Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 37 / Jan. Fev. Mar. 2013 Nem tanto ao céu, muito menos ao inferno: o governo de Hugo Chávez Walter Hupsel Nem tanto ao céu, muito menos ao inferno assim. Que a política também envolve BA-Vis1 é um tanto quanto óbvio. Há torcidas e paixões envolvidas que excluem, em alguns casos, qualquer racionalidade. Isso é ainda mais forte e perceptível quando é um governo de esquerda, ambos, amores e ódios, se radicalizam, perdem nuances, cinzas, e tudo vira uma questão ou branco ou preto. O governo Chávez foi um dos que mais mobilizaram estes sentimentos. Ou bem era um ditador, facínora malvado, como gostam de martelar alguns comentaristas da TV brasileira, ou bem era o líder redentor das massas, como quer acreditar uma parte da esquerda. Nada mais natural que sua morte tenha tido reações tão díspares, como de torcidas organizadas. Os Estados Unidos comemoraram numa efusividade estranha para um presidente de um país tão pequeno2. A América Latina, em geral, lamentou. Quem era, e o que representava, o governo Hugo Chávez?3 Por que esta capacidade de mobilizar tantos e desenfreados sentimentos? Chávez era uma pessoa cheia de contradições como todas as outras. E isso se refletia em seu governo. Chamava o então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso de “mi maestro”, meu mestre, meu professor, no que era retribuído com igual carinho por FHC4. Começava ali uma reaproximação importante, no contexto hemisférico, da Venezuela com o Brasil, saudável e saudada pelos analistas e pela imprensa de modo geral. Com as eleições brasileiras de 2002 acontece uma mudança na imagem de Chávez no Brasil. Naquele momento, o presidente venezuelano declara apoio ao candidato Lula, em detrimento a Serra, seu concorrente. Começava ali, por motivos totalmente brasileiros e internos, um processo de demonização de Hugo Chávez, que, com o passar do tempo vai se aprofundando, por conta da amizade entre o venezuelano e o novo presidente brasileiro. O fato é que, para o Brasil, o governo de Chávez não poderia ter sido melhor, e em política externa é isso que importa. Ele mudou o foco da política venezuelana de alinhamento automático com os EUA para um multilateralismo com ênfase na América Latina, em especial para a integração regional. O apoio ao Irã deve ser lido nesta chave: pragmatismo e Realpolitik. O Brasil foi um dos parceiros preferenciais da Alemanha nazista; Os EUA são amigos íntimos da dinastia saudita, onde mulheres são proibidas de dirigir e jovens podem ser crucificados por furto5. 4 1 Referência ao grande clássico entre Bahia e Vitória. 2 Cf:http://www.cagle.com/news/hugo-hávez-2/#.UTjf utEd6sA 3 Cf:http://www.cartacapital.com.br/politica/o-fim-dochavismo/ Cf:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/97157foi-com-fhc-e-nao-com-lula-que-o-brasil-comecou-ase-aproximar-da-venezuela.shtml 5 Cf:http://extra.globo.com/noticias/mundo/ativistastentam-salvar-jovem-saudita-de-ser-morto-crucificado7734956.html 4 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 37 / Jan. Fev. Mar. 2013 Em política externa e comércio exterior, valores ficam sempre legados ao último plano. O mercado e as negociações são guiadas pela utilidade. Obviamente, os adeptos da demonização se esquecem disso. O comércio Venezuela-Brasil aumentou cerca de dez vezes neste período. Quanto mais difuso é o comércio, menos uma economia fica vulnerável e dependente de um país, e portanto, mais pode negociar. Entrar no Mercosul foi uma busca obstinada de Chávez, quase questão de honra. Enxergou no bloco uma oportunidade para a claudicante economia venezuelana, e o bloco, não sem cizânia, percebeu a entrada da Venezuela como forma de aumentar seu mercado consumidor, diminuir barreiras do comércio e se fortalecer. Também apostou alto na ALBA e na UNASUL, uma união intergovernamental entre a Comunidade Andina e o Mercosul. Se os olhos da Venezuela sob o governo Chávez estavam mirando a América Latina, seu bolso era Washington. Apesar dos esforços na política externa, o país caribenho depende em demasia da compra do seu petróleo por parte dos Estados Unidos. E vice-versa. O frasista “bufão” que chamava Bush de “El diablo”, que criou um inimigo externo com rosto e coordenadas geográficas, sentava tranquilamente à mesa com este inimigo. Eram parceiros, e fortes. Um casamento litigioso, sem dúvida, mas que faziam as pazes à noite. Este foi um dos erros de Chávez. Sentado na fortuna do óleo negro, e navegando proativamente (com sua participação na OPEP) na alta do preço do petróleo, a economia venezuelana é hoje tão ou mais dependente da commodity do que foi em governos anteriores. O petróleo corresponde a 96% das exportações venezuelanas. Apesar de rica, a economia é débil, nada diversificada, sem produção, pesquisa, serviços. A história da Venezuela, e a opção política de uma elite de um país onde os miseráveis chegavam a 50% da população, explica mas não justifica. O governo Chávez teve 14 anos no poder, tempo mais que suficiente para conduzir, estimular, diversificar a economia. Preferiu o caminho fácil e populista. Caminho que cobra um preço enorme com as flutuações do mercado internacional. Se a política externa visou diversificar e ampliar parceiros, a economia permaneceu dependente do petróleo. A bomba já dá sinais de estourar. Inflação alta e desabastecimento rondam a Venezuela. Mas a questão foi colocada por aí como sendo uma dicotomia. A economia venezuelana estaria assim por conta, vejam bem, dos programas sociais de Chávez, programas estes que mudaram um pouco a situação famélica na qual vivia metade da população