A disputa pela democracia

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A disputa pela democracia na América Latina
Nildo Ouriques1
O debate político nas duas últimas décadas foi marcado pela afirmação da
democracia como valor universal. Contudo, os conservadores passaram à ofensiva quando
defenderam – como Enrique Krauze, por exemplo – que a democracia não poderia ser
adjetivada. A observação era dirigida contra os socialistas de todos os matizes para quem a
democracia, embora reconhecida como um valor universal, ainda poderia ser adjetivada
como burguesa.
O enfoque liberal teve certo grau de eficácia como meio de dominação, pois
movimentos sociais mais radicalizados na defesa de seus interesses eram obrigados a ceder
quando alguém lhes recordava que o radicalismo praticado colocava em risco a democracia.
Por isso, a defesa radical de interesses particulares, mesmo quando legítimos, era
astutamente apresentada como uma ameaça à democracia que todos supostamente deveriam
defender; enfim, o radicalismo político era apresentado como uma ameaça a um valor
universal. Desta forma, muitos movimentos sociais se deparavam com o inusitado fato de
ter que moderar a prática radical, pois com freqüência eram acusados pelas classes
dominantes de solapar a legitimidade ou eficácia das instituições, mesmo quando um
regime democrático somente poderia ser reconhecido como tal diante do protesto dos “de
baixo” e da capacidade do sistema em atender a seus reclamos. Estranho raciocínio: quando
as classes subalternas defendiam radicalmente seus interesses e o conflito se estabelecia,
precisamente neste momento deveriam moderar seu combate, perder no terreno econômico
ou renunciar a influência no poder, para preservar a ordem social estabelecida e defendida
como “democrática” sem vacilação.
Na América Latina esta foi a dinâmica que operou nos processos de transição das
ditaduras para as democracias e mesmo quando estas já gozavam de plena saúde, o bom
comportamento parecia ser uma condição essencial para o funcionamento normal do
sistema político na região. Contudo, a modernização capitalista – que muitos denominaram
neoliberalismo – avançou sem freios nas duas últimas duas décadas. O resultado,
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Professor do Departamento de Economia e Presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da
UFSC. www.iela.ufsc.br
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finalmente visível, não foi o paraíso contido na promessa inicial, mas seu oposto: o
aumento da miséria, o aprofundamento da dependência e o aperfeiçoamento de um sistema
político no qual as maiorias apenas votam, mas efetivamente não decidem. Assim, os três
pilares de um regime democrático digno deste nome foram gradualmente destruídos: a
soberania nacional, a igualdade social e graus crescentes de participação como suposto do
sistema político. Nestas condições, a democracia não passou de um ritual destituído de
importância para as maiorias que perderam conquistas sociais e culturais em nome da
competitividade internacional imposta pela modernização capitalista que, essencialmente,
beneficiou apenas o grande empresariado, financeiro ou produtivo.
Enquanto a classe dominante acumulava riqueza – grande parte depositada em
bancos estrangeiros – a percepção da maioria da população sobre as virtudes da democracia
mudava. A memória da ditadura desapareceu lentamente, de tal forma que evocar seu
fantasma já não era uma arma eficaz para conter o protesto social sob condições
democráticas. Enquanto os povos se sentiam ameaçados pelo retorno das ditaduras, o
regime democrático ainda mostrava eficácia e certo poder de sedução, mas na medida em
que o tempo passou e a superexploraçao dos trabalhadores revelou-se uma regra
intransponível sob condições de dependência e subdesenvolvimento, as maiorias já não
temiam o fantasma da ditadura: queriam doses crescentes de poder político e condições
sociais mínimas para sua reprodução social.
Neste contexto, os sistemas políticos tradicionais explodiram e foi possível observar
que do Rio Bravo a Patagônia, sólidas instituições partidárias desapareceram de maneira
dramática. No México o PRI finalmente perdeu uma eleição após 72 anos de exercício
absoluto do poder. No Paraguai, blancos e colorados não representavam mais ninguém! Na
Argentina, o peronismo fragmentou-se como nunca após a revolução produtiva de MenenCavallo. O sistema político equatoriano caiu com a rebelião popular-militar de janeiro de
2001 que finalmente desaguou na recente vitória de Rafael Correa. Na Bolívia, a “rosca”
deixou de funcionar quando os cocaleros de Evo Morales e o movimento indígena entraram
em cena exigindo a refundação da república. A pergunta que movia estes personagens era
singela, mas potente: se a democracia não serve para garantir condições elementares de
vida e trabalho, para que serve então? Contudo, a situação paradigmática destes tempos em
que as classes subalternas novamente buscam seu quinhão, ocorreu na Venezuela, país que
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viveu a bonança de duas fortes elevações dos preços do petróleo na década de setenta e
mesmo assim sofreu com os planos de estabilização orientados pelos donos do dinheiro
com o indispensável apoio do FMI. Foi precisamente aqui, no único país latino-americano
que segundo Celso Furtado viveu a possibilidade de superar o subdesenvolvimento em
função das super-receitas oriundas dos petrodólares, que um grupo de militares
nacionalistas e setores populares se lançaram contra o chamado “regime democrático”,
mais conhecido no país como sistema de “cogollo”, expressão popular que denomina a
alternância harmônica de dois partidos políticos – Ação Democrática e Copei – enquanto
garantia privilégios para os “de cima”. Na Venezuela, a alternância de partidos garantia
vida longa para os mesmos interesses que marcavam a Venezuela como um país de ricos
rodeados pela imensa pobreza.
