1 A PLENITUDE HUMANA E A CLÍNICA INTEGRAL NA PERSPECTIVA DE VIKTOR FRANKL INTRODUÇÃO GERAL AO TRABALHO A presente dissertação aborda os temas da “plenitude humana” e do “cuidado integral” no pensamento de Viktor Emil Frankl, médico e psicoterapeuta austríaco, considerado o criador da Terceira Escola Psicoterápica de Viena. O interesse por estes temas partiu da busca pessoal da autora por meios de superação dos limites da medicina contemporânea, ao lidar com a dor de pessoas em situações de sofrimento em face das doenças estigmatizantes, dos prognósticos sombrios e da morte. Percebia, na sua prática clínica em psicodermatoses e oncologia cutânea, que destes pacientes emanava o inexprimível apelo por um cuidado para além dos recursos técnicos que a medicina lhes destinava. A busca pela compreensão deste clamor passou a ser a fonte da inquietação intelectual da pesquisadora. A percepção da ausência da espiritualidade humana nas ciências médicas e da sua intensa presença no enfrentamento diário à dor tornou-se seu leitmotiv, a motivação constante e profunda que a conduziu a este estudo. O reconhecimento de que esta lacuna no espectro do cuidado coincidia com a espiritualidade correspondeu ao primeiro passo em busca do aclaramento da questão, tornando-se a bússola da nova jornada a ser empreendida. Seria necessário encontrar meios para iluminar as razões dessa estreita concepção do humano na medicina e, igualmente, do cuidado clínico restrito ao mensurável e ao quantificável. A limitação do cuidado médico à dimensão psicofísica apontava em direção à visão de homem – igualmente limitada - que fundamentava seu conhecimento e sua prática. A questão inicial passou a se expressar na pergunta por uma antropologia médica abrangente em relação ao ímus do humano, de onde parecia provir seu apelo por um especial cuidado. Os esforços para tornar a espiritualidade abordável na área da Saúde sempre se mostrariam dificultados em suas reais possibilidades. Inicialmente, foram sendo fundados na experiência e empreendidos a partir da micro-realidade do cotidiano médico. Posteriormente corresponderia às incursões a outros campos do saber, em busca de recursos para um cuidar mais inteiro. Emergiu, dessa forma, a pressuposição de que a reflexão metódica sobre a 2 espiritualidade na medicina iria requerer uma antropologia médica abrangente, uma disciplina lacunar na maioria dos currículos médicos atuais. Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha incluído a espiritualidade em seus protocolos e em seu conceito de saúde desde 1997, as esferas acadêmicas do contexto brasileiro não contemplavam, até então, projetos de humanização da medicina - e da saúde em geral - que considerassem a espiritualidade enquanto dimensão antropológica. A ampliação do cuidado clínico tem sido frequentemente proposta no sentido do social, revelando a concepção científico-naturalista do homem, assim visto como um fenômeno restrito às ordens do biológico e do psicossocial. Além disso, as poucas tentativas que anteviam a importância da espiritualidade, tendiam a tratá-la como um fenômeno cultural, quando não a confundi-la com a religiosidade ou a identificá-la com o sobrenatural. Isto ilustra a indubitável dificuldade das ciências médicas contemporâneas – como das ciências em geral - para lidar com os aspectos intangíveis do humano, restringindo-se ao que é passível de apreensão na esfera do concreto. Diferentemente, Viktor Frankl – escritor cujas obras foram apresentadas à autora após longas jornadas de pesquisa - concebeu modalidades de cuidado nas quais a espiritualidade do homem aparece como uma dimensão constitutiva da própria condição humana. Para Frankl, o homem possuiria uma constituição multidimensional na qual estão reunidas as dimensões somática (do grego sômathos, corpo), psíquica (do grego psukhê, 'sopro de vida', 'alma') e noética (do grego noûs, 'intelecto', 'espírito'). Esta concepção de homem seria capaz de subsidiar uma clínica abrangente e complementar, pela instituição de modalidades de cuidado capazes de acolher o sofrimento humano não apenas de ordem física e psíquica, mas também espiritual. O estudo que ora apresentamos, como fruto desta reflexão sobre um cuidado abrangente, tomou como objetivo geral conhecer as concepções franklianas acerca do humano e do cuidado clínico. Seus objetivos específicos consistiram, primeiramente, em conhecer os fundamentos epistemológicos e filosóficos da antropologia médica de Viktor Frankl; e, ainda, pesquisar os pressupostos teórico-práticos da clínica por ele proposta. A metodologia, de caráter qualitativo, se concentrou na pesquisa bibliográfica exploratória, uma vez que a obra de Frankl e a dos seus principais intérpretes são pouco conhecidas no meio acadêmico nacional. Consistiu na busca da compreensão do seu pensamento a partir da sua obra e de sua biografia, que no caso de Frankl possui excepcional importância enquanto seu laboratório existencial, como se pode observar no segundo artigo aqui incluso. 3 Para lidar com a dimensão espiritual do homem no campo clínico, Frankl lançou mão do termo polissêmico logos, que em grego significa “sentido”, “razão”, “espírito” 1. Isto possibilitou tratar a espiritualidade como dimensão antropológica e não necessariamente religiosa, tornando-a compreensível e válida no contexto das ciências médicas. Inspirado inicialmente pela psicopatologia de Karl Jaspers, Frankl doutorou-se em Filosofia, familiarizando-se com a emergente corrente do pensamento fenomenológico existencial. Sob a perspectiva médico-naturalista, o paciente é percebido com ênfase em sua dimensão biológica - como qualquer espécie natural -, enquanto que na perspectiva de uma psicopatologia existencial pode ser percebido como um ser singular, lançado em um mundo fático, porém significativamente histórico e humano em seu fundamento (Dalgalarrondo; 2008). O termo “existência” deriva do verbo latino existire, “aparecer, nascer, ter presença real” (Houais, 2009). Significa “o que está aí” ou aquilo que “está fora”, pois algo existe porque está, como coisa, “in re”, sendo que - neste sentido - a existência equiparável à realidade. Segundo Abagnano (2007), possui o significado geral de “qualquer delimitação ou definição do ser”, mas possuiria três outros significados: o primeiro compreende a existência como “modo de ser determinado ou definido” (geralmente se referindo a algo que pode ser observado e provado); o segundo, como “aquilo que na realidade é ou subsiste” (aquilo que existe em si e não em outra coisa); e, finalmente, como “modo de ser do homem no mundo”. Foi Sören Kierkegaard que tomou “existência” como modo de ser específico do homem – e não de toda criatura – sendo, por isso, considerado o fundador da corrente filosófica existencialista (Abagnano, 2007, p. 464). O modo de ser próprio do homem - enquanto modo de ser no mundo, em situação determinada – é analisável como possibilidade. Isto se tornou possível graças ao conceito de “transcendência”, elaborado por Edmund Husserl, iniciador do pensamento fenomenológico. Segundo sua concepção de transcendência, na relação entre o “sujeito cognoscente” e o “objeto” - do conhecimento, do desejo ou da volição -, tal objeto não está dentro do sujeito, mas dá-se a conhecer fora dele. Isto teria influenciado o pensamento existencial, segundo o qual as relações entre o Dasein (o homem) e o mundo “sempre se configuram como transcendência” (Abagnano, 2007, p. 468). 1 Um estudo mais minucioso sobre o termo Logos se encontra no Artigo II desta dissertação, na seção “Cuidar a partir do espiritual”. 4 Estes esclarecimentos nos permitem compreender que a perspectiva de Viktor Frankl lança raízes nas ricas possibilidades desta confluência entre as vertentes fenomenológica e existencial do pensamento, que ele explora na tecedura de sua concepção de homem e de transcendência. Existir, no contexto frankliano, significa “sair de si”, pôr-se “diante a si mesmo”, de maneira que “o homem sai do nível da corporalidade psíquica e chega a si mesmo passando pelo âmbito espiritual. A existência acontece no espírito” (Frankl, 1995, p. 63). Desta forma, este sair ao encontro de si mesmo foi visto por Frankl como meio de enfrentamento de enfermidades que afetam o psicofísico, o que ilustra sua estratégia de trazer o pensamento filosófico para o campo da saúde com o objetivo de abrir novas frentes de cuidado. Neste âmbito, deixou-se influenciar principalmente pelos pensamentos de Max Scheler e de Martin Heidegger para a construção do seu próprio horizonte filosófico. A clínica que concebeu, cunhando então o termo Existenzanalyse, se constituiu no que denominou de “aspectos da Análise Existencial e da Logoterapia”, modalidades de cuidado que possibilitam uma visão integral do humano. Estas formas de cuidar foram pensadas por Frankl como resposta ao crescente vazio existencial que emergiu após as duas Grandes Guerras, suscitando novas formas de sofrimento e desafiando as ciências da saúde a repensar seus fundamentos epistemológicos, sua antropologia e seu conceito de cuidado clínico. O cuidado do humano tem se apresentado historicamente como uma questão prática e teórica multifacetada, de constante atualidade e relevo. Ainda nos primórdios da civilização os homens dispensaram cuidados aos seus semelhantes, seja de forma direta - como a atenção aos feridos de guerra, aos enfermos e desvalidos -, ou de forma indireta, implícita aos fazeres e às estruturas que foram surgindo nas sociedades – como a pedagogia, a arquitetura e a própria justiça. Curar, auxiliar, prover, ensinar e proteger se constituem em expressões do cuidar presentes em todas as culturas e povos, ainda que motivadas por diferentes causas e através de modos diversos. A contemporaneidade2, seja considerada modernidade tardia ou pós-modernidade, se caracteriza como uma época inusitada na qual o avanço do domínio técnico se dá proporcionalmente à desoneração em relação ao legado da tradição. Sabe-se que, se por um lado a civilização da produção trouxe a alguns setores um inegável acesso aos bens materiais 2 Adotaremos a noção de contemporaneidade proposta por Vaz, que considera “quase universalmente aceita” a concepção de “filosofia contemporânea” como aquelas correntes filosóficas desenvolvidas “durante os séculos XIX e XX, ou seja, do período pós-kantiano aos nossos dias” (Vaz, 2009, p. 97). 5 e progresso social, por outro lado vulnerabilizou os bens imateriais da humanidade. Já não podendo lançar fundamentos existenciais na tradição, o homem contemporâneo busca modos impessoais de enfrentar sua angústia constitutiva através do projeto histórico oferecido pela modernidade que, apesar dos esforços técnicos para a previsibilidade da vida, não elimina o paradoxo da maior incidência de tédio e vazio de sentido. Os valores elididos, as crenças enfraquecidas e os hábitos esquecidos já não podem constituir certezas capazes de abrandar a angústia intrínseca à existência. Os fenômenos da massificação e da mundialização, ao compelir o indivíduo à inserção em estruturas cada vez mais globalizantes, suscitam no espírito humano duas espécies de sentimentos paradoxais: por um lado, uma relativa sensação de proteção pelo todo, do qual é parte; e, por outro lado, a angústia perante a ameaça de dissolução da sua singularidade na totalidade amorfa. Cuidar do homem que caminha sobre o fio desse dilema e sem certezas em relação ao alvo para o qual avança – exceto a finitude – torna-se imperativo em todas as esferas do mundo contemporâneo. Encoberta ou não por artifícios, a angústia ganha hoje uma magnitude sem precedentes. O próprio humano e a necessidade de cuidá-lo tornou-se, como nunca, uma questão urgente e complexa. O mundo humano, em cujo centro de visibilidade se encontra o Estado moderno, resulta do projeto de uma “razão legislativa” que tem por objetivo uma sociedade “racionalmente planejada”, segundo advoga Zigmunt Bauman (1999, p.29). Este autor declara concordar com Hans Jonas na observação de que o sucesso deste projeto representa um risco mais real para o humano do que as suas falhas, uma vez que a ambiguidade do homem seria indissociável da sua humanidade e eliminá-la seria, portanto, destruir também sua liberdade. A pretensão de total controle encontraria seus limites nas ambivalências, nas quais residem “a única força capaz de salvar a civilização tecnológica moderna de suas próprias consequências, planejadas ou não intencionais” (Bauman, 1999, p. 61). O cuidado, neste contexto de ambivalências e incertezas, tem surgido como um dos temas mais abordados nos meios acadêmicos da atualidade, tanto nas áreas tradicionalmente a ele relacionadas – a exemplo da área da saúde – quanto em outros espaços onde emerge como um interesse novo. É natural, portanto, que se procure responder ao desafio - quer através do agir, quer através do pensar - de conceber novas e mais abrangentes formas de cuidar, capazes de atender não apenas às dores físicas e psíquicas do homem de hoje, como também ao seu sofrimento de natureza espiritual. Na própria área do cuidado psiquiátrico, segundo o autor Paulo Dalgallarrondo, a diversidade teórica não é uma fragilidade, mas uma necessidade para 6 o aclaramento das ideias no complexo campo da psicopatologia, para que as teorias únicas e cabais não deformem o fenômeno psicopatológico (Dalgalarrondo, 2008). Compreendendo a íntima relação entre a concepção de homem e a clínica que se planeja para este homem, Frankl desenvolveu sua Análise Existencial e sua Logoterapia. Todas as modalidades de cuidado propostas por Frankl, que serão examinadas no curso deste trabalho, partem de uma concepção de homem que tem na espiritualidade sua dimensão fundamental. Frankl apresenta a espiritualidade como uma dimensão antropológico-ontológica e não uma dimensão “sobrenatural” no sentido tradicional deste termo. Contudo, defende a adoção de uma “política de portas abertas” em relação à fé dos pacientes, para não inibir sua religiosidade espontânea (Frankl, 2003b, p. 337, nota 29). Frankl foi um cuidador de largo espectro e um pensador de fronteiras. Transitou, na prática profissional, entre a neuropsiquiatria e a psicoterapia, assim como, no campo teórico, entre o empirismo objetivante das ciências naturais e a agudeza da filosofia existencial fenomenológica. Sua logoterapia e sua análise existencial seriam, para ele, “um campo fronteiriço entre medicina e filosofia”, assim como a sua direção médica de almas “entra na fronteira ente filosofia e religião” (Frankl, 2003, p. 318). Ademais, foi capaz de transformar sua marcante experiência como prisioneiro de campos de concentração da II Grande Guerra em uma produção teórica radicalmente comprometida com o cuidado do humano. Desta forma, a obra de Frankl se constitui uma relevante contribuição à temática do cuidado, a ser considerada tanto na academia quanto na sociedade em geral. Os recursos franklianos, contudo, permanecem pouco conhecidos no contexto acadêmico do nosso país, enquanto constam dos currículos de muitas universidades europeias, americanas e de diversos países latino-americanos - destacadamente México, Argentina, Chile, Colômbia e Uruguai – nas quais numerosas iniciativas de trabalho social e de políticas públicas estão relacionadas a projetos acadêmicos inspirados nos aspectos sociais da obra deste autor. Tais recursos possibilitam que médicos e psicólogos incluam - na relação de cuidado -, a dimensão espiritual, da qual procede o vazio existencial que tem levado grande parte da população ao adoecimento, ao consumo de drogas e à violência (Frankl, 1995). A escolha por tratar, neste trabalho, da questão do cuidado na área de saúde e, dentro desta, especificamente das clínicas médica e psicoterápica, se deve a dois principais motivos. Primeiramente porque foram estes os contextos originais de Frankl, nos quais germinou a suas concepções de homem e de cuidado, que são os alvos do nosso estudo. Depois, porque estes âmbitos correspondem à esfera de experiência e atuação da autora, de cuja realidade 7 germinaram as inquietações motivadoras do presente trabalho. Embora a compreensão adotada acerca do cuidado seja ampla - envolvendo não só as profissões da área de saúde em geral, mas estendendo-a a todos os fazeres que lidem diretamente com o humano3-, a pesquisa se concentrou nas áreas médica e psicológica por questões de especificidade e pertinência ao tema. Contudo, não se perde de vista as possibilidades somar esforços com pesquisadores das diferentes profissões da saúde para a conquista de modos mais abrangentes e humanizantes de cuidar. As vias metodológicas usadas para atingir os objetivos definidos pela pesquisa partem da adesão à metodologia qualitativa, para a realização de um trabalho teórico operacionalizado através de pesquisa bibliográfica. Os aspectos pertinentes foram buscados na obra de Viktor Frankl e de alguns dos seus principais intérpretes e discípulos diretos ou indiretos. O tema se distribui em dois artigos que tratam, respectivamente, das concepções do humano e do cuidado no âmbito do pensamento frankliano. Esta divisão foi usada como recurso facilitador, embora se soubesse que os temas - em muitos aspectos e em diversos momentos da pesquisa - seriam tratados simultaneamente, em virtude das suas várias implicações mútuas. Decidiu-se, assim, reservar espaços privilegiados para a ênfase particular e a reflexão diferenciada, tanto para a problemática do humano quanto para a questão clínica do cuidado. O primeiro artigo procura explicitar as bases antropológicas e filosóficas da concepção do humano no pensamento de Frankl, a partir da sua obra e dos seus relatos biográficos. É importante esclarecer que, ao examinar a antropologia frankliana, a autora seguiu a abertura interdisciplinar do próprio Frankl, que transita livremente entre a Antropologia Médica e a Antropologia Filosófica por ele concebidas. O artigo estuda, sob esta perspectiva alargada, os caminhos percorridos por Frankl para inclusão da dimensão noética e para a apresentação do humano como unidade-totalidade. Enfoca a ideia de Unitas multiplex, tomada a Tomás de Aquino para definir o homem como “unidade apesar da multiplicidade” assim como a ontologia dimensional de Frankl, pela qual se identifica os aspectos constitutivos do humano através de analogias geométricas ao modo de Spinoza (Frankl, 2006a; p. 158). Identifica os aspectos constitutivos deste homem movido pela vontade de sentido e que, exatamente em virtude de sua humanidade, pode ser capaz de “[...] erguer-se sobre a dor e de tomar uma 3 Sabe-se que, há muito, os fundamentos da análise existencial frankliana ultrapassaram os limites da própria área de saúde e têm inspirado inúmeras pesquisas e práticas em áreas as mais diversas, tais como a pedagogia, o serviço social, o aconselhamento pastoral e a psicologia organizacional. 8 atitude significativa em relação a ela” (Frankl, 2011; p. 96). Estuda como essa concepção frankliana acerca do homem - renunciando aos determinismos e reducionismos da psicanálise freudiana e da psicologia individual adleriana -, busca ultrapassar os limites das ciências naturais e apreender o homem na tri-unidade que tem o espiritual como força integradora e dimensão distintiva propriamente humana. Este artigo não toma a antropologia frankliana como modelo de uma integralidade absoluta, mas vislumbra, a partir da mesma, uma significativa contribuição à construção interdisciplinar de um cuidado mais abrangente. O segundo artigo trata das modalidades do cuidado propostas por Viktor Frank, categorizadas segundo as indicações iniciais do próprio autor. Examina a atualidade de cada uma, observando as demandas por cuidado para as quais Frankl desenvolveu suas propostas. O artigo também estuda a visão do humano que subsidia cada forma de cuidado, questionando sua abertura à diversidade da experiência humana. Além disso, observa as repercussões práticas da inclusão noética no cuidado clinico, procurando entender os corolários desta perspectiva aberta à dimensão propriamente humana e os meios de acesso aos seus recursos terapêuticos, tais como a capacidade de autodistanciamento e de autotranscendência (Frankl, 2003). Assim, os dois artigos temáticos que serão examinados a seguir compõem os elementos textuais do trabalho e contêm os resultados das pesquisas empreendidas. As conclusões e as referências bibliográficas parciais, específicas para cada um dos artigos, serão incluídas no final de cada um dos textos, como seus fechamentos. O trabalho como um todo, por sua vez, é finalizado por uma reflexão conclusiva comum a ambos os artigos, seguida de uma bibliografia geral. Foram inseridas algumas representações gráficas desenhadas pela autora com finalidade didática, contendo elementos inspirados nos vários modelos e nos textos de Viktor Frankl, consultados para a elaboração deste trabalho. A pesquisa que ora apresentamos possui caráter exploratório em sua temática específica, em vista da limitada difusão do pensamento frankliano no âmbito acadêmico nacional. Sem pretensões de abrangência, este trabalho alcançará suas metas se vier a inspirar novas pesquisas acerca de uma clínica mais ampla e inclusiva. Ademais, os nossos esforços encontrarão sentido se trouxerem maior visibilidade à obra de Viktor Frankl e ao seu investimento existencial na tarefa de contribuir para a construção interdisciplinar do cuidado clínico capaz de acolher a plena humanidade do homem. 9 Artigo I A PLENITUDE HUMANA NA PERSPECTIVA DE VIKTOR FRANKL Calheiros, M. E. Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica. Universidade Católica de Pernambuco. Recife, PE. [email protected] 10 Resumo Este artigo teve como objetivo geral compreender a concepção do humano na perspectiva de Viktor Frankl. Os objetivos específicos foram estudar os fundamentos filosóficos e antropológicos do seu pensamento sobre o homem; pesquisar os significados do seu Experimentum Crucis; e, ainda, elucidar a sua Ontologia Dimensional. O estudo optou pela metodologia qualitativa na perspectiva fenomenológica existencial, através de pesquisa bibliográfica realizada a partir de obras selecionadas pela concernência ao tema, na literatura do autor e de alguns de seus principais intérpretes. Lançou-se mão do método analítico de Critelli para a compreensão do Experimentum Crucis frankliano. As conclusões revelaram elementos filosóficos agostinianos e tomísticos na concepção frankliana de “plenitude humana” como autotranscendência, assim como mostra fortes influências da axiologia de Max Scheler e da ontologia fundamental de Martin Heidegger. Contudo, apesar da influência de uma gama de autores com perspectivas epistemológicas diversas, este estudo revela a originalidade e a unidade interna do pensamento de Viktor Frankl sobre o humano. Palavras-chave: Experimentum Crucis; Ontologia Dimensional; Antropologia de Viktor Frankl; Plenitude humana; Autotranscendência. 11 Abstracts The general intention of this article was to understand the concept of human being in the thought of Viktor Frankl. In particular, the aims were to study the anthropological and philosophical foundations of his thinking about the man, research the meaning of his Experimentum Crucis, and also clarify his Dimensional Ontology. The study used a qualitative methodology in existential phenomenological perspective, involving bibliographical research into those writings of Frankl and some of his principal interpreters which are relevant to the theme. The Critelli’s analytical method was employed in seeking to understand Frankl’s Experimentum Crucis. Conclusions reveal Augustinian and Thomist philosophical elements in Viktor Frankl's conception of "human fulfillment” as selftranscendence, as well as shows strong influences of Max Scheler's axiology and Martin Heidegger's fundamental ontology. However, despite the influence of a range of authors with diverse epistemological perspectives, this study reveals the originality and internal unity of Frankl’s thought about human. Keywords: Experimentum Crucis; Dimensional Ontology; Viktor Frankl’s Anthropology; Human fulfillment; Self-transcendence. 12 APRESENTAÇÃO A antropologia implícita a uma prática psicoterápica possui clara importância para sua efetividade, uma vez que a perspectiva teórica do humano com a qual se trabalha tenderá a circunscrever o alcance do cuidado na realidade clínica. Em concordância com este fato, a razão do nosso estudo sobre a concepção do humano no pensamento de Viktor Frankl é a implicação direta que esta possui na compreensão das práticas clínicas por ele propostas. Não se trata, portanto, de um interesse puramente teórico ou de uma simples revisão teórica da obra do autor. Trata-se de uma pesquisa dirigida aos conteúdos de sua obra que compõem a sua visão de homem, seja como antropologia, seja como ontologia. O exame dos caminhos pelos quais Frankl chegou à sua concepção de homem e as fontes originais nas quais se inspirou se constituem em importantes pistas para a compreensão do homem frankliano. Estas vias mostram, especialmente, como se originaram a compreensão do homem como tri-unidade, a sua Ontologia dimensional e a vivência da sua experiência crucial descrita como Experimentum Crucis. A antropologia procedente das ciências naturais modernas, hegemônica na área de saúde na contemporaneidade, restringe os recursos terapêuticos às esferas física e psíquica do homem e condiciona - tanto quem recebe o cuidado, quanto quem o dispensa – ao esquecimento da dimensão espiritual, exatamente aquela que detém os mais ricos atributos e possibilidades criativas no humano. Para a compreensão da situação da espiritualidade no contexto acadêmico moderno, tornam-se necessárias algumas compreensões de natureza histórica e sócio-políticas. A modernidade se constituiu, segundo Zigmunt Bauman (2001, p. 9), em um processo de liquefação dos elementos tradicionais, através da libertação dos resíduos históricos “solidificados” na realidade, rejeição da tradição e profanação da sacralidade. Bauman observa que a intenção moderna em destituir as concretudes herdadas não foi para substituílas pelo autenticamente novo, mas para a criação de outro conjunto que, aperfeiçoado, fosse inalterável e possibilitasse um mundo inteiramente previsível e administrável. As lealdades tradicionais provenientes do mundo medieval decadente – com suas responsabilidades mútuas entre os homens - deram lugar a um novo campo no qual a economia passou a predominar. Bauman registra uma invasão desta racionalidade instrumental e lembra que o domínio 13 econômico se converteu (conforme expresso pelo marxismo) na “estrutura” da sociedade, que passou a determinar os demais domínios, os quais passaram a ser considerados apenas uma “superestrutura” (Bauman, 2001, p. 10). Em vista dessas afirmações, observamos que no contexto moderno a espiritualidade partilha a mesma condição de “adereço” superestrutural com as manifestações culturais em geral. No âmbito das ciências passa a vigorar apenas o potencial técnico de um sistema econômico fundamentado no princípio da “realização” e no ethos utilitarista, segundo Krishan Kumar (1997, p. 113). No mesmo texto, este autor, recorrendo às ideias de Herbert Spencer e Talcott Parsons, ressalta que a modernidade diferenciou a sociedade em subsistemas nos quais princípios próprios poderiam ser aplicados com liberdade desde que na vigência específica dos diferentes “reinos”. Isto indica que a espiritualidade passou a ter uma legitimidade regulada, restrita às instituições religiosas e - no âmbito acadêmico -, à normatividade disciplinar enquanto ciências da religião ou teologia. Isto implica, na nossa percepção, que a inibição da espontaneidade no trato da espiritualidade e a ausência de fluxo interdisciplinar privaram várias áreas do conhecimento de se enriquecerem a partir da fecundidade da dimensão espiritual humana. Este fato repercutiu muito especialmente na área da saúde, na forma de reducionismo antropológico e da sua consequente insuficiência no cuidar. O esvaziamento da espiritualidade na modernidade, contudo, extrapola o âmbito do conhecimento e ressoa em todo o mundo humano. O mundo da técnica representa um progresso de aparência, na qual o sentido profundo da vida se perdeu e se obscureceram os problemas fundamentais da existência. A aparência ganhou estado de realidade e o homem passou a crer em sua autossuficiência, em meio a uma sociedade que tudo sacrifica em função de sua autojustificação histórica, indiferente a toda dor que isto possa representar (Teixeira, 2005). Os vários fenômenos frequentemente apontados como característicos da contemporaneidade, como aqueles relativos à perda dos referenciais pessoais e familiares; ao crescimento exponencial da violência e da drogadição; à emergência de novas formas de sofrimento psíquico; à massificação e ao paradoxal individualismo que a acompanha, podem ser expressões do vazio de sentido de um mundo humano imerso em ameaçadora crise do seu próprio nível constitutivo, segundo, o neuropsiquiatra austríaco criador da Logoterapia, Viktor Emil Frankl (1995). Um sentimento generalizado de carência de sentido, mais que a própria carência de condições materiais, estaria por trás dos estados de sofrimento de muitas pessoas - 14 de todas as classes sociais - que buscam primordialmente não o sustento “pelo qual viver”, mas uma causa “para a qual viver” e que lhes dê sentido à vida. Frankl afirmou antever e descreveu este vazio existencial décadas antes de se tornar uma “neurose de massa em escala mundial”, quando a sociedade industrial e de consumo passou a satisfazer – e mesmo a gerar as necessidades materiais do homem, sem responder à mais humana de todas as necessidades, que permanece em estado de frustração: a vontade de sentido (Frankl, 1995, p. 259). A orientação para um sentido e para o futuro seria, para Frankl, fundamental para a própria sobrevivência no mundo atual, uma vez que no vazio existencial tende a “proliferar aquela tríade neurótica de massas composta de depressão, vício e agressão” (Frankl, 1995, p. 260-261). Frankl assevera que mesmo a juventude denominada no future generation - uma geração sem futuro – é recuperável. E acrescenta que estes jovens apreciam serem “exigidos” nas situações concretas em que são postos diante de uma missão que lhes seja adequada. A busca por novas e mais abrangentes concepções do humano - que respondam às grandes demandas pessoais e sociais pelo sentido do existir -, tornou-se uma questão de importância cardinal. A proposta psicoterápica de Viktor Frankl vem ao encontro desta pungente realidade, portando uma antropologia inclusiva em relação ao espiritual, que subsidia práticas terapêuticas e preventivas voltadas para a atual profunda crise de sentido. O autor José Benigno Freire destaca que a espiritualidade, conforme proposta por Frankl, não apenas distingue o que seja o humano, mas ainda constitui o núcleo dos atos e do existir do homem (Freire, 2007). O principal objetivo deste estudo é interpelar esta antropologia capaz de tematizar a espiritualidade no próprio âmbito das ciências da saúde e de, na forma de cuidado integral, propor saídas para a dor humana em meio à complexa crise do mundo contemporâneo. 15 1 A CONCEPÇÃO DO HUMANO EM VIKTOR FRANKL Viktor Frankl apresenta o homem como um ser complexo que, além de possuir as dimensões corporal e psíquica – das quais a medicina e a psicologia se ocupam principalmente - ainda existe enquanto ser espiritual. Frankl se viu insatisfeito com os limites impostos pelo que considerava os reducionismos presentes na antropologia médica moderna, nas formas de biologismo, psicologismo ou sociologismo (Frankl, 2008b, p. 134). Para ele, o contexto científico e profissional de sua época refletia uma realidade na qual os fenômenos especificamente humanos haviam se tornado “meros epifenômenos”, sendo o amor tratado como “instintos reprimidos”; a consciência nada mais que o “superego”; Deus apenas uma “imagem paterna”; a religião uma “neurose” e a espiritualidade uma “forma elevada” de função cerebral (Frankl, 2008b, p. 135). Em resposta a estes fatos, concebeu uma psicoterapia que não apenas reconhecia a espiritualidade, mas partia exatamente desta dimensão (Frankl, 1995; 2009). A esta forma abrangente de psicoterapia, denominou Logoterapia - do grego logos, que tomou como “sentido”, constituindo uma proposta psicoterápica aberta à dimensão do exclusivo fenômeno humano. Para distanciar sua teoria da conotação religiosa, escolheu chamar a espiritualidade de “dimensão noética” (do grego noûs, ‘razão’, ‘espírito’), classificando-a claramente como uma dimensão propriamente antropológica e não sobrenatural ou teológica (Frankl, 2007b). O termo noûs provém do grego , que significa “ver discernindo” (Ferrater Mora, 2004, p. 2100). É usado em muitos textos filosóficos em sentidos diversos - desde os pré-socráticos à atualidade -, mais frequentemente como “inteligência”, “espírito” e “sabedoria”. Em Plotino é tomado como “visão inteligível do Uno”; em Aristóteles refere-se à “parte superior da alma”; e, ainda, em Santo Agostinho, aparece como “vida interna do espírito” (Ferrater Mora, 2004, p. 2117). Frankl se refere a uma noologia orientada em “linha metafísica”. Esclarece, contudo que não se trata de um “metafísico por trás do físico”, usando a compreensão que compartilha com Max Planck de que a realidade metafísica não se acha atrás dos dados da experiência, mas dentro deles (Frankl, 2006, p.92-93). A visão frankliana de mundo encontrou expressão na filosofia da existência e na fenomenologia, principalmente pela influência de Max Scheler e pela aproximação às obras de Martin Heidegger, Karl Jaspers e Nicholai Hartmann. Sabe-se que a comunidade de 16 pensadores fenomenológico-existenciais da primeira metade do século XX, anunciou o período crítico do espírito europeu, que culminaria historicamente com as duas grandes guerras. O pensamento de Edmund Husserl sobre a cultura europeia e sua missão em relação ao Ocidente se expressou nas suas conferências proferidas em Friburg (1917-1918), nos artigos publicados na revista japonesa Kaizo entre 1923-1924 e na conferência de Viena em 1935, reunidos no conhecido opúsculo denominado A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia, segundo informa Mário Alves (2006; pp. 3-10) na introdução à edição portuguesa. A reflexão husserliana, pioneira entre as vozes de outros pensadores, prenunciava acontecimentos que se seguiriam a esta crise, centrada especialmente na ideia de uma profunda decadência, mas também na possibilidade de um revigoramento do mundo espiritual europeu (Husserl, 2008). Este foi um período crítico para toda a intelectualidade vienense. No âmbito acadêmico, Frankl fez parte de uma geração antecipadora da inquietação metodológica que se firmaria na segunda metade deste século, descrita por Norman Denzin como “uma grande inquietação entre alguns pesquisadores qualitativos com o abandono dos padrões científicos convencionais” (Denzin, 2006, p. 372). Frankl vivenciou intensamente esse período - como intelectual e como médico – e sua obra demonstra preocupação com o niilismo crescente no pensamento europeu, mas também com a sua repercussão na dimensão do cuidado. Revelou inquietação não apenas por uma nova perspectiva, mas pela conquista de um olhar mais compreensivo sobre a realidade humana, implicado em uma atitude mais vivencial e inclusiva dos modos de conhecer e de validar o conhecimento, o que viria a encontrar nas vertentes fenomenológicas existenciais, as quais passavam a inspirar a psicoterapia de então. No seu primeiro livro publicado após a guerra, afirma que uma das missões mais importantes da psicoterapia seria “evocar esse ser-livre perante as condições falsamente todopoderosas”, denunciando que a filosofia estaria sendo injuriada ao ser classificada como “nada mais que sublimação da sexualidade reprimida”, sendo ela capaz exatamente de “mostrar ao paciente o caminho para uma elucidação desta liberdade” (Frankl, 2003, p. 3940). Seu pensamento foi marcado pelo contexto histórico crítico, mas sua ênfase foi, por excelência, na preocupação com um revigoramento da visão integral do humano, capaz de inspirar um cuidado abrangente em relação à espiritualidade do homem. A logoterapia e a análise existencial refletem uma mesma realidade, constituindo as “duas faces de uma mesma teoria”, segundo Frankl (1995, p. 60). A primeira é caracterizada como método psicoterápico e a segunda como uma linha antropológica de pesquisa. Frankl se 17 refere ao Dasein como forma especial de compreensão do humano, para o qual a filosofia contemporânea reservou o termo “existência” (Existenz), sendo considerado pela logoterapia neste mesmo sentido (Frankl, 2003, p. 179). A reflexão filosófica da qual procede a Logoterapia é elaborada por Frankl na forma de uma analítica existencial própria. Esta analítica tem por função primordial sustentar teoricamente seu método logoterápico e dela emerge uma visão do homem enquanto ontologia, como reflexão acerca do sentido do ser humano e da sua existência. Frankl esclarece que a análise existencial não significa uma análise da existência, mas uma forma de compreendê-la e explicá-la tanto ôntica quanto ontologicamente (Frankl, 1995, p. 60-61). A expectativa de Frankl não consistiu em substituir os modelos existentes de psicoterapia, mas oferecer um meio complementar para o acolhimento da dimensão espiritual, que percebia como negligenciada pelas modernas profissões da saúde. A psicoterapia estritamente científico-empirista, afirmava Frankl, seria cega em relação ao sentido e aos valores espirituais (Frankl, 1966) 4. O caminho metodológico para a elucidação da concepção frankliana do humano, a qual representa o cerne dos nossos objetivos neste texto, se mostrou inicialmente como uma tarefa simples. Revelou sua complexidade, porém, à medida que identificávamos a multiplicidade das fontes de conhecimento às quais nosso autor teve acesso, provenientes de diferentes campos ou mesmo pertencentes a tradições paradigmáticas consideradas opostas. Compreendemos também que o estudo da obra de Frankl tendo como finalidade específica elucidar sua concepção acerca do humano, possuíam alguns obstáculos a serem transpostos além da sua intrínseca complexidade. Dentre estes obstáculos, que preferimos tomar como desafios - com os quais nos deparamos desde o início da pesquisa bibliográfica -, dois se apresentaram como mais importantes, dos quais trataremos a seguir. O primeiro desafio, mais óbvio, corresponde à relativa dispersão em que se acham os textos alusivos ao tema, ao ser considerado o todo da obra em exame. A obra frankliana não possui um traçado didático convencional que facilite a pesquisa de um determinado aspecto do seu pensamento. Não encontramos a concepção frankliana do humano delineada ou esboçada conclusivamente em um só texto, mas entremeada aos demais aspectos que constituem sua tecedura teórica. Inicialmente, atribuímos este fato à notória espontaneidade 4 Esta afirmação consta da introdução à segunda edição norte-americana do livro The Doctor and the Soul (Ärtzliche Seelsorge), na qual Frankl sintetiza sua conferência de apresentação da sua teoria à Royal Society of Medicine, Section of Psychiatry, em 15 de junho de 1954 (Londres). 18 da produção intelectual do autor, configurada pari passu com a vida, como resposta tanto às questões acadêmicas quanto às demandas práticas do seu tempo. Isto tem se resolvido, em grande parte, graças ao trabalho colaborativo de pesquisadores de vários idiomas e nacionalidades, que avançam no sentido do mapeamento bibliográfico da obra de Frankl. Percebemos que este princípio atua igualmente na construção de sua perspectiva sobre o humano: uma realidade teórica que é entregue ao leitor através de muitas cintilações, de forma quase lúdica, possivelmente à medida que ele mesmo as vislumbrava. No curso do nosso investimento na leitura sistemática de suas obras descobrimos que havia outras causas para essa aparente dispersão as quais estariam relacionadas com o que considerávamos a segunda e verdadeiramente significativa – dificuldade, como veremos a seguir. O que identificamos como o segundo desafio requer um tratamento mais sutil. Referimo-nos à forma com que Frankl lidou com diferentes campos epistemológicos e paradigmáticos, sem que estes fossem apenas sincreticamente agregados. Estas diferenças mostraram-se dispostas de modo a formar um todo harmonioso, em cuja trama era possível perceber as fímbrias de algumas tradições do pensamento filosófico e de outros autores que o influenciaram, porém de forma a estarem surpreendentemente “amalgamadas”. Suas fontes provinham tanto da sua vivência pessoal - particularmente marcante - quanto da dupla especialização profissional em neurologia e a psiquiatria, disciplinas epistemologicamente distanciadas. A esta diversidade epistemológica foram acrescentados novos horizontes paradigmáticos, alcançados pelo seu doutoramento em filosofia. Seria preciso descobrir como Frankl equacionou aportes tão diversificados para construir uma visão coerente do humano e, principalmente, saber se possuía – como suspeitávamos - uma concepção prévia e autenticamente sua, como uma matriz, à qual vieram aderir suas diversas influências. Recorremos a trabalhos de outros pesquisadores com o objetivo de conhecer o estado da arte em relação aos aspectos que enfocamos na obra de Frankl e, sobretudo, em busca de percepções que viessem reiterar as nossas observações pessoais. Encontramos na literatura de Mario Caponnetto, médico e escritor argentino especializado em estudos tomísticos e logoterápicos, observações análogas nossas, em sua obra Viktor Frankl, una antropología médica. Este autor afirma que as grandes vertentes filosóficas da modernidade podem ser percebidas “assimiladas” e “transfiguradas” em “um núcleo originário que é genuinamente frankliano”, a partir do qual Viktor Frankl outorgou “o tom, o ritmo e a chave à Logoterapia” (Caponnetto, 1995; p. 11). 19 Os relatos biográficos acerca de Viktor Frankl mostram que ele investiu as primeiras décadas de sua vida intelectual na construção e amadurecimento de sua perspectiva acerca do homem, chave das formas de cuidado que posteriormente projetou. Embora tenha se preocupado desde a juventude com a questão do sentido, somente a partir da década de 1950 Frankl formalizou seu pensamento e engendrou a logoterapia com base na sua analítica existencial. A visão do humano, que resultou nas suas propostas teóricas e práticas, teve origem na convergência entre sua realidade pessoal e o conhecimento adquirido, ambos imersos no contexto da Viena do início do século XX. Conhecer estas duas realidades convergentes possibilitar-nos-á uma mais apurada compreensão do seu pensamento. As próximas sessões permitirão ver emergir, a partir da vida e a partir da obra de Viktor Frankl, essa antropologia que busca integralidade. 