2004); [grifo nosso]. É interessante conhecer uma percepção que Ferrater Mora atribui a
Francisco Romero, segundo a qual os muitos significados de sentido são ao mesmo tempo
díspares e afins: nos procedimentos metafísicos acentuam-se suas afinidades, enquanto que,
fenomenologicamente ou analiticamente, ressaltam-se suas diferenças e matizes. Já Viktor
Frankl, de certo modo, simplificou a compreensão do seu emprego do termo “sentido” ao
identificá-lo com o logos nos seus estudos teóricos e ao ligá-lo ao “sentido da vida” nos textos
dirigidos ao público em geral, especialmente nos escritos para palestras ou entrevistas. No
primeiro caso, tratando-se de leitor de nível acadêmico, remete à complexidade ao termo
grego, com toda riqueza de sua histórica polissemia. No segundo caso, observamos que torna
permeável o significado de “sentido”, como uma espécie de “nexo” que denota coerência
entre ideias, acontecimentos ou situações, como se observa na expressão comum “fazer
sentido”.
A simples pergunta pelo sentido das coisas já pressupõe sua existência, segundo Frankl
(2008b). Afirma que há no homem um “pressentimento do sentido” e, ainda que
inconscientemente, o ser humano “crê em um sentido enquanto respira”, o que se observaria
29
na atitude do suicida que já não podendo ver sentido em viver, julga encontrá-lo no morrer
(Frankl, 2008b, p. 115).
A concepção frankliana do humano trata o binômio valor e sentido como estreitamente
implicados entre si e, por fazerem parte da esfera espiritual, se constituem em meio
estratégico-metodológico para lidar com a dimensão noética na psicoterapia. Frankl
argumenta que a realização da pessoa humana está além da simples “conformidade à vida” e
que é exponencialmente mais importante “a realização e/ou a descoberta de sentido”.
Acrescenta que esta descoberta, como “possibilidade de valor reservada”, dirige-se aos
“valores que cada indivíduo deve realizar na unicidade de sua existência e de seu destino”
(Frankl, 1995, p.18).
O uso corriqueiro do termo “valor” sempre se referiu e refere a algo a ser apreciado,
geralmente uma mercadoria ou produto. Além deste uso “econômico”, também é comum
significar algo bom, “valioso” por ser estimável e possuir uma grande “valia”, sendo que em
ambos os casos indicam uma seleção ou preferência (Ferrater Mora, 2004, p. 2970). As
ciências naturais, fundamentadas no positivismo, se esforçam para se verem livres do “valor”
para se ocuparem apenas do “fato” (Minayo, 2006, p. 81). Frankl, contudo, atribuindo a
Scheler a afirmação de que “a salvação do homem consiste na realização de seus valores mais
elevados”, assume uma “hierarquia” de valores que sustenta sua clássica pergunta pela
“psicologia das alturas”:
Onde está aquela psicologia interessada na perspectiva terapêutica que inclua em seu
arcabouço esses estratos “elevados” da existência humana e que mereça, nesse sentido e em
oposição ao nome de “psicologia profunda”, a denominação de “psicologia elevada”?
(Frankl, 1995, p. 19)
As reflexões de Frankl a respeito de valores reflete, em grande medida, a axiologia de
Max Scheler. A intentio emotiva de Scheler pode levar o homem a transcender o reino dos
objetos, para alcançar o reino dos valores, segundo Frankl (2003b, p. 72), o que significa que
o homem pode abandonar o modus vivendi “presentista”, saindo de uma condição de
dependências de prazer ou vício para atingir o “mais além” do reino objetal. Frankl ressalta
que a condição humana leva este homem, especialmente na atualidade, a experimentar uma
degradação de valores e princípios por “declinar de si os conflitos”. Deixa claro que não se
trata de conflito de consciência, mas um “conflito inerente aos valores”. Explica que, ao
30
contrário do sentido, que é concreto (ad personam e ad situationem), os valores “são por
definição abstratos universais-de-sentido”, não valendo puramente para pessoas e situações
únicas e irrepetíveis. Os valores se estendem amplamente a situações repetíveis, típicas e
interrelacionadas, nas quais o homem é chamado a decidir, de forma livre e responsável, entre
“princípios entre si contrários” (Frankl, 2003b, p. 80).
Vemos, aqui, a importância do binômio “sentido e valor” para a compreensão de outro
binômio, o de “liberdade e responsabilidade”, de relevância central no todo da teoria
frankliana. Ademais, torna-se clara a razão pela qual em geral se entende as compreensões de
“liberdade da vontade”, “vontade de sentido” e “sentido da vida” como os pilares da sua
proposta psicoterápica, a Logoterapia. Os dois binômios citados estão equacionados na
Logoterapia de maneira que esta, mais que uma técnica, se torna uma jornada terapêutica que
parte da experiência de ser livre e responsável, seguindo em direção ao sentido único da
existência em questão.
As três categorias de valores propostas por Frankl na sua teoria e na sua prática
logoterápica são os valores de criação, valores vivenciais e valores de atitude, sendo estes
últimos aqueles que persistem nas situações em que todas as possibilidades se estreitam. A
fixação na realização de determinado grupo de valores deve ser flexibilizada em função de
“outro grupo de valores que esteja mais além”, somente “onde se dá a possibilidade de
realização de valores” (Frankl, 2003b, p. 81-83). Frankl remete claramente à dimensão
noética, demonstrando como a logoterapia pode convidar o paciente a uma postura mais
“elástica” às oportunidades. Na nossa compreensão, essa “elasticidade” que Frankl propõe
como premissa para o alargamento das possibilidades de realização de valor e sentido pode
ser compreendida, em linguagem mais atual, como ampliação da capacidade de “resiliência”
do paciente pela percepção daquele grupo de valores “mais além”. Esta nossa suposição é
reiterada pela afirmação feita por Frankl de que, em uma existência pobre de valores criadores
e vivenciais, permanecem os valores atitudinais, que possibilitam encontrar sentido mesmo
nas situações-limites da existência. Nestas situações extremas, resta ao ser humano a
liberdade para decidir sobre sua responsabilidade perante os valores, ainda que lhe reste
apenas os valores de atitude. A implicação desta premissa frankliana para sua antropologia
torna-se evidente em uma de suas assertivas fundamentais: “ser homem é ser livre e ser
responsável” (Frankl, 2003b, p. 83).
31
3.3 As dez teses sobre a pessoa
A alta dignidade que Frankl atribui ao ser humano se expressa na compreensão do
mesmo enquanto pessoa, termo que deriva do latim persóna, 'máscara de teatro, caráter,
personagem (Houais, 2009). Persona corresponde, no âmbito teatral, a personagem, ou seja,
dramatis personnae e, em alusão ao ator faz ressoar a voz através da máscara, algumas
interpretações fazem derivar o termo persona do verbo personare, “soar através de” (Ferrater
Mora, 2004, p. 2262). Frankl, neste mesmo lastro, responde à pergunta sobre se seria um
equívoco ouvir a voz da consciência, afirmando que a consciência não pode ter voz porque ela
mesma “é” a voz da transcendência. Afirma que o termo “pessoa” ganha, assim, nova
compreensão, pois através da consciência humana “ressoa” (per-sonat, do latim) uma
instância extra-humana (Frankl, 2007ª, p. 4). Os gregos clássicos usaram o termo prósopon
(de prósópon 'personagem') de modo semelhante, porém sem a conotação de personalidade
humana, uma vez que percebiam o homem como parte do cosmo e da cidade-estado, segundo
Ferrater Mora (2004, p. 2262). A filosofia helenística, interessada no mundo e no ser, não
chegou a elaborar uma clara noção de pessoa. Esta só veio a emergir no pensamento cristão,
inicialmente a partir de estudos teológicos contemporâneos ao Concílio de Nicéia (325 D.C.),
quando passou a ser usada a palavra hipóstase (do gr. hupóstasis, ‘fundamento’, ‘substância’,
‘realidade material’), segundo Houaiss (2009).
Dada a importância que tem a noção de pessoa na obra frankliana, torna-se
recomendável um rápido exame das principais ideias a respeito deste tema. Agostinho de
Hipona foi um dos primeiros a desenvolver uma ideia mais precisa de pessoa, para se referir
tanto à Trindade quanto ao homem, no relato de Ferrater Mora (2004, p. 2263). Agostinho
confere à noção de pessoa maior interioridade, “para sublinhar o ser relativo a si mesmo em
cada pessoa divina”, situando a relação6 do homem consigo mesmo na realidade. As três
principais fontes que influenciaram a perspectiva agostiniana do homem foram o
neoplatonismo, a antropologia paulina e a narrativa bíblica, segundo Lima Vaz (2009). O
neoplatonismo contribuiu especialmente para a construção da estrutura do homem interior,
com a noção de mens (correspondente ao noûs neoplatônico) na qual Deus está presente como
interior e superior. A antropologia paulina dotou o pensamento de Agostinho de um matiz
soteriológico, além de delinear as ideias de liberdade e livre arbítrio, fundamentais para a
6
Segundo Ferrater Mora (2004, p. 2263) a noção de relação teria sido tomada por Agostinho a partir de
Aristóteles, e não a partir de Platão, Plotino ou Porfírio.
32
cultura ocidental. E, finalmente, a narrativa bíblica sobre a criação do homem, do livro de
Gênesis, no qual se inspira para fundamentar sua antropologia sobre o homem “imagem de
Deus” (Imago Dei) que é tratado especialmente por Agostinho e constitui o “paradigma ideal
para julgar a verdadeira natureza e destinação do homem" (Vaz, 2009, v. I, p. 56). Da
confluência destes aportes brotará, como em nova fonte, as três diretrizes fundamentais da
antropologia agostiniana: o homem como ser uno; o homem como ser itinerante; e o homem
como ser-para-Deus.
Um autor importante no desenvolvimento do conceito de pessoa foi o filósofo romano
Boécio (480-425 D.C.), para quem a pessoa é uma substância individual de natureza racional
(Persona est naturae rationale individua substantia), noção que se tornou basilar para o
pensamento medieval. Em seu pensamento, o termo personna coincidiria com o termo grego
hipóstases. A pessoa seria uma substância existente por direito próprio e incomunicável (sui
juris), sendo sua nota distintiva sua “propriedade” (Ferrater Mora, 2004, p. 2263). Em Tomás
de Aquino encontramos a noção de hipóstase, porém como substâncias individualizadas
racionais, que possuem autodomínio e autonomia nos seus atos.
O curso do pensamento cristão leva à passagem da noção de pessoa como ser “em-si”
para a ideia de pessoa em sua “relação” e em seu “originar-se”. Encontramos em Ricardo de
São Vítor a importante distinção entre o sistere da natureza e o ex-sistere da pessoa, ou seja, o
seu “originar-se de” (Ferrater Mora, 2004, p. 2263). Esta percepção se tornará de importância
capital para o futuro pensamento existencial, no âmbito do qual se encontra o pensamento de
Viktor Frankl.
Prosseguindo em nosso roteiro de reconhecimento da formação da noção de pessoa na
história do pensamento filosófico, encontramos em Leibniz a compreensão de que o ser
pensante reconhece a si mesmo em diferentes tempos e lugares, assim como em Kant a de
personalidade moral como “liberdade de um ser racional sob leis morais”. Em Fichte os
elementos éticos da noção de pessoa proposta por Kant se apresentam novamente como
metafísicos, através da visão de pessoa como centro racional e centro metafísico que se
autoconstitui, além de fonte das atividades volitivas. O conceito de pessoa passa por
mudanças quanto à sua estrutura (abandona-se a concepção substancialista) e quanto às suas
atividades (incluindo, além das racionais, as volitivas e emocionais). Segundo Ferrater Mora,
isto visaria evitar o impessoalismo, em virtude da tendência à identificação da substância com
a coisa, assim como a da razão com sua universalidade. Nesta linha, Max Scheler define a
pessoa como a unidade dos atos espirituais (ou dos “atos intencionais superiores”). Em sua
33
ética material dos valores, Scheler confere importância fundamental à transcendência como
ultrapassagem dos limites da subjetividade. Esta transcendência se dá em direção a várias
coisas, que podem ser valores, a humanidade ou um “Absoluto”. É ainda Ferrater Mora (2004,
p. 2264) que chama a atenção para o fato de que pensamento contemporâneo oscila entre, por
um lado, a transcendência e abertura; e, por outro lado, a autenticidade e o ser si mesmo. Em
nossa percepção, ambas as posturas podem coexistir no mesmo pensamento, sem
necessariamente se negarem.
O pensamento frankliano revela marcas de vários desses momentos do desenvolvimento
histórico da noção de pessoa, embora - na nossa percepção – seja a antropologia filosófica e
teológica de Agostinho que marca mais claramente a antropologia frankliana. Esta não perde
seu caráter basilar pelo fato de que, em alguns pressupostos, esta influência só seja percebida
se considerada em conjunto com o espectro de influência acolhidas por Frankl, com a
atualidade da sua linguagem e com o caráter contemporâneo do seu pensamento. As suas Dez
teses sobre a pessoa (apresentadas em uma conferência introdutória a um evento das Escolas
Superiores de Salzburg) resumem seus postulados antropológicos, como examinaremos a
seguir.
1 A pessoa é uma unidade: A pessoa é una e indivisível (in-dividuum).
2 A pessoa é uma totalidade: A pessoa é total e insomável (in-summabile).
3 Cada pessoa é um ser absolutamente novo: Cada pessoa vem à existência como um novo
ser, herdando de seus pais apenas a genética psicofísica.
4 A pessoa é espiritual: A pessoa possui natureza espiritual, em contraposição heurística e
facultativa com o organismo psicofísico herdado.
