Fatalismo Geográfico Disse Platão: “O ouro tem muito valor e pouca utilidade comparado à água, que é a coisa mais útil deste mundo e pouco valor lhe é dado”. O Brasil, por sua posição geográfica de destaque na região Equatorial não encontra escassez d’água, pois recebe precipitação pluviométrica em grandes volumes, que dão origem a rios com avantajados caudais; dentre eles, está o maior rio do planeta: o Amazonas. Esses rios possibilitaram a colonização do país, com a penetração no continente, que, no início, limitava-se a uma estreita faixa de litoral. Foi por intermédio deles que os bandeirantes desbravaram as regiões Norte e Centro-Oeste e fomentaram a expansão das fronteiras para além do meridiano de Tordesilhas. Os rios têm caráter mister no desenvolvimento econômico, social, territorial e cultural de uma nação, tanto pela grande versatilidade que fornecem na movimentação de cargas e pessoas como pela possibilidade de integração adentrando nas regiões mais interiores. Nesse contexto, vemos que a história do Brasil se confunde com a dos seus rios, já que os mesmos multiplicam por várias vezes os 8 mil quilômetros de litoral que o país possui. O início do desbravamento do interior do Brasil se deu em 1531, com a chegada da expedição de Martim Afonso de Souza, que, junto de seus 400 comandados, tinha a missão de explorar o rio Amazonas e o rio da Prata, por meio dos quais almejavam alcançar, invadindo território espanhol, a lendária serra da Prata, em Potosí, atual Bolívia. Já em 1637, Pedro Teixeira liderou flotilha de 50 canoas, percorreu dez mil quilômetros de rios até chegar a Quito.Em agosto de 1639, Pedro Teixeira declarou solenemente que tomava posse, pela coroa de Portugal, daquele sítio e mais terras, rios, navegações e comércios, até então sob domínio espanhol (1580-1640). Raposo Tavares demonstrou, em 1650, que era possível ir de São Paulo a Belém apenas por intermédio de rios. Podemos destacar ainda as expedições dos bandeirantes ao sertão na busca por pedras preciosas e apresamento de indígenas, para servirem de mão de obra escrava. A navegação continuou a fazer parte verdadeiramente da política pública de transportes durante os períodos Colonial (1500-1822) e Imperial (1822-1889). Com o decorrer do tempo, passou a ter um papel cada vez menor no setor de transportes do país, dando lugar ao modal rodoviário. Em 1920,Washington Luís foi um do primeiros políticos brasileiros a incentivar a construção de estradas, com o lema: “Governar é construir estradas”. Com o fim de II Guerra Mundial, o Brasil, buscando por um espaço no panorama mundial, reformulou toda a sua infraestrutura de transportes e geração de energia. A história da humanidade nos ensina que o desenvolvimento de um povo é proporcional à eficiência de sua rede de transportes; como exemplo, temos os egípcios e o rio Nilo, conforme citou o historiador grego Heródoto: “O Egito é uma dádiva do Nilo”. 1 Percepção tardia em nosso país, onde os obstáculos do meio físico (dimensões e configurações), distribuição demográfica irregular, escassez de combustíveis e energia elétrica, dificultaram, por muito tempo, o desenvolvimento dos transportes. Infelizmente, os governos de nosso país apostaram no modal errado para o seu desenvolvimento: o rodoviário, embora seja amplamente sabido que o modal hidroviário apresenta inúmeras vantagens em relação aos outros modais: apresenta um consumo inferior de combustível; menor emissão de poluentes por quilômetro e tonelada transportada; menor custo de implantação e operação; maior vida útil dos veículos; menor nível de ruído; menores índices de acidentes fatais e menor impacto ambiental. São dados que merecem uma profunda reflexão para a atualidade e para os dias vindouros. Todos sabemos que isto é o certo, mas, seguimos insistindo num modal rodoviário que, embora preferido, é precário, insuficiente. Essa escolha fez com que a matriz brasileira de transportes se tornasse uma das mais concentradas no setor rodoviário de todo o mundo, com cerca de 60%, contra 24% do ferroviário e 17% do aquaviário. Na maioria dos países desenvolvidos, as hidrovias representam o principal meio de transporte a longa distância de cargas de grande tonelagem e baixo valor agregado, apresentando maior eficiência operacional e energética. Circulam