20 2 A VISÃO DO HUMANO QUE EMERGE DA VIDA As condições histórico-pessoais de um autor são sugestivas fontes de conhecimento e frequentemente valorizadas para a compreensão do seu pensamento. Esta importância se torna capital no caso de um autor que tome suas experiências concretas como um verdadeiro “laboratório existencial” para comprovar a validade das suas teorias. Este é o caso inusitado de Viktor Frankl; a experiência foi a situação extrema por ele vivida como prisioneiro de campos de concentração; e, por fim, a teoria que ele julgou comprovar é a que toma o ser humano como portador - além das dimensões corporal e psíquica -, de uma dimensão mais abrangente, dotada de uma surpreendente força de resistência. Frankl afirma que o ser humano, elevando-se “acima de toda a sua condicionalidade”, é capaz de conferir sentido à existência mesmo nas situações extremas e de resistir, apoiado na força que denomina “o poder de resistência do espírito” (Frankl, 2003b, p. 41). A esta experiência existencial, historicamente desenrolada no âmago dos acontecimentos da II Guerra Mundial e socialmente vivenciada em vários guetos e campos de concentração como os de Dachau e Auschwitz, Viktor Frankl denominou Experimentum Crucis. A importância das peculiaridades biográficas deste autor está, evidentemente, magnificada neste caso. Conhecer suas especificidades se torna uma exigência e uma premissa à compreensão de seu pensamento. 2.1 Biografia Viktor Emil Frankl nasceu em Viena no ano de 1905, filho de uma família de judeus observantes, tendo acesso à cultura judaica no ambiente doméstico, através do pai Gabriel Frankl, um funcionário do Ministério da Educação, e de sua mãe, Elsa Lion, cujos parentes descendiam de um conhecido rabino polonês. Segundo o analista existencial Alfried Längle, seus pais sempre viveram no distrito municipal dois de Viena, típico de judeus pobres emigrantes do século XIX. Embora sendo de posição humilde e tenham passado necessidades durante a Primeira Guerra, costumavam viver em habitações amplas e bem iluminadas, 21 próximas do centro da cidade (Längle, 2000, p. 39). Em suas próprias memórias, Frankl se refere a uma infância vivida em clima de serenidade e afeto, que o tornou profundamente ligado à casa paterna. Refere-se à mãe como uma “alma bondosa” e “devota de coração” e ao pai como um homem de caráter espartano - apesar da natureza igualmente devota -, que foi um dos primeiros judeus liberais da Áustria (Frankl, 2006b; p. 7,11). Segundo o autor José Benigno Freire, este ambiente familiar saudável e terno proporcionou a Frankl o desenvolvimento de uma personalidade equilibrada e ponderada mesmo nas difíceis situações que viria a experimentar (Freire, 2007; p. 32). A influência do seu pai se mostraria na missão de psicohigiene que Frankl assumiu junto aos jovens deprimidos e com tendências suicidas no período após a I Grande Guerra. De fato, o jovem Viktor Frankl iniciou precocemente alguns trabalhos sociais que demonstraram sua visão antecipadora e sua inquietação em relação ao sofrimento humano. A educação laica de Frankl se deu na Viena do início do século XX, cujos ambientes cultos foram especialmente favoráveis ao florescimento da psicoterapia e emblemáticos por serem o berço de Freud e Adler (Freire, 2007). Aos quinze anos Frankl iniciou sua comunicação com Sigmund Freud através de carta, e no ano seguinte já proferiu uma palestra com suas reflexões iniciais sobre o sentido da vida. Em 1924, aos dezenove anos, frequentou os círculos da psicanálise e teve seu primeiro artigo científico publicado por indicação de Freud, no periódico Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse. Atuava, então, como líder junto à juventude obreira socialista. No ano seguinte ingressou na Associação Internacional de Psicologia Individual - na companhia de Oswald Schwarz e Rudolf Allers -, participando como palestrante em diversos eventos estudantis e sendo eleito vice-presidente de uma associação acadêmica em prol da Psicologia Médica. Inaugurou, em 1929, por iniciativa de Hugo Sauer e com o apoio de Charlotte Bühler, diversos centro de assistência gratuita para jovens com necessidade de apoio psicológico no período entreguerras, cujo modelo foi levado a diversos países vizinhos. As reflexões filosóficas despontaram cedo na vida de Frankl, sendo significativo o episódio no qual, durante uma aula, aos treze anos, o professor afirmou que a vida seria apenas um “processo de oxidação”. A esta declaração, Frankl redarguiu com a fundamental pergunta sobre o sentido da vida, segundo sua própria narrativa (Frankl, 2008b). O jovem Frankl já demonstrava uma forte convicção em relação à dignidade do homem e de um apurado senso de dever, uma espécie de “mandato social” que ele abraçara como próprio. Os períodos correspondentes à sua produção precoce (antes da Segunda Guerra), mediana (entre a Segunda Guerra e a década de 1950) e a tardia (até os anos noventa) parecem evidentes, 22 porém a constância com que abordou os temas da integralidade humana e do “sentido da vida” é um dos fatores que induz a considerá-la de forma contínua, uma vez que seu pensamento mostra uma crescente e coerente maturação, mais que fases de construção. O ano de 1930 fez coincidir o último ano do curso médico e os primeiros estudos de Frankl sobre axiologia, nos quais definiu os valores que configuram o sentido da vida (valores de criação, de vivência e de atitude). Frankl passou a atuar com Otto Pötzl na Clínica Neurológica da Universidade de Viena e com pacientes suicidas no Hospital Psiquiátrico de Viena. Em 1933 engendrou o conceito de Análise Existencial (Existenzanalyse), embora só tenha chegado a publicá-lo em 1938, o mesmo acontecendo com o termo Logoterapia. Fundou, em parceria com Pötzl, a Associação Médica para Psicoterapia, que tem entre seus primeiros membros Anna Freud, Alexandra Adler e Rudolf Allers (Frankl, 2008b). Os anos que antecederam a Segunda Grande Guerra foram tensos no contexto social de Frankl, especialmente no círculo judaico de então, quando muitos intelectuais judeus foram aconselhados a emigrar. Frankl deixou vencer, em 1939, o seu visto para os Estados Unidos por haver decidido permanecer com os pais e protegê-los durante o período de adversidade que já claramente se divisava. Assumiu a direção da seção de Neurologia do Hospital Rothschild em 1940 e, no ano seguinte, casou com Tilly Grosser. No final do ano de 1942 foi detido pelos nazistas e deportado com seus parentes, para guetos e campos de concentração. Seu pai faleceu já em Theresienstadt, antiga fortaleza na Boêmia transformada em gueto judaico. Durante os meses em que a família Frankl esteve no gueto de Theresienstadt, foi possível a Frankl cuidar de seu pai até os últimos instantes. Posteriormente, Frankl e sua mãe foram trasladados para Auschwitz, onde esta faleceu em 1944 (Frankl, 2006b). Iniciou-se o período em que, destituído de tudo que havia conquistado até então, Frankl viveu uma experiência que posteriormente veio a considerar seu Experimentum Crucis, ou seja, uma experiência crucial para comprovação de sua teoria. 2.2 O Experimentum Crucis Frankl compreendeu que as experiências por ele vividas nos campos de concentração se constituíam em uma prova de que há uma dimensão espiritual operante no humano. No 23 prefácio à edição de 1984 do seu livro Em busca de sentido, afirma que o relato de suas experiências no campo de concentração serve como “validação existencial” de suas teorias e que a segunda parte que acrescentou ao livro – de natureza teórica, contendo os principais conceitos da logoterapia – possibilita que as duas partes confiram credibilidade uma à outra. Relata que seu objetivo ao escrever esta obra foi comunicar a ideia de que a vida possui um sentido incondicional, mesmo nas situações mais adversas. Frankl tinha em mente que a “capacidade de resistência do espírito” teria possibilitado sua sobrevivência às condições de extrema adversidade e, portanto, comprovar sua tese no contexto de um campo de concentração poderia ajudar as pessoas com tendência ao desespero (Frankl, 2008b; ps. 9 e 10). As leituras fugazes da obra de Frankl, no entanto, levam frequentemente à interpretação do termo Experimentum Crucis apenas como alusivo à dimensão simbólica da cruz, como “experiência de sofrimento”. Deixa-se de atentar para o seu significado metodológico, como experimento empírico crucial, ou seja, cabal e conclusivo, capaz de provar uma determinada hipótese e legitimá-la, ao tempo que refuta todas as demais. O lógico britânico William Stanley Jevons afirma que podem ser classificados como Experimentum Crucis “qualquer experimento que decida entre duas teorias rivais” (Jevons, 2003; p. 519) 5. Observa-se, portanto, que o termo Experimentum Crucis aponta, no contexto da obra de Frankl, para dois significados que, por sua vez, indicam os dois eixos com que este construiu sua teoria: inicialmente aponta para a experiência como vivência pessoal de sofrimento (primeiro eixo) e, depois, como experimento científico (segundo eixo). Esta aparente dualidade constitui um expressivo exemplo de como Frankl tratou, de forma natural e simultânea, os objetos da ciência e os fenômenos da existência no seu pensamento. Por este motivo, no que tange ao seu Experimentum Crucis, Frankl lidou simultaneamente com circunstâncias e com vivências, segundo as especificidades de cada uma. Pode-se, assim, inferir que Frankl compreendia que as circunstâncias devem ser “provadas” (porque possuem causa) enquanto que as vivências requerem ser “compreendidas” (porque possuem motivos), 5 A expressão Experimentum Crucis é comumente relacionada no meio acadêmico ao sexto experimento realizado por Isaac Newton (1642-1727) sobre refração da luz, em 1666, sob o título de “A nova teoria sobre luz e cores” (Thompson, Evan. Colour vision: A Study on Cognitive Sciences and the Philosophy of Perception. New York: Routledge, 1995; p. 4). Na verdade a expressão foi usada primeiramente por Francis Bacon (15611626) em seu Novum Organum, em 1620, segundo relata Augusto de Morgan, levantando as suposições de que Newton adotou o termo de Bacon ou, conforme outra vertente, ambos o teriam extraído de seus próprios estudos alquímicos (Morgan, Augustus de. A Budget of Paradoxes. Vol. 1 - ; 2ª ed. Reimpressa. New York: Dover Publications, 1969). 24 em consonância com o que, segundo Creuza Capalbo (2008), propõe Jaspers em sua Psicopatologia, fazendo uso da distinção husserliana entre motivos e causas. Uma questão metodológica se apresenta como imprescindível a respeito do Experimentum Crucis frankliano e se refere à legitimidade deste experimento ocorrido no curso espontâneo da vida. Sendo possível prever que tal experimento se mostre estranhável no âmbito científico, esta questão deve - na medida do possível - ser tratada com vistas ao esclarecimento. A mais plausível das possibilidades parece-nos ser a interpretação desta concepção frankliana segundo o método fenomenológico, o qual – em relação aos métodos científicos empiristas - implica em modos inteiramente diversos de olhar a própria realidade. Segundo Dulce Critelli, toda possibilidade de ser e de conhecer tem como fundamento a existência humana enquanto coexistência, onde o seu ser-no-mundo-com-os-outros se constitui no fundamento para o movimento fenomênico, pelo qual se dá a possibilidade do real como acontecimento (Critelli, 2007). As coisas que existem se tornam reais quando se mostram, pelo “movimento de realização do real”, na concretude da história, entre homens igualmente concretos e históricos. Através deste movimento, algo se torna real quando é desvelado por alguém, revelado a outros e, uma vez testemunhado pelos outros, é por estes publicamente veracizado e autenticado, pela vivência afetiva e singular dos indivíduos. Critelli afirma que a metafísica cartesiana que embasa toda a ciência moderna, seria essencialmente impessoal, o que exige uma nova reflexão sobre as oposições “entre indivíduo e coletivo, universal e particular, subjetivo e objetivo.” Acrescenta que “pela relevância dada à experiência dos indivíduos”, esta experiência adquire “valor de fidedignidade” (Critelli, 2007; p. 101). No âmbito da pesquisa fenomenológica, o experimento frankliano, atende às exigências de todos os momentos do acima descrito “movimento de realização do real”. Assim compreendida, a experiência frankliana é referendada (veracização) e efetivada (autenticação) pela vivência de milhares de leitores-testemunhas de seu comunicado escrito que, na forma do livro de memórias, narra uma realidade que lhe foi desocultada na ambiência concreta dos campos de concentração. Diante do modo como Frankl vivenciou estes fatos, podemos concluir – do ponto de vista metodológico - que o Experimentum Crucis frankliano possui o valor de fidedignidade necessário à aceitação da sua legitimidade. É do ponto de vista do seu significado existencial profundo, porém, que tais acontecimentos abrem amplos horizontes interpretativos para testemunhar a riqueza de possibilidades de uma vida que - em medidas humanas - encontra sua plenitude de sentido. 25 3 A VISÃO DO HUMANO QUE EMERGE DA OBRA A construção da concepção acerca do homem no pensamento de Viktor Frankl se dá em um continuum, sem significativas rupturas, de modo que até mesmo os aportes marcantes – como seu doutoramento em filosofia – parecem acrescentar-lhe apenas uma nova capacidade para articular e expressar aquilo que já estava latente em suas ideias. Anteriormente, no curso deste trabalho, referimos às percepções análogas às nossas, encontradas em Caponnetto, em relação à forma como Frankl teceu as múltiplas influências por ele recebidas. Para a nossa atual observação acerca da continuidade temporal do corpus teórico de Frankl, novamente encontramos respaldo junto ao referido autor, que assevera haver tal unidade interna na obra frankliana que qualquer divisão nela operada resultará em uma sobreposição inevitável de diversos aspectos (Caponetto, 1995). Em virtude deste fato resolvemos não demarcar o desenvolvimento teórico de Frankl em etapas, mas acompanhar a urdidura de sua concepção do humano pela dupla perspectiva antropológica e ontológica. Nossa proposta examina cada uma delas à parte, apenas como momentos necessários de reflexão, com a finalidade de perceber como as diversas influências vieram se somar às ideias originais de Frankl. Portanto, embora enfocando certas questões ontológicas e antropológicas separadamente - como “estações” de uma jornada - não renunciaremos à constante remissão ao percurso completo, ou seja, ao desenvolvimento da concepção do humano no todo da obra de Frankl. 3.1 A antropologia frankliana A visão de Viktor Frankl sobre a questão do humano começa a se diferenciar em sua obra desde o primeiro de seus escritos, o livro Ärztliche Seelsorge. Esta obra teve os seus originais perdidos durante a guerra e foi rapidamente reescrita no após-guerra, a partir de pequenos pedaços de papéis retirados do lixo dos campos de concentração, nos quais Frankl foi reconstituindo suas ideias. A sua antropologia vai se configurando teoricamente em uma época em que a Antropologia filosófica começada a se caracterizar como disciplina (pelos trabalhos de Scheler) e a Antropologia médica ainda não havia sequer se constituído formalmente. 26 A Antropologia é, em seu sentido lato, reconhecida como a ciência que estuda o homem. Diferenciada enquanto disciplina moderna no século XIX restringiu-se às características físicas do humano, o que se refletiu no uso frequente dos métodos antropométricos, segundo Ferrater Mora (2004), compilando dados que subsidiaram a chamada antropologia cultural, a qual também os colhe da etnografia e da arqueologia, estudando as culturas humanas. A Antropologia médica, disciplina incipiente e em busca de um nível mais elevado de sistematização (Caponetto, 1995, p.13), estuda o homem no contexto saúde-doença, buscando conhecer as ideia implícitas às práticas médicas. O termo antropologia, que segundo Houaiss (2009) deriva dos radicais gregos ánthrópos ('homem') e logía (‘saber’), ainda pode nos revelar que o próprio antepositivo ánthrópos procede de antrum ('caverna') e tropo (“afinidade por”), evidenciando sua relação com as ciências naturais evolucionistas. É conhecido o fato de que o homem é considerado, no âmbito científico moderno, o animal racional que, após estar por longos períodos abrigados em cavernas, delas saiu para desenvolver os contextos socioculturais em que vive. Em oposição a estes desenvolvimentos está a antropologia filosófica, que surgiu nos primórdios da cultura ocidental enquanto interrogação fundamental sobre o humano, em torno do século VIII A.C., segundo o relato de Henrique Lima Vaz (2009). Este autor lembra que a própria pergunta “o que é o homem?” já faz emergir a “singularidade própria do homem que é a de ser interrogador de si mesmo”. Esclarece Vaz que a Antropologia filosófica não toma o homem como mero objeto de seu discurso, mas procura construir esse discurso fazendo com que o homem, objetivado, mantenha sua “natureza de sujeito”. Portanto, a Antropologia filosófica intenta “construir o discurso sobre o homem-objeto (epistemologicamente), formalmente considerado como sujeito (ontologicamente)", ainda segundo Vaz (2009, p. 3). O encontro, no final do século XVIII, com as emergentes ciências humanas e as ciências da vida, exigiu deste questionamento filosófico sobre o homem um posicionamento epistemológico em relação às teorias e métodos dos novos saberes. A crise desencadeada por estes fatos tinha natureza histórica (nas muitas “imagens do homem” dominantes no decorrer da civilização ocidental) e natureza metodológica (pela fragmentação do “objeto da Antropologia filosófica” na diversidade das várias ciências do homem), segundo Vaz (2009, p. 4). Max Scheler, considerado o instituidor da Antropologia filosófica contemporânea, estudou atentamente esta crise, demonstrando que a falta de uma “ideia do homem” provém da pluralidade das ciências que se especializaram em estudá-la, pois esta pluralidade 27 encobriria sua “essência” mais que ajudaria a iluminá-la. Considerando a grande complexidade para o estudo do homem na contemporaneidade, Scheler se dispôs a tentar construir uma nova Antropologia filosófica, de base “maximamente ampla” (Scheler, 2003, p. 6). De fato, em seu livro A posição do homem no Cosmos (o conhecido Die stellung des menschen im Kosmos), Scheler trata a Antropologia filosófica como uma “ponte estendida entre as ciências positivas e a metafísica”, na expressão de Ferrater Mora (2004). Scheler destaca que a missão da antropologia consiste em mostrar como a estrutura fundamental do ser humano explica todos os “monopólios” do homem: a linguagem, a consciência moral, a justiça, a arte, a religião, a ciência, a historicidade e a sociabilidade. Considerando que pulsão e sentido se compertencem, Scheler afirma que todo racionalismo pleno está fundado no “ideal ascético”, sendo por isso que o homem é o “asceta da vida”, o único ser capaz de dizer “não” à mera realidade. Este homem aprimora seu ser assumindo uma postura de indiferença perante as contingências existenciais para, no equilíbrio de uma eterna tensão entre ímpeto e espírito, encontrar a “verdadeira vida” e “verdadeira determinação” (Scheler, 2003, p. 53). Torna-se claro que o homem apresentado por Frankl sofreu profunda influência scheleriana. Frankl conheceu seus escritos no grupo de Adler, segundo registra Längle (2000), afirmando que a logoterapia e a análise existencial franklianas se fundamentam na fenomenologia, na filosofia e na antropologia de Scheler. Ainda segundo Längle, o conceito de “consciência” em Frankl corresponderia à “ética dos valores” de Max Scheler, que atribui à pessoa a capacidade de percepção do valor; a ideia de “antagonismo psiconético” do primeiro equivaleria à “dualidade espírito-natureza” do segundo; para Scheler é através do espírito que o homem encontra a “abertura ao mundo”, o que em Frankl passaria a ser “abertura ao sentido” (Längle, 2000, p. 51). Frankl, segundo nossa observação, construiu sua antropologia a partir de várias influências e não teria aplicado diretamente nenhuma delas. Como já destacamos neste trabalho, percebemos uma tecedura mais sutil, em que seu pensamento é registrado com marcas próprias que, em alguns aspectos, são inovadoras. Para conhecê-las, prosseguiremos na descrição de algumas de suas configurações teóricas mais importantes sobre o humano. 