5 A pessoa é existencial: não é fática, mas facultativa. Existe de acordo com sua própria
possibilidade, para a qual e contra a qual pode se decidir. E, mais que livre, é responsável.
6 A pessoa é egóica: um eu que não está sob a instintividade de um id.
7 A pessoa consuma o homem: em co-existência com o psicofísico, a pessoa funda o
humano. Não é unidade-totalidade em si mesma, mas alcança unidade físico-psíquicoespiritual, representada pela criatura “homem”. O homem é o ponto de interseção entre os três
níveis de existência.
34
8 A pessoa é dinâmica: justamente pela capacidade de distanciar-se e separar-se do
psicofísico é que se manifesta o espiritual. Ex-sistir significa sair de si mesmo, podendo a
pessoa espiritual se autodistanciar e se autoconfrontar.
9 O animal não é correlato à pessoa: não é pessoa uma vez que não pode se autotranscender
e se autoenfrentar. Possui apenas um meio-ambiente e não um mundo próprio, como o mundo
humano, que pressupõe sentido e valores.
10 A pessoa é autocompreensiva: compreende a si mesma apenas pela transcendência, cujo
apelo ressoa na consciência de todo homem. (Frankl, 2008b, p. 106-114)
Frankl afirma que essa unidade-totalidade do ser humano só se compreende
“ontologicamente” (2003c, p. 17). Acrescenta que compreender-se a partir da transcendência
e crer na existência de um sentido é a “espiritualidade” compatível com a Logoterapia, uma
espiritualidade que não extrapola a interrogação pelo sentido. Frankl distingue claramente o
campo religioso como o da fé, da crença naquilo que o homem não pode alcançar, pois se
encontram, além do espaço e do tempo, conforme se sabe desde Kant (Frankl, 2008b).
A antropologia frankliana - para a qual tem sido amplamente requerida a primazia do
espiritual como sua principal característica – requer, na verdade, a unidade do homem como o
eixo fundante da análise existencial, segundo defende Benigno Freire (2007). Este autor
afirma que isto se deve a “uma análise histórica da questão ou, ocasionalmente, a um
excessivo zelo pedagógico de algum tratadista frankliano”. Explica que uma consideração
histórica mostra a Logoterapia em “férrea oposição” aos reducionismos dominantes na época
de Frankl (especialmente ao determinismo e ao psicologismo). O motivo da ênfase conferida
por Frankl à dimensão espiritual seria principalmente para evitar o grosseiro psicologismo
vigente, não para afirmar que o homem é espiritual (o que seria um espiritualismo). Pelo
contrário, Frankl afirmou reiteradamente que o ser humano tem um corpo, um psiquismo e um
espírito, mas é a unidade que totaliza essas dimensões. Frankl haveria buscado um centro
originário e originante para além da dimensão espiritual, o qual, tomado no mesmo sentido
que Scheler, esse “centro dos atos espirituais” do homem seria a pessoa. A noção de pessoa
em Frankl seria, segundo Benigno, a referência para a compreensão da antropologia expressa
na análise existencial. As dez teses acima descritas seriam a síntese desta noção, através das
dez características destacadas (Freire, 2007, p. 110).
35
3.4 A ontologia dimensional
A ontologia dimensional frankliana é um recurso por ele desenvolvido visando tornar
mais compreensível sua visão acerca do homem. Este objetivo imediato se alinha a uma
determinação mais remota em seu pensamento: a intenção de demonstrar a grandeza da
condição humana, em franca oposição aos reducionismos que medravam em praticamente
todos as esferas do conhecimento na sua época. As áreas médica e psicoterápica, por lidar
diretamente com a dor humana, se constituía o campo onde mais direta e dramaticamente se
refletiam estes reducionismos. A história de vida de Frankl mostra que este buscava meios
para construir uma argumentação consistente e persuasiva, a fim de enfrentar a dura realidade
da racionalidade moderna, que tem encontrado no meio acadêmico uma verdadeira usina
fomentadora de seus potenciais.
Ao iniciar o texto denominado Imago hominis, inserido em seu primeiro livro Ärtzliche
Seelsorge, refere-se aos esforços de Nicolai Hartmann e de Max Scheler para “salvar o
humano, em vista das aspirações reducionistas a uma ciência pluralista”. Hartmann e Scheler,
respectivamente, através de sua ontologia e de sua antropologia, representaram espacialmente
as dimensões corporal, anímica e espiritual do homem: Hartmann trataria dos estratos do ser e
Scheler das camadas em torno do eixo espiritual e central da pessoa. Preocupado com o que
via como a fragmentação do humano - como um vaso partido “em cacos” -, Frankl passou a
perguntar pela unidade do homem e a defini-lo como “unidade apesar da pluralidade”.
Considera a existência humana como a coexistência da unidade antropológica com as
diferenças ontológicas de que o homem participa, identificando-a com a unitas multiplex da
filosofia tomista. Tomando como modelo o método denominado ethica ordine geometrico
demonstrata, de Spinoza – e sem se identificar propriamente com sua teoria -, Frankl idealiza
uma imago hominis ordine geometrico demonstrata, na qual utilizaria as analogias
geométricas para transmitir sua ideia de homem (Frankl, 2003b, p. 42).
36
3.5 As leis da ontologia dimensional
Embora a concepção do humano em Frankl já se esboçasse claramente no seu Ärtzliche
Seelsorge, não é seguro afirmar que tais compreensões filosóficas são contemporâneas da
primeira edição, pois o autor menciona - no prólogo à sétima edição da obra - vários
complementos que lhe foram intercalados. Conforme descrevemos acima, é no capítulo
denominado Imago hominis 7 que Frankl lança os pressupostos de sua ontologia dimensional,
apresentando o homem como unidade apesar da pluralidade (Frankl, 2003b, p. 42-47). As
ideias franklianas se expressam através de duas leis, a saber:
Primeira lei da ontologia dimensional frankliana: “se tomarmos uma única coisa numa dada
dimensão e a projetamos em dimensões inferiores àquela que lhe é própria, a coisa em
questão se representa de tal modo que as figuras obtidas se opõem umas às outras”.
Segunda lei da ontologia dimensional frankliana: “se tomarmos várias coisas e a projetamos
em uma única dimensão inferior à que lhe é própria, as coisas se representam de maneira que
não se podem deduzir as suas formas originais a partir do que aparentam” 8.
A primeira lei se destina a explicar que a projeção da dimensão especificamente humana
nos planos que lhes são inferiores, apresentará resultados diferentes, ou seja, no plano
biológico resultará em fenômenos somáticos e no plano psicológico, em fenômenos psíquicos.
Explica Frankl que a unidade dos diversos modos de ser do homem jamais será encontrada
“nos planos em que projetamos o homem”. Citando a “coincidentia oppositorum no sentido
de Nicolau Cusano”, Frankl afirma que ligação dos opostos como soma e psyché somente
serão encontradas na “dimensão imediatamente mais elevada, na dimensão do
especificamente humano” (2003b, p. 44). O filósofo neoplatônico Nicolau de Cusa usou
exemplos geométricos para aludir à coincidência dos opostos no infinito, como se observa no
seu método denominado “douta ignorância” (docta ignorantia), pelo qual usa a “valência
7
O capítulo Imago hominis está entre os aditamentos à obra, o que é esclarecido por Frankl no Prefácio à 7ª
edição (FRANKL, 2003b; p XI-XII).
8
O segundo enunciado é apresentado por Frankl através de palavras dialogais, como se estivesse ministrando
uma aula. O formato acima, ordenado para fins didáticos e à maneira do primeiro, é uma proposta da autora, que
exprime o conteúdo da segunda lei nos moldes adotados por Frankl no enunciado da primeira lei.
37
analógico-alusiva” dos recursos matemáticos para pesquisar, por aproximação, as coisas
finitas e as coisas infinitas, segundo Reale e Antisseri (2005). Na obra de Nicolau de Cusa, o
Absoluto, no qual todas as coisas coincidem, é Deus. Sendo tão “absolutamente máximo”,
nele não pode haver nenhuma oposição, o que faz com que nele coincidam “todas as
distinções que nas criaturas se encontram ao invés opostas entre si” (Reale e Antiseri, 2005, v.
3, p. 33).
Ora, a medição das oposições pelo método matemático permite que o “divino” seja
tomado como o “infinito”, desvinculando seu emprego da conotação teológica implícita à
alusão ao Absoluto. Segundo a nossa percepção, a escolha destes métodos pode significar
duas interessantes intenções da parte de Viktor Frankl: primeiramente, que as analogias
geométricas são o fruto de uma busca por métodos filosóficos válidos para representar o
espiritual no âmbito científico; depois, esta escolha conserva em aberto - a depender da
convicção pessoal de quem interpreta - a possibilidade de recuperar a ideia do espiritual no
sentido teísta, ou seja, recuperar a ideia de Deus a partir da ideia de infinito. Isto significa não
apenas que Frankl teria sido duplamente bem sucedido na escolha deste método, mas também
que usou de uma espécie de “atenção” ao respeitar as regras do campo científico. Essa
cordialidade, no entanto, não o impediram de afirmar que a ciência tem o direito e o dever de
“pôr entre parênteses a multidimensionalidade da realidade” (Frankl, 2003b, p. 46), mas deve
ter a consciência de que sua realidade unidimensional é fictícia, ou seja, não corresponde a
toda a realidade.
A segunda lei da ontologia dimensional é ilustrada por Frankl através dos casos de
Fiódor Dostoiewski (o conhecido escritor russo, portador de epilepsia) e de Bernadette
Soubirous (a mística francesa, santa Bernadette de Lourdes). Sob o ponto de vista estritamente
psiquiátrico, estes casos seriam patologizados: ele, um simples portador de epilepsia; ela, uma
paciente que sofria de alucinações. Uma vez que a projeção de diferentes figuras
tridimensionais em um plano bidimensional pode refletir uma só imagem, os dois casos
apareceriam apenas como doenças, já que “o que são para, além disso, não se reflete no plano
psiquiátrico” (Frankl, 2003b, p. 47). A psiquiatria seria insuficiente para acolher as criações e
vivências do espírito humano, uma vez que na dimensão do psicofísico nada mais caberia
senão as referências às engrenagens de um corpo e de uma mente disfuncionais.
Frankl ainda esclarece que sua pretensão não é resolver o problema psicofísico, mas
aclará-lo e mostrar a causa da sua insolubilidade. Afirma que a clínica necessita de um olhar
para o logos escondido no pathos, ou seja, de uma “dia-gnose", uma vez que a etiologia das
38
afecções é multidimensional, mas a sintomatologia que afeta o psicofísico, é unidimensional e
equívoca (Frankl, 2003b, p. 47).
A ontologia dimensional de Viktor Frankl (1995) é por ele resumida como um tipo de
pensamento dimensional “que concebe o fisiológico, o psicológico e o noológico como
dimensões do homem-unitário total”. Considerou que sua representação superava aquelas
baseadas em graus ou estratos, pois as três dimensões referidas precisam ser separadas do
ponto de vista ontológico - como “três momentos fundamentalmente diferentes” -, ao tempo
que - por se pertencerem fundamentalmente umas às outras - são inseparáveis do ponto de
vista antropológico (Frankl, 1995, p. 67). As representações gráficas da ontologia dimensional
frankliana e das suas leis podem ser vistas graficamente representadas no final deste trabalho
de dissertação, como anexos, em seus elementos pós-textuais.
39
4 REFLEXÕES CONCLUSIVAS
O pensamento de Viktor Frankl sobre o humano se mostra primordialmente voltado para
seus objetivos de cuidado clínico. Contudo, considerado no todo da sua obra, ganha uma
amplitude teórica que possibilita repercussões tanto em outras áreas do conhecimento quanto
em diversas outras esferas da vida e das práticas sociais. Pensar o homem na complexa
riqueza da sua realidade, por meios sensíveis à fragilidade e à grandeza da sua condição, pode
significar inusitadas aberturas para muitos setores que permanecem atrelados aos
aprisionamentos ideológicos ou estruturais do mundo de hoje.
A hegemonia da concepção naturalista do homem alcançou, no âmbito do cuidado
clínico moderno, uma magnitude capaz de dificultar - ou mesmo impossibilitar - a abordagem
de temas relativos à espiritualidade no contexto das ciências. Frankl propôs uma delimitação
da fronteira entre a Psicoterapia e a Religião para resolver essa problemática tematização,
deixando claro que “a finalidade da Psicoterapia é a cura psíquica ou mental (Seelische
Heilung)”, enquanto que a da Religião é “a salvação da alma (Seelenheil)”, finalidades
manifestamente distintas. Contudo, ainda que o sacerdote não se ocupe diretamente da
terapêutica, seu trabalho pode ter eficácia psico-higiênicas e psicoterapêutica “per effectum –
não per intentionem!”, em virtude da “segurança que significa estar ancorado na
transcendência, no Absoluto” (Frankl, 2003a, p. 102). O trabalho do psicoterapeuta,
analogamente, pode beneficiar o paciente como efeito secundário, pelo acesso ao manancial
da sua fé originária, inconscientemente reprimida. Embora esta não seja sua intenção
fundamental, isto permite que o profissional da saúde possa acolher e valorizar a religiosidade
que o enfermo traz à relação de cuidado, deixando claro, se ambos professam a mesma fé, que
se trata de uma coincidência de ordem pessoal, não fazendo parte da sua tarefa enquanto
médico ou psicoterapeuta.