nas hidrovias embarcações de todos os tipos, desde canoas até comboios de balsas voltadas para a sustentabilidade social, econômica e ecológica das regiões servidas. No sistema hidroviário brasileiro, destaca-se a bacia amazônica, maior bacia hidrográfica do mundo, com 6 milhões de km2 (3,8 km2 no Brasil). Responde por 80% do transporte de carga interior do país, principalmente através do Ro-ro caboclo, que é o transporte de carretas fechadas sobre conveses de comboios de chatas. Os rios são os caminhos naturais da Amazônia que é dotada de apenas 14 mil quilômetros de rodovias pavimentadas, muitas das quais indisponíveis nas épocas das cheias. Essa importância do setor aquaviário para a região, tanto no transporte de cargas como no de passageiros, torna-se evidente quando um habitante da região se refere à distância entre os municípios em “horas de barco”. A própria ocupação do Amazonas está relacionada aos seus rios, que foram utilizados no escoamento da produção extrativista no início da ocupação de seu território. Dentre os principais afluentes do Amazonas, destacam-se os rios Madeira (se há um rio equivalente a uma estrada é esse, pois tudo é transportado por suas águas barrentas e velozes) e o Tapajós, ambos importantes corredores de escoamento da produção agrícola das regiões Centro-Oeste e Norte, possibilitando que as commodities produzidas alcancem o mercado externo a preços mais competitivos. A posição estratégica do Amazonas, bem mais próxima do hemisfério Norte que os portos do Sul, permite a exportação de produtos do 2 Centro-Oeste e do Norte do País a preços mais vantajosos. O porto de Santarém, no Pará, é um dos mais próximos da Europa e dos Estados Unidos, o que reduz pela metade os custos dos produtores do Mato Grosso. O Rio Grande do Sul é o segundo estado em potencial aquaviário. Dessa forma, destaca-se o porto do Rio Grande, que possui condições de se tornar o principal porto de exportações do Mercosul visando atender à demanda de arroz, madeira, soja e calcário da região. Há também um projeto de ligação da bacia do Amazonas à bacia do Paraná, denominada Hidrovia do Contorno que será um eixo de ligação Norte-Sul do País, integrando a região Norte às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Um projeto ambicioso já idealizado pelo cientista alemão Alexander Von Humboldt, que, visitando a América do Sul, visualizoua integrada, por intermédio de uma grande hidrovia, resultado da união das bacias do Prata, Amazonas e Orinoco. No contexto global, a economia brasileira está baseada na exportação de commodities, tais como granéis, combustíveis e insumos (logo, grandes volumes de cargas que precisam ser deslocadas por grandes distâncias). Nesse cenário, apenas 5% da safra de grãos do país é transportada por hidrovias, enquanto 67% é transportada por rodovias. Em países desenvolvidos, esses valores se invertem. É notório que o transporte é a atividade logística mais importante, pois é responsável por 2/3 dos custos logísticos; isso faz com que o Brasil tenha um gasto em logística entre 16 e 20% do PIB, contra 11% da Europa e 9,8% dos EUA. Para se ter uma ideia, uma barcaça (1250 t ) transporta o equivalente a 50 caminhões (25 t) ou 14 vagões (90 t). Se o país houvesse feito a escolha certa, hoje falaríamos de hidrovias de asfalto e não de estradas d’água. Cabe ao Brasil readequar a sua matriz de transportes transferindo a sobrecarga do modal rodoviário para o fluvial. É necessário retificar o conceito de que um modal é concorrente do outro e criar um no qual os modais se integrem, e o país consiga escoar sua considerável produção atual e as vindouras, vislumbradas Pero Vaz de Caminha: “Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”. Essas águas, desde suas nascentes, seus lagos, paranás e igarapés, integrados por um sistema de comunicação abençoado pela natureza, escorrem doando-se aos rios brasileiros. E o maior deles, o Amazonas, caudaloso, impávido, veloz e forte, entrega-se e entrega toda sorte de bens flutuantes ao painel magnífico do Atlântico. Essas águas, esses rios, são nossas ruas, avenidas, rodovias que não precisam de asfalto. Por Deus, por que tanta indolência? Por que não aproveitar essa pletora de estradas d’água em benefício da gente brasileira? Afinal, geografia é destino. 3