28 3.2 Sentido e Valor A principal característica da ideia frankliana acerca do humano é sua vigorosa afirmação da natureza espiritual e incondicionada do homem, em contraste com as perspectivas deterministas e materialistas (Caponetto, 1995, p. 7). A espiritualidade é apresentada como dimensão noética - significando tanto “razão” quanto “espírito” -, a dimensão dos fenômenos propriamente humanos (como as faculdades da autoconsciência, da volição, do juízo, da criação), constitutiva e distintiva do humano. Esta dimensão confere ao homem - dotado da capacidade de inteligir e julgar -, o poder orientar-se por valores, assim como de encontrar e realizar sentido. O termo “sentido” deriva do verbo “sentir”, do latim sentìo, sensum, sentíre (significa, geralmente, “perceber pelos sentidos, conhecer, experimentar uma sensação ou sentimento”), sendo usada comumente também como “direção” (Houaiss, 2009). Do ponto de vista filosófico seu emprego se torna mais complexo, uma vez que se trata de um conceito-limite, na expressão de Ferrater Mora (2004). Este autor afirma que “o conceito-limite contraposto a e complementar de “sentido” é o conceito de “ser”, esclarecendo que ‘sentido’ e ‘ser’ são dois nomes de conceitos-limites para caracterizar e situar tipos de realidades” (Ferrater Mora, 2004); [grifo nosso]. É interessante conhecer uma percepção que Ferrater Mora atribui a Francisco Romero, segundo a qual os muitos significados de sentido são ao mesmo tempo díspares e afins: nos procedimentos metafísicos acentuam-se suas afinidades, enquanto que, fenomenologicamente ou analiticamente, ressaltam-se suas diferenças e matizes. Já Viktor Frankl, de certo modo, simplificou a compreensão do seu emprego do termo “sentido” ao identificá-lo com o logos nos seus estudos teóricos e ao ligá-lo ao “sentido da vida” nos textos dirigidos ao público em geral, especialmente nos escritos para palestras ou entrevistas. No primeiro caso, tratando-se de leitor de nível acadêmico, remete à complexidade ao termo grego, com toda riqueza de sua histórica polissemia. No segundo caso, observamos que torna permeável o significado de “sentido”, como uma espécie de “nexo” que denota coerência entre ideias, acontecimentos ou situações, como se observa na expressão comum “fazer sentido”. A simples pergunta pelo sentido das coisas já pressupõe sua existência, segundo Frankl (2008b). Afirma que há no homem um “pressentimento do sentido” e, ainda que inconscientemente, o ser humano “crê em um sentido enquanto respira”, o que se observaria 29 na atitude do suicida que já não podendo ver sentido em viver, julga encontrá-lo no morrer (Frankl, 2008b, p. 115). A concepção frankliana do humano trata o binômio valor e sentido como estreitamente implicados entre si e, por fazerem parte da esfera espiritual, se constituem em meio estratégico-metodológico para lidar com a dimensão noética na psicoterapia. Frankl argumenta que a realização da pessoa humana está além da simples “conformidade à vida” e que é exponencialmente mais importante “a realização e/ou a descoberta de sentido”. Acrescenta que esta descoberta, como “possibilidade de valor reservada”, dirige-se aos “valores que cada indivíduo deve realizar na unicidade de sua existência e de seu destino” (Frankl, 1995, p.18). O uso corriqueiro do termo “valor” sempre se referiu e refere a algo a ser apreciado, geralmente uma mercadoria ou produto. Além deste uso “econômico”, também é comum significar algo bom, “valioso” por ser estimável e possuir uma grande “valia”, sendo que em ambos os casos indicam uma seleção ou preferência (Ferrater Mora, 2004, p. 2970). As ciências naturais, fundamentadas no positivismo, se esforçam para se verem livres do “valor” para se ocuparem apenas do “fato” (Minayo, 2006, p. 81). Frankl, contudo, atribuindo a Scheler a afirmação de que “a salvação do homem consiste na realização de seus valores mais elevados”, assume uma “hierarquia” de valores que sustenta sua clássica pergunta pela “psicologia das alturas”: Onde está aquela psicologia interessada na perspectiva terapêutica que inclua em seu arcabouço esses estratos “elevados” da existência humana e que mereça, nesse sentido e em oposição ao nome de “psicologia profunda”, a denominação de “psicologia elevada”? (Frankl, 1995, p. 19) As reflexões de Frankl a respeito de valores reflete, em grande medida, a axiologia de Max Scheler. A intentio emotiva de Scheler pode levar o homem a transcender o reino dos objetos, para alcançar o reino dos valores, segundo Frankl (2003b, p. 72), o que significa que o homem pode abandonar o modus vivendi “presentista”, saindo de uma condição de dependências de prazer ou vício para atingir o “mais além” do reino objetal. Frankl ressalta que a condição humana leva este homem, especialmente na atualidade, a experimentar uma degradação de valores e princípios por “declinar de si os conflitos”. Deixa claro que não se trata de conflito de consciência, mas um “conflito inerente aos valores”. Explica que, ao 30 contrário do sentido, que é concreto (ad personam e ad situationem), os valores “são por definição abstratos universais-de-sentido”, não valendo puramente para pessoas e situações únicas e irrepetíveis. Os valores se estendem amplamente a situações repetíveis, típicas e interrelacionadas, nas quais o homem é chamado a decidir, de forma livre e responsável, entre “princípios entre si contrários” (Frankl, 2003b, p. 80). Vemos, aqui, a importância do binômio “sentido e valor” para a compreensão de outro binômio, o de “liberdade e responsabilidade”, de relevância central no todo da teoria frankliana. Ademais, torna-se clara a razão pela qual em geral se entende as compreensões de “liberdade da vontade”, “vontade de sentido” e “sentido da vida” como os pilares da sua proposta psicoterápica, a Logoterapia. Os dois binômios citados estão equacionados na Logoterapia de maneira que esta, mais que uma técnica, se torna uma jornada terapêutica que parte da experiência de ser livre e responsável, seguindo em direção ao sentido único da existência em questão. As três categorias de valores propostas por Frankl na sua teoria e na sua prática logoterápica são os valores de criação, valores vivenciais e valores de atitude, sendo estes últimos aqueles que persistem nas situações em que todas as possibilidades se estreitam. A fixação na realização de determinado grupo de valores deve ser flexibilizada em função de “outro grupo de valores que esteja mais além”, somente “onde se dá a possibilidade de realização de valores” (Frankl, 2003b, p. 81-83). Frankl remete claramente à dimensão noética, demonstrando como a logoterapia pode convidar o paciente a uma postura mais “elástica” às oportunidades. Na nossa compreensão, essa “elasticidade” que Frankl propõe como premissa para o alargamento das possibilidades de realização de valor e sentido pode ser compreendida, em linguagem mais atual, como ampliação da capacidade de “resiliência” do paciente pela percepção daquele grupo de valores “mais além”. Esta nossa suposição é reiterada pela afirmação feita por Frankl de que, em uma existência pobre de valores criadores e vivenciais, permanecem os valores atitudinais, que possibilitam encontrar sentido mesmo nas situações-limites da existência. Nestas situações extremas, resta ao ser humano a liberdade para decidir sobre sua responsabilidade perante os valores, ainda que lhe reste apenas os valores de atitude. A implicação desta premissa frankliana para sua antropologia torna-se evidente em uma de suas assertivas fundamentais: “ser homem é ser livre e ser responsável” (Frankl, 2003b, p. 83). 31 3.3 As dez teses sobre a pessoa A alta dignidade que Frankl atribui ao ser humano se expressa na compreensão do mesmo enquanto pessoa, termo que deriva do latim persóna, 'máscara de teatro, caráter, personagem (Houais, 2009). Persona corresponde, no âmbito teatral, a personagem, ou seja, dramatis personnae e, em alusão ao ator faz ressoar a voz através da máscara, algumas interpretações fazem derivar o termo persona do verbo personare, “soar através de” (Ferrater Mora, 2004, p. 2262). Frankl, neste mesmo lastro, responde à pergunta sobre se seria um equívoco ouvir a voz da consciência, afirmando que a consciência não pode ter voz porque ela mesma “é” a voz da transcendência. Afirma que o termo “pessoa” ganha, assim, nova compreensão, pois através da consciência humana “ressoa” (per-sonat, do latim) uma instância extra-humana (Frankl, 2007ª, p. 4). Os gregos clássicos usaram o termo prósopon (de prósópon 'personagem') de modo semelhante, porém sem a conotação de personalidade humana, uma vez que percebiam o homem como parte do cosmo e da cidade-estado, segundo Ferrater Mora (2004, p. 2262). A filosofia helenística, interessada no mundo e no ser, não chegou a elaborar uma clara noção de pessoa. Esta só veio a emergir no pensamento cristão, inicialmente a partir de estudos teológicos contemporâneos ao Concílio de Nicéia (325 D.C.), quando passou a ser usada a palavra hipóstase (do gr. hupóstasis, ‘fundamento’, ‘substância’, ‘realidade material’), segundo Houaiss (2009). Dada a importância que tem a noção de pessoa na obra frankliana, torna-se recomendável um rápido exame das principais ideias a respeito deste tema. Agostinho de Hipona foi um dos primeiros a desenvolver uma ideia mais precisa de pessoa, para se referir tanto à Trindade quanto ao homem, no relato de Ferrater Mora (2004, p. 2263). Agostinho confere à noção de pessoa maior interioridade, “para sublinhar o ser relativo a si mesmo em cada pessoa divina”, situando a relação6 do homem consigo mesmo na realidade. As três principais fontes que influenciaram a perspectiva agostiniana do homem foram o neoplatonismo, a antropologia paulina e a narrativa bíblica, segundo Lima Vaz (2009). O neoplatonismo contribuiu especialmente para a construção da estrutura do homem interior, com a noção de mens (correspondente ao noûs neoplatônico) na qual Deus está presente como interior e superior. A antropologia paulina dotou o pensamento de Agostinho de um matiz soteriológico, além de delinear as ideias de liberdade e livre arbítrio, fundamentais para a 6 Segundo Ferrater Mora (2004, p. 2263) a noção de relação teria sido tomada por Agostinho a partir de Aristóteles, e não a partir de Platão, Plotino ou Porfírio. 32 cultura ocidental. E, finalmente, a narrativa bíblica sobre a criação do homem, do livro de Gênesis, no qual se inspira para fundamentar sua antropologia sobre o homem “imagem de Deus” (Imago Dei) que é tratado especialmente por Agostinho e constitui o “paradigma ideal para julgar a verdadeira natureza e destinação do homem" (Vaz, 2009, v. I, p. 56). Da confluência destes aportes brotará, como em nova fonte, as três diretrizes fundamentais da antropologia agostiniana: o homem como ser uno; o homem como ser itinerante; e o homem como ser-para-Deus. Um autor importante no desenvolvimento do conceito de pessoa foi o filósofo romano Boécio (480-425 D.C.), para quem a pessoa é uma substância individual de natureza racional (Persona est naturae rationale individua substantia), noção que se tornou basilar para o pensamento medieval. Em seu pensamento, o termo personna coincidiria com o termo grego hipóstases. A pessoa seria uma substância existente por direito próprio e incomunicável (sui juris), sendo sua nota distintiva sua “propriedade” (Ferrater Mora, 2004, p. 2263). Em Tomás de Aquino encontramos a noção de hipóstase, porém como substâncias individualizadas racionais, que possuem autodomínio e autonomia nos seus atos. O curso do pensamento cristão leva à passagem da noção de pessoa como ser “em-si” para a ideia de pessoa em sua “relação” e em seu “originar-se”. Encontramos em Ricardo de São Vítor a importante distinção entre o sistere da natureza e o ex-sistere da pessoa, ou seja, o seu “originar-se de” (Ferrater Mora, 2004, p. 2263). Esta percepção se tornará de importância capital para o futuro pensamento existencial, no âmbito do qual se encontra o pensamento de Viktor Frankl. Prosseguindo em nosso roteiro de reconhecimento da formação da noção de pessoa na história do pensamento filosófico, encontramos em Leibniz a compreensão de que o ser pensante reconhece a si mesmo em diferentes tempos e lugares, assim como em Kant a de personalidade moral como “liberdade de um ser racional sob leis morais”. Em Fichte os elementos éticos da noção de pessoa proposta por Kant se apresentam novamente como metafísicos, através da visão de pessoa como centro racional e centro metafísico que se autoconstitui, além de fonte das atividades volitivas. O conceito de pessoa passa por mudanças quanto à sua estrutura (abandona-se a concepção substancialista) e quanto às suas atividades (incluindo, além das racionais, as volitivas e emocionais). Segundo Ferrater Mora, isto visaria evitar o impessoalismo, em virtude da tendência à identificação da substância com a coisa, assim como a da razão com sua universalidade. Nesta linha, Max Scheler define a pessoa como a unidade dos atos espirituais (ou dos “atos intencionais superiores”). Em sua 33 ética material dos valores, Scheler confere importância fundamental à transcendência como ultrapassagem dos limites da subjetividade. Esta transcendência se dá em direção a várias coisas, que podem ser valores, a humanidade ou um “Absoluto”. É ainda Ferrater Mora (2004, p. 2264) que chama a atenção para o fato de que pensamento contemporâneo oscila entre, por um lado, a transcendência e abertura; e, por outro lado, a autenticidade e o ser si mesmo. Em nossa percepção, ambas as posturas podem coexistir no mesmo pensamento, sem necessariamente se negarem. O pensamento frankliano revela marcas de vários desses momentos do desenvolvimento histórico da noção de pessoa, embora - na nossa percepção – seja a antropologia filosófica e teológica de Agostinho que marca mais claramente a antropologia frankliana. Esta não perde seu caráter basilar pelo fato de que, em alguns pressupostos, esta influência só seja percebida se considerada em conjunto com o espectro de influência acolhidas por Frankl, com a atualidade da sua linguagem e com o caráter contemporâneo do seu pensamento. As suas Dez teses sobre a pessoa (apresentadas em uma conferência introdutória a um evento das Escolas Superiores de Salzburg) resumem seus postulados antropológicos, como examinaremos a seguir. 1 A pessoa é uma unidade: A pessoa é una e indivisível (in-dividuum). 2 A pessoa é uma totalidade: A pessoa é total e insomável (in-summabile). 3 Cada pessoa é um ser absolutamente novo: Cada pessoa vem à existência como um novo ser, herdando de seus pais apenas a genética psicofísica. 4 A pessoa é espiritual: A pessoa possui natureza espiritual, em contraposição heurística e facultativa com o organismo psicofísico herdado. 5 A pessoa é existencial: não é fática, mas facultativa. Existe de acordo com sua própria possibilidade, para a qual e contra a qual pode se decidir. E, mais que livre, é responsável. 6 A pessoa é egóica: um eu que não está sob a instintividade de um id. 7 A pessoa consuma o homem: em co-existência com o psicofísico, a pessoa funda o humano. Não é unidade-totalidade em si mesma, mas alcança unidade físico-psíquicoespiritual, representada pela criatura “homem”. O homem é o ponto de interseção entre os três níveis de existência. 34 8 A pessoa é dinâmica: justamente pela capacidade de distanciar-se e separar-se do psicofísico é que se manifesta o espiritual. Ex-sistir significa sair de si mesmo, podendo a pessoa espiritual se autodistanciar e se autoconfrontar. 9 O animal não é correlato à pessoa: não é pessoa uma vez que não pode se autotranscender e se autoenfrentar. Possui apenas um meio-ambiente e não um mundo próprio, como o mundo humano, que pressupõe sentido e valores. 10 A pessoa é autocompreensiva: compreende a si mesma apenas pela transcendência, cujo apelo ressoa na consciência de todo homem. (Frankl, 2008b, p. 106-114) Frankl afirma que essa unidade-totalidade do ser humano só se compreende “ontologicamente” (2003c, p. 17). Acrescenta que compreender-se a partir da transcendência e crer na existência de um sentido é a “espiritualidade” compatível com a Logoterapia, uma espiritualidade que não extrapola a interrogação pelo sentido. Frankl distingue claramente o campo religioso como o da fé, da crença naquilo que o homem não pode alcançar, pois se encontram, além do espaço e do tempo, conforme se sabe desde Kant (Frankl, 2008b). A antropologia frankliana - para a qual tem sido amplamente requerida a primazia do espiritual como sua principal característica – requer, na verdade, a unidade do homem como o eixo fundante da análise existencial, segundo defende Benigno Freire (2007). Este autor afirma que isto se deve a “uma análise histórica da questão ou, ocasionalmente, a um excessivo zelo pedagógico de algum tratadista frankliano”. Explica que uma consideração histórica mostra a Logoterapia em “férrea oposição” aos reducionismos dominantes na época de Frankl (especialmente ao determinismo e ao psicologismo). O motivo da ênfase conferida por Frankl à dimensão espiritual seria principalmente para evitar o grosseiro psicologismo vigente, não para afirmar que o homem é espiritual (o que seria um espiritualismo). Pelo contrário, Frankl afirmou reiteradamente que o ser humano tem um corpo, um psiquismo e um espírito, mas é a unidade que totaliza essas dimensões. Frankl haveria buscado um centro originário e originante para além da dimensão espiritual, o qual, tomado no mesmo sentido que Scheler, esse “centro dos atos espirituais” do homem seria a pessoa. A noção de pessoa em Frankl seria, segundo Benigno, a referência para a compreensão da antropologia expressa na análise existencial. As dez teses acima descritas seriam a síntese desta noção, através das dez características destacadas (Freire, 2007, p. 110). 35 3.4 A ontologia dimensional A ontologia dimensional frankliana é um recurso por ele desenvolvido visando tornar mais compreensível sua visão acerca do homem. Este objetivo imediato se alinha a uma determinação mais remota em seu pensamento: a intenção de demonstrar a grandeza da condição humana, em franca oposição aos reducionismos que medravam em praticamente todos as esferas do conhecimento na sua época. As áreas médica e psicoterápica, por lidar diretamente com a dor humana, se constituía o campo onde mais direta e dramaticamente se refletiam estes reducionismos. A história de vida de Frankl mostra que este buscava meios para construir uma argumentação consistente e persuasiva, a fim de enfrentar a dura realidade da racionalidade moderna, que tem encontrado no meio acadêmico uma verdadeira usina fomentadora de seus potenciais. Ao iniciar o texto denominado Imago hominis, inserido em seu primeiro livro Ärtzliche Seelsorge, refere-se aos esforços de Nicolai Hartmann e de Max Scheler para “salvar o humano, em vista das aspirações reducionistas a uma ciência pluralista”. Hartmann e Scheler, respectivamente, através de sua ontologia e de sua antropologia, representaram espacialmente as dimensões corporal, anímica e espiritual do homem: Hartmann trataria dos estratos do ser e Scheler das camadas em torno do eixo espiritual e central da pessoa. Preocupado com o que via como a fragmentação do humano - como um vaso partido “em cacos” -, Frankl passou a perguntar pela unidade do homem e a defini-lo como “unidade apesar da pluralidade”. Considera a existência humana como a coexistência da unidade antropológica com as diferenças ontológicas de que o homem participa, identificando-a com a unitas multiplex da filosofia tomista. Tomando como modelo o método denominado ethica ordine geometrico demonstrata, de Spinoza – e sem se identificar propriamente com sua teoria -, Frankl idealiza uma imago hominis ordine geometrico demonstrata, na qual utilizaria as analogias geométricas para transmitir sua ideia de homem (Frankl, 2003b, p. 42). 36 3.5 As leis da ontologia dimensional Embora a concepção do humano em Frankl já se esboçasse claramente no seu Ärtzliche Seelsorge, não é seguro afirmar que tais compreensões filosóficas são contemporâneas da primeira edição, pois o autor menciona - no prólogo à sétima edição da obra - vários complementos que lhe foram intercalados. Conforme descrevemos acima, é no capítulo denominado Imago hominis 7 que Frankl lança os pressupostos de sua ontologia dimensional, apresentando o homem como unidade apesar da pluralidade (Frankl, 2003b, p. 42-47). As ideias franklianas se expressam através de duas leis, a saber: Primeira lei da ontologia dimensional frankliana: “se tomarmos uma única coisa numa dada dimensão e a projetamos em dimensões inferiores àquela que lhe é própria, a coisa em questão se representa de tal modo que as figuras obtidas se opõem umas às outras”. Segunda lei da ontologia dimensional frankliana: “se tomarmos várias coisas e a projetamos em uma única dimensão inferior à que lhe é própria, as coisas se representam de maneira que não se podem deduzir as suas formas originais a partir do que aparentam” 8. A primeira lei se destina a explicar que a projeção da dimensão especificamente humana nos planos que lhes são inferiores, apresentará resultados diferentes, ou seja, no plano biológico resultará em fenômenos somáticos e no plano psicológico, em fenômenos psíquicos. Explica Frankl que a unidade dos diversos modos de ser do homem jamais será encontrada “nos planos em que projetamos o homem”. Citando a “coincidentia oppositorum no sentido de Nicolau Cusano”, Frankl afirma que ligação dos opostos como soma e psyché somente serão encontradas na “dimensão imediatamente mais elevada, na dimensão do especificamente humano” (2003b, p. 44). O filósofo neoplatônico Nicolau de Cusa usou exemplos geométricos para aludir à coincidência dos opostos no infinito, como se observa no seu método denominado “douta ignorância” (docta ignorantia), pelo qual usa a “valência 7 O capítulo Imago hominis está entre os aditamentos à obra, o que é esclarecido por Frankl no Prefácio à 7ª edição (FRANKL, 2003b; p XI-XII). 