A espiritualidade é, por sua vez, considerada por Frankl como uma dimensão do
humano. Diferindo da religiosidade - que é um fenômeno cultural e circunstancial -, a
espiritualidade é uma dimensão constitutiva do homem e, por excelência, aquela que
fundamenta sua humanidade. Isto indica que a espiritualidade, livre de uma vinculação direta
à religião, corresponde àquela dimensão sem a qual não se pode compreender
verdadeiramente o humano. A própria unidade do humano, no dizer de Frankl (1995, p. 66),
começaria “precisamente ali – para além da unidade corporal psíquica – onde se acrescenta o
espiritual como terceira realidade: tercium datur”. Este “terceiro que é dado” - ao ser
40
considerado nas disciplinas relativas ao homem -, significa também um descerrar de novos
horizontes para a ciência. Tanto as ciências quanto as clínicas médicas e psicoterápicas
poderão, desta forma, divisar “o homem em sua talidade” (Frankl, 1995, p. 68), ou seja, tal
como é na inteireza da sua humanidade.
A plenitude humana de que fala Viktor Frankl se refere a um “ser ele mesmo em
plenitude”, o que a sua análise existencial qualifica como “existência” enquanto ser
facultativo, ou seja, o modo de ser específico do homem. Esta perspectiva o livra da
concepção niilista de um “homunculus moderno” que, como um autômato ou uma marionete,
seria “produto de impulsos, hereditariedade e meio ambiente” (Frankl, 1995, p. 62). Opor-se a
estes fatores condicionantes, entanto, nem sempre é necessário, como explica Frankl:
“O antagonismo psiconoético, em contraposição ao inevitável paralelismo psicofísico,
é uma antagonismo facultativo. De acordo com isso, a força de obstinação do espírito é uma
simples possibilidade e não uma necessidade... Em hipótese alguma o homem deve sempre
fazer uso da obstinação do espírito... Não deve porfiar sempre com os seus instintos, com a
sua herança e com o seu meio ambiente, pelo simples fato de que precisa deles” (Frankl,
1995, p. 65).
Apesar do caráter obrigatório do seu paralelismo psicofísico, a possibilidade de superar
seus condicionamentos se deve à capacidade que o homem possui de poder “desapegar-se do
psicofísico e situar-se a uma distância fecunda” (Frankl 2008b, p. 113). A sua liberdade lhe
faculta enfrentar-se a si mesmo, o que significa poder reagir às forças que tendem a
determiná-lo e, no âmbito clínico, poder enfrentar a enfermidade “a partir da sua humanidade”
(Frankl, 2008b, p. 152).
A autorrealização do ser humano, contudo, não deve ser uma meta, uma vez que só é
conquistada como plenitude de sentido no mundo e não dentro de si mesmo. Para Frankl, a
autorrealização “escapa da meta eleita, apresentando-se, contudo, como um efeito colateral”,
que é definido por ele como autotranscendência da existência humana. Nas suas palavras, “o
homem aponta, por cima de si mesmo, para algo que não é ele mesmo, para algo ou alguém,
para um sentido cuja plenitude há que alcançar ou para um semelhante com quem se
encontrar” (Frankl, 2008b, p. 21). Assim, o homem só completa sua condição na medida em
que, esquecendo-se de si, entrega-se a algo fora de si mesmo pela autotranscendência. Frankl
usa o olho como metáfora, uma vez que, para realizar sua tarefa, não pode ver a si mesmo.
Critica a ideia de uma “auto-realização do homem”, referindo-se a “tagarelices psicológicopseudo-humanistas” que levariam a uma mistificação, uma vez que a auto-realização não
41
pode ser intencional e diretamente perseguida, pois “ela se dá sempre e apenas como um
efeito secundário não intencionado da autotranscendência” (Frankl, 1995, p. 251). No
pensamento frankliano, a autotranscendência não se dá em direção a outra dimensão de
realidade, mas - pelo uso da liberdade -, é uma prerrogativa própria do humano e, portanto,
espiritual.
O âmbito científico da saúde, por seu biologismo estrito, não possui recursos para a
compreensão deste modo de ser do homem, pois a autotranscendência é um fenômeno
especificamente humano que escapa aos esforços para reduzi-la a fenômenos sub-humanos
(Frankl, 1987). É necessário à ciência, para alcançar a integralidade do cuidado clínico, abrirse a uma visão igualmente integral do humano, capaz de abarcar sua natureza complexa e
multidimensional. É na tri-unidade que o homem encontra sua “pátria”, declara Frankl (1995,
p. 72). A ruptura com a estreiteza dos dogmas científicos é, na nossa compreensão, tão
necessária quanto a libertação do confinamento aos dogmas religiosos. Reiterando nossa
visão, Oscar Pfister afirma, na sua famosa carta a Freud, que “a ciência carece de capacidade
para avaliar grandezas estéticas ou éticas” 9 (Pfister; in Wondracek et al., 2003, p.49).
A inclusão da plena humanidade do homem permitirá às ciências da saúde um cuidado
mais abrangente, o que pressupõe pontes interdisciplinares que permitam seu ingresso no
mundo de sentido e valores. Abrir-se-á para a clínica a possibilidade de um acolhimento
integral. A perspectiva frankliana, portanto, engendra meios teórico-práticos para um cuidado
clínico capaz de responder ao vazio de sentido do mundo contemporâneo e fazer face à
estrutura trágica da existência, sem negá-la. Isto significa ajudar o homem de hoje a enfrentar
sua vulnerabilidade perante a adversidade – seja na forma de dor, angústia, violência,
enfermidade ou morte - a partir de uma dignidade ética que emerge da sua dimensão mais
própria, na qual permanece íntegra a sua humanitas.
9
A tradução brasileira do texto A ilusão de um futuro - a memorável e cordial resposta de Pfister a Freud -, está
contida no livro O Futuro e a Ilusão, organizado por Karen Wondracek (Vozes, 2003).
42
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45
Artigo II
A CLÍNICA INTEGRAL
NO PARADIGMA FRANKLIANO DO CUIDADO
Calheiros, M. E. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica
Universidade Católica de Pernambuco. Recife, PE.
[email protected]
46
Resumo
A compreensão da perspectiva de Viktor Frankl sobre o cuidado clínico foi o objetivo geral
deste artigo. Os objetivos específicos foram estudar a Logoterapia e a Análise Existencial
propostas por Frankl; compreender a inter-relação entre estas modalidades clínicas e os
profissionais de saúde; e, ademais, pesquisar a abrangência de tais práticas. O trabalho adotou
a metodologia qualitativa em abordagem fenomenológica existencial, envolvendo uma
pesquisa bibliográfica das obras de Frankl concernentes à temática, assim como textos de
Martin Heidegger sobre o “cuidado” e de Hans Jonas sobre a “responsabilidade”. Tais estudos
revelam que as práticas clínicas propostas por Viktor Frankl constituem uma nova e original
concepção de cuidado clínico que tem a inclusão da espiritualidade humana como sua pedra
angular. Da mesma forma, apresenta a dimensão noética como condição de possibilidade para
o cuidado integral e, consequentemente, a mediação pelo Logos como fundamento da
autêntica relação terapêutica.
Palavras-chave: Cuidado integral; Logoterapia; Análise Existencial; Dimensão noética;
Logos.
47
Abstracts
The general intention of this article was to understand Viktor Frankl’s perspective of clinical
care. The specific objectives were to study the Logotherapy and Existential Analysis proposed
by Frankl; understand the interrelationship between each of these clinical modalities and
health professionals; and, moreover, research the comprehensiveness of such practices. The
work had adopted a qualitative methodology in existential phenomenological approach,
involving bibliographical research into Frankl’s writings on this theme, as well as works of
Martin Heidegger on “care” and Hans Jonas on “responsibility”. These studies reveal that
clinical practices proposed by Viktor Frankl constitute a new and original conception of
clinical care that has the inclusion of human spirituality as its cornerstone. Likewise, present
the noetic dimension as a condition of possibility for comprehensive clinical care and,
therefore, the mediation by the Logos as the basis of the authentic therapeutic relationship.
Keywords: Comprehensive care; Logotherapy; Existential Analysis; Noetic dimension;
Logos.
48
APRESENTAÇÃO
O cuidado é, reconhecidamente, um dos temas que possuem permanente relevância nos
campos de conhecimento relativos ao homem. A temática do cuidado, contudo, ganha aguda
importância nas épocas em que os elementos do mundo humano são, de alguma forma,
abalados. As transformações em curso na época contemporânea - que não ter seu status epocal
razoavelmente definido -, não fundamentam as certezas demandadas pela existência humana.
A reagudização da angústia - intrínseca ao existir do homem - clama, nos dias atuais, pelo
discurso acerca do cuidar. E sabemos que este discurso se alça tão mais proeminente quanto
mais intensos sejam os paroxismos de um tempo e seu grau de imprevisibilidade.
A modernidade se caracteriza, segundo Zigmunt Bauman (1999, p. 9,10), por um
projeto estruturante do mundo com base em sua sistemática classificação, o que possibilita
torná-lo ordenado e previsível, próprio para ser habitado pelo homem. É em virtude da
angústia intrínseca à desordem e à imprevisibilidade, que a modernidade busca uma crescente
classificação de toda a realidade, operante através dos atos nomeadores que separam as coisas
do mundo em grupos que se excluem mutuamente. Por sua incapacidade de ordenação
absoluta, ou seja, pela impossibilidade de ordenar uma realidade infinita e descontínua, este
esforço ordenador tem como subproduto a ambivalência. O ato ordenador é violento ao cindir
a realidade por exclusão e necessita de “certa dose de coerção” para eliminar as discrepâncias
criadas pela sua própria ação (Bauman, 1999, p. 11).
Os tempos modernos são, para Bauman, “uma era de guerra particularmente dolorosa e
implacável contra a ambivalência”. Este autor esclarece que a angústia da contínua
obsolescência do tempo presente faz com que a marcha compulsiva da modernidade se dê
numa agitação “sisífica” que dá a impressão de um progresso histórico, no qual governantes e
cientistas estão igualmente empenhados. Lembrando Walter Benjamin, reafirma que a
tormenta do progresso impulsiona irresistivelmente os “caminhantes”, deixando para trás os
montes de detritos de uma voraz trajetória histórica na qual os horrores do passado não
garantem uma felicidade futura para a humanidade (Bauman, 1999, p. 18,19).
A primeira metade do século XX, marcado pelas duas Grandes Guerras, foi um período
em que as catástrofes causadas pela própria civilização humana levaram ao questionamento
radical dos fundamentos da própria racionalidade moderna. A perplexidade diante do
fenômeno da destruição do humano pelo próprio humano se daria em escala jamais
49
experimentada e eclodiria exatamente no continente onde a civilização ocidental alcançava
sua condição apical. Temia-se pelo “humano”; perguntava-se pela “razão”; respondia-se com
a perplexidade e o “absurdo”. A chamada crise da humanidade e da racionalidade europeias
eriçava os espíritos nas direções mais diversas.
Poucos puderam, naquele momento histórico, encontrar equilíbrio entre um otimismo
pueril e do mais sombrio niilismo. Estre estes, o filósofo Edmund Husserl, ao afirmar que,
mesmo considerando a crise europeia fundada sobre uma racionalidade aberrante, não se está
autorizado a considerar toda racionalidade má ou insignificante por si (Husserl, 2008).
Embora prejudicado na carreira acadêmica pela ascendência judaica, Husserl não vivenciou a
apoteose nazista. Faleceu em 1938, pouco antes da Segunda Guerra e não podemos saber se
houvesse experimentado o deflagrar da catástrofe se deixaria aniquilar pelo “fogo
consumptivo do desespero” ou permaneceria acreditando na ressurreição da “Fénix de uma
nova interioridade de vida e de uma nova espiritualidade” (Husserl, 2008, p. 77). 10.
Pode-se, seguramente, fazer esta afirmação a respeito de outro autor contemporâneo de
Husserl que, provando da violência dos campos de concentração, vivenciou um renascimento
a partir da mais absoluta destituição. Viktor Emil Frankl, médico e psicoterapeuta, ergueu-se
deste fogo consumptivo do desespero exatamente por crer no soerguimento do humano a
partir do espiritual. A sua sobrevivência à barbárie Frankl atribuiu à força de obstinação do
seu espírito, vindo a desenvolver uma extensa obra sobre o cuidado, de caráter fronteiriço
entre as ciências médicas e a filosofia existencial fenomenológica de seu tempo.
Paradoxalmente, aquele que experimentou o extremo desnudamento em relação aos mais
elementares direitos do homem - o que poderíamos chamar de um “radical anti-cuidado” -,
respondeu à vida com uma igualmente radical dedicação à reflexão sistemática sobre o cuidar
e às formas práticas de exercê-lo, as quais serão enfocadas a seguir.
10
Reproduzimos o trecho final do texto husserliano A crise da Humanidade Europeia e a Filosofia, em tradução
portuguesa de Pedro M. S. Alves, aprovada pelos Arquivos Husserl de Louvain-Bélgica:
A crise da existência europeia tem apenas duas saídas: a decadência da Europa no afastamento perante o
seu próprio sentido racional de vida, a queda na fobia ao espírito e na barbárie, ou então o renascimento da
Europa a partir do espírito da Filosofia, por meio de um heroísmo da razão que supere definitivamente o
naturalismo. O maior perigo da Europa é o cansaço. Se lutarmos contra este perigo de todos os perigos como
“bons europeus”, com aquela valentia que não se rende nem diante de uma luta infinita, então, do incêndio
aniquilador da incredulidade, do fogo consumptivo do desespero a respeito da missão humana do Ocidente, das
cinzas do cansaço enorme, ressuscitará a Fénix de uma nova interioridade de vida e de uma nova
espiritualidade, como penhor de um grande e longínquo futuro para o Homem – porque só o espírito é imortal
(HUSSERL, 2006, p. 51). Disponível em 20/11/2011, no site:
http://www.lusosofia.net/textos/husserl_edmund_crise_da_humanidade_europeia_filosofia.pdf
50
1 CUIDAR A PARTIR DO ESPIRITUAL
À percepção de que o cuidado que dispensava aos seus pacientes estava restrito às
dimensões física e psíquica, Frankl passou a refletir metodicamente sobre a possibilidade de
“complementar” a medicina e a psicoterapia com uma forma de cuidado médico espiritual por
ele denominado Ärztliche Seelsorge, expressão com a qual intitulou seu primeiro livro.