A democracia, os marxistas recordavam, nunca foi uma questão abstrata como os
liberais pretendiam! Um regime somente poderia ser considerado democrático caso pudesse
atender, legitimando o conflito, as demandas radicais das classes subalternas. Contudo, na
América Latina a capacidade da ordem burguesa atender os conflitos é pequena porque a
condição do sistema é a superexploraçao e a transferência de valor permanente para os
centros dinâmicos do capitalismo mundial. A conseqüência necessária nestas circunstâncias
é que, com freqüência, a chamada “questão social” se transforma rapidamente em caso de
polícia. Será possível, manter a ordem e atender as crescentes demandas dos trabalhadores?
Nestas circunstâncias, até que foi tardia a rebelião do povo. Esta apareceu na forma
de protestos, rebeliões ou mesmo revoluções no Equador, na Bolívia, no México, na
Argentina sob o impulso de movimentos sociais. Somente neste contexto poderemos
entender o momento atual da América Latina, pois enquanto o pensamento dominante
vocifera contra o “populismo”, a razão popular avança a passos largos em vários países. Já
não se trata de reivindicações específicas como abundantemente ocorreu durante a década
de oitenta e noventa, mas de uma Revolução Democrática e Cultural na Bolívia; de uma
luta por uma Assembléia Nacional Constituinte no Equador; e a mais satanizada de todas, a
Revolução Bolivariana na Venezuela!
Intimidados, os conservadores não perderam o tom: caudilhos!! A sociologia da
ordem vaticinou: populismo!! Mas antes que líderes – sempre inevitavelmente importantes
– e muito mais que o velho populismo – que no passado concedeu o direito à cidade a
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milhões ainda que parcialmente – o momento político latino-americano esta marcado pela
retomada da iniciativa política pelo povo. Não se trata da repetição do velho populismo,
finalmente erradicado pela ação das ditaduras militares, mas da erupção de uma genuína
“razão popular”.
O velho bordão que indicava os Estados Unidos como exemplo a seguir quando o
assunto era a democracia desapareceu pelo efeito combinado de duas fraudes eleitorais –
Miami e Ohio – que garantiram a presidência a George Bush mas destruíram a coesão
social interna no país, e as invasões ao Afeganistão e Iraque sob o argumento de que se
tratavam de países com armas de destruição massivas – finalmente reconhecidas como
falsas pelo congresso estadunidense – alimentaram o anti-imperialismo no mundo inteiro. A
“velha Europa” bem que tentou uma alternativa, mas não impossibilidade de universalizar
seu sistema político e menos ainda as condições de vida que comodamente desfruta, ainda
não encontra uma forma de seduzir os latino-americanos. Foi neste cenário que na América
Latina a adjetivação da democracia voltou com força e, na Venezuela, encabeçada por
militares nacionalistas, surgiu a democracia participativa como caminho para o
“socialismo do século XXI”.
A surpresa não poderia ser maior, pois os liberais consideravam a Venezuela um
símbolo de uma democracia sem adjetivos. Afinal, desde 1958, quando ocorreu o Pacto do
Punto Fijo, estabeleceram-se as linhas de um sistema político que permitia a alternância de
poder entre dois partidos políticos tornando ocioso o recurso às ditaduras e impedindo os
trabalhadores de poder de decisão. A Revolução Democrática Bolivariana abriu numa nova
fase no país e em todo o continente latino-americano
Em primeiro lugar observamos a eleição de uma Assembléia Constituinte em 1999
que se reuniu por seis meses, elaborou a carta e se auto-dissolveu. Logo em seguida, o texto
foi levado a plebiscito popular e aprovado por maioria absoluta e só então os venezuelanos
elegeram um novo congresso nacional, mas não sem antes submeter o próprio presidente a
novo processo eleitoral. Hugo Chávez, registra a história, venceu todas. Há três anos, a
oposição convocou um referendo – mecanismo previsto na Constituição Bolivariana – com
ampla presença de observadores internacionais (o ex-presidente Jimmy Carter encabeçou a
delegação estadunidense) com o objetivo de interromper o mandato presidencial e sofreu
nova derrota. Nas urnas, precisamente quando é mais atacada por poderosas empresas
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privadas da mídia televisiva e escrita, o presidente se torna imbatível. Contudo, os liberais e
mesmo alguns progressistas, o mantém sob suspeita, afirmando que ele esta destruindo as
“instituições democráticas”. Na verdade, o processo esta recriando instituições, como
atestam a existência do “poder cidadão” e do “poder eleitoral” como o mesmo valor dos
três poderes tradicionais que encontramos desde Mostesquieu.