8 O segundo enunciado é apresentado por Frankl através de palavras dialogais, como se estivesse ministrando uma aula. O formato acima, ordenado para fins didáticos e à maneira do primeiro, é uma proposta da autora, que exprime o conteúdo da segunda lei nos moldes adotados por Frankl no enunciado da primeira lei. 37 analógico-alusiva” dos recursos matemáticos para pesquisar, por aproximação, as coisas finitas e as coisas infinitas, segundo Reale e Antisseri (2005). Na obra de Nicolau de Cusa, o Absoluto, no qual todas as coisas coincidem, é Deus. Sendo tão “absolutamente máximo”, nele não pode haver nenhuma oposição, o que faz com que nele coincidam “todas as distinções que nas criaturas se encontram ao invés opostas entre si” (Reale e Antiseri, 2005, v. 3, p. 33). Ora, a medição das oposições pelo método matemático permite que o “divino” seja tomado como o “infinito”, desvinculando seu emprego da conotação teológica implícita à alusão ao Absoluto. Segundo a nossa percepção, a escolha destes métodos pode significar duas interessantes intenções da parte de Viktor Frankl: primeiramente, que as analogias geométricas são o fruto de uma busca por métodos filosóficos válidos para representar o espiritual no âmbito científico; depois, esta escolha conserva em aberto - a depender da convicção pessoal de quem interpreta - a possibilidade de recuperar a ideia do espiritual no sentido teísta, ou seja, recuperar a ideia de Deus a partir da ideia de infinito. Isto significa não apenas que Frankl teria sido duplamente bem sucedido na escolha deste método, mas também que usou de uma espécie de “atenção” ao respeitar as regras do campo científico. Essa cordialidade, no entanto, não o impediram de afirmar que a ciência tem o direito e o dever de “pôr entre parênteses a multidimensionalidade da realidade” (Frankl, 2003b, p. 46), mas deve ter a consciência de que sua realidade unidimensional é fictícia, ou seja, não corresponde a toda a realidade. A segunda lei da ontologia dimensional é ilustrada por Frankl através dos casos de Fiódor Dostoiewski (o conhecido escritor russo, portador de epilepsia) e de Bernadette Soubirous (a mística francesa, santa Bernadette de Lourdes). Sob o ponto de vista estritamente psiquiátrico, estes casos seriam patologizados: ele, um simples portador de epilepsia; ela, uma paciente que sofria de alucinações. Uma vez que a projeção de diferentes figuras tridimensionais em um plano bidimensional pode refletir uma só imagem, os dois casos apareceriam apenas como doenças, já que “o que são para, além disso, não se reflete no plano psiquiátrico” (Frankl, 2003b, p. 47). A psiquiatria seria insuficiente para acolher as criações e vivências do espírito humano, uma vez que na dimensão do psicofísico nada mais caberia senão as referências às engrenagens de um corpo e de uma mente disfuncionais. Frankl ainda esclarece que sua pretensão não é resolver o problema psicofísico, mas aclará-lo e mostrar a causa da sua insolubilidade. Afirma que a clínica necessita de um olhar para o logos escondido no pathos, ou seja, de uma “dia-gnose", uma vez que a etiologia das 38 afecções é multidimensional, mas a sintomatologia que afeta o psicofísico, é unidimensional e equívoca (Frankl, 2003b, p. 47). A ontologia dimensional de Viktor Frankl (1995) é por ele resumida como um tipo de pensamento dimensional “que concebe o fisiológico, o psicológico e o noológico como dimensões do homem-unitário total”. Considerou que sua representação superava aquelas baseadas em graus ou estratos, pois as três dimensões referidas precisam ser separadas do ponto de vista ontológico - como “três momentos fundamentalmente diferentes” -, ao tempo que - por se pertencerem fundamentalmente umas às outras - são inseparáveis do ponto de vista antropológico (Frankl, 1995, p. 67). As representações gráficas da ontologia dimensional frankliana e das suas leis podem ser vistas graficamente representadas no final deste trabalho de dissertação, como anexos, em seus elementos pós-textuais. 39 4 REFLEXÕES CONCLUSIVAS O pensamento de Viktor Frankl sobre o humano se mostra primordialmente voltado para seus objetivos de cuidado clínico. Contudo, considerado no todo da sua obra, ganha uma amplitude teórica que possibilita repercussões tanto em outras áreas do conhecimento quanto em diversas outras esferas da vida e das práticas sociais. Pensar o homem na complexa riqueza da sua realidade, por meios sensíveis à fragilidade e à grandeza da sua condição, pode significar inusitadas aberturas para muitos setores que permanecem atrelados aos aprisionamentos ideológicos ou estruturais do mundo de hoje. A hegemonia da concepção naturalista do homem alcançou, no âmbito do cuidado clínico moderno, uma magnitude capaz de dificultar - ou mesmo impossibilitar - a abordagem de temas relativos à espiritualidade no contexto das ciências. Frankl propôs uma delimitação da fronteira entre a Psicoterapia e a Religião para resolver essa problemática tematização, deixando claro que “a finalidade da Psicoterapia é a cura psíquica ou mental (Seelische Heilung)”, enquanto que a da Religião é “a salvação da alma (Seelenheil)”, finalidades manifestamente distintas. Contudo, ainda que o sacerdote não se ocupe diretamente da terapêutica, seu trabalho pode ter eficácia psico-higiênicas e psicoterapêutica “per effectum – não per intentionem!”, em virtude da “segurança que significa estar ancorado na transcendência, no Absoluto” (Frankl, 2003a, p. 102). O trabalho do psicoterapeuta, analogamente, pode beneficiar o paciente como efeito secundário, pelo acesso ao manancial da sua fé originária, inconscientemente reprimida. Embora esta não seja sua intenção fundamental, isto permite que o profissional da saúde possa acolher e valorizar a religiosidade que o enfermo traz à relação de cuidado, deixando claro, se ambos professam a mesma fé, que se trata de uma coincidência de ordem pessoal, não fazendo parte da sua tarefa enquanto médico ou psicoterapeuta. A espiritualidade é, por sua vez, considerada por Frankl como uma dimensão do humano. Diferindo da religiosidade - que é um fenômeno cultural e circunstancial -, a espiritualidade é uma dimensão constitutiva do homem e, por excelência, aquela que fundamenta sua humanidade. Isto indica que a espiritualidade, livre de uma vinculação direta à religião, corresponde àquela dimensão sem a qual não se pode compreender verdadeiramente o humano. A própria unidade do humano, no dizer de Frankl (1995, p. 66), começaria “precisamente ali – para além da unidade corporal psíquica – onde se acrescenta o espiritual como terceira realidade: tercium datur”. Este “terceiro que é dado” - ao ser 40 considerado nas disciplinas relativas ao homem -, significa também um descerrar de novos horizontes para a ciência. Tanto as ciências quanto as clínicas médicas e psicoterápicas poderão, desta forma, divisar “o homem em sua talidade” (Frankl, 1995, p. 68), ou seja, tal como é na inteireza da sua humanidade. A plenitude humana de que fala Viktor Frankl se refere a um “ser ele mesmo em plenitude”, o que a sua análise existencial qualifica como “existência” enquanto ser facultativo, ou seja, o modo de ser específico do homem. Esta perspectiva o livra da concepção niilista de um “homunculus moderno” que, como um autômato ou uma marionete, seria “produto de impulsos, hereditariedade e meio ambiente” (Frankl, 1995, p. 62). Opor-se a estes fatores condicionantes, entanto, nem sempre é necessário, como explica Frankl: “O antagonismo psiconoético, em contraposição ao inevitável paralelismo psicofísico, é uma antagonismo facultativo. De acordo com isso, a força de obstinação do espírito é uma simples possibilidade e não uma necessidade... Em hipótese alguma o homem deve sempre fazer uso da obstinação do espírito... Não deve porfiar sempre com os seus instintos, com a sua herança e com o seu meio ambiente, pelo simples fato de que precisa deles” (Frankl, 1995, p. 65). Apesar do caráter obrigatório do seu paralelismo psicofísico, a possibilidade de superar seus condicionamentos se deve à capacidade que o homem possui de poder “desapegar-se do psicofísico e situar-se a uma distância fecunda” (Frankl 2008b, p. 113). A sua liberdade lhe faculta enfrentar-se a si mesmo, o que significa poder reagir às forças que tendem a determiná-lo e, no âmbito clínico, poder enfrentar a enfermidade “a partir da sua humanidade” (Frankl, 2008b, p. 152). A autorrealização do ser humano, contudo, não deve ser uma meta, uma vez que só é conquistada como plenitude de sentido no mundo e não dentro de si mesmo. Para Frankl, a autorrealização “escapa da meta eleita, apresentando-se, contudo, como um efeito colateral”, que é definido por ele como autotranscendência da existência humana. Nas suas palavras, “o homem aponta, por cima de si mesmo, para algo que não é ele mesmo, para algo ou alguém, para um sentido cuja plenitude há que alcançar ou para um semelhante com quem se encontrar” (Frankl, 2008b, p. 21). Assim, o homem só completa sua condição na medida em que, esquecendo-se de si, entrega-se a algo fora de si mesmo pela autotranscendência. Frankl usa o olho como metáfora, uma vez que, para realizar sua tarefa, não pode ver a si mesmo. Critica a ideia de uma “auto-realização do homem”, referindo-se a “tagarelices psicológicopseudo-humanistas” que levariam a uma mistificação, uma vez que a auto-realização não 41 pode ser intencional e diretamente perseguida, pois “ela se dá sempre e apenas como um efeito secundário não intencionado da autotranscendência” (Frankl, 1995, p. 251). No pensamento frankliano, a autotranscendência não se dá em direção a outra dimensão de realidade, mas - pelo uso da liberdade -, é uma prerrogativa própria do humano e, portanto, espiritual. O âmbito científico da saúde, por seu biologismo estrito, não possui recursos para a compreensão deste modo de ser do homem, pois a autotranscendência é um fenômeno especificamente humano que escapa aos esforços para reduzi-la a fenômenos sub-humanos (Frankl, 1987). É necessário à ciência, para alcançar a integralidade do cuidado clínico, abrirse a uma visão igualmente integral do humano, capaz de abarcar sua natureza complexa e multidimensional. É na tri-unidade que o homem encontra sua “pátria”, declara Frankl (1995, p. 72). A ruptura com a estreiteza dos dogmas científicos é, na nossa compreensão, tão necessária quanto a libertação do confinamento aos dogmas religiosos. Reiterando nossa visão, Oscar Pfister afirma, na sua famosa carta a Freud, que “a ciência carece de capacidade para avaliar grandezas estéticas ou éticas” 9 (Pfister; in Wondracek et al., 2003, p.49). A inclusão da plena humanidade do homem permitirá às ciências da saúde um cuidado mais abrangente, o que pressupõe pontes interdisciplinares que permitam seu ingresso no mundo de sentido e valores. Abrir-se-á para a clínica a possibilidade de um acolhimento integral. A perspectiva frankliana, portanto, engendra meios teórico-práticos para um cuidado clínico capaz de responder ao vazio de sentido do mundo contemporâneo e fazer face à estrutura trágica da existência, sem negá-la. Isto significa ajudar o homem de hoje a enfrentar sua vulnerabilidade perante a adversidade – seja na forma de dor, angústia, violência, enfermidade ou morte - a partir de uma dignidade ética que emerge da sua dimensão mais própria, na qual permanece íntegra a sua humanitas. 9 A tradução brasileira do texto A ilusão de um futuro - a memorável e cordial resposta de Pfister a Freud -, está contida no livro O Futuro e a Ilusão, organizado por Karen Wondracek (Vozes, 2003). 42 REFERÊNCIAS Alves, P. M. S (2006). Introdução de Pedro M. S. Alves ao texto A crise da humanidade europeia e a filosofia; in Edmund Husserl, Europa: Crise e Renovação; trad. de Pedro M. S. Alves e C. A. Morujão; pp. 119-152. Lisboa: Centro de Filosofia / Universitas Olisiponensis. Bauman, Z. (2001). 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Os objetivos específicos foram estudar a Logoterapia e a Análise Existencial propostas por Frankl; compreender a inter-relação entre estas modalidades clínicas e os profissionais de saúde; e, ademais, pesquisar a abrangência de tais práticas. O trabalho adotou a metodologia qualitativa em abordagem fenomenológica existencial, envolvendo uma pesquisa bibliográfica das obras de Frankl concernentes à temática, assim como textos de Martin Heidegger sobre o “cuidado” e de Hans Jonas sobre a “responsabilidade”. Tais estudos revelam que as práticas clínicas propostas por Viktor Frankl constituem uma nova e original concepção de cuidado clínico que tem a inclusão da espiritualidade humana como sua pedra angular. Da mesma forma, apresenta a dimensão noética como condição de possibilidade para o cuidado integral e, consequentemente, a mediação pelo Logos como fundamento da autêntica relação terapêutica. Palavras-chave: Cuidado integral; Logoterapia; Análise Existencial; Dimensão noética; Logos. 47 Abstracts The general intention of this article was to understand Viktor Frankl’s perspective of clinical care. The specific objectives were to study the Logotherapy and Existential Analysis proposed by Frankl; understand the interrelationship between each of these clinical modalities and health professionals; and, moreover, research the comprehensiveness of such practices. The work had adopted a qualitative methodology in existential phenomenological approach, involving bibliographical research into Frankl’s writings on this theme, as well as works of Martin Heidegger on “care” and Hans Jonas on “responsibility”. These studies reveal that clinical practices proposed by Viktor Frankl constitute a new and original conception of clinical care that has the inclusion of human spirituality as its cornerstone. Likewise, present the noetic dimension as a condition of possibility for comprehensive clinical care and, therefore, the mediation by the Logos as the basis of the authentic therapeutic relationship. Keywords: Comprehensive care; Logotherapy; Existential Analysis; Noetic dimension; Logos. 48 APRESENTAÇÃO O cuidado é, reconhecidamente, um dos temas que possuem permanente relevância nos campos de conhecimento relativos ao homem. A temática do cuidado, contudo, ganha aguda importância nas épocas em que os elementos do mundo humano são, de alguma forma, abalados. As transformações em curso na época contemporânea - que não ter seu status epocal razoavelmente definido -, não fundamentam as certezas demandadas pela existência humana. A reagudização da angústia - intrínseca ao existir do homem - clama, nos dias atuais, pelo discurso acerca do cuidar. E sabemos que este discurso se alça tão mais proeminente quanto mais intensos sejam os paroxismos de um tempo e seu grau de imprevisibilidade. A modernidade se caracteriza, segundo Zigmunt Bauman (1999, p. 9,10), por um projeto estruturante do mundo com base em sua sistemática classificação, o que possibilita torná-lo ordenado e previsível, próprio para ser habitado pelo homem. É em virtude da angústia intrínseca à desordem e à imprevisibilidade, que a modernidade busca uma crescente classificação de toda a realidade, operante através dos atos nomeadores que separam as coisas do mundo em grupos que se excluem mutuamente. Por sua incapacidade de ordenação absoluta, ou seja, pela impossibilidade de ordenar uma realidade infinita e descontínua, este esforço ordenador tem como subproduto a ambivalência. O ato ordenador é violento ao cindir a realidade por exclusão e necessita de “certa dose de coerção” para eliminar as discrepâncias criadas pela sua própria ação (Bauman, 1999, p. 11). Os tempos modernos são, para Bauman, “uma era de guerra particularmente dolorosa e implacável contra a ambivalência”. Este autor esclarece que a angústia da contínua obsolescência do tempo presente faz com que a marcha compulsiva da modernidade se dê numa agitação “sisífica” que dá a impressão de um progresso histórico, no qual governantes e cientistas estão igualmente empenhados. Lembrando Walter Benjamin, reafirma que a tormenta do progresso impulsiona irresistivelmente os “caminhantes”, deixando para trás os montes de detritos de uma voraz trajetória histórica na qual os horrores do passado não garantem uma felicidade futura para a humanidade (Bauman, 1999, p. 18,19). A primeira metade do século XX, marcado pelas duas Grandes Guerras, foi um período em que as catástrofes causadas pela própria civilização humana levaram ao questionamento radical dos fundamentos da própria racionalidade moderna. A perplexidade diante do fenômeno da destruição do humano pelo próprio humano se daria em escala jamais 49 experimentada e eclodiria exatamente no continente onde a civilização ocidental alcançava sua condição apical. Temia-se pelo “humano”; perguntava-se pela “razão”; respondia-se com a perplexidade e o “absurdo”. A chamada crise da humanidade e da racionalidade europeias eriçava os espíritos nas direções mais diversas. Poucos puderam, naquele momento histórico, encontrar equilíbrio entre um otimismo pueril e do mais sombrio niilismo. Estre estes, o filósofo Edmund Husserl, ao afirmar que, mesmo considerando a crise europeia fundada sobre uma racionalidade aberrante, não se está autorizado a considerar toda racionalidade má ou insignificante por si (Husserl, 2008). Embora prejudicado na carreira acadêmica pela ascendência judaica, Husserl não vivenciou a apoteose nazista. Faleceu em 1938, pouco antes da Segunda Guerra e não podemos saber se houvesse experimentado o deflagrar da catástrofe se deixaria aniquilar pelo “fogo consumptivo do desespero” ou permaneceria acreditando na ressurreição da “Fénix de uma nova interioridade de vida e de uma nova espiritualidade” (Husserl, 2008, p. 77). 10. Pode-se, seguramente, fazer esta afirmação a respeito de outro autor contemporâneo de Husserl que, provando da violência dos campos de concentração, vivenciou um renascimento a partir da mais absoluta destituição. Viktor Emil Frankl, médico e psicoterapeuta, ergueu-se deste fogo consumptivo do desespero exatamente por crer no soerguimento do humano a partir do espiritual. A sua sobrevivência à barbárie Frankl atribuiu à força de obstinação do seu espírito, vindo a desenvolver uma extensa obra sobre o cuidado, de caráter fronteiriço entre as ciências médicas e a filosofia existencial fenomenológica de seu tempo. Paradoxalmente, aquele que experimentou o extremo desnudamento em relação aos mais elementares direitos do homem - o que poderíamos chamar de um “radical anti-cuidado” -, respondeu à vida com uma igualmente radical dedicação à reflexão sistemática sobre o cuidar e às formas práticas de exercê-lo, as quais serão enfocadas a seguir. 10 Reproduzimos o trecho final do texto husserliano A crise da Humanidade Europeia e a Filosofia, em tradução portuguesa de Pedro M. S. Alves, aprovada pelos Arquivos Husserl de Louvain-Bélgica: A crise da existência europeia tem apenas duas saídas: a decadência da Europa no afastamento perante o seu próprio sentido racional de vida, a queda na fobia ao espírito e na barbárie, ou então o renascimento da Europa a partir do espírito da Filosofia, por meio de um heroísmo da razão que supere definitivamente o naturalismo. O maior perigo da Europa é o cansaço. Se lutarmos contra este perigo de todos os perigos como “bons europeus”, com aquela valentia que não se rende nem diante de uma luta infinita, então, do incêndio aniquilador da incredulidade, do fogo consumptivo do desespero a respeito da missão humana do Ocidente, das cinzas do cansaço enorme, ressuscitará a Fénix de uma nova interioridade de vida e de uma nova espiritualidade, como penhor de um grande e longínquo futuro para o Homem – porque só o espírito é imortal (HUSSERL, 2006, p. 51). Disponível em 20/11/2011, no site: http://www.lusosofia.net/textos/husserl_edmund_crise_da_humanidade_europeia_filosofia.pdf 50 1 CUIDAR A PARTIR DO ESPIRITUAL À percepção de que o cuidado que dispensava aos seus pacientes estava restrito às dimensões física e psíquica, Frankl passou a refletir metodicamente sobre a possibilidade de “complementar” a medicina e a psicoterapia com uma forma de cuidado médico espiritual por ele denominado Ärztliche Seelsorge, expressão com a qual intitulou seu primeiro livro. Sentia-se respaldado pela concepção de espiritualidade como dimensão antropológica e por definir seu trabalho como um cuidado complementar, destinado a ampliar o campo de atuação da medicina e esgotar suas possibilidades de ação clínica. Admite, contudo, que sua Análise existencial não seria apenas um complemento, mas o fundamento imprescindível da psicoterapia (Frankl, 1995, p. 61). Sem pretender competir com o trabalho sacerdotal de assistência espiritual, Frankl buscava meios para capacitar o médico – de todas as especialidades – para desenvolver uma relação eficaz de ajuda ao homem que padecia na impotente diante das situações de extremo sofrimento, como no caso não rever seu paciente senão na mesa de autópsia, depois do suicídio (Frankl, 1995). É esta percepção de completude humana - que acontece a partir da inclusão da dimensão espiritual -, que se busca compreender na obra de Frankl. Simultaneamente, estarse-á buscando os fundamentos da compreensão frankliana de cuidado integral, uma vez que é a partir da noção do humano que o cuidado é concebido para este humano. Esta integralidade adquire uma configuração própria no horizonte frankliano, como se pode apreciar em sua afirmação de que a unidade psicossomática do homem não chega a constituir sua totalidade, pois esta se consuma pela inclusão do noético. A partir da compreensão da relevância e da atualidade desta busca por recursos que venham ampliar a abordagem à temática do cuidado, este trabalho propõe um percurso metódico que siga os próprios caminhos intelectuais de Frankl, através da sua vida e da sua obra. Para José Benigno Freire, professor de psicologia da Universidade de Navarra (ES), o insólito itinerário de Frankl desde a psicanálise até requerer a dimensão espiritual como autenticamente humana faz supor uma aventura intelectual, que descreve como fascinante e inspiradora (Freire, 2007). Esta aventura parte da observação dos primeiros registros, na própria biografia de Frankl, sobre sua preocupação a respeito do sofrimento humano. Como um dos líderes da juventude estudantil vienense, Viktor Frankl exerceu diversas atividades que já sinalizavam 51 para a vocação que viria a movê-lo durante toda a sua existência: cuidar do humano. Seja organizando centros de apoio clínico para os jovens depressivos, seja dispensando cuidados a pacientes suicidas, Frankl mantinha um contínuo interesse pelas condições de sofrimento do homem do seu tempo, buscando formas práticas de acolher integralmente à sua demanda por cuidado. Aos vinte e um anos apresentou uma palestra sobre o “sentido da vida” em um congresso da juventude socialista, demonstrando que seu interesse precoce para o pensamento filosófico tinha o claro objetivo de buscar subsídios teóricos e metodológicos para o exercício deste cuidado integral. O interesse de Frankl pela filosofia, portanto, antecedeu as suas vivências como prisioneiro de guerra. O tema do cuidado no pensamento de Viktor Frankl foi sempre tratado simultaneamente como questão prática e teórica, facetas que se enriqueciam mutuamente à medida que se multiplicavam suas experiências como cuidador e o seu interesse intelectual esbordava o campo das ciências médicas. A experiência vivida nos guetos e campos de concentração veio a se transformar em oportunidade para comprovar existencialmente o seu pensamento. Esta experiência, que Frankl afirmou ser a “validação existencial” das suas teorias (Frankl, 2009, p. 9), viria a ser por ele denominada de Experimentum Crucis. É possível que esteja aí incluso o sentido de uma Via Crucis em alusão ao sofrimento então vivenciado, mas nossas pesquisas chamaram a atenção para o fato de que a expressão Experimentum Crucis tem um histórico em epistemologia e significa, metodologicamente, um experimento crucial de comprovação, o qual torna válida uma teoria e refuta outras hipóteses concorrentes. No caso de Frankl, a hipótese “existencialmente validada” foi a que afirma haver uma dimensão própria do humano que é capaz de dominância sobre a factualidade e a contingência das dimensões física e psíquica. A esta dimensão antropológica, Frankl denomina “dimensão noética” (fazendo-a derivar de noûs, termo grego que significa ‘razão’, ‘espírito’), pela qual o homem pode resistir à adversidade extrema, apoiado no “poder de resistência do espírito” (Frankl, 2003, p. 41). Os fundamentos filosóficos da concepção de cuidado em Viktor Frankl possibilitaram a elaboração de sua analítica existencial. Ao reassumir suas atividades no pós-guerra, Frankl iniciou seu doutoramento em Filosofia (1948-49), em cuja tese, Der Unbewusste Gott (O Deus Inconsciente) 11, reivindicava um “inconsciente espiritual” para o ser humano. A sua teoria se configurou como uma Analítica Existencial inteiramente implicada na prática clínica que chamou de Logoterapia, pelo uso do termo grego logos. 