Sentia-se respaldado pela concepção de espiritualidade como dimensão antropológica e por
definir seu trabalho como um cuidado complementar, destinado a ampliar o campo de atuação
da medicina e esgotar suas possibilidades de ação clínica. Admite, contudo, que sua Análise
existencial não seria apenas um complemento, mas o fundamento imprescindível da
psicoterapia (Frankl, 1995, p. 61). Sem pretender competir com o trabalho sacerdotal de
assistência espiritual, Frankl buscava meios para capacitar o médico – de todas as
especialidades – para desenvolver uma relação eficaz de ajuda ao homem que padecia na
impotente diante das situações de extremo sofrimento, como no caso não rever seu paciente
senão na mesa de autópsia, depois do suicídio (Frankl, 1995).
É esta percepção de completude humana - que acontece a partir da inclusão da
dimensão espiritual -, que se busca compreender na obra de Frankl. Simultaneamente, estarse-á buscando os fundamentos da compreensão frankliana de cuidado integral, uma vez que é
a partir da noção do humano que o cuidado é concebido para este humano. Esta integralidade
adquire uma configuração própria no horizonte frankliano, como se pode apreciar em sua
afirmação de que a unidade psicossomática do homem não chega a constituir sua totalidade,
pois esta se consuma pela inclusão do noético. A partir da compreensão da relevância e da
atualidade desta busca por recursos que venham ampliar a abordagem à temática do cuidado,
este trabalho propõe um percurso metódico que siga os próprios caminhos intelectuais de
Frankl, através da sua vida e da sua obra. Para José Benigno Freire, professor de psicologia da
Universidade de Navarra (ES), o insólito itinerário de Frankl desde a psicanálise até requerer
a dimensão espiritual como autenticamente humana faz supor uma aventura intelectual, que
descreve como fascinante e inspiradora (Freire, 2007).
Esta aventura parte da observação dos primeiros registros, na própria biografia de
Frankl, sobre sua preocupação a respeito do sofrimento humano. Como um dos líderes da
juventude estudantil vienense, Viktor Frankl exerceu diversas atividades que já sinalizavam
51
para a vocação que viria a movê-lo durante toda a sua existência: cuidar do humano. Seja
organizando centros de apoio clínico para os jovens depressivos, seja dispensando cuidados a
pacientes suicidas, Frankl mantinha um contínuo interesse pelas condições de sofrimento do
homem do seu tempo, buscando formas práticas de acolher integralmente à sua demanda por
cuidado. Aos vinte e um anos apresentou uma palestra sobre o “sentido da vida” em um
congresso da juventude socialista, demonstrando que seu interesse precoce para o pensamento
filosófico tinha o claro objetivo de buscar subsídios teóricos e metodológicos para o exercício
deste cuidado integral.
O interesse de Frankl pela filosofia, portanto, antecedeu as suas vivências como
prisioneiro de guerra. O tema do cuidado no pensamento de Viktor Frankl foi sempre tratado
simultaneamente como questão prática e teórica, facetas que se enriqueciam mutuamente à
medida que se multiplicavam suas experiências como cuidador e o seu interesse intelectual
esbordava o campo das ciências médicas. A experiência vivida nos guetos e campos de
concentração veio a se transformar em oportunidade para comprovar existencialmente o seu
pensamento. Esta experiência, que Frankl afirmou ser a “validação existencial” das suas
teorias (Frankl, 2009, p. 9), viria a ser por ele denominada de Experimentum Crucis. É
possível que esteja aí incluso o sentido de uma Via Crucis em alusão ao sofrimento então
vivenciado, mas nossas pesquisas chamaram a atenção para o fato de que a expressão
Experimentum Crucis tem um histórico em epistemologia e significa, metodologicamente, um
experimento crucial de comprovação, o qual torna válida uma teoria e refuta outras hipóteses
concorrentes. No caso de Frankl, a hipótese “existencialmente validada” foi a que afirma
haver uma dimensão própria do humano que é capaz de dominância sobre a factualidade e a
contingência das dimensões física e psíquica. A esta dimensão antropológica, Frankl
denomina “dimensão noética” (fazendo-a derivar de noûs, termo grego que significa ‘razão’,
‘espírito’), pela qual o homem pode resistir à adversidade extrema, apoiado no “poder de
resistência do espírito” (Frankl, 2003, p. 41).
Os fundamentos filosóficos da concepção de cuidado em Viktor Frankl possibilitaram a
elaboração de sua analítica existencial. Ao reassumir suas atividades no pós-guerra, Frankl
iniciou seu doutoramento em Filosofia (1948-49), em cuja tese, Der Unbewusste Gott (O
Deus Inconsciente) 11, reivindicava um “inconsciente espiritual” para o ser humano. A sua
teoria se configurou como uma Analítica Existencial inteiramente implicada na prática clínica
que chamou de Logoterapia, pelo uso do termo grego logos.
11
O livro correspondente foi traduzido no Brasil como A Presença Ignorada de Deus.
52
O termo logos, por ser polissêmico, possui uma multiplicidade de significados que parte
do seu étimo fundamental -  como “linguagem, palavra” – e adquire conotações várias
de acordo com as perspectivas e os contextos que atravessa. Derivando da forma verbal
 (que se refere a “falar”, “dizer”, “contar”), ora significando “verbo”, “razão”,
“inteligência”; ora designando “lei”, “princípio”, “norma”, segundo esclarece Ferrater Mora
(2004, p. 1794). Para este autor, o sentido primário de seria "recolher" (a “razão”, a
“significação”, o “dito”), diante do que Martin Heidegger teria proposto “pôr”, “estender
diante”, “apresentar depois de ter recolhido [e de ter-se recolhido]”, sugerindo uma “colheita”
resultante de uma “seleção” (Ferrater Mora, 2004, p. 1794).
Frankl refere que logos possui, na sua obra, os significados de “sentido” e de “espírito”.
Estas duas acepções seriam intercambiáveis no contexto da logoterapia, pois afirma que “[...]
quando se fala de ‘sentido’, ‘logos’ significa espírito... Aqui ‘logos’ significa o humano do
humano e, ainda mais, o próprio sentido de ser humano” (Frankl, 2007b, p. 23). Por um lado
Frankl lembra que a tradução literal do termo “logoterapia” seria a de “terapêutica mediante o
logos, mediante o sentido” (Frankl, 1998, p. 17). Ressalta, contudo, que a missão que ele
atribui à logoterapia é a de ser uma “psicoterapia a partir do espírito” (Frankl, 2003b, p. 34).
Portanto, a Logoterapia seria para Frankl, no seu sentido primário, uma terapia mediada pelo
“sentido” e a partir do “espírito”.
A analítica existencial frankliana possibilitou a concepção de um cuidado não apenas
voltado para as patologias físicas e psíquicas do homem, mas inclusivo em relação ao seu
sofrimento noético. Desta forma, o cuidado médico poderia acolher a dor de natureza
espiritual que, sendo constitutiva do humano, está presente em todas as pessoas, adoecidas ou
não. Para viabilizar seus intentos, Frankl elaborou o que chamou de “elementos da Análise
Existencial e da Logoterapia”, ou seja, os princípios que constituem o corpus teórico que
daria sustentação à sua proposta clínica. Segundo Frankl (1995, p. 60), a Análise Existencial e
a Logoterapia que engendrou se resumem em cinco aspectos: Análise Existencial como
explicação da existência pessoal; Análise Existencial como terapia de neuroses coletivas;
Análise Existencial como Cura Médica de Almas; Logoterapia como terapia específica de
neuroses noógenas; e, finalmente, Logoterapia como terapia inespecífica (Frankl, 1995, p.
61). Passaremos a estudar estes aspectos em seus fundamentos e especificidades, o que
corresponde aos objetivos específicos deste trabalho.
53
2 AS ESPECIFICIDADES DAS MODALIDADES DE CUIDADO EM FRANKL
As especificidades das formas de cuidado clínico desenvolvidas por Frankl passam a ser
o foco do presente texto. A sua Logoterapia e a sua Análise Existencial são, segundo sua
afirmação, as duas faces de uma mesma teoria. Dentre estas, a Logoterapia seria um método
psicoterapêutico e a Análise Existencial, por sua vez, uma linha de pesquisa antropológica que
“se abre em duas direções: dispõe-se à cooperação com outras tendências e com sua própria
evolução” (Frankl, 1995, p. 60).
O que Frankl apresenta como os cinco aspectos da Análise Existencial e da Logoterapia
- contextualizados como resposta à demanda contemporânea por cuidado integral -,
correspondem às suas propostas práticas de cuidado clínico. Como modos de cuidar, foram
concebidas por Frankl para contemplar determinados tipos de sofrimento humano que lhe
pareciam escapar às modalidades instituídas de atenção à saúde. Em consonância com seu
próprio pensamento, Frankl responde ao apelo por cuidado, indo ao seu encontro com os
frutos da sua reflexão e os recursos que sua época possibilitava. Cada um dos aspectos,
estudados em suas especificidades, indicam para que demandas e para quais profissionais
foram concebidos. Embora posteriormente Frankl haja compreendido que seriam usados de
modo diferente do seu plano - e até estimulado a criatividade que inovaria sua obra -, é
importante que se conheça e se tenha como referencial o projeto originalmente proposto. Isto
poderá evitar interpretações que não representem uma genuína evolução do pensamento
frankliano, mas graves distorções de seus legítimos fundamentos. Propomos aqui uma breve
revisão dos principais elementos de cada um dos aspectos da Logoterapia e da Análise
Existencial franklianas.
2.1 Análise Existencial como explicação da existência pessoal
Frankl adverte que Análise Existencial não é análise “da” existência, visto não haver,
propriamente, análise ou síntese da existência humana (Frankl, 1995, p. 61). Esclarece que
suas propostas partem da práxis clínica, mas possuem uma necessária relação com uma teoria
e lembra que teoria significa visão e, neste contexto, representa uma imagem do homem.
54
Apresenta a Análise Existencial como explicação tanto ôntica quanto ontológica do que é a
existência, afirmando que se trata da “tentativa de uma antropologia psicoterapêutica” e o
fundamento necessário a qualquer psicoterapia, não só à Logoterapia. Supõe ser inevitável
que a toda práxis clínica subjaz uma visão teórica que a extrapola, ou seja, uma teoria
“metaclínica”. Toda psicoterapia, afirma Frankl, se desenrola num horizonte apriorístico, pois
não há psicoterapia destituída de uma antropologia e de uma mundividência. A própria
epokhé já subentende um juízo de valor: “uma psicoterapia que se considera isenta de valores
na realidade não é mais que cega aos valores” (Frankl, 1995, p. 62).
As premissas antropológicas estão, assim, no fundamento de toda antropologia, seja de
forma consciente ou como implicações antropológicas. Frankl toma a Análise Existencial
como explicação antropológica da existência, explicando que seus objetivos consistem em
“tornar consciente, em explicar, em desdobrar, em desenvolver a concepção implícita,
inconsciente, que a psicoterapia tem do homem” (Frankl, 1995, p. 63).
Para Frankl a “ex-sistência” acontece na dimensão espiritual, e é como pessoa espiritual
que o homem sai ao encontro de si mesmo enquanto organismo psicofísico. Isto se torna
possível não pela confrontação, que buscaria mais uma reconciliação, mas através da virtude
que Frankl denomina “força de obstinação do espírito”. Esta é o sustentáculo do antagonismo
psiconoético, a forma como o espiritual humano é capaz de se opor às pulsões de natureza
psicofísica. O antagonismo psiconoético é facultativo e a força de obstinação do espírito, por
sua vez, é da ordem das possibilidades e não uma necessidade (Frankl, 1995, p. 95).
O autodistanciamento permite ao homem distanciar-se de si enquanto psicofísico,
tornando-se capaz de liberdade em relação aos condicionamentos, como os provenientes dos
seus instintos, da sua herança e do seu meio. Isto, para Frankl, circunscreve claramente o
âmbito espiritual do homem como instância da pessoa espiritual, o que não impede que
permaneça a unidade antropológica do homem, que se torna compreensível pela sua
“ontologia dimensional”.
55
2.1.1. Ontologia dimensional
A ontologia dimensional foi proposta por Frankl como recurso para a compreensão da
tri-unidade antropológica do homem. O físico e o psíquico do homem chegam a formar uma
unidade íntima, embora essa unidade não seja “idêntica à mesmidade” nem constitua uma
unidade autônoma, pois à mesma pertence a já mencionada “terceira realidade” (tercium
datur), igualmente constitutiva do humano (Frankl, 1995, p. 66).
A ontologia dimensional frankliana é uma tentativa de abordagem more geométrico
(Frankl, 1995, p. 67). Frankl afirma que somente pela inclusão da dimensão espiritual se pode
entrever o homem em sua “talidade”, ou seja, tal como é na realidade. Para representar a
relação entre os diferentes âmbitos do homem, Frankl usa a ideia de uma construção de graus
ascendentes, de Nicholas Hartmann, e a conjuga à proposta de Max Scheler de representá-la
como uma estrutura de estratos, camadas concêntricas onde o estrato central corresponde ao
centro espiritual do homem.
