O ensino de filosofia para jovens: reflexões acerca da prática do

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O ensino de filosofia para jovens: reflexões acerca da prática do ensino na disciplina de filosofia
Francis Silva de Almeida173
RESUMO: Orbitando em torno da prática do ensino da filosofia, questões como fundamento, forma, conteúdo
e a dicotomia entre filosofia e filosofar delineiam o atual cenário escolar. A inclusão do ensino de filosofia no
ensino médio como disciplina obrigatória traz à tona importantes reflexões: o método filosófico na prática
pedagógica do ensino da filosofia, o caráter formador da filosofia no que tange à subjetividade do educando
e, sobretudo, a experiência filosófica proporcionada pelo contato do educando com a filosofia na sala de aula,
como possibilitadora de um pensamento livre e autônomo.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de filosofia, pensamento autônomo e reflexivo, formação da subjetividade.
Introdução
Marcado por intensos debates acerca da operacionalização didática e pedagógica do ensino de filosofia
no ensino médio, o ano de 2007 – ano limite citado pelo MEC para a adaptação dos currículos escolares à
inclusão da disciplina de filosofia – tem sido o cenário de importantes reflexões, sobretudo em torno dos fundamentos, da forma e do conteúdo filosófico a serem trabalhados no ensino médio.
Na mesma órbita das reflexões citadas, encontra-se também o questionamento acerca da justificativa
do ensino da filosofia para jovens. Isso porque, especificamente no ensino público, há uma preocupação corrente em relação à carga horária oferecida pelas escolas. A inclusão da disciplina de filosofia174 associada a
outras disciplinas, mesmo que optativas, culminam num inflacionado quadro de disciplinas, cuja solução mais
próxima é a redução das cargas horárias. Há, então, uma grande diversidade de áreas do saber no currículo,
contudo, com carga horária insuficiente para uma atividade pedagógica eficiente.
O ensino de filosofia para jovens na escola justifica-se – nesse quadro de inflação de disciplinas – se for
o ensino de criação de conceitos que dêem conta de seus problemas, ou seja, deve constituir-se como formas
de saber e conhecimento produzido e acumulado, cujo objetivo é a compreensão da realidade da qual se faz
parte e a si mesmo, nessa realidade.
Contudo, deve haver um intenso cuidado em relação à fixidez do ensino da filosofia a partir da história
e somente dela, tendo em vista que o ensino da disciplina filosófica deve levar à criação de parâmetros filosóficos para o jovem criar a si e ao mundo de forma original e autônoma.
O presente artigo pretende considerar alguns elementos acerca do ensino de filosofia para jovens,
tomando como ponto de partida a consideração sobre a dicotomia entre filosofia e filosofar no ensino da disciplina e os elementos que a constituem como gestora de um pensamento que se constitui por si mesmo, ou seja,
que seja investigador, reflexivo, crítico, rigoroso, profundo e abrangente.
Quando colocada em destaque à discussão acerca do ensino da filosofia, tende-se a dicotomizar filosofia e filosofar a partir da seguinte argumentação: ensinar filosofia ou ensinar a filosofar? Tal tendência é conse-
173Acadêmico de Filosofia (UCG). [email protected]
174 A portaria do MEC, Lei 5.253 aprovada em 07/07/2006, que torna obrigatório o ensino de filosofia no ensino médio faz alusão também ao ensino
de sociologia. A preocupação corrente dos professores desse nível de ensino está relacionada à insuficiente carga horária em face do currículo que
agrega disciplinas obrigatórias e optativas (disciplinas relacionadas ao ensino de artes e valores humanos), bem como temas que devem ser trabalhados transversalmente, como afro-descendência e a educação ambiental.
qüência da preocupação que gira em torno da prática de ensino da disciplina reduzida à história da filosofia. Há,
nesses casos, uma estruturação do conteúdo programático que supervaloriza a história da filosofia, tornando
a prática de ensino rígida em torno das datas e peculiaridades dos filósofos em seus respectivos períodos. É
evidente que o ensino da filosofia é perpassado diretamente pela sua história, no entanto, a balis deve ser o
pensamento produzido naquele período, contextualizado e, uma vez remetido à contemporaneidade, constituir
elementos de compreensão da realidade.
Neste entorno, tanto a argumentação exposta quanto a prática de ensino citada, fundamentam-se a
partir da compreensão hegeliana de que quando se conhece o conteúdo da filosofia não apenas se está aprendendo a filosofar, mas que já se está filosofando propriamente. Para Hegel175 não é possível ensinar filosofia
sem ensinar a filosofar, assim como não é possível ensinar a filosofar sem ensinar filosofia. Não há dicotomia.