11 O livro correspondente foi traduzido no Brasil como A Presença Ignorada de Deus. 52 O termo logos, por ser polissêmico, possui uma multiplicidade de significados que parte do seu étimo fundamental - como “linguagem, palavra” – e adquire conotações várias de acordo com as perspectivas e os contextos que atravessa. Derivando da forma verbal (que se refere a “falar”, “dizer”, “contar”), ora significando “verbo”, “razão”, “inteligência”; ora designando “lei”, “princípio”, “norma”, segundo esclarece Ferrater Mora (2004, p. 1794). Para este autor, o sentido primário de seria "recolher" (a “razão”, a “significação”, o “dito”), diante do que Martin Heidegger teria proposto “pôr”, “estender diante”, “apresentar depois de ter recolhido [e de ter-se recolhido]”, sugerindo uma “colheita” resultante de uma “seleção” (Ferrater Mora, 2004, p. 1794). Frankl refere que logos possui, na sua obra, os significados de “sentido” e de “espírito”. Estas duas acepções seriam intercambiáveis no contexto da logoterapia, pois afirma que “[...] quando se fala de ‘sentido’, ‘logos’ significa espírito... Aqui ‘logos’ significa o humano do humano e, ainda mais, o próprio sentido de ser humano” (Frankl, 2007b, p. 23). Por um lado Frankl lembra que a tradução literal do termo “logoterapia” seria a de “terapêutica mediante o logos, mediante o sentido” (Frankl, 1998, p. 17). Ressalta, contudo, que a missão que ele atribui à logoterapia é a de ser uma “psicoterapia a partir do espírito” (Frankl, 2003b, p. 34). Portanto, a Logoterapia seria para Frankl, no seu sentido primário, uma terapia mediada pelo “sentido” e a partir do “espírito”. A analítica existencial frankliana possibilitou a concepção de um cuidado não apenas voltado para as patologias físicas e psíquicas do homem, mas inclusivo em relação ao seu sofrimento noético. Desta forma, o cuidado médico poderia acolher a dor de natureza espiritual que, sendo constitutiva do humano, está presente em todas as pessoas, adoecidas ou não. Para viabilizar seus intentos, Frankl elaborou o que chamou de “elementos da Análise Existencial e da Logoterapia”, ou seja, os princípios que constituem o corpus teórico que daria sustentação à sua proposta clínica. Segundo Frankl (1995, p. 60), a Análise Existencial e a Logoterapia que engendrou se resumem em cinco aspectos: Análise Existencial como explicação da existência pessoal; Análise Existencial como terapia de neuroses coletivas; Análise Existencial como Cura Médica de Almas; Logoterapia como terapia específica de neuroses noógenas; e, finalmente, Logoterapia como terapia inespecífica (Frankl, 1995, p. 61). Passaremos a estudar estes aspectos em seus fundamentos e especificidades, o que corresponde aos objetivos específicos deste trabalho. 53 2 AS ESPECIFICIDADES DAS MODALIDADES DE CUIDADO EM FRANKL As especificidades das formas de cuidado clínico desenvolvidas por Frankl passam a ser o foco do presente texto. A sua Logoterapia e a sua Análise Existencial são, segundo sua afirmação, as duas faces de uma mesma teoria. Dentre estas, a Logoterapia seria um método psicoterapêutico e a Análise Existencial, por sua vez, uma linha de pesquisa antropológica que “se abre em duas direções: dispõe-se à cooperação com outras tendências e com sua própria evolução” (Frankl, 1995, p. 60). O que Frankl apresenta como os cinco aspectos da Análise Existencial e da Logoterapia - contextualizados como resposta à demanda contemporânea por cuidado integral -, correspondem às suas propostas práticas de cuidado clínico. Como modos de cuidar, foram concebidas por Frankl para contemplar determinados tipos de sofrimento humano que lhe pareciam escapar às modalidades instituídas de atenção à saúde. Em consonância com seu próprio pensamento, Frankl responde ao apelo por cuidado, indo ao seu encontro com os frutos da sua reflexão e os recursos que sua época possibilitava. Cada um dos aspectos, estudados em suas especificidades, indicam para que demandas e para quais profissionais foram concebidos. Embora posteriormente Frankl haja compreendido que seriam usados de modo diferente do seu plano - e até estimulado a criatividade que inovaria sua obra -, é importante que se conheça e se tenha como referencial o projeto originalmente proposto. Isto poderá evitar interpretações que não representem uma genuína evolução do pensamento frankliano, mas graves distorções de seus legítimos fundamentos. Propomos aqui uma breve revisão dos principais elementos de cada um dos aspectos da Logoterapia e da Análise Existencial franklianas. 2.1 Análise Existencial como explicação da existência pessoal Frankl adverte que Análise Existencial não é análise “da” existência, visto não haver, propriamente, análise ou síntese da existência humana (Frankl, 1995, p. 61). Esclarece que suas propostas partem da práxis clínica, mas possuem uma necessária relação com uma teoria e lembra que teoria significa visão e, neste contexto, representa uma imagem do homem. 54 Apresenta a Análise Existencial como explicação tanto ôntica quanto ontológica do que é a existência, afirmando que se trata da “tentativa de uma antropologia psicoterapêutica” e o fundamento necessário a qualquer psicoterapia, não só à Logoterapia. Supõe ser inevitável que a toda práxis clínica subjaz uma visão teórica que a extrapola, ou seja, uma teoria “metaclínica”. Toda psicoterapia, afirma Frankl, se desenrola num horizonte apriorístico, pois não há psicoterapia destituída de uma antropologia e de uma mundividência. A própria epokhé já subentende um juízo de valor: “uma psicoterapia que se considera isenta de valores na realidade não é mais que cega aos valores” (Frankl, 1995, p. 62). As premissas antropológicas estão, assim, no fundamento de toda antropologia, seja de forma consciente ou como implicações antropológicas. Frankl toma a Análise Existencial como explicação antropológica da existência, explicando que seus objetivos consistem em “tornar consciente, em explicar, em desdobrar, em desenvolver a concepção implícita, inconsciente, que a psicoterapia tem do homem” (Frankl, 1995, p. 63). Para Frankl a “ex-sistência” acontece na dimensão espiritual, e é como pessoa espiritual que o homem sai ao encontro de si mesmo enquanto organismo psicofísico. Isto se torna possível não pela confrontação, que buscaria mais uma reconciliação, mas através da virtude que Frankl denomina “força de obstinação do espírito”. Esta é o sustentáculo do antagonismo psiconoético, a forma como o espiritual humano é capaz de se opor às pulsões de natureza psicofísica. O antagonismo psiconoético é facultativo e a força de obstinação do espírito, por sua vez, é da ordem das possibilidades e não uma necessidade (Frankl, 1995, p. 95). O autodistanciamento permite ao homem distanciar-se de si enquanto psicofísico, tornando-se capaz de liberdade em relação aos condicionamentos, como os provenientes dos seus instintos, da sua herança e do seu meio. Isto, para Frankl, circunscreve claramente o âmbito espiritual do homem como instância da pessoa espiritual, o que não impede que permaneça a unidade antropológica do homem, que se torna compreensível pela sua “ontologia dimensional”. 55 2.1.1. Ontologia dimensional A ontologia dimensional foi proposta por Frankl como recurso para a compreensão da tri-unidade antropológica do homem. O físico e o psíquico do homem chegam a formar uma unidade íntima, embora essa unidade não seja “idêntica à mesmidade” nem constitua uma unidade autônoma, pois à mesma pertence a já mencionada “terceira realidade” (tercium datur), igualmente constitutiva do humano (Frankl, 1995, p. 66). A ontologia dimensional frankliana é uma tentativa de abordagem more geométrico (Frankl, 1995, p. 67). Frankl afirma que somente pela inclusão da dimensão espiritual se pode entrever o homem em sua “talidade”, ou seja, tal como é na realidade. Para representar a relação entre os diferentes âmbitos do homem, Frankl usa a ideia de uma construção de graus ascendentes, de Nicholas Hartmann, e a conjuga à proposta de Max Scheler de representá-la como uma estrutura de estratos, camadas concêntricas onde o estrato central corresponde ao centro espiritual do homem. Frankl destaca a dificuldade existente, nos dias atuais, para que se divisar a dimensão espiritual como aquilo que constitui o genuíno espaço do humano, embora o espiritual não seja uma dimensão em si, mas uma dimensão do humano (Frankl, 1995, p. 72). O caráter espiritual do homem é destacado também por Frankl ao afirmar que o homem existe junto ao outro como realidade ontológica, e não ôntica. Lembra que não se pode querer que a realidade humana deva transpor espacialmente a realidade do outro homem, e que este “ser com o outro” só se pode compreender num sentido mais primordial. Para responder à indagação sobre este “estar junto de” do ente espiritual, Frankl aponta a intencionalidade deste último. É só no “estar junto de” que o ente espiritual se torna consciente do outro ente, de maneira que “o ser espiritual se realiza no ‘estar junto de’, que é sua possibilidade mais própria, sua capacidade primordial específica” (Frankl, 1995, p. 77). A questão da liberdade, vista a partir da clínica médica e psicológica, é equacionada por Frankl como a dificuldade científica de discernir no homem, tomado como objeto, a dimensão espiritual. Refere-se que, na sua época, tanto a medicina quanto a psicologia científica apenas discernem as necessidades resultantes do automatismo do aparelho psíquico. Para Frankl o homem é portador de instintos sem que os mesmos o possuam. Recorre às pesquisas entre gêmeos idênticos, nos quais características inatas podem se transformar em vícios ou virtude, a depender das escolhas que façam. E quanto aos condicionamentos pelo meio-ambiente, 56 mostra que a posição natural do homem, pela liberdade da atitude pessoal, pode representar uma mudança existencial. Sobre os aspectos clínicos da responsabilidade, Frankl chama a atenção para o fato de que a análise existencial limita a liberdade do homem no sentido de que o destitui de sua onipotência. Este limiar da liberdade vem ao encontro da responsabilidade, uma vez que também não há uma identificação entre homem e arbitrariedade. A liberdade no homem, em virtude da responsabilidade, é facultativa. Exemplifica com o caso de um homem neurótico que não pode ser responsabilizado por sua neurose, mas pode se tornar responsável pela sua atitude diante da neurose. Em síntese, Frankl explica o “pelo que” da liberdade humana através do valor e do sentido. A importância da visão do homem como pessoa espiritual livre e responsável reside no fato de que o acesso ao mundo de sentido e valores não é possível ao homem despersonalizado. Esta despersonalização, significando a perda da sua condição de pessoa espiritual, levaria a uma igual perda da realidade e junto com esta, aconteceria também a perda do valor. 2.2 Análise Existencial como terapia de neuroses coletivas Frankl define a neurose no sentido estrito (sensu strictori) como doença psicogênica, dela distinguindo o que chama de neurose no sentido metaclínico e neurose no sentido paraclínico. As neuroses coletivas, fazendo parte destas últimas, seriam “neuroses no sentido figurado” e não se referem a um coletivo neurótico. Descreve as neuroses coletivas da atualidade moderna como caracterizadas por quatro “sintomas” que merecem ser examinadas em particular: a) ATITUDE DE PROVISORIEDADE – a atitude provisional está relacionada tanto à ideia de “provisão” - do latim provision -, que denota a abundância, a exuberância do momento intensamente vivido, quanto à de “provisório” - pelo francês provisoire –, que destaca a impermanência, a existência voltada apenas para o presente (Houaiss; Villar, 2009). Na postura provisional o tempo se apresenta como um contínuo presente, no qual só é possível 57 viver o dia e para o dia. Segundo Frankl, as pessoas se comportam como se estivessem continuamente ante a possibilidade da catástrofe atômica. b) ATITUDE FATALISTA – a postura fatalista adota a inevitabilidade diante do trágico. O ser humano considera impossível dirigir o próprio destino, sendo este sempre determinado por forças alheias à sua vontade. O fatalismo, derivado do latim fatalis, significando tanto “do destino” quanto “funesto”, “mortal” (Houaiss; Villar, 2009). O destino inexorável determina rigidamente todos os acontecimentos. Nessa perspectiva, não há lugar para a esperança ou razão para lutar por transformações. c) MODO DE PENSAR COLETIVISTA – refere-se ao fenômeno do coletivismo, do latim collectivus, 'que agrupa, ajunta' (Houaiss; Villar, 2009). Para Frankl, o pensamento coletivista corresponde a uma perspectiva que vê o homem apenas no contexto dos agrupamentos humanos extensos, nos quais deixa de ser visto e compreendido como pessoa, desaparecendo e tornando-se indiferençável em meio à massa. Pelo cultivo do pensar coletivista, necessariamente, o homem renuncia a si mesmo como ser livre e como ser responsável, fazendo caso omisso da sua própria pessoalidade. d) FANATISMO – o fanatismo significa uma adesão incondicional a um sistema, doutrina ou facção. Derivado do latim fanaticus, significa tanto ‘divinamente inspirado’ quanto “delirante” (Houaiss; Villar, 2009). O homem fanático geralmente impõe seu pensamento aos demais, não reconhecendo o seu direito à diversidade de opinião e, neste sentido, fazendo caso omisso da pessoalidade do outro homem. Destaca que os dois primeiros parecem ser encontrados mais no mundo ocidental e os dois últimos ter mais incidência no mundo oriental. A síntese desses quatro sintomas seria a fuga à responsabilidade e o medo à liberdade, sendo que estas espécies de niilismo e de tédio espiritual teriam, para Frankl, repercussões psico-higiênicas, representando uma ameaça à saúde psíquica individual e coletiva. Frankl adverte que a perda dos instintos e da tradição desempenha um importante papel na frustração existencial crescente nos dias atuais. Explica que a vontade de sentido é, simplesmente, o que se frustra na pessoa na qual se encontra um sentimento de vazio ou falta de sentido (Frankl, 2008, p. 110). Esta se mostraria através do sentimento de vazio interior e 58 de carência de sentido para a existência. Este vazio existencial pode ser manifesto ou latente, mostrando-se frequentemente como tédio “mortal”, por estar relacionado a maiores índices de suicídio. Como um sentimento latente, muitas vezes se torna aparente apenas através de adições diversas, para as quais os profissionais do cuidado precisam estar atentos. O vazio existencial, não se manifestando obrigatoriamente, “pode permanecer insidioso, mascarado, e conhecemos diferentes máscaras por trás das quais se esconde” (Frankl, 1995, p. 120). As neuroses noógenas, compreendidas como aquelas geradas pela frustração da vontade de sentido, o que corresponde à frustração existencial, requerem uma terapia que busquem fazer “emergir possibilidades concretas de realização pessoal de sentido” e que são conforme explica Frankl -, possibilidades e valores capazes de realizar a vontade de sentido frustrada e de satisfazer a demanda por sentido de cada existência. Este seria o ponto de convergência da Logoterapia e da Análise Existencial, pois nele “qualquer logoterapia desemboca numa análise existencial, da mesma maneira que, no fundo, qualquer análise existencial culmina numa logoterapia” (Frankl, 1995, p. 121). Ainda que acometam as pessoas coletivamente, essas formas de sofrimento haverão de ser tratadas individualmente, pois o sentido é sempre ad personam et ad situationem, no dizer de Frankl. Os casos nos quais a frustração existencial permaneceu latente, embora necessitem igualmente da análise existencial, não são exclusivos do âmbito médico e “interessa da mesma forma ao filósofo e ao teólogo, ao pedagogo e ao psicólogo; pois estes devem se ocupar, na mesma medida que o médico, da dúvida sobre o sentido da existência” (Frankl, 1995, p. 123). 2.3 Logoterapia como Cura Médica de Almas (ou cuidado médico espiritual) 12 A modalidade de cuidado que Frankl propõe como Ärztliche seelsorge, que dá título ao seu primeiro livro, consiste na assistência logoterápica ao sofrimento noético em geral, ou seja, ao sofrimento de ordem espiritual. Originalmente, Frankl a concebeu como meio para o médico responder à crescente procura por cuidado espiritual na medicina que muitos 12 A tradução como “Cura Médica de Almas” parece não “soar” adequadamente em português, motivo pelo qual propomos também a expressão “cuidado médico espiritual”, que parece designar melhor o propósito de Frankl, usando minúsculas para diferenciar do título adotado no livro de referência. 59 observaram a partir do início do século XX. O termo Seelsorge significa “cuidado da alma”, geralmente uma forma de assistência sacerdotal ou pastoral dispensada, no âmbito das igrejas, aos sofredores de tragédias existenciais. Ela se destina a ajudar o paciente que é portador de um mal irreparável a suportar seu inevitável sofrimento. A Cura Médica de Almas, como uma espécie de assistência espiritual, não teria sido pensada por Frankl como uma terapia própria do especialista (psiquiatra), mas como uma necessidade de médicos de todas as especialidades que possam ter como paciente alguém que enfrenta uma situação de sofrimento inevitável. Frankl lista múltiplas especialidades – potencialmente todas as especialidades clínicas – relativas a estas situações: o cirurgião que não queira se surpreender encontrando o seu paciente na mesa de autópsia, depois do suicídio; o ortopedista que lida com amputações, mutilações e deficiências; o oftalmologista diante de deficientes visuais; o dermatologista ao enfrentar dermatoses deformantes; o ginecologista que trata casos de esterilidade; e, ainda, o geriatra que tenta amenizar os achaques da velhice. A inscrição Saluti et solatio aegrorum, que o imperador José II teria mandado afixar sobre a porta de entrada do Hospital Geral de Viena, não seria casual para Frankl, pois a consolação faz parte do cuidado tanto quanto a cura. Cita também uma recomendação da American Medical Association, a qual preconiza que o médico também deve consolar a alma, não sendo esta apenas uma obrigação do psiquiatra, mas de qualquer médico no exercício de sua profissão. O cuidado médico espiritual permite ao profissional clínico acolher o sofrimento espiritual do paciente sem abandonar sua condição profissional. A relação médicopaciente, segundo Frankl, se transformaria em um encontro pessoa a pessoa, proporcionando tanto ao paciente quanto ao médico se relacionarem enquanto seres humanos. Em suas palavras: “O médico meramente cientista se transforma assim no médico também humano. A “cura médica de almas” outra coisa não é que a tentativa de uma técnica desse caráter humano do médico. E talvez seja a técnica de caráter humano capaz de nos preservar da inumanidade da técnica tal como ela se faz valer também no âmbito da medicina tecnificada” (Frankl, 1995, p. 125). O texto “Da confissão secular à direção de almas médica” (Frankl, 2003b, p.291) apresenta a reflexão de Frankl sobre os limites de um “ir mais além” da psicoterapia. 