Frankl destaca a dificuldade existente, nos dias atuais, para que se divisar a dimensão
espiritual como aquilo que constitui o genuíno espaço do humano, embora o espiritual não
seja uma dimensão em si, mas uma dimensão do humano (Frankl, 1995, p. 72). O caráter
espiritual do homem é destacado também por Frankl ao afirmar que o homem existe junto ao
outro como realidade ontológica, e não ôntica. Lembra que não se pode querer que a realidade
humana deva transpor espacialmente a realidade do outro homem, e que este “ser com o
outro” só se pode compreender num sentido mais primordial.
Para responder à indagação sobre este “estar junto de” do ente espiritual, Frankl aponta
a intencionalidade deste último. É só no “estar junto de” que o ente espiritual se torna
consciente do outro ente, de maneira que “o ser espiritual se realiza no ‘estar junto de’, que é
sua possibilidade mais própria, sua capacidade primordial específica” (Frankl, 1995, p. 77).
A questão da liberdade, vista a partir da clínica médica e psicológica, é equacionada por
Frankl como a dificuldade científica de discernir no homem, tomado como objeto, a dimensão
espiritual. Refere-se que, na sua época, tanto a medicina quanto a psicologia científica apenas
discernem as necessidades resultantes do automatismo do aparelho psíquico. Para Frankl o
homem é portador de instintos sem que os mesmos o possuam. Recorre às pesquisas entre
gêmeos idênticos, nos quais características inatas podem se transformar em vícios ou virtude,
a depender das escolhas que façam. E quanto aos condicionamentos pelo meio-ambiente,
56
mostra que a posição natural do homem, pela liberdade da atitude pessoal, pode representar
uma mudança existencial.
Sobre os aspectos clínicos da responsabilidade, Frankl chama a atenção para o fato de
que a análise existencial limita a liberdade do homem no sentido de que o destitui de sua
onipotência. Este limiar da liberdade vem ao encontro da responsabilidade, uma vez que
também não há uma identificação entre homem e arbitrariedade. A liberdade no homem, em
virtude da responsabilidade, é facultativa. Exemplifica com o caso de um homem neurótico
que não pode ser responsabilizado por sua neurose, mas pode se tornar responsável pela sua
atitude diante da neurose.
Em síntese, Frankl explica o “pelo que” da liberdade humana através do valor e do
sentido. A importância da visão do homem como pessoa espiritual livre e responsável reside
no fato de que o acesso ao mundo de sentido e valores não é possível ao homem
despersonalizado. Esta despersonalização, significando a perda da sua condição de pessoa
espiritual, levaria a uma igual perda da realidade e junto com esta, aconteceria também a
perda do valor.
2.2 Análise Existencial como terapia de neuroses coletivas
Frankl define a neurose no sentido estrito (sensu strictori) como doença psicogênica,
dela distinguindo o que chama de neurose no sentido metaclínico e neurose no sentido
paraclínico. As neuroses coletivas, fazendo parte destas últimas, seriam “neuroses no sentido
figurado” e não se referem a um coletivo neurótico. Descreve as neuroses coletivas da
atualidade moderna como caracterizadas por quatro “sintomas” que merecem ser examinadas
em particular:
a) ATITUDE DE PROVISORIEDADE – a atitude provisional está relacionada tanto à ideia
de “provisão” - do latim provision -, que denota a abundância, a exuberância do momento
intensamente vivido, quanto à de “provisório” - pelo francês provisoire –, que destaca a
impermanência, a existência voltada apenas para o presente (Houaiss; Villar, 2009). Na
postura provisional o tempo se apresenta como um contínuo presente, no qual só é possível
57
viver o dia e para o dia. Segundo Frankl, as pessoas se comportam como se estivessem
continuamente ante a possibilidade da catástrofe atômica.
b) ATITUDE FATALISTA – a postura fatalista adota a inevitabilidade diante do trágico. O
ser humano considera impossível dirigir o próprio destino, sendo este sempre determinado por
forças alheias à sua vontade. O fatalismo, derivado do latim fatalis, significando tanto “do
destino” quanto “funesto”, “mortal” (Houaiss; Villar, 2009). O destino inexorável determina
rigidamente todos os acontecimentos. Nessa perspectiva, não há lugar para a esperança ou
razão para lutar por transformações.
c) MODO DE PENSAR COLETIVISTA – refere-se ao fenômeno do coletivismo, do latim
collectivus, 'que agrupa, ajunta' (Houaiss; Villar, 2009). Para Frankl, o pensamento coletivista
corresponde a uma perspectiva que vê o homem apenas no contexto dos agrupamentos
humanos extensos, nos quais deixa de ser visto e compreendido como pessoa, desaparecendo
e tornando-se indiferençável em meio à massa. Pelo cultivo do pensar coletivista,
necessariamente, o homem renuncia a si mesmo como ser livre e como ser responsável,
fazendo caso omisso da sua própria pessoalidade.
d) FANATISMO – o fanatismo significa uma adesão incondicional a um sistema, doutrina ou
facção. Derivado do latim fanaticus, significa tanto ‘divinamente inspirado’ quanto
“delirante” (Houaiss; Villar, 2009). O homem fanático geralmente impõe seu pensamento aos
demais, não reconhecendo o seu direito à diversidade de opinião e, neste sentido, fazendo
caso omisso da pessoalidade do outro homem.
Destaca que os dois primeiros parecem ser encontrados mais no mundo ocidental e os
dois últimos ter mais incidência no mundo oriental. A síntese desses quatro sintomas seria a
fuga à responsabilidade e o medo à liberdade, sendo que estas espécies de niilismo e de tédio
espiritual teriam, para Frankl, repercussões psico-higiênicas, representando uma ameaça à
saúde psíquica individual e coletiva.
Frankl adverte que a perda dos instintos e da tradição desempenha um importante papel
na frustração existencial crescente nos dias atuais. Explica que a vontade de sentido é,
simplesmente, o que se frustra na pessoa na qual se encontra um sentimento de vazio ou falta
de sentido (Frankl, 2008, p. 110). Esta se mostraria através do sentimento de vazio interior e
58
de carência de sentido para a existência. Este vazio existencial pode ser manifesto ou latente,
mostrando-se frequentemente como tédio “mortal”, por estar relacionado a maiores índices de
suicídio. Como um sentimento latente, muitas vezes se torna aparente apenas através de
adições diversas, para as quais os profissionais do cuidado precisam estar atentos. O vazio
existencial, não se manifestando obrigatoriamente, “pode permanecer insidioso, mascarado, e
conhecemos diferentes máscaras por trás das quais se esconde” (Frankl, 1995, p. 120).
As neuroses noógenas, compreendidas como aquelas geradas pela frustração da vontade
de sentido, o que corresponde à frustração existencial, requerem uma terapia que busquem
fazer “emergir possibilidades concretas de realização pessoal de sentido” e que são conforme explica Frankl -, possibilidades e valores capazes de realizar a vontade de sentido
frustrada e de satisfazer a demanda por sentido de cada existência. Este seria o ponto de
convergência da Logoterapia e da Análise Existencial, pois nele “qualquer logoterapia
desemboca numa análise existencial, da mesma maneira que, no fundo, qualquer análise
existencial culmina numa logoterapia” (Frankl, 1995, p. 121).
Ainda que acometam as pessoas coletivamente, essas formas de sofrimento haverão de
ser tratadas individualmente, pois o sentido é sempre ad personam et ad situationem, no dizer
de Frankl. Os casos nos quais a frustração existencial permaneceu latente, embora necessitem
igualmente da análise existencial, não são exclusivos do âmbito médico e “interessa da
mesma forma ao filósofo e ao teólogo, ao pedagogo e ao psicólogo; pois estes devem se
ocupar, na mesma medida que o médico, da dúvida sobre o sentido da existência” (Frankl,
1995, p. 123).
2.3 Logoterapia como Cura Médica de Almas (ou cuidado médico espiritual) 12
A modalidade de cuidado que Frankl propõe como Ärztliche seelsorge, que dá título ao
seu primeiro livro, consiste na assistência logoterápica ao sofrimento noético em geral, ou
seja, ao sofrimento de ordem espiritual. Originalmente, Frankl a concebeu como meio para o
médico responder à crescente procura por cuidado espiritual na medicina que muitos
12
A tradução como “Cura Médica de Almas” parece não “soar” adequadamente em português, motivo pelo qual
propomos também a expressão “cuidado médico espiritual”, que parece designar melhor o propósito de Frankl,
usando minúsculas para diferenciar do título adotado no livro de referência.
59
observaram a partir do início do século XX. O termo Seelsorge significa “cuidado da alma”,
geralmente uma forma de assistência sacerdotal ou pastoral dispensada, no âmbito das igrejas,
aos sofredores de tragédias existenciais. Ela se destina a ajudar o paciente que é portador de
um mal irreparável a suportar seu inevitável sofrimento.
A Cura Médica de Almas, como uma espécie de assistência espiritual, não teria sido
pensada por Frankl como uma terapia própria do especialista (psiquiatra), mas como uma
necessidade de médicos de todas as especialidades que possam ter como paciente alguém que
enfrenta uma situação de sofrimento inevitável. Frankl lista múltiplas especialidades –
potencialmente todas as especialidades clínicas – relativas a estas situações: o cirurgião que
não queira se surpreender encontrando o seu paciente na mesa de autópsia, depois do suicídio;
o ortopedista que lida com amputações, mutilações e deficiências; o oftalmologista diante de
deficientes visuais; o dermatologista ao enfrentar dermatoses deformantes; o ginecologista
que trata casos de esterilidade; e, ainda, o geriatra que tenta amenizar os achaques da velhice.
A inscrição Saluti et solatio aegrorum, que o imperador José II teria mandado afixar
sobre a porta de entrada do Hospital Geral de Viena, não seria casual para Frankl, pois a
consolação faz parte do cuidado tanto quanto a cura. Cita também uma recomendação da
American Medical Association, a qual preconiza que o médico também deve consolar a alma,
não sendo esta apenas uma obrigação do psiquiatra, mas de qualquer médico no exercício de
sua profissão. O cuidado médico espiritual permite ao profissional clínico acolher o
sofrimento espiritual do paciente sem abandonar sua condição profissional. A relação médicopaciente, segundo Frankl, se transformaria em um encontro pessoa a pessoa, proporcionando
tanto ao paciente quanto ao médico se relacionarem enquanto seres humanos. Em suas
palavras:
“O médico meramente cientista se transforma assim no médico também humano. A “cura
médica de almas” outra coisa não é que a tentativa de uma técnica desse caráter humano do
médico. E talvez seja a técnica de caráter humano capaz de nos preservar da inumanidade da
técnica tal como ela se faz valer também no âmbito da medicina tecnificada” (Frankl, 1995, p.
125).
O texto “Da confissão secular à direção de almas médica” (Frankl, 2003b, p.291)
apresenta a reflexão de Frankl sobre os limites de um “ir mais além” da psicoterapia.
60
Inicialmente é percebida a necessidade de um complemento “no sentido de incluir a dimensão
espiritual” no âmbito psicoterápico. A Logoterapia e a Análise Existencial convergem, então,
para a questão do exercício lícito, por parte do psicoterapeuta desta suposta ultrapassagem da
esfera clínica. Frankl diz ser conhecido o efeito terapêutico de uma mera conversa, na qual a
dor da alma é “compartida”, trazendo alívio. Refere que o efeito terapêutico da confissão fez
com que a psicoterapia e a psicanálise inicialmente pretendessem ser uma espécie de
confissão secular. A direção médica de almas difere por não intencionar ser um sucedâneo da
religião – e nem da psicoterapia -, mas ocupar o vazio de cuidado existente, como
complemento. Esta tarefa não é requerida se o paciente é religioso, mas se apresenta quando
uma pessoa não religiosa busca junto ao médico o alívio para as profundas inquietações do
seu espírito. Para Frankl o homem religioso se encontra “resguardado” (geborgen), sentindose “escondido” ou “guardado” (verbogen) na transcendência. Deus, como o “Ser silente” e o
“Ser inefável” é, contudo, aquele ao encontro de quem o homem religioso sempre vai, por
compreendê-lo com “Ser transcendente” (Frankl, 2003b, p.337).
Frankl se refere aos sentimentos inquietos do homem usando o termo agostiniano
inquietas cordis, para dizer que muitas vezes não se consegue chegar a uma raiz religiosa para
os casos, mas que a Logoterapia pode aqui auxiliar na recuperação da capacidade de trabalhar
e usufruir da vida, que muitas vezes está perdida nestes casos, pela intensa ansiedade. Deixa
claro, no entanto, que a Logoterapia como Cura médica de almas, não é substituta do trabalho
sacerdotal, pois enquanto o médico provê cura no âmbito da saúde, o sacerdote provê
“salvação”, no âmbito da religião. Uma importantíssima observação é evocada por Frankl
como possibilidade para a “psicoterapia - que sem querer e até mesmo sem poder querer – em
casos isolados faz com que o paciente volte a encontrar as fontes sepultadas de uma fé
primordial: não per intentionem, mas per effectum” (Frankl, 1995, p. 130).
2.4 Logoterapia como terapia específica de neuroses noógenas
Os estados neuróticos, segundo Frankl, podem ter suas raízes no âmbito noético, ou seja,
na dimensão espiritual. A tais estados Frankl denomina “neuroses noógenas”, que se referem
àqueles casos nos quais há um conflito moral, uma crise existencial ou um problema
espiritual. Destacando que se deve evitar tanto o patologismo quanto o noologismo – este tão
nocivo quanto o psicologismo -, aponta diversos trabalhos científicos que demonstraram a
existência de uma significativa margem de ocorrência de neuroses de origem noógena. Insiste
61
em esclarecer que nem toda neurose provém de conflitos de consciência ou de problemas de
valores, não sendo esta a única causa de da doença neurótica.