Não importa que com apoio da Embaixada dos Estados Unidos em Caracas e a
indispensável concepção da CIA2, Washington tenha tentado derrubar Chávez por meio de
um golpe que produziu morte e destruição econômica: ainda assim, é o presidente
venezuelano quem deve explicações sobre suas convicções democráticas!
Mas afinal, qual o segredo de Hugo Chávez? Para uma parte dos analistas – que
creio irrecuperável – os sucessivos êxitos eleitorais do presidente venezuelano são fruto da
capacidade oratória do caudilho, aliado as indispensáveis doses de manipulação política,
programas sociais amparados pela transitória alta dos preços do petróleo e finalmente a
estrutural alienação e despreparo do povo. Contudo, este “diagnóstico” não resiste mais aos
fatos. Primeiro porque a febre parece estar contaminando outros países, tornando o
nacionalismo revolucionário um dado estrutural da política latino-americana. Mesmo onde
não venceu – como no Peru com Ollanta Humala ou no México com Lopez Obrador – o
nacionalismo se tornou uma força capaz de mobilizar milhões e condicionar a ação dos
governos vencedores. Mas, há ainda também um segundo fator que ninguém mais pode
desconsiderar: na Venezuela, a democracia participativa se consolida na medida em que
sob seu governo, o presidente Hugo Chávez logrou organizar o povo para tarefas mais
ousadas. Os dados confirmam que quando a economia voltou a funcionar com certa
normalidade após o golpe petroleiro que paralisou a principal fonte de recursos do país com
uma greve organizada pela principal federação patronal e os antigos partidos políticos em
2003, houveá uma importante redução da pobreza que será ainda mais acentuada nos
próximos anos. Os investimentos em saúde, educação e cultura são vultuosos, mas ainda
mais importante é a organização popular que estas iniciativas produzem. A diferença
fundamental com os programas sociais praticados no Brasil, por exemplo, é que enquanto a
bolsa-escola representa modesta caridade, na Venezuela o povo se constitui como força
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Golinder, Eva. The Chávez Code. Cracking U.S. Intervention in Venezuela, Editorial José Martí, Havana,
2005.
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política não somente para garantir os programas sociais, mas sobretudo para influenciar nas
políticas que organizam o estado venezuelano. O presidente Hugo Chávez afirmou que já
tinha o caminho para acabar com a pobreza: “dar poder aos pobres”! Há outro aspecto que
não devemos esquecer. Semanalmente o presidente venezuelano apresenta o programa “Alo
Presidente” por várias horas; não é incomum que explique ao povo, com recordes de
audiência, cada medida tomada, diante de ministros, governadores, escritores estrangeiros
convidados, líderes populares, etc. Este comportamento pedagógico inerente ao cargo
presidencial é quase sempre apresentado em nosso país como demagogia barata. Contudo,
bastaria imaginar o atual presidente do Brasil explicando o super-endividamento interno do
estado brasileiro – quem e como um punhado de empresários controla esta dívida – ou as
últimas medidas que asseguram bilhões aos exportadores de soja enquanto 62 milhões de
brasileiros passam fome ou se alimentam muito mal, para perceber a importância da prática
e a razão pela qual não pode ser levada a cabo por nossos mandatários. Detalhe: o programa
não é em rede nacional, mas no canal estatal. As redes privadas ainda não encontraram um
programa capaz de competir com a audiência de “Aló Presidente”.
Além disso, os importantes recursos oriundos da riqueza petroleira estão sendo
dirigidos à reconstrução da infra-estrutura destruída pela modernização capitalista do
período anterior. A guerra ao latifúndio, outro programa prioritário, permitirá em mais
alguns anos a auto-suficiência alimentaria em um país acostumado a comprar tudo fora
porque era mais barato do que produzir internamente. Um significativo processo de
substituição de importações ocorre com bons resultados, aliado à recuperação e
fortalecimento de empresas estatais – com forte presença dos operários nos conselhos
administrativos – que garantem apoio operário em momentos de decisões importantes.
Enfim, não somente fortalecimento do estado, mas sobretudo a democratização das
decisões esta ocorrendo.
Alguns afirmam que a fórmula não funcionará e que o presidente Chávez apenas
reproduz idéias comprovadamente fracassadas no passado. No entanto, orientados pela
máxima de Simon Rodriguez – “ou inventamos ou erramos” – é obvio que se tornou
impossível prever o futuro da região sem o estudo e a reflexão séria sobre as
transformações bolivarianas.
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