60 Inicialmente é percebida a necessidade de um complemento “no sentido de incluir a dimensão espiritual” no âmbito psicoterápico. A Logoterapia e a Análise Existencial convergem, então, para a questão do exercício lícito, por parte do psicoterapeuta desta suposta ultrapassagem da esfera clínica. Frankl diz ser conhecido o efeito terapêutico de uma mera conversa, na qual a dor da alma é “compartida”, trazendo alívio. Refere que o efeito terapêutico da confissão fez com que a psicoterapia e a psicanálise inicialmente pretendessem ser uma espécie de confissão secular. A direção médica de almas difere por não intencionar ser um sucedâneo da religião – e nem da psicoterapia -, mas ocupar o vazio de cuidado existente, como complemento. Esta tarefa não é requerida se o paciente é religioso, mas se apresenta quando uma pessoa não religiosa busca junto ao médico o alívio para as profundas inquietações do seu espírito. Para Frankl o homem religioso se encontra “resguardado” (geborgen), sentindose “escondido” ou “guardado” (verbogen) na transcendência. Deus, como o “Ser silente” e o “Ser inefável” é, contudo, aquele ao encontro de quem o homem religioso sempre vai, por compreendê-lo com “Ser transcendente” (Frankl, 2003b, p.337). Frankl se refere aos sentimentos inquietos do homem usando o termo agostiniano inquietas cordis, para dizer que muitas vezes não se consegue chegar a uma raiz religiosa para os casos, mas que a Logoterapia pode aqui auxiliar na recuperação da capacidade de trabalhar e usufruir da vida, que muitas vezes está perdida nestes casos, pela intensa ansiedade. Deixa claro, no entanto, que a Logoterapia como Cura médica de almas, não é substituta do trabalho sacerdotal, pois enquanto o médico provê cura no âmbito da saúde, o sacerdote provê “salvação”, no âmbito da religião. Uma importantíssima observação é evocada por Frankl como possibilidade para a “psicoterapia - que sem querer e até mesmo sem poder querer – em casos isolados faz com que o paciente volte a encontrar as fontes sepultadas de uma fé primordial: não per intentionem, mas per effectum” (Frankl, 1995, p. 130). 2.4 Logoterapia como terapia específica de neuroses noógenas Os estados neuróticos, segundo Frankl, podem ter suas raízes no âmbito noético, ou seja, na dimensão espiritual. A tais estados Frankl denomina “neuroses noógenas”, que se referem àqueles casos nos quais há um conflito moral, uma crise existencial ou um problema espiritual. Destacando que se deve evitar tanto o patologismo quanto o noologismo – este tão nocivo quanto o psicologismo -, aponta diversos trabalhos científicos que demonstraram a existência de uma significativa margem de ocorrência de neuroses de origem noógena. Insiste 61 em esclarecer que nem toda neurose provém de conflitos de consciência ou de problemas de valores, não sendo esta a única causa de da doença neurótica. Frankl esclarece que a razão da neurose noógena está na frustação existencial, na qual há um potencial patogênico. De acordo com a Logoterapia, só pode haver doença no nível psicofísico, pois a pessoa não é passível de adoecimento, mas o homem adoece, por causas morais, existenciais ou espirituais. As neuroses de que aqui se fala são neuroses noógenas e não neuroses noéticas, provenientes do espírito, mas não acontecem no espírito, uma vez que “a pessoa espiritual não pode adoecer”. O espiritual, como a instância livre no homem, corresponde à pessoa, à qual se atribui liberdade incondicional (Frankl, 1995, p. 151). A explicação de Frankl vale a pena ser reproduzida: “Nesse sentido falamos, de modo consciente, unicamente de neuroses noógenas e não de neuroses noéticas: neuroses noógenas são enfermidades ‘que provêm do espírito’ e não enfermidades ‘que se encontram no espírito’: não existem nooses’... A neurose não é uma enfermidade noética, uma enfermidade espiritual, uma enfermidade do homem unicamente em sua espiritualidade; ela é sempre a enfermidade de um homem em sua unidade e totalidade” (Frankl, 1995, p. 151-152). A designação de neurose noógena, segundo Frankl, é preferível ao termo neurose existencial; existencial é apenas uma frustração que não chega a ser patológica. A autêntica neurose noógena, proveniente do espiritual, exige uma psicoterapia que igualmente provenha do espiritual, o que corresponde à proposta logoterápica. Contudo, o médico deve se resguardar de imposições de sua visão de mundo, sendo importante que a proveniência noógena possa emergir a partir do paciente, como nos casos nos quais as queixas revelam conflitos ético-espirituais ou religiosos. Adverte Frankl que o logoterapeuta deve se precaver para que o paciente não lhe jogue a responsabilidade, mas a assuma, pois “a Logoterapia é essencialmente educação para a responsabilidade”. Deixa claro que é a partir dessa responsabilidade que o paciente deve penetrar até o sentido concreto de sua existência e – acrescenta Frankl citando Paul Polak – desta forma “dota-se de sentido o espaço concreto em que o homem se encontra jogado” (Frankl, 1995, p. 153). 62 2.5 Logoterapia como terapia inespecífica A logoterapia como terapia inespecífica se dirige às neuroses no sentido estrito, ou seja, neuroses psicógenas que, como tal, são originadas no psíquico. Esta diferenciação é importante para que não se faça “caso omisso do espiritual” ou se chegue a “projetá-lo de seu espaço para o plano meramente psíquico” o que seria, segundo Frankl , “incorrer no psicologismo” (Frankl, 1995, p. 156). A Logoterapia distingue, além das neuroses psicogênicas, as doenças psicossomáticas (aquelas que não são causadas, mas apenas desencadeadas no psíquico); as pseudoneuroses somatogênicas (doenças neuróticas aparentes, porém causadas no somático); e, finalmente, as doenças funcionais (as originadas de disfunções de caráter vegetativo ou endócrino, que não chegam a provocar mudanças de estrutura). Ressaltando três grupos de perturbações funcionais que se desencadeiam através de monossintomas, em geral de ordem psíquica, Frankl descreve três grupos de disfunções: as pseudoneuroses de Basedow (hipertireoidoses larvadas13); das pseudoneuroses de Addison (hipocorticoses larvadas); e das pseudoneuroses tetanoides. Relata casos nos quais o tratamento médico se mostra eficaz através de medicação adequada -, fazendo desaparecer drasticamente os sintomas – mas lembra da necessidade de abordar qualquer caso dessa índole também do ponto de vista psíquico. Isto porque um sintoma passageiro pode produzir um temor fóbico de sua repetição: a angústia reativa de espera, conhecida dos psicoterapeutas. A “ansiedade antecipatória”, reforçando o sintoma, leva à confirmação da fobia e ao aprisionamento do paciente no círculo vicioso. A angústia de espera, por sua vez, se torna o elemento patogênico ao fixar o sintoma. Frankl propõe o tratamento simultâneo “nos polos psíquico e somático desse evento circular”, através de fármacos adequados e dos recursos logoterápicos que, no caso, seria a técnica da intenção paradoxal (Frankl, 1995, p. 158-160). A “intenção paradoxal” deve ser derivada, segundo Frankl, por dedução, a partir da teoria das neuroses e não por indução, ou seja, partindo da terapia das neuroses. Retomando a neurose de angústia, explica que “a angústia do paciente neurótico ansioso se potencia em razão de uma angústia perante a angústia”. Interroga o que acontece quando o logoterapeuta leva o paciente a tentar desejar paradoxalmente aquilo que temem. Revela Frankl que observou largamente, na sua experiência clínica, que esta ação provoca uma reação 13 O termo “larvado”, do latim Larvátus, 'possuído de larvas ('fantasmas'), endemoniado, delirante', se refere a sinais e sintomas patológicos que se apresentam como atípicos ou descontínuos (Houaiss, 2009). 63 terapêutica em cadeia, quando o medo é substituído por uma intenção saudável, ainda que este desejo não seja tomado a sério nem seja definitivo. O importante é que o paciente possa experimentar por alguns momentos a possibilidade de rir de si, distanciando-se da sua neurose, pois o humor possibilita esse autodistanciamento entre alguma coisa e ele mesmo. Frankl adianta que: É possível que “o sintoma fóbico ao qual a intenção paradoxal se dirige em primeiro lugar represente apenas a superfície sintomatológica de uma angústia originária profunda que está por trás desta, chegando até o existencial; apesar disso, a intenção paradoxal é até mesmo o meio para uma conversa mais profunda e existencialmente radical; ou seja, para o restabelecimento de uma confiança originária em relação à existência” (Frankl, 1995, 165). Afirmando que a intenção paradoxal é a logoterapia mais autêntica, Frankl mostra que, como pessoa espiritual, o paciente pode objetivar a neurose e dela se distanciar. Neste caso, o antagonismo psiconoético “facultativo” se atualiza em antagonismo psiconoético “de fato” e esta seria “a Logoterapia no melhor sentido da palavra” (Frankl, 1995, 166). Frankl descreve diversas manifestações de angústia, para as quais a Logoterapia inespecífica estaria indicada através dos recursos da intenção paradoxal e a derreflexão, como meios para a atuação do psicoterapeuta em tais casos. Afirma suas expectativas de se poder instituir a terapia adequada para neuroses noógenas como terapia específica, sendo a inespecífica para os casos somatogênicos e psicogênicos. A frustração existencial nem sempre é patogênica, mas – diz Frankl -, preencher o vazio de sentido tem valor preventivo (1995, p. 183-184). 64 2.6 ORDO AMORIS: o sentido do “Amor” no pensamento de Viktor Frankl. O mundo contemporâneo perdeu de vista muitos aspectos intrínsecos à humanidade do homem, os quais - postos à margem dos interesses imediatos da atualidade -, se tornaram obscurecidos. Entre estes, figura a espiritualidade, que acompanhou historicamente todas as civilizações até o advento do Iluminismo, quando se fez “tabula rasa” dos fenômenos humanos relativos à fé e à religiosidade. O discurso acadêmico - encantado pela previsibilidade e pela eficácia das ciências -, baniu progressiva e indiscriminadamente todo aspecto do conhecimento que ressoasse como “sobrenatural”. A espiritualidade intrínseca ao humano foi arrastada pela força dessa mudança paradigmática e igualmente “preterida”, com todo o peso do que pode significar esta “preterição” 14: o da injusta omissão, do desprezo e do esquecimento. A ciência passou a se referir às expressões da espiritualidade humana como se em paralipse 15 , lançando sobre as novas disciplinas que se ocupam da “alma” humana a responsabilidade de dar conta de tudo que ultrapassasse o âmbito biológico do homem. A compreensão acerca do amor, pertencente à mesma constelação de fenômenos da espiritualidade, não ficou incólume. Ao homem reificado, reduzido à condição de homúnculo (Frankl, 1995, p. 63), caberia um amor restrito ao campo de visão da ciência míope: o “amor dos corpos” e o “amor dos afetos”. O amor como altruísmo, renúncia ou sacrifício - ou o que do amor escapasse à corporalidade e à afetividade -, passaria para outro campo de conhecimento “separado”, “segregado” e, portanto, para o campo do “sagrado”. Este “psicologismo”, que possivelmente não era intencional na Psicanálise e na Psicologia nascentes, foi percebido por Viktor Frankl e se tornou o motivo de sua busca por outra perspectiva que não a oferecida pela medicina reducionista do seu tempo. Ora, a época atual tem possibilitado de novo iluminar muitos aspectos desse saber preterido e olhar a espiritualidade não como um simples adereço cultural, mas como um aspecto intrínseco ao ser do homem, desde que emergiu o pensamento contemporâneo – especialmente através de pensadores da vertente fenomenológica existencial – a partir das cinzas das duas Grandes Guerras do século passado. A antropologia personalista de Max Scheler, que fertilizou 14 Leve-se em conta que a preterição de algo corresponde, inclusive, ao ato de “destituir sem motivo legal” e “tomar posse de um posto pertencente a outro” (Houaiss, 2009). 15 Figura da retórica pela qual se finge não falar de coisas sobre as quais se está, indiretamente, falando (Houais, 2009). 65 largamente as raízes do pensamento de Frankl, fez emergir o homem como ser espiritual, capaz de superar seus liames naturais e se constituir como centro de atos intencionais. Assim, Scheler afirma que os limites da “simpatia”, restrita à esfera de pertencimento do homem – nação, etnia, família –, são superados apenas pelo amor, que representa um grau superior de relação com o “eu do outro” (Reale e Antiseri, 2008, vol. 6, p. 185). Viktor Frankl considera o amor, a vivência pela qual se vive a vida do outro ser humano em todo seu caráter único e irrepetível. No amor, “o amado é essencialmente captado como um ser irrepetível no seu ser-aí (Dasein) e como um ser ‘único’ no seu ser-assim (So-sein)”, segundo as palavras de Frankl (2003b, p. 173). A psicologia do amor em Frankl apresenta a gradação scheleriana com base na realização de valores, desde o nível do amor biológico (que suscita a atração biológica e a atitude sexual); incluindo o nível psíquico, como a “erótica” (no qual o enamoramento supera a simples sexualidade genital, para experimentar o movimento afetivo pela psique original do outro); e, especialmente, o amor a partir da dimensão noológica (que capacita o homem para um nível profundo de aproximação ao outro ser), segundo relata Benigno Freire (2007, p. 220-241). A convergência teórica entre alguns aspectos do pensamento de Viktor Frankl e o de Ludwig Binswanger é trazida por Pareja Herrera (2007), que apresenta este último o criador da “Psicanálise Existencial ou Ontoanálise”, de fundamentação heideggeriana. Junto com Medard Boss e outros primeiros simpatizantes da psicanálise, frequentou por algum tempo os ciclos da psicanálise freudiana e junguiana. Binswanger teria buscado para além da noção de Sorge (cuidado ou preocupação em Heidegger) relativa à “inquietação íntima e profunda motivada pelo abando às coisas” e pelo esquecimento da liberdade e das possibilidades de ser. Teria aí, nesta busca, encontrado resposta no que enuncia como “ser-juntos-no-amor” (Mit Einender sein-in-der-Liebe). Para Herrera Binswanger veria o amor como modo-de-ser-nomundo, que permite ser-com-os-outros sem abandonar o ser-consigo, pois guarda a mesmidade e a dualidade do Eu e do Tu, concepção pela qual convergiria para a perspectiva de Frankl. E, o que é mais importante na reflexão de Herrera, este não seria uma concepção de amor privativa do casal, mas “extensiva à relação psicoterapêutica, que deverá estar sempre impregnada do calor e do sentido do humano” (Pareja Herrera, 2007, p. 94). A reflexão sobre o cuidar suscita novas questões acerca da relação entre cuidador e pessoa cuidada. Se para Frankl a ação clínica envolve a mediação pelo Logos, a transcendência em direção à outra pessoa que sofre se dá no movimento partilhado da busca de sentido, não se constitui em um simples encontro ou afetação no sentido da empatia ou do 66 calor humano. Frankl vai além do amor enquanto um simples aspecto das relações interhumanas ao afirmar que o amor “é mais que um estado de sentimentos: é um ato intencional... A sua essência única é, como todas as coisas de natureza genuinamente essenciais, algo desligado do tempo e, nesta medida, imperecível, algo que não passa. A ideia de um ser humano – precisamente a ideia que o amante contempla – faz parte de um reino metatemporal” (Frankl, 2003b, p. 178-179). A abordagem frankliana à temática do “amor” responde à questão inicialmente exposta acerca do desgaste e das distorções sofridas pelo termo em todas as línguas e culturas atuais. Frankl faz e propõe que se faça o que é necessário para o resgate das memórias relegadas pelo ritmo alucinante da modernidade: enunciar “de novo” a palavra amor e trazê-la ao centro do debate. Apesar de reduzido ao mais tênue dos seus significados, o amor não perdeu a sua eloquente vitalidade. Uma vitalidade pulsátil que – mesmo encoberta por uma preterição muito recente - permite vislumbrar sua verdade no acontecer da vida e no pensar dos que não detêm o olhar nas centralidades. Um pensar que está atento às cintilações marginais, por saber que as franjas opacas da realidade abrigam o espólio dos saberes aparentemente letárgicos que esperam ser, outra vez, requeridos pela vida. 67 3 REFLEXÕES SOBRE A CONCEPÇÃO DE CUIDADO EM FRANKL Viktor Frankl apresentou a sua proposta como solução para o problema do cuidado integral do humano, tratando a Análise Existencial e a Logoterapia como “faces de uma mesma teoria” (Frankl, 1995, p. 60). Refere-se, em outras passagens, à “teoria do sentido” por ele desenvolvida e denominada “Logoteoria” (Frankl, 1995, p. 249). A sua Logoteoria, portanto, está presente nestas duas faces que se apresentam sob os “cinco aspectos” já anteriormente referidos. Atente-se ao fato de que a palavra “aspecto” (derivada do termo latino a(d)spectus, ‘olhar’, ‘aparência’, ‘figura’), expressando novamente a ideia de uma realidade que se mostra a certo modo de “olhar”, sob a aparência de cinco formas de cuidado que remontam a uma única fonte, a Logoteoria. Torna-se claro que esta “teoria do sentido” de Frankl (Logoteoria) é uma proposta nos moldes de uma filosofia existencial fenomenológica, que alimenta e sustenta o conjunto de suas propostas para a prática do cuidado (Análise existencial e Logoterapia). Sabe-se que toda prática psicoterápica radica em alguma concepção antropológica. Viktor Frankl, desde a juventude, vai definindo uma compreensão acerca do homem como um ser que, além de um corpo e de um psiquismo, é motivado por uma vontade de sentido que denuncia outra dimensão a ser reconhecida, a qual é exatamente aquela que confere ao homem a sua condição humana. Esta compreensão prévia permitiu que Frankl não se acomodasse às propostas de Freud e de Adler, embora reconhecendo o valor das descobertas de ambos. Para Frankl, a psicoterapia levou ao extremo sua objetividade, chegando a mecanizar o psiquismo, a coisificar o humano e a reduzir a terapia à faina técnica de consertar mecanismos psíquicos defeituosos. Afirma que somente um homme machine necessita de um médicin technicien (Frankl, 2007, p. 14). Sem deixar de perceber que a psicanálise foi fruto de uma época histórica marcada pelo tecno-mecanicismo e de um contexto social impregnado de puritanismo, Frankl não se conforma ao que percebe como uma desintegração da unidade da pessoa humana. Afirma que “a psicanálise destrói o todo unificado que é a pessoa” para depois se dar à tarefa de reconstruí-la “a partir dos fragmentos” que produziu. Refere-se ao materialismo inerente à teoria psicanalítica como a base da interpretação a priori do homem determinado pelos impulsos, ou seja, pelo automatismo do aparelho psíquico, expresso nas noções de energismo, mecanicismo e automatismo implicadas no modelo antropológico psicanalítico (Frankl, 2007, p. 16). Sua intenção nunca foi desmerecer o trabalho de Freud, de 68 quem admirava a genialidade e a simplicidade, mas expressar a percepção de que seria preciso prosseguir na inquietação a respeito do mistério em que permanecia envolto o ser humano. O conceito frankliano do humano - em lugar deste automatismo do aparelho psíquico – propõe a autonomia da existência espiritual. Frankl aludiu às três virtudes relacionadas pelo poeta vienense Arthur Schnitzler, afirmando que - se a psicanálise enfatiza a “objetividade” e a psicologia individual a “coragem” -, a ênfase da sua análise existencial se encontra no “senso de responsabilidade”. Afirma que a Análise Existencial reconhece “a responsabilidade como a característica fundamental da pessoa” e que este reconhecimento começa pela compreensão do caráter de missão da vida e do simultâneo caráter de resposta da existência. Explica que o homem antes de se perguntar pelo sentido da vida, já é interpelado pela existência, sendo continuamente chamado a “responder” pelo sentido diante das situações da vida. Sua “responsabilidade” é a capacidade de dar respostas à existência através de atos, única forma de responder às “perguntas vitais” contidas em cada situação. É a responsabilidade assumida perante a existência em situações concretas que permite ao homem dela se “apropriar”, tornando-a “sua” existência. Por acontecer no “aqui e agora”, ou seja, na concretude de determinadas situações e pessoas, “a responsabilidade da existência é sempre uma responsabilidade ad personem e ad situationem" (Frankl, 2007, p. 17). Interpretando a superação da metaclínica freudiana, Benigno Freire (2007, p. 91) afirma que Frankl realizou uma crítica da psicanálise “por elevação” e não por negação, ou seja, que Frankl “aceita, confirma e assume” as dimensões biológica e psíquica como influentes no ser e na conduta do homem. Em relação a Jung, assinalou que “ao elevar o nível de análise ontológica, as funções e as instâncias da personalidade” adquiririam maior perspectiva dinâmica e compreensão de sua posição na estrutura ontológica do ser do homem. Freire observa que sob “a atalaia da dimensão espiritual” a unidade psicofísica ganha uma superior explicação de sua natureza e dinamismo (Freire, 2007, p. 90). A Psicologia individual, por sua vez, reduziria o homem ao solo psíquico, no entender de Frankl. A responsabilidade proposta por Adler seria a capacidade de se sobrepor aos requerimentos instintivos pelas forças do próprio aparelho psíquico, como na imagem de um rio que se explica por construir seu próprio canal (Freire, 2007, p. 90-92). Isto nos faz supor que é somente ao se remeter às fontes da espiritualidade que a explicação do homem se torna satisfatória para Frankl, ou seja, quando sua antropologia excede o conhecimento científico e recorre ao pensamento filosófico de cunho existencial e fenomenológico. Para Freire (2007, p. 93), a psiquiatria na primeira metade do século XX foi 69 ao encontro das correntes filosóficas existencialistas e Frankl participou desta tendência. Embora saibamos que seu espectro de interesses filosóficos haja sido mais amplo, concordamos que esta tendência tenha propiciando a Frankl revigorar suas bases filosóficas pelo “intercâmbio profissional ou pela leitura das obras” de psiquiatras e psicólogos como Jaspers, Gebsatell, Binswanger, Boss, Weizsäcker e Caruso, autores que “assimilam e transvasam as ideias nucleares das escolas filosóficas contemporâneas ao fazer clínico” (Freire, 2007, p 93). Encontramos indícios de que houve certo retorno das teorias de Frankl para pelo menos um destes autores. Nossa pesquisa bibliográfica encontrou na obra de Igor Caruso16, por exemplo, referências à concepção de inconsciente espiritual de Frankl contida no livro Der Unbewusste Gott (O Deus Inconsciente), que aquele autor compreendeu como uma sinalização aos aspectos positivos da neurose. Caruso se refere ainda à percepção frankliana dos aspectos positivos da tragicidade, mencionando como fonte o livro Ärztliche Seelsorge de Frankl (Caruso, 1954, p. 51 e 83). A pesquisadora e logoterapeuta Elisabeth Lukas, por sua vez, ressalta o papel central da concepção de autotranscendência na Análise existencial de Frankl e considera seu livro Der Unbewusste Gott a sua obra mestra (Lukas, 2004, p. 173). Destaca que, ao contrário da ideia de autorrealização (muito em voga na primeira metade do século XX), o conceito “cunhado por Viktor Frankl da autotranscendência da existência humana” nunca foi posto em moda e nunca perderá sua vigência. Lukas explica que esta concepção frankliana, frequentemente mal-entendida, não se reduz a um simples “sobrepassar-se a si mesmo em direção ao mundo externo” e que envolve um “transcender-se a si mesmo para dentro”. E, ainda, que “este ‘para dentro’ não é idêntico a uma orientação para o mundo interior do psiquismo” 17. Afirma que, pela autotranscendência, o homem busca no seu interior a proximidade do “ponto em que nasce o Ser Humano, que justamente não nasce de si mesmo, mas daquela fonte que possibilita todo fluir e entregar-se”. É nesta proximidade do que lhe é originário, que Lukas descreve como “momento ancestral de alumbramento, ao que está ‘reatado’ eternamente”, que o homem encontra a possibilidade de se aproximar da “presença ignorada de Deus” (Lukas, 2004, p. 176). O autor Juan José Milano - em trilha análoga à de Lukas - explora as aproximações entre o pensamento de Frankl e o de Agostinho, apresentando uma percepção semelhante da 16 Referimo-nos ao livro Análisis Psíquico y Síntesis Existencial, de Igor Caruso, que não se definia como freudiano, nem adleriano ou junguiano. Caruso foi discípulo e analisando do barão Von Gebsttel e dirigiu o Círculo Vienense de Psicologia Profunda. 