Frankl esclarece que a razão da neurose noógena está na frustação existencial, na qual
há um potencial patogênico. De acordo com a Logoterapia, só pode haver doença no nível
psicofísico, pois a pessoa não é passível de adoecimento, mas o homem adoece, por causas
morais, existenciais ou espirituais. As neuroses de que aqui se fala são neuroses noógenas e
não neuroses noéticas, provenientes do espírito, mas não acontecem no espírito, uma vez que
“a pessoa espiritual não pode adoecer”. O espiritual, como a instância livre no homem,
corresponde à pessoa, à qual se atribui liberdade incondicional (Frankl, 1995, p. 151). A
explicação de Frankl vale a pena ser reproduzida:
“Nesse sentido falamos, de modo consciente, unicamente de neuroses noógenas e não
de neuroses noéticas: neuroses noógenas são enfermidades ‘que provêm do espírito’ e
não enfermidades ‘que se encontram no espírito’: não existem nooses’... A neurose
não é uma enfermidade noética, uma enfermidade espiritual, uma enfermidade do
homem unicamente em sua espiritualidade; ela é sempre a enfermidade de um homem
em sua unidade e totalidade” (Frankl, 1995, p. 151-152).
A designação de neurose noógena, segundo Frankl, é preferível ao termo neurose
existencial; existencial é apenas uma frustração que não chega a ser patológica. A autêntica
neurose noógena, proveniente do espiritual, exige uma psicoterapia que igualmente provenha
do espiritual, o que corresponde à proposta logoterápica. Contudo, o médico deve se
resguardar de imposições de sua visão de mundo, sendo importante que a proveniência
noógena possa emergir a partir do paciente, como nos casos nos quais as queixas revelam
conflitos ético-espirituais ou religiosos. Adverte Frankl que o logoterapeuta deve se precaver
para que o paciente não lhe jogue a responsabilidade, mas a assuma, pois “a Logoterapia é
essencialmente educação para a responsabilidade”. Deixa claro que é a partir dessa
responsabilidade que o paciente deve penetrar até o sentido concreto de sua existência e –
acrescenta Frankl citando Paul Polak – desta forma “dota-se de sentido o espaço concreto em
que o homem se encontra jogado” (Frankl, 1995, p. 153).
62
2.5 Logoterapia como terapia inespecífica
A logoterapia como terapia inespecífica se dirige às neuroses no sentido estrito, ou seja,
neuroses psicógenas que, como tal, são originadas no psíquico. Esta diferenciação é
importante para que não se faça “caso omisso do espiritual” ou se chegue a “projetá-lo de seu
espaço para o plano meramente psíquico” o que seria, segundo Frankl , “incorrer no
psicologismo” (Frankl, 1995, p. 156). A Logoterapia distingue, além das neuroses
psicogênicas, as doenças psicossomáticas (aquelas que não são causadas, mas apenas
desencadeadas no psíquico); as pseudoneuroses somatogênicas (doenças neuróticas aparentes,
porém causadas no somático); e, finalmente, as doenças funcionais (as originadas de
disfunções de caráter vegetativo ou endócrino, que não chegam a provocar mudanças de
estrutura).
Ressaltando três grupos de perturbações funcionais que se desencadeiam através de
monossintomas, em geral de ordem psíquica, Frankl descreve três grupos de disfunções: as
pseudoneuroses de Basedow (hipertireoidoses larvadas13); das pseudoneuroses de Addison
(hipocorticoses larvadas); e das pseudoneuroses tetanoides. Relata casos nos quais o
tratamento médico se mostra eficaz através de medicação adequada -, fazendo desaparecer
drasticamente os sintomas – mas lembra da necessidade de abordar qualquer caso dessa índole
também do ponto de vista psíquico. Isto porque um sintoma passageiro pode produzir um
temor fóbico de sua repetição: a angústia reativa de espera, conhecida dos psicoterapeutas. A
“ansiedade antecipatória”, reforçando o sintoma, leva à confirmação da fobia e ao
aprisionamento do paciente no círculo vicioso. A angústia de espera, por sua vez, se torna o
elemento patogênico ao fixar o sintoma. Frankl propõe o tratamento simultâneo “nos polos
psíquico e somático desse evento circular”, através de fármacos adequados e dos recursos
logoterápicos que, no caso, seria a técnica da intenção paradoxal (Frankl, 1995, p. 158-160).
A “intenção paradoxal” deve ser derivada, segundo Frankl, por dedução, a partir da
teoria das neuroses e não por indução, ou seja, partindo da terapia das neuroses. Retomando a
neurose de angústia, explica que “a angústia do paciente neurótico ansioso se potencia em
razão de uma angústia perante a angústia”. Interroga o que acontece quando o logoterapeuta
leva o paciente a tentar desejar paradoxalmente aquilo que temem. Revela Frankl que
observou largamente, na sua experiência clínica, que esta ação provoca uma reação
13
O termo “larvado”, do latim Larvátus, 'possuído de larvas ('fantasmas'), endemoniado, delirante', se refere a
sinais e sintomas patológicos que se apresentam como atípicos ou descontínuos (Houaiss, 2009).
63
terapêutica em cadeia, quando o medo é substituído por uma intenção saudável, ainda que este
desejo não seja tomado a sério nem seja definitivo. O importante é que o paciente possa
experimentar por alguns momentos a possibilidade de rir de si, distanciando-se da sua
neurose, pois o humor possibilita esse autodistanciamento entre alguma coisa e ele mesmo.
Frankl adianta que:
É possível que “o sintoma fóbico ao qual a intenção paradoxal se dirige em primeiro lugar
represente apenas a superfície sintomatológica de uma angústia originária profunda que está
por trás desta, chegando até o existencial; apesar disso, a intenção paradoxal é até mesmo o
meio para uma conversa mais profunda e existencialmente radical; ou seja, para o
restabelecimento de uma confiança originária em relação à existência” (Frankl, 1995, 165).
Afirmando que a intenção paradoxal é a logoterapia mais autêntica, Frankl mostra que,
como pessoa espiritual, o paciente pode objetivar a neurose e dela se distanciar. Neste caso, o
antagonismo psiconoético “facultativo” se atualiza em antagonismo psiconoético “de fato” e
esta seria “a Logoterapia no melhor sentido da palavra” (Frankl, 1995, 166). Frankl descreve
diversas manifestações de angústia, para as quais a Logoterapia inespecífica estaria indicada
através dos recursos da intenção paradoxal e a derreflexão, como meios para a atuação do
psicoterapeuta em tais casos. Afirma suas expectativas de se poder instituir a terapia adequada
para neuroses noógenas como terapia específica, sendo a inespecífica para os casos
somatogênicos e psicogênicos. A frustração existencial nem sempre é patogênica, mas – diz
Frankl -, preencher o vazio de sentido tem valor preventivo (1995, p. 183-184).
64
2.6 ORDO AMORIS: o sentido do “Amor” no pensamento de Viktor Frankl.
O mundo contemporâneo perdeu de vista muitos aspectos intrínsecos à humanidade do
homem, os quais - postos à margem dos interesses imediatos da atualidade -, se tornaram
obscurecidos. Entre estes, figura a espiritualidade, que acompanhou historicamente todas as
civilizações até o advento do Iluminismo, quando se fez “tabula rasa” dos fenômenos
humanos relativos à fé e à religiosidade. O discurso acadêmico - encantado pela
previsibilidade e pela eficácia das ciências -, baniu progressiva e indiscriminadamente todo
aspecto do conhecimento que ressoasse como “sobrenatural”. A espiritualidade intrínseca ao
humano foi arrastada pela força dessa mudança paradigmática e igualmente “preterida”, com
todo o peso do que pode significar esta “preterição” 14: o da injusta omissão, do desprezo e do
esquecimento. A ciência passou a se referir às expressões da espiritualidade humana como se
em paralipse
15
, lançando sobre as novas disciplinas que se ocupam da “alma” humana a
responsabilidade de dar conta de tudo que ultrapassasse o âmbito biológico do homem.
A compreensão acerca do amor, pertencente à mesma constelação de fenômenos da
espiritualidade, não ficou incólume. Ao homem reificado, reduzido à condição de homúnculo
(Frankl, 1995, p. 63), caberia um amor restrito ao campo de visão da ciência míope: o “amor
dos corpos” e o “amor dos afetos”. O amor como altruísmo, renúncia ou sacrifício - ou o que
do amor escapasse à corporalidade e à afetividade -, passaria para outro campo de
conhecimento “separado”, “segregado” e, portanto, para o campo do “sagrado”.
Este “psicologismo”, que possivelmente não era intencional na Psicanálise e na
Psicologia nascentes, foi percebido por Viktor Frankl e se tornou o motivo de sua busca por
outra perspectiva que não a oferecida pela medicina reducionista do seu tempo. Ora, a época
atual tem possibilitado de novo iluminar muitos aspectos desse saber preterido e olhar a
espiritualidade não como um simples adereço cultural, mas como um aspecto intrínseco ao ser
do homem, desde que emergiu o pensamento contemporâneo – especialmente através de
pensadores da vertente fenomenológica existencial – a partir das cinzas das duas Grandes
Guerras do século passado. A antropologia personalista de Max Scheler, que fertilizou
14
Leve-se em conta que a preterição de algo corresponde, inclusive, ao ato de “destituir sem motivo legal” e
“tomar posse de um posto pertencente a outro” (Houaiss, 2009).
15
Figura da retórica pela qual se finge não falar de coisas sobre as quais se está, indiretamente, falando (Houais,
2009).
65
largamente as raízes do pensamento de Frankl, fez emergir o homem como ser espiritual,
capaz de superar seus liames naturais e se constituir como centro de atos intencionais. Assim,
Scheler afirma que os limites da “simpatia”, restrita à esfera de pertencimento do homem –
nação, etnia, família –, são superados apenas pelo amor, que representa um grau superior de
relação com o “eu do outro” (Reale e Antiseri, 2008, vol. 6, p. 185).
Viktor Frankl considera o amor, a vivência pela qual se vive a vida do outro ser humano
em todo seu caráter único e irrepetível. No amor, “o amado é essencialmente captado como
um ser irrepetível no seu ser-aí (Dasein) e como um ser ‘único’ no seu ser-assim (So-sein)”,
segundo as palavras de Frankl (2003b, p. 173). A psicologia do amor em Frankl apresenta a
gradação scheleriana com base na realização de valores, desde o nível do amor biológico (que
suscita a atração biológica e a atitude sexual); incluindo o nível psíquico, como a “erótica”
(no qual o enamoramento supera a simples sexualidade genital, para experimentar o
movimento afetivo pela psique original do outro); e, especialmente, o amor a partir da
dimensão noológica (que capacita o homem para um nível profundo de aproximação ao outro
ser), segundo relata Benigno Freire (2007, p. 220-241).
A convergência teórica entre alguns aspectos do pensamento de Viktor Frankl e o de
Ludwig Binswanger é trazida por Pareja Herrera (2007), que apresenta este último o criador
da “Psicanálise Existencial ou Ontoanálise”, de fundamentação heideggeriana. Junto com
Medard Boss e outros primeiros simpatizantes da psicanálise, frequentou por algum tempo os
ciclos da psicanálise freudiana e junguiana. Binswanger teria buscado para além da noção de
Sorge (cuidado ou preocupação em Heidegger) relativa à “inquietação íntima e profunda
motivada pelo abando às coisas” e pelo esquecimento da liberdade e das possibilidades de ser.
Teria aí, nesta busca, encontrado resposta no que enuncia como “ser-juntos-no-amor” (Mit
Einender sein-in-der-Liebe). Para Herrera Binswanger veria o amor como modo-de-ser-nomundo, que permite ser-com-os-outros sem abandonar o ser-consigo, pois guarda a
mesmidade e a dualidade do Eu e do Tu, concepção pela qual convergiria para a perspectiva
de Frankl. E, o que é mais importante na reflexão de Herrera, este não seria uma concepção
de amor privativa do casal, mas “extensiva à relação psicoterapêutica, que deverá estar
sempre impregnada do calor e do sentido do humano” (Pareja Herrera, 2007, p. 94).
A reflexão sobre o cuidar suscita novas questões acerca da relação entre cuidador e
pessoa cuidada. Se para Frankl a ação clínica envolve a mediação pelo Logos, a
transcendência em direção à outra pessoa que sofre se dá no movimento partilhado da busca
de sentido, não se constitui em um simples encontro ou afetação no sentido da empatia ou do
66
calor humano. Frankl vai além do amor enquanto um simples aspecto das relações interhumanas ao afirmar que o amor “é mais que um estado de sentimentos: é um ato intencional...
A sua essência única é, como todas as coisas de natureza genuinamente essenciais, algo
desligado do tempo e, nesta medida, imperecível, algo que não passa. A ideia de um ser
humano – precisamente a ideia que o amante contempla – faz parte de um reino metatemporal” (Frankl, 2003b, p. 178-179).
A abordagem frankliana à temática do “amor” responde à questão inicialmente exposta
acerca do desgaste e das distorções sofridas pelo termo em todas as línguas e culturas atuais.
Frankl faz e propõe que se faça o que é necessário para o resgate das memórias relegadas pelo
ritmo alucinante da modernidade: enunciar “de novo” a palavra amor e trazê-la ao centro do
debate. Apesar de reduzido ao mais tênue dos seus significados, o amor não perdeu a sua
eloquente vitalidade. Uma vitalidade pulsátil que – mesmo encoberta por uma preterição
muito recente - permite vislumbrar sua verdade no acontecer da vida e no pensar dos que não
detêm o olhar nas centralidades. Um pensar que está atento às cintilações marginais, por saber
que as franjas opacas da realidade abrigam o espólio dos saberes aparentemente letárgicos que
esperam ser, outra vez, requeridos pela vida.