Filosofia e filosofar são indissociáveis, uma vez que a própria prática da filosofia leva consigo o seu produto e
não é possível fazer filosofia sem filosofar, nem filosofar sem fazer filosofia.
Entendemos, então, que não é possível desunir filosofia de filosofar, pois os dois são uma
mesma coisa. O filosofar é uma disciplina no pensamento que ao ser operada vai produzindo
filosofia e a filosofia é a própria matéria que gera o filosofar. São indissociáveis. A matéria filosofia separada do ato de filosofar é matéria morta, recheio de livro de estante. Para ser filosofia
ela tem que ser reativada, reoperada, assim reaparecendo a cada vez. (ASPIS, 2004, p. 308)
Uma vez compreendida a intrínseca relação entre filosofia e filosofar, é preciso evidenciar que a prática
pedagógica no ensino da filosofia, ou seja, a prática filosófica na relação ensino-aprendizagem, deve pautar-se
na criação de parâmetros filosóficos que permitam ao jovem, no exercício do livre pensamento, criar a si e ao
mundo de forma original e autônoma. Autonomia de um pensamento que conhece suas razões, que escolhe
seus critérios, que é responsável, consciente de seus procedimentos e conseqüências e aberto a se corrigir.
Pensamento criativo e compreensivo, que não se permite obediência à regra inquestionável do consumo automático, infundado e sem fim; pensamento que não se permite tornar-se ação baseada nos critérios da indústria
de consumo e cultura; não se permite o preconceito, não se permite coisificar.
É evidente, no entanto, que um ensino de filosofia que permite ao educando a posse de um pensamento
autônomo e reflexivo, escapa ao atual modelo de ensino em que a instrumentalização dos saberes é supervalorizada em detrimento da constituição da subjetividade do educando. O atual modelo de ensino emerge o
educando numa esfera de conhecimento específico para um momento específico, instrumentalizando o saber.
Neste cenário, a filosofia deve pautar a sua prática pedagógica em parâmetros filosóficos para escapar a essa
instrumentalização que torna o saber estéril.
Partindo do pressuposto acima exposto, a filosofia deve diferenciar-se dos demais conhecimentos,
sobretudo pelo método que, permeado de crítica, rigor e abrangência leva o educando a uma esfera de conhecimento que supera constatações e descrições, permitindo-o posicionar-se amplamente em relação a referências,
princípios e significações, de forma que ele se constitua a partir da experiência filosófica.
Na relação ensino-aprendizagem a experiência com a filosofia deve revelar-se como elemento constituidor da subjetividade do educando. Parte-se do pressuposto de que a aula de filosofia deve ser o espaço da
experiência filosófica, que a relação com o texto filosófico e com a prática do questionamento e da argumentação, devem prover os jovens de instrumentos que o levem à crítica da realidade e, a partir dessa, da elaboração
dos instrumentos de avaliação e conceitos.
175 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 - 1831) em sua obra “Fenomenologia do Espírito” (1806) nos capítulos I e II, intitulados “A percepção ou: a
coisa e a ilusão” e “A certeza sensível ou: o Isto ou o ‘Visar’”, respectivamente, aborda a questão da dicotomia que permeia a filosofia moderna (de
Descartes a Kant) e que separa no processo de compreensão do mundo sujeito e objeto, colocando-os em pólos opostos. Partindo desse pressuposto,
segundo Immanuel Kant (1724-1804), o mundo como fenômeno só pode ser conhecido pelo entendimento e enquanto conceito somente pode ser
conhecido pela razão, contudo, ambos, fenômeno e conceito são externos ao sujeito do conhecimento.
Lorieri, ao abordar o tema “crianças e jovens na filosofia” (2002, p. 41), aponta para a necessidade de
unir o tempo da juventude às inquietações que – embora sejam presentes durante toda a vida do sujeito e se
constitui de perplexidade, estranhamentos e incômodos diante do fenômeno chamado vida – são latentes nessa
fase da vida. “A proposta é a de aproveitar esse interesse presente nas crianças e nos jovens, para envolvê-los
num processo de investigação que pode ser verdadeira iniciação filosófica, educativa por si mesma” (LORIERI, 2002, p. 42).
Desse modo, a experiência filosófica como constituidora da subjetividade do educando deve traduzir
o que Foucault reivindicava abertamente ao remeter-se ao conceito de experiência. Segundo o historiador e
filósofo francês, uma experiência é algo do qual só se pode sair transformado. A aula de filosofia deve ser, por
excelência, o espaço da transformação, da superação de problemas concretos176 – universais à existência humana – em conceitos e juízos, bem como da leitura de temas transversais, como valores humanos, cidadania,
democracia, entre outros, e da interdisciplinaridade.
A reflexão em torno do ensino de filosofia como instrumento de constituição de um pensamento livre
e autônomo