17 Lukas dá como referência desta citação o livro de Heidegger Sein und Zeit (Ser e Tempo), Tübingen, 1972, p. 272). 70 autotranscendência frankliana como um movimento para o interior de si (memoria sui) pelo apelo de algo perdido (memoria Dei) e em direção ao que é “mais íntimo que a própria intimidade”, ou seja, a presença inconsciente e ignorada de Deus (Milano, 2007, p. 87). Este “ponto de encontro e comunicação transcendente”, por ser o princípio do todo do homem, é uma dimensão inabarcável e pré-lógica, mas pode ser compreendida como um estado inconsciente em relação “ao transcendental imanente ao próprio homem” (Milano, 2007, p. 86-87). No mesmo texto, Milano acentua a coincidência dos temas-chave agostiniano e frankliano que convergem para o reconhecimento da liberdade interior do homem como o real motivo para a felicidade e o estar em paz. 71 REFERÊNCIAS Bauman, Z. 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Viktor Frankl: a antropologia como terapia. – São Paulo, SP: Paulus. 72 REFLEXÕES CONCLUSIVAS A reflexão aqui desenvolvida nos trouxe compreensões acerca das dificuldades relativas a uma prática clínica integral, tanto na medicina quanto na psicologia e demais profissões dedicadas ao cuidado do humano. Os principais obstáculos para a instituição de uma antropologia ampla e integral nas ciências da saúde se devem ao fato de se terem embasado no método das ciências naturais a partir da modernidade, quando as diversas formas de cuidado clínico se diferenciaram enquanto disciplinas estanques e profissões isoladas. Em virtude dessa fundamentação científico-naturalista – por sua vez, materialista e empirista - as ciência da saúde foram se constituindo em uma esfera acadêmica refratária à tematização da espiritualidade, na qual esta exclusão se dá de forma tácita e acrítica. A universidade perdeu seu estatuto de “ágora” para o pensamento livre e para a busca da verdade, ao se instituir enquanto “faculdades”. A fragmentação disciplinar desencadeou, assim, igual fragmentação do conhecimento e da ideia do humano. Esta especialização do saber em “partes” desconectadas da totalidade favoreceu práticas utilitaristas cada vez mais distanciadas da unidade do ser humano, sendo o campo clínico aquele no qual mais se evidenciam estas rupturas. O ensino médico contemporâneo tem abandonado os foros tradicionais da medicina clássica, a qual oferecia largo conhecimento das Ciências Humanas, fomentando as virtudes do caráter e possibilitando a construção de uma mentalidade crítica. O mesmo se dá em relação a todas as profissões da área da Saúde. É amplamente aceito que através do estudo da Filosofia, da Lógica, das línguas clássicas e outras disciplinas que fazem parte das “humanidades”, o médico reunia condições para uma prática que, além da pura habilidade de curar (“iátrica”), era enriquecida pela arte do aconselhamento (“maiêutica”) e pelo devotamento à missão de consolar (“sacerdócio”). Atualmente percebe-se, no meio acadêmico, uma progressiva conscientização de que somente uma formação fundada nas chamadas “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften) torna possível proporcionar às profissões do cuidado uma percepção de homem e de mundo capaz de acolher o Homo humanus em sua plena humanidade e sustentar uma prática clínica integral. Viktor Frankl já se ressentia, à sua época, de todo o potencial de cuidado que escapava à sua especialização em neuropsiquiatria. Através do doutoramento em filosofia, buscou subsídios para ajudar a construir uma antropologia médica inclusiva em relação à dimensão espiritual. Sua compreensão do espiritual como a “verdadeira dimensão do existir humano”, 73 uma vez que o humano se constitui pelos atos espirituais que “elevam o plano somatopsíquico à dimensão espiritual” (Frankl, 2008c, p. 73), se tornou uma estratégia metodológica capaz de subsidiar a ampla tematização do noético na psicoterapia. Esclarece, contudo, que não é apenas no espiritual, mas na tri-unidade de corpo, alma e espírito que o homo humanus encontra sua “pátria” (Frankl, 1995, p. 72). Isto significa que, embora o espiritual seja para Frankl a dimensão distintiva do humano, não é toda a realidade do homem. É possível que Frankl tenha aderido às perspectivas existenciais e fenomenológicas por vislumbrar em seus pressupostos – especialmente em autores como Max Scheler e Heidegger -, conteúdos seminais capazes de fecundar seu pensamento na consecução de tão delicada tarefa. Afirma Dalgalarrondo que a qualidade heurística de uma teoria está em seu poder de gerar novas teorias, “de enriquecer e esclarecer a percepção da realidade, abrindo perspectivas mais variadas e completas” (Dalgalarrondo, 2008, p. 57). Em conformidade com esta afirmação, observamos que Viktor Frankl soube explorar a fecundidade heurística da vertente fenomenológica existencial, infundindo-lhe sua própria concepção do humano pela inclusão da dimensão noética. Avaliamos que, neste trabalho de dissertação, a opção pela pesquisa de natureza teórica veio atender à demanda por reflexões mais atentas e diligentes acerca das derivações realizadas por Frankl na constituição de seus próprios caminhos. Tais estudos buscaram aprofundar o conhecimento sobre suas vinculações a outros teóricos, com o intuito de favorecer uma compreensão mais consistente dos fundamentos epistemológicos e filosóficos das formas de cuidado por ele concebidas. Observou-se, no curso das leituras realizadas, que estas derivações se dão como uma espécie de “diferenciação” 18 , sem as rupturas frequentemente observadas nos encaminhamentos das novas ideias. Frankl reconheceu o valor das construções dos seus mestres na medicina e na filosofia e, embora não tenha assumido a continuidade direta de nenhum deles, assumiu a contiguidade das concepções que têm em comum. Esclarece, contudo, a necessidade de lhes acrescentar a postulação nítida da dimensão noética, objetivo primeiro da elaboração das suas próprias formulações teóricas e práticas, das quais sempre destacou o caráter complementar. 18 O termo “diferenciação” é aqui usado no sentido de uma “intensificação da complexidade” de um sistema (HOUAISS, 2009; p. 683), observando-se também o sentido de “diferir”, do lat. differre, no sentido de 'espalhar, semear, dilatar’. Visamos expressar, desta forma, a ideia de um pensamento que adquire nova forma e função a partir da qualidade seminal daquele em que se inspira. 74 A adoção de uma atitude metodológica flexível e inclusiva na delimitação do campo da pesquisa possibilitou olhar o pensamento frankliano a partir de múltiplos pontos de observação, uma vez que não foi considerada - como fonte de conhecimento - apenas a produção escrita do autor, isoladamente. Antes, sua produção teórica foi considerada em constante relação com as circunstâncias pessoais e histórico-sociais do seu tempo, por dois principais motivos: primeiro pela compreensão de que a vida, em sua singularidade, “informa” e enriquece o saber construído; depois, porque é próprio da metodologia fenomenológica valorizar a vivência como fonte de conhecimento. Esta opção é reiterada pela afirmação de Creuza Capalbo (2008) de que o projeto de Edmund Husserl – considerado o fundador da fenomenologia - consistiu em erigi-la como “ciência rigorosa, mas não exata; uma ciência eidética, que procede por descrição, não por dedução” (Capalbo, 2008; p. 18). Este é o motivo da inclusão de algumas obras históricas ou biográficas que cumprem a tarefa de descrever e esclarecer o contexto no qual germinaram as concepções do autor. A pesquisa mostrou, no curso de suas articulações, que a importância da história pessoal na compreensão de um autor possui um especial relevo no pensamento de Frankl, uma vez que o eixo fundante de sua teoria se revelou como construção intelectual e como experiência pessoal. Esta dupla instituição, como foi possível discernir, possui capital relevância para que se possa apreender amplamente o Experimentum Crucis frankliano - tratado no primeiro artigo -, cujas riquezas epistemológica, ética e ontológico-existencial supomos ainda insuficientemente exploradas. Os estudos iluminaram, ainda, a compreensão de que a grande e primeira motivação de Frankl - que expressa reiteradamente sua peculiar visão de mundo -, é o seu cuidado com o reconhecimento e a sobrevivência do que denomina o “propriamente humano”, ou seja, a dimensão noética que distingue o homem dos demais seres da natureza. Ficou claro que esta inquietação, portanto, não se dirige nem à transitoriedade fática do homem, nem a uma possível “essência” a ser idealmente preservada. Frankl cuidou e quis viabilizar meios para que se cuide do homem real em sua inteireza, tanto na sua dimensão fática quanto na noética, tanto no ôntico quanto no ontológico. Como médico, importava-lhe o sofrimento do corpo e do psiquismo patologicamente corrompidos, embora não lhe bastasse cuidar apenas destes. Importava-lhe, sobretudo, o vazio de sentido e a não realização de valores que apontavam para o sofrimento “noogênico”, a cujas questões as formas contemporâneas do cuidado têm sido incapazes de responder. Assim, identificamos como as três grandes motivações de Frankl (seus leitmotiven), exatamente os assuntos que compõem a tríade temática que sustenta a 75 reflexão expressa na presente dissertação: a visão do humano em sua integralidade; o cuidado abrangente quando se possui essa visão de integralidade e, finalmente - perpassando todo o trabalho -, o espiritual como condição de possibilidade para o propriamente humano. A meta almejada pela reflexão que aqui se conclui se identifica com a possibilidade de que este trabalho possa contribuir para que as demandas do ser humano em sofrimento – ou simplesmente suas fragilidades intrínsecas - sejam mais integralmente acolhidas nas clínicas médica e psicoterápica dos dias atuais. Algumas outras metas são vislumbradas, como as possibilidades de inspirar outras pesquisas acadêmicas; de colaborar com os atuais esforços interdisciplinares na construção do cuidado integral na saúde; de subsidiar teoricamente projetos mais consistentes de humanização a partir da formação médica e de outras profissões da saúde; ou, ainda - através da compreensão da antropologia integral frankliana -, de contribuir para uma educação de inspiração logoterápica, o que corresponde a falar de uma pedagogia voltada para “valores” e “sentido da existência”. Durante toda sua vida, Frankl esteve inclinado a refletir sobre modos de preservar, para o homem, a possibilidade de acesso ao espiritual. Desde seus primeiros esforços intelectuais, considerou a existência de uma espiritualidade intrínseca ao humano. Por ser inconsciente em grande medida, esta espiritualidade é geralmente ignorada, havendo sido denominada de “inconsciente espiritual” por Frankl (2008). O “esquecimento” da dimensão espiritual, seja como “distração”, seja como “alienação de si mesmo”, aparece na obra frankliana em surpreendente compasso com o pensamento heideggeriano. Sem pretensões de estabelecer qualquer relação direta de identidade entre as concepções acerca da transcendência em ambos os autores, as leituras realizadas mostram-nas como iluminadas por uma fonte comum. No pensamento do filósofo Martin Heidegger (1889-1976) emerge como “esquecimento do Ser”, no contexto de sua Ontologia Fundamental. Para este filósofo, a racionalidade cartesiana moderna, técnica por excelência, tem obscurecido o próprio sentido do ser do homem, para torna-lo objeto e alvo do utilitarismo dominante. Desta forma, afirma Heidegger, o homem não pode “chegar a ele mesmo pelo caminho do pensamento do ‘eu’, se o próprio e si-mesmo do homem não for algo mais originário”; e, ainda, que “a consideração fundamental de Descartes, fundada no eu, não atinge o si-mesmo próprio do homem, ele mesmo!”, sendo esta a principal razão para o esquecimento do Ser (Heidegger, 2007, p. 56). A faceta originária da análise existencial frankliana, segundo Elizabeth Lukas, é a rejeição de interpretações que “restringem e limitam a natureza humana" (Lukas, 2005, p. 146). Afirma que a antropologia desenvolvida por Frankl concentra-se na fecundidade da 76 dimensão espiritual do homem, e que apenas por sua apresentação já pode produzir comprovados efeitos benéficos. Esta percepção é reiterada por Ricardo Peter, no seu livro intitulado Antropologia como terapia, que observa nas escolas e nas correntes psicológicas puramente experimentais o que chama de irremediável “indigência antropológica”, apontando-as como presas de um “emparedamento” no antropocentrismo bidimensional (Peter, 1999, p. 117). Afirma que a transcendência não tem em Frankl “caráter teístico, mas sim antropológico, empírico e fenomenológico” e ressalta o alcance revolucionário do pensamento frankliano, que devolveu à psiquiatria e à psicoterapia a dimensão antropológica essencial do humano, juntamente com seu caráter decisional (Peter, p. 117-118). Preservar o humano na esfera do cuidado clínico - podemos concluir - foi o leitmotiv da obra de Frankl, sua tarefa específica e aquela missão propriamente sua. Foi o modo de encontrar o sentido de sua própria vida ao ajudar os outros a encontrá-lo nas suas, quer na condição de pacientes ou não. Este senso de responsabilidade em relação ao humano significa um respeito que, segundo o pensamento de Hans Jonas (2006), tem algo de sagrado, de uma sacralidade que - mesmo fora do campo de uma religião positiva -, significa preservar a “imagem e semelhança” do divino. Frankl vislumbrou esta Imago Dei obscurecida no inconsciente de todo homem, como um testemunho de sua pungente condição de ser - a um só tempo -, existência consciente e contingente. A vida e a obra de Viktor Frankl - podemos dizer, sem temores -, estiveram a serviço de uma tarefa que encontrou plena realização existencial. De fato, sua produção intelectual e sua história pessoal, entrelaçadas, lançaram-se à maneira de uma ponte sobre as grandes fissuras do conhecimento contemporâneo, para que cuidadores de todas as estirpes possam sobrepassar os hiatos e superar os encarceramentos que os impedem de cuidar integralmente do humano. A tarefa assumida por este trabalho foi, tão somente, a de somar esforços para abrir passagens, remover obstáculos e descerrar véus, visando tornar mais conhecida a senda criada por Frankl. Tal tarefa estará cumprida se seus resultados puderem suscitar novas pesquisas e inspirar psicólogos, médicos, sacerdotes e pedagogos – assim como inumeráveis outros profissionais do cuidado – na sua busca cotidiana por responder às dores do homem do nosso tempo. Estarão, assim, contribuindo para trazer à luz uma concepção plena do humano e para resgatar um cuidado efetivamente integral. 77 BIBLIOGRAFIA GERAL Abagnano, N. (2007). Dicionário de Filosofia. 5ª ed. – São Paulo: Martins Fontes. Bauman, Z. (1999). Modernidade e Ambivalência. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Zigmunt Bauman. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Capalbo, C. (2008). Fenomenologia e Ciências Humanas. Aparecida, SP: Ideias& Letras. Caponetto, M. (1995). Viktor Frankl, uma antropologia médica. 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Karen Wondracek (org). - Petrópolis, RJ: Vozes. 80 Anexo I A ONTOLOGIA DIMENSIONAL FRANKLIANA H I A T O O N T O L Ó G I C O DIMENSÕES DO HUMANO NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA INCONSCIENTE PRÉCONSCIENTE DIMENSÃO NOÉTICA CONSCIENTE DIMENSÃO PSÍQUICA DIMENSÃO SOMÁTICA Figura 1: Representação gráfica da Ontologia Dimensional de Viktor Frankl, que conjuga ideias de Nicolai Hartmann e de Max Scheler. A ontologia de Hartmann inspiraria a representação das dimensões corporal, psíquica e espiritual do homem como um gradiente ascendente representando os “níveis” do ser, enquanto que a antropologia de Scheler serviria de modelo para a compreensão de um gradiente em direção ao eixo espiritual e central da pessoa. Nota: Estudo ilustrativo criado pela autora para representar a Ontologia Dimensional de Viktor Frankl, com base no conjunto das obras consultadas. Franqueado o uso para fins didáticos não lucrativos, com citação da autoria [Calheiros de Lima, M. E.]. 81 Anexo II AS LEIS DA ONTOLOGIA DIMENSIONAL FRANKLIANA As analogias geométricas de Viktor Frankl representam a sua concepção do humano e constituem a sua Ontologia Dimensional, definida em duas leis: 1 Primeira lei da ontologia dimensional frankliana: “Uma única coisa projetada em dimensões inferiores àquela que lhe é própria, se dissocia em figuras diversas e contraditórias entre si”. Um recipiente aberto (vaso cilíndrico) resultará em figuras fechadas (círculo e retângulo), que não representam sua unicidade original. Fig. 1 - Projeção de um único objeto em dimensões inferiores à que lhe é própria, resultando em figuras que se opõem. 2 Segunda lei da ontologia dimensional frankliana: “Diversas coisas projetadas em uma única dimensão inferior àquelas que lhes são próprias, podem dar lugar a figuras polivalentes e não contraditórias entre si”. Como sombras equívocas, não representam sua diversidade original. Fig. 2 - Projeção de diversos objetos multidimensionais em uma única dimensão inferior àquelas que lhes são próprias, resultando em uma única figura polivalente. Nota: Esquema ilustrativo da autora, segundo textos e modelos de Viktor Frankl, a partir do conjunto das obras consultadas. Franqueado o uso apenas para fins didáticos não lucrativos, com citação da autoria [Calheiros de Lima, M. E.]. 82 Anexo III RELAÇÃO ENTRE O CUIDADO MÉDICO-ESPIRITUAL (CURA MÉDICA DE ALMAS) E A CURA SACERDOTAL Per Per Per intentionem intentionem effectum Figura 1: Representação gráfica da relação entre o cuidado médico espiritual (que, como modalidade clínica, tem por meta a “cura psíquica”) e a religião (que tem por meta a salvação ou “cura sacerdotal da alma”). Estas metas se realizam per intentionem, ou seja, mediante intenção, visando seus objetivos específicos. Contudo, ambas podem ter, per effectum, uma repercussão favorável no outro domínio, como efeito secundário. Assim, o cuidado médicoespiritual pode ter um efeito psico-higiênico através da “ancoragem espiritual” que proporciona. Da mesma forma, a psicoterapia pode, involuntariamente, ajudar o paciente a encontrar “as fontes sepultadas de uma fé primordial” (Frankl, 1995, p. 129-130). Nota: Esquema ilustrativo da autora, segundo textos e modelos de Viktor Frankl, a partir do conjunto das obras consultadas. Franqueado o uso apenas para fins didáticos, com citação da autoria [Calheiros de Lima, M. E.].