67
3 REFLEXÕES SOBRE A CONCEPÇÃO DE CUIDADO EM FRANKL
Viktor Frankl apresentou a sua proposta como solução para o problema do cuidado
integral do humano, tratando a Análise Existencial e a Logoterapia como “faces de uma
mesma teoria” (Frankl, 1995, p. 60). Refere-se, em outras passagens, à “teoria do sentido” por
ele desenvolvida e denominada “Logoteoria” (Frankl, 1995, p. 249). A sua Logoteoria,
portanto, está presente nestas duas faces que se apresentam sob os “cinco aspectos” já
anteriormente referidos. Atente-se ao fato de que a palavra “aspecto” (derivada do termo
latino a(d)spectus, ‘olhar’, ‘aparência’, ‘figura’), expressando novamente a ideia de uma
realidade que se mostra a certo modo de “olhar”, sob a aparência de cinco formas de cuidado
que remontam a uma única fonte, a Logoteoria.
Torna-se claro que esta “teoria do sentido” de Frankl (Logoteoria) é uma proposta nos
moldes de uma filosofia existencial fenomenológica, que alimenta e sustenta o conjunto de
suas propostas para a prática do cuidado (Análise existencial e Logoterapia). Sabe-se que toda
prática psicoterápica radica em alguma concepção antropológica. Viktor Frankl, desde a
juventude, vai definindo uma compreensão acerca do homem como um ser que, além de um
corpo e de um psiquismo, é motivado por uma vontade de sentido que denuncia outra
dimensão a ser reconhecida, a qual é exatamente aquela que confere ao homem a sua
condição humana. Esta compreensão prévia permitiu que Frankl não se acomodasse às
propostas de Freud e de Adler, embora reconhecendo o valor das descobertas de ambos.
Para Frankl, a psicoterapia levou ao extremo sua objetividade, chegando a mecanizar o
psiquismo, a coisificar o humano e a reduzir a terapia à faina técnica de consertar mecanismos
psíquicos defeituosos. Afirma que somente um homme machine necessita de um médicin
technicien (Frankl, 2007, p. 14). Sem deixar de perceber que a psicanálise foi fruto de uma
época histórica marcada pelo tecno-mecanicismo e de um contexto social impregnado de
puritanismo, Frankl não se conforma ao que percebe como uma desintegração da unidade da
pessoa humana. Afirma que “a psicanálise destrói o todo unificado que é a pessoa” para
depois se dar à tarefa de reconstruí-la “a partir dos fragmentos” que produziu. Refere-se ao
materialismo inerente à teoria psicanalítica como a base da interpretação a priori do homem
determinado pelos impulsos, ou seja, pelo automatismo do aparelho psíquico, expresso nas
noções de energismo, mecanicismo e automatismo implicadas no modelo antropológico
psicanalítico (Frankl, 2007, p. 16). Sua intenção nunca foi desmerecer o trabalho de Freud, de
68
quem admirava a genialidade e a simplicidade, mas expressar a percepção de que seria preciso
prosseguir na inquietação a respeito do mistério em que permanecia envolto o ser humano.
O conceito frankliano do humano - em lugar deste automatismo do aparelho psíquico –
propõe a autonomia da existência espiritual. Frankl aludiu às três virtudes relacionadas pelo
poeta vienense Arthur Schnitzler, afirmando que - se a psicanálise enfatiza a “objetividade” e
a psicologia individual a “coragem” -, a ênfase da sua análise existencial se encontra no
“senso de responsabilidade”. Afirma que a Análise Existencial reconhece “a responsabilidade
como a característica fundamental da pessoa” e que este reconhecimento começa pela
compreensão do caráter de missão da vida e do simultâneo caráter de resposta da existência.
Explica que o homem antes de se perguntar pelo sentido da vida, já é interpelado pela
existência, sendo continuamente chamado a “responder” pelo sentido diante das situações da
vida. Sua “responsabilidade” é a capacidade de dar respostas à existência através de atos,
única forma de responder às “perguntas vitais” contidas em cada situação. É a
responsabilidade assumida perante a existência em situações concretas que permite ao homem
dela se “apropriar”, tornando-a “sua” existência. Por acontecer no “aqui e agora”, ou seja, na
concretude de determinadas situações e pessoas, “a responsabilidade da existência é sempre
uma responsabilidade ad personem e ad situationem" (Frankl, 2007, p. 17).
Interpretando a superação da metaclínica freudiana, Benigno Freire (2007, p. 91) afirma
que Frankl realizou uma crítica da psicanálise “por elevação” e não por negação, ou seja, que
Frankl “aceita, confirma e assume” as dimensões biológica e psíquica como influentes no ser
e na conduta do homem. Em relação a Jung, assinalou que “ao elevar o nível de análise
ontológica, as funções e as instâncias da personalidade” adquiririam maior perspectiva
dinâmica e compreensão de sua posição na estrutura ontológica do ser do homem. Freire
observa que sob “a atalaia da dimensão espiritual” a unidade psicofísica ganha uma superior
explicação de sua natureza e dinamismo (Freire, 2007, p. 90).
A Psicologia individual, por sua vez, reduziria o homem ao solo psíquico, no entender
de Frankl. A responsabilidade proposta por Adler seria a capacidade de se sobrepor aos
requerimentos instintivos pelas forças do próprio aparelho psíquico, como na imagem de um
rio que se explica por construir seu próprio canal (Freire, 2007, p. 90-92).
Isto nos faz supor que é somente ao se remeter às fontes da espiritualidade que a
explicação do homem se torna satisfatória para Frankl, ou seja, quando sua antropologia
excede o conhecimento científico e recorre ao pensamento filosófico de cunho existencial e
fenomenológico. Para Freire (2007, p. 93), a psiquiatria na primeira metade do século XX foi
69
ao encontro das correntes filosóficas existencialistas e Frankl participou desta tendência.
Embora saibamos que seu espectro de interesses filosóficos haja sido mais amplo,
concordamos que esta tendência tenha propiciando a Frankl revigorar suas bases filosóficas
pelo “intercâmbio profissional ou pela leitura das obras” de psiquiatras e psicólogos como
Jaspers, Gebsatell, Binswanger, Boss, Weizsäcker e Caruso, autores que “assimilam e
transvasam as ideias nucleares das escolas filosóficas contemporâneas ao fazer clínico”
(Freire, 2007, p 93). Encontramos indícios de que houve certo retorno das teorias de Frankl
para pelo menos um destes autores. Nossa pesquisa bibliográfica encontrou na obra de Igor
Caruso16, por exemplo, referências à concepção de inconsciente espiritual de Frankl contida
no livro Der Unbewusste Gott (O Deus Inconsciente), que aquele autor compreendeu como
uma sinalização aos aspectos positivos da neurose. Caruso se refere ainda à percepção
frankliana dos aspectos positivos da tragicidade, mencionando como fonte o livro Ärztliche
Seelsorge de Frankl (Caruso, 1954, p. 51 e 83).
A pesquisadora e logoterapeuta Elisabeth Lukas, por sua vez, ressalta o papel central da
concepção de autotranscendência na Análise existencial de Frankl e considera seu livro Der
Unbewusste Gott a sua obra mestra (Lukas, 2004, p. 173). Destaca que, ao contrário da ideia
de autorrealização (muito em voga na primeira metade do século XX), o conceito “cunhado
por Viktor Frankl da autotranscendência da existência humana” nunca foi posto em moda e
nunca perderá sua vigência. Lukas explica que esta concepção frankliana, frequentemente
mal-entendida, não se reduz a um simples “sobrepassar-se a si mesmo em direção ao mundo
externo” e que envolve um “transcender-se a si mesmo para dentro”. E, ainda, que “este ‘para
dentro’ não é idêntico a uma orientação para o mundo interior do psiquismo” 17. Afirma que,
pela autotranscendência, o homem busca no seu interior a proximidade do “ponto em que
nasce o Ser Humano, que justamente não nasce de si mesmo, mas daquela fonte que
possibilita todo fluir e entregar-se”. É nesta proximidade do que lhe é originário, que Lukas
descreve como “momento ancestral de alumbramento, ao que está ‘reatado’ eternamente”, que
o homem encontra a possibilidade de se aproximar da “presença ignorada de Deus” (Lukas,
2004, p. 176).
O autor Juan José Milano - em trilha análoga à de Lukas - explora as aproximações entre
o pensamento de Frankl e o de Agostinho, apresentando uma percepção semelhante da
16
Referimo-nos ao livro Análisis Psíquico y Síntesis Existencial, de Igor Caruso, que não se definia como
freudiano, nem adleriano ou junguiano. Caruso foi discípulo e analisando do barão Von Gebsttel e dirigiu o
Círculo Vienense de Psicologia Profunda.
17
Lukas dá como referência desta citação o livro de Heidegger Sein und Zeit (Ser e Tempo), Tübingen, 1972, p.
272).
70
autotranscendência frankliana como um movimento para o interior de si (memoria sui) pelo
apelo de algo perdido (memoria Dei) e em direção ao que é “mais íntimo que a própria
intimidade”, ou seja, a presença inconsciente e ignorada de Deus (Milano, 2007, p. 87). Este
“ponto de encontro e comunicação transcendente”, por ser o princípio do todo do homem, é
uma dimensão inabarcável e pré-lógica, mas pode ser compreendida como um estado
inconsciente em relação “ao transcendental imanente ao próprio homem” (Milano, 2007, p.
86-87). No mesmo texto, Milano acentua a coincidência dos temas-chave agostiniano e
frankliano que convergem para o reconhecimento da liberdade interior do homem como o real
motivo para a felicidade e o estar em paz.
71
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72
REFLEXÕES CONCLUSIVAS
A reflexão aqui desenvolvida nos trouxe compreensões acerca das dificuldades relativas
a uma prática clínica integral, tanto na medicina quanto na psicologia e demais profissões
dedicadas ao cuidado do humano. Os principais obstáculos para a instituição de uma
antropologia ampla e integral nas ciências da saúde se devem ao fato de se terem embasado
no método das ciências naturais a partir da modernidade, quando as diversas formas de
cuidado clínico se diferenciaram enquanto disciplinas estanques e profissões isoladas. Em
virtude dessa fundamentação científico-naturalista – por sua vez, materialista e empirista - as
ciência da saúde foram se constituindo em uma esfera acadêmica refratária à tematização da
espiritualidade, na qual esta exclusão se dá de forma tácita e acrítica. A universidade perdeu
seu estatuto de “ágora” para o pensamento livre e para a busca da verdade, ao se instituir
enquanto “faculdades”. A fragmentação disciplinar desencadeou, assim, igual fragmentação
do conhecimento e da ideia do humano. Esta especialização do saber em “partes”
desconectadas da totalidade favoreceu práticas utilitaristas cada vez mais distanciadas da
unidade do ser humano, sendo o campo clínico aquele no qual mais se evidenciam estas
rupturas.
O ensino médico contemporâneo tem abandonado os foros tradicionais da medicina
clássica, a qual oferecia largo conhecimento das Ciências Humanas, fomentando as virtudes
do caráter e possibilitando a construção de uma mentalidade crítica. O mesmo se dá em
relação a todas as profissões da área da Saúde. É amplamente aceito que através do estudo da
Filosofia, da Lógica, das línguas clássicas e outras disciplinas que fazem parte das
“humanidades”, o médico reunia condições para uma prática que, além da pura habilidade de
curar (“iátrica”), era enriquecida pela arte do aconselhamento (“maiêutica”) e pelo
devotamento à missão de consolar (“sacerdócio”). Atualmente percebe-se, no meio
acadêmico, uma progressiva conscientização de que somente uma formação fundada nas
chamadas “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften) torna possível proporcionar às
profissões do cuidado uma percepção de homem e de mundo capaz de acolher o Homo
humanus em sua plena humanidade e sustentar uma prática clínica integral.
Viktor Frankl já se ressentia, à sua época, de todo o potencial de cuidado que escapava à
sua especialização em neuropsiquiatria. Através do doutoramento em filosofia, buscou
subsídios para ajudar a construir uma antropologia médica inclusiva em relação à dimensão
espiritual. Sua compreensão do espiritual como a “verdadeira dimensão do existir humano”,
73
uma vez que o humano se constitui pelos atos espirituais que “elevam o plano somatopsíquico à dimensão espiritual” (Frankl, 2008c, p. 73), se tornou uma estratégia metodológica
capaz de subsidiar a ampla tematização do noético na psicoterapia. Esclarece, contudo, que
não é apenas no espiritual, mas na tri-unidade de corpo, alma e espírito que o homo humanus
encontra sua “pátria” (Frankl, 1995, p. 72). Isto significa que, embora o espiritual seja para
Frankl a dimensão distintiva do humano, não é toda a realidade do homem.
É possível que Frankl tenha aderido às perspectivas existenciais e fenomenológicas por
vislumbrar em seus pressupostos – especialmente em autores como Max Scheler e Heidegger
-, conteúdos seminais capazes de fecundar seu pensamento na consecução de tão delicada
tarefa. Afirma Dalgalarrondo que a qualidade heurística de uma teoria está em seu poder de
gerar novas teorias, “de enriquecer e esclarecer a percepção da realidade, abrindo perspectivas
mais variadas e completas” (Dalgalarrondo, 2008, p. 57). Em conformidade com esta
afirmação, observamos que Viktor Frankl soube explorar a fecundidade heurística da vertente
fenomenológica existencial, infundindo-lhe sua própria concepção do humano pela inclusão
da dimensão noética.