venezuelana, e que foram responsáveis pelas suas quatro reeleições. Falso dilema: não era uma situação de ou se melhora, diversifica a produção ou age como um Welfare State. Os que apresentaram o problema assim, o fizeram politicamente enviesados. Não eram escolhas excludentes, e, de fato, para a população pobre venezuelana, Chávez foi o melhor governo que já presenciaram6. Isso explica, em parte, a multidão que tomou as ruas de Caracas para 6 Cf:http://www.cartacapital.com.br/internacional/aselites-brasileiras-detestam-Chávez/ 5 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 37 / Jan. Fev. Mar. 2013 se despedir do Comandante7. A outra parte da explicação desta epifania se encontra nas falas dos seus críticos. São falas exageradas, que cumprem uma agenda política, mas que têm algum substrato de verdade. Aqui o terreno é bastante pantanoso. Há séculos tentamos nós, os cientistas políticos, definir democracia. Desafio enorme, pois ou simplificamos demais o conceito, e aceitamos como democracia qualquer sistema que tenha eleições, ou expandimos os critérios e ficamos com um ou dois exemplos apenas, excluindo todo o resto. Há uma tensão perene entre os ideais democráticos e suas práticas. Aí a escolha é a gosto do freguês. Eleições? Eleições mais porosidade? Sufrágio universal? Competição partidária? Oposição tolerada? Instrumentos de democracia direta como plebiscitos e referendos? Formalmente, a venezuela chavistabolivariana é sim uma democracia, e não muito diferente de diversas outras. Mas tem suas peculiaridades difíceis de definir. O Estado venezuelano joga pesado, e a centralização de poder na figura do presidente é fortíssima, e isso é um legado histórico que precede muito o governo Chavista. Chávez usou e abusou das estruturas do estado venezuelano, criou um culto à imagem, à personalidade, encheu as cidades de símbolos do seu governo e de si mesmo. Criou um mito, o mito messiânico que chamou de “socialismo do século XXI”. Criou também um Simon Bolívar manso, quase um democrata avant la lettre, de quem se dizia herdeiro direto. 7 Cf:http://internacional.elpais.com/internacional/2013 /03/06/album/1362587670_977495html#1362587670_ 977495_1362671283 Quando as coisas ficavam tensas para o seu governo ou para si, apelava diretamente, sem mediação ou filtro, para as massas. A isso se chamou, na longínqua década de 1960, de populismo ou caudilhismo. Quando pôde, recorreu ao povo para aumentar seu próprio poder por meio de instrumentos da democracia direta. Assim reformou a constituição venezuelana, permitindo reeleições e mais reeleições; assim reformou o judiciário. Entretanto, ponderando, a agora débil oposição também não prima pelo respeito às normas e instituições. Em 2002 tentaram um golpe de estado efêmero estimulado pela principal rede de TV da Venezuela, a RCTV. Com esta tentativa frustrada, deram toda a desculpa para o Comandante cassar a concessão da RCTV e partir para tentar asfixiar, legalmente, a oposição. Se me fosse possível definir o governo Chávez em expressão, chama-lo-ia de Democracia de Estado ou Caudilhismo democrático. Ou, parafraseando Robert Dahl, seria algo um oximoro de Hegemonias competitivas. Culpar a história é fácil. Sim, há legados e tradições, há culturas políticas que moldaram o sistema venezuelano. Mas Chávez nada fez para mudar isso. E, novamente, teve tempo mais que suficiente. Por que não fez? Simples: porque não interessava a ele nem ao seu grupo. Pelo contrário, Chávez agiu para se consolidar no poder, aumentando-o. Pois bem, o caudilho democrático se foi, morreu depois de uma maneira não muito transparente, com timing exato8. E agora? 8 Cf:http://br.noticias.yahoo.com/blogs/onhe-rocks/tudo -dentro-planejado-174309103.html 6 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 37 / Jan. Fev. Mar. 2013 O herdeiro preparado para assumir seu lugar, o vice presidente Nicolás Maduro, deve ser eleito em trinta dias. O exército já jurou lealdade ao governo “interino” (sempre há possibilidade de golpe na Venezuela) e tudo caminha para a continuação do “chavismo” (expressão que denota explicitamente o culto a personalidade estimulado pelo estado venezuelano). Entretanto, as águas não são tão calmas e tranquilas assim. É inercial que Maduro receba o legado de Chávez, natural até. Mas uma dominação fortemente ancorada no carisma, que falava diretamente às massas, tende a desaparecer com seu líder, minguar aos poucos. Maduro terá um enorme desafio pela frente. Se constituir como uma liderança crível para os seguidores de Chávez, em especial dentro do próprio partido9. A curto prazo, até pela morte ser colada às eleições, não terá problemas. Mas, em um futuro não muito distante, há tendência de questionamento da liderança de Maduro, e uma possível “fragmentação” da base chavista. A sorte do grupo bolivariano é que, por enquanto, a oposição é débil e não tem pautas que correspondam aos anseios da população. Lá, como aqui, apostaram muitas fichas na fraca ideia do “assistencialismo”. Ela terá quatro anos para se reinventar e ir às urnas. O chavismo não morreu com Chávez. Mas talvez tenha ficado debilitado, o que, aliás, é o padrão no populismo. Walter Hupsel possui Graduação em Ciências Sociais (USP) e Mestrado em Ciência Política (USP). Foi assessor de Relações Internacionais da Prefeitura Municipal de São Paulo; Assessor de Políticas Públicas do Governo do Estado de São Paulo. Atualmente é Professor do curso de Relações Internacionais da FASM e Colunista de Política do site Yahoo! 9 Cf:http://www.dci.com.br/internacional/desafio-denicolas-maduro-sera-unir-chavismo,-diz-especialistaid335077.html 7