Avaliamos que, neste trabalho de dissertação, a opção pela pesquisa de natureza teórica
veio atender à demanda por reflexões mais atentas e diligentes acerca das derivações
realizadas por Frankl na constituição de seus próprios caminhos. Tais estudos buscaram
aprofundar o conhecimento sobre suas vinculações a outros teóricos, com o intuito de
favorecer uma compreensão mais consistente dos fundamentos epistemológicos e filosóficos
das formas de cuidado por ele concebidas. Observou-se, no curso das leituras realizadas, que
estas derivações se dão como uma espécie de “diferenciação”
18
, sem as rupturas
frequentemente observadas nos encaminhamentos das novas ideias. Frankl reconheceu o valor
das construções dos seus mestres na medicina e na filosofia e, embora não tenha assumido a
continuidade direta de nenhum deles, assumiu a contiguidade das concepções que têm em
comum. Esclarece, contudo, a necessidade de lhes acrescentar a postulação nítida da
dimensão noética, objetivo primeiro da elaboração das suas próprias formulações teóricas e
práticas, das quais sempre destacou o caráter complementar.
18
O termo “diferenciação” é aqui usado no sentido de uma “intensificação da complexidade” de um sistema
(HOUAISS, 2009; p. 683), observando-se também o sentido de “diferir”, do lat. differre, no sentido de 'espalhar,
semear, dilatar’. Visamos expressar, desta forma, a ideia de um pensamento que adquire nova forma e função
a partir da qualidade seminal daquele em que se inspira.
74
A adoção de uma atitude metodológica flexível e inclusiva na delimitação do campo da
pesquisa possibilitou olhar o pensamento frankliano a partir de múltiplos pontos de
observação, uma vez que não foi considerada - como fonte de conhecimento - apenas a
produção escrita do autor, isoladamente. Antes, sua produção teórica foi considerada em
constante relação com as circunstâncias pessoais e histórico-sociais do seu tempo, por dois
principais motivos: primeiro pela compreensão de que a vida, em sua singularidade,
“informa” e enriquece o saber construído; depois, porque é próprio da metodologia
fenomenológica valorizar a vivência como fonte de conhecimento. Esta opção é reiterada pela
afirmação de Creuza Capalbo (2008) de que o projeto de Edmund Husserl – considerado o
fundador da fenomenologia - consistiu em erigi-la como “ciência rigorosa, mas não exata;
uma ciência eidética, que procede por descrição, não por dedução” (Capalbo, 2008; p. 18).
Este é o motivo da inclusão de algumas obras históricas ou biográficas que cumprem a tarefa
de descrever e esclarecer o contexto no qual germinaram as concepções do autor.
A pesquisa mostrou, no curso de suas articulações, que a importância da história pessoal
na compreensão de um autor possui um especial relevo no pensamento de Frankl, uma vez
que o eixo fundante de sua teoria se revelou como construção intelectual e como experiência
pessoal. Esta dupla instituição, como foi possível discernir, possui capital relevância para que
se possa apreender amplamente o Experimentum Crucis frankliano - tratado no primeiro
artigo -, cujas riquezas epistemológica, ética e ontológico-existencial supomos ainda
insuficientemente exploradas.
Os estudos iluminaram, ainda, a compreensão de que a grande e primeira motivação de
Frankl - que expressa reiteradamente sua peculiar visão de mundo -, é o seu cuidado com o
reconhecimento e a sobrevivência do que denomina o “propriamente humano”, ou seja, a
dimensão noética que distingue o homem dos demais seres da natureza. Ficou claro que esta
inquietação, portanto, não se dirige nem à transitoriedade fática do homem, nem a uma
possível “essência” a ser idealmente preservada. Frankl cuidou e quis viabilizar meios para
que se cuide do homem real em sua inteireza, tanto na sua dimensão fática quanto na noética,
tanto no ôntico quanto no ontológico. Como médico, importava-lhe o sofrimento do corpo e
do psiquismo patologicamente corrompidos, embora não lhe bastasse cuidar apenas destes.
Importava-lhe, sobretudo, o vazio de sentido e a não realização de valores que apontavam
para o sofrimento “noogênico”, a cujas questões as formas contemporâneas do cuidado têm
sido incapazes de responder. Assim, identificamos como as três grandes motivações de Frankl
(seus leitmotiven), exatamente os assuntos que compõem a tríade temática que sustenta a
75
reflexão expressa na presente dissertação: a visão do humano em sua integralidade; o cuidado
abrangente quando se possui essa visão de integralidade e, finalmente - perpassando todo o
trabalho -, o espiritual como condição de possibilidade para o propriamente humano.
A meta almejada pela reflexão que aqui se conclui se identifica com a possibilidade de
que este trabalho possa contribuir para que as demandas do ser humano em sofrimento – ou
simplesmente suas fragilidades intrínsecas - sejam mais integralmente acolhidas nas clínicas
médica e psicoterápica dos dias atuais. Algumas outras metas são vislumbradas, como as
possibilidades de inspirar outras pesquisas acadêmicas; de colaborar com os atuais esforços
interdisciplinares na construção do cuidado integral na saúde; de subsidiar teoricamente
projetos mais consistentes de humanização a partir da formação médica e de outras profissões
da saúde; ou, ainda - através da compreensão da antropologia integral frankliana -, de
contribuir para uma educação de inspiração logoterápica, o que corresponde a falar de uma
pedagogia voltada para “valores” e “sentido da existência”.
Durante toda sua vida, Frankl esteve inclinado a refletir sobre modos de preservar, para
o homem, a possibilidade de acesso ao espiritual. Desde seus primeiros esforços intelectuais,
considerou a existência de uma espiritualidade intrínseca ao humano. Por ser inconsciente em
grande medida, esta espiritualidade é geralmente ignorada, havendo sido denominada de
“inconsciente espiritual” por Frankl (2008). O “esquecimento” da dimensão espiritual, seja
como “distração”, seja como “alienação de si mesmo”, aparece na obra frankliana em
surpreendente compasso com o pensamento heideggeriano. Sem pretensões de estabelecer
qualquer relação direta de identidade entre as concepções acerca da transcendência em ambos
os autores, as leituras realizadas mostram-nas como iluminadas por uma fonte comum. No
pensamento do filósofo Martin Heidegger (1889-1976) emerge como “esquecimento do Ser”,
no contexto de sua Ontologia Fundamental. Para este filósofo, a racionalidade cartesiana
moderna, técnica por excelência, tem obscurecido o próprio sentido do ser do homem, para
torna-lo objeto e alvo do utilitarismo dominante. Desta forma, afirma Heidegger, o homem
não pode “chegar a ele mesmo pelo caminho do pensamento do ‘eu’, se o próprio e si-mesmo
do homem não for algo mais originário”; e, ainda, que “a consideração fundamental de
Descartes, fundada no eu, não atinge o si-mesmo próprio do homem, ele mesmo!”, sendo esta
a principal razão para o esquecimento do Ser (Heidegger, 2007, p. 56).
A faceta originária da análise existencial frankliana, segundo Elizabeth Lukas, é a
rejeição de interpretações que “restringem e limitam a natureza humana" (Lukas, 2005, p.
146). Afirma que a antropologia desenvolvida por Frankl concentra-se na fecundidade da
76
dimensão espiritual do homem, e que apenas por sua apresentação já pode produzir
comprovados efeitos benéficos. Esta percepção é reiterada por Ricardo Peter, no seu livro
intitulado Antropologia como terapia, que observa nas escolas e nas correntes psicológicas
puramente experimentais o que chama de irremediável “indigência antropológica”,
apontando-as como presas de um “emparedamento” no antropocentrismo bidimensional
(Peter, 1999, p. 117). Afirma que a transcendência não tem em Frankl “caráter teístico, mas
sim antropológico, empírico e fenomenológico” e ressalta o alcance revolucionário do
pensamento frankliano, que devolveu à psiquiatria e à psicoterapia a dimensão antropológica
essencial do humano, juntamente com seu caráter decisional (Peter, p. 117-118).
Preservar o humano na esfera do cuidado clínico - podemos concluir - foi o leitmotiv da
obra de Frankl, sua tarefa específica e aquela missão propriamente sua. Foi o modo de
encontrar o sentido de sua própria vida ao ajudar os outros a encontrá-lo nas suas, quer na
condição de pacientes ou não. Este senso de responsabilidade em relação ao humano significa
um respeito que, segundo o pensamento de Hans Jonas (2006), tem algo de sagrado, de uma
sacralidade que - mesmo fora do campo de uma religião positiva -, significa preservar a
“imagem e semelhança” do divino. Frankl vislumbrou esta Imago Dei obscurecida no
inconsciente de todo homem, como um testemunho de sua pungente condição de ser - a um só
tempo -, existência consciente e contingente.
A vida e a obra de Viktor Frankl - podemos dizer, sem temores -, estiveram a serviço de
uma tarefa que encontrou plena realização existencial. De fato, sua produção intelectual e sua
história pessoal, entrelaçadas, lançaram-se à maneira de uma ponte sobre as grandes fissuras
do conhecimento contemporâneo, para que cuidadores de todas as estirpes possam
sobrepassar os hiatos e superar os encarceramentos que os impedem de cuidar integralmente
do humano.
A tarefa assumida por este trabalho foi, tão somente, a de somar esforços para abrir
passagens, remover obstáculos e descerrar véus, visando tornar mais conhecida a senda criada
por Frankl. Tal tarefa estará cumprida se seus resultados puderem suscitar novas pesquisas e
inspirar psicólogos, médicos, sacerdotes e pedagogos – assim como inumeráveis outros
profissionais do cuidado – na sua busca cotidiana por responder às dores do homem do nosso
tempo. Estarão, assim, contribuindo para trazer à luz uma concepção plena do humano e para
resgatar um cuidado efetivamente integral.
77
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Vaz, H. L. (2009). Antropologia Filosófica. vol. I; 9ª ed. – São Paulo: Loyola.
Wondracek, K. (2009). O futuro e a ilusão. Um embate com Freud sobre psicanálise e
religião: Oscar Pfister e contemporâneos. Karen Wondracek (org). - Petrópolis, RJ: Vozes.
80
Anexo I
A ONTOLOGIA DIMENSIONAL FRANKLIANA
H
I
A
T
O
O
N
T
O
L
Ó
G
I
C
O
DIMENSÕES DO
HUMANO
NÍVEIS DE
CONSCIÊNCIA
INCONSCIENTE
PRÉCONSCIENTE
DIMENSÃO
NOÉTICA
CONSCIENTE
DIMENSÃO
PSÍQUICA
DIMENSÃO
SOMÁTICA
Figura 1: Representação gráfica da Ontologia Dimensional de Viktor Frankl, que conjuga ideias de
Nicolai Hartmann e de Max Scheler. A ontologia de Hartmann inspiraria a representação das
dimensões corporal, psíquica e espiritual do homem como um gradiente ascendente representando os
“níveis” do ser, enquanto que a antropologia de Scheler serviria de modelo para a compreensão de um
gradiente em direção ao eixo espiritual e central da pessoa.
Nota: Estudo ilustrativo criado pela autora para representar a Ontologia Dimensional de Viktor Frankl, com base
no conjunto das obras consultadas. Franqueado o uso para fins didáticos não lucrativos, com citação da autoria
[Calheiros de Lima, M. E.].
81
Anexo II
AS LEIS DA ONTOLOGIA DIMENSIONAL FRANKLIANA
As analogias geométricas de Viktor Frankl representam a sua concepção do humano e
constituem a sua Ontologia Dimensional, definida em duas leis:
1 Primeira lei da ontologia dimensional frankliana: “Uma única coisa projetada em dimensões
inferiores àquela que lhe é própria, se dissocia em figuras diversas e contraditórias entre si”.
Um recipiente aberto (vaso cilíndrico) resultará em figuras fechadas (círculo e retângulo), que
não representam sua unicidade original.
Fig. 1 - Projeção de um único objeto em dimensões inferiores à que lhe é
própria, resultando em figuras que se opõem.
2 Segunda lei da ontologia dimensional frankliana: “Diversas coisas projetadas em uma única
dimensão inferior àquelas que lhes são próprias, podem dar lugar a figuras polivalentes e não
contraditórias entre si”. Como sombras equívocas, não representam sua diversidade original.
Fig. 2 - Projeção de diversos objetos multidimensionais em uma única dimensão inferior
àquelas que lhes são próprias, resultando em uma única figura polivalente.
Nota: Esquema ilustrativo da autora, segundo textos e modelos de Viktor Frankl, a partir do conjunto das obras consultadas. Franqueado o
uso apenas para fins didáticos não lucrativos, com citação da autoria [Calheiros de Lima, M. E.].
82
Anexo III
RELAÇÃO ENTRE O CUIDADO MÉDICO-ESPIRITUAL (CURA MÉDICA DE ALMAS)
E A CURA SACERDOTAL
Per
Per
Per
intentionem
intentionem
effectum
Figura 1: Representação gráfica da relação entre o cuidado médico espiritual (que, como
modalidade clínica, tem por meta a “cura psíquica”) e a religião (que tem por meta a salvação
ou “cura sacerdotal da alma”). Estas metas se realizam per intentionem, ou seja, mediante
intenção, visando seus objetivos específicos. Contudo, ambas podem ter, per effectum, uma
repercussão favorável no outro domínio, como efeito secundário. Assim, o cuidado médicoespiritual pode ter um efeito psico-higiênico através da “ancoragem espiritual” que
proporciona. Da mesma forma, a psicoterapia pode, involuntariamente, ajudar o paciente a
encontrar “as fontes sepultadas de uma fé primordial” (Frankl, 1995, p. 129-130).
Nota: Esquema ilustrativo da autora, segundo textos e modelos de Viktor Frankl, a partir do conjunto das obras
consultadas. Franqueado o uso apenas para fins didáticos, com citação da autoria [Calheiros de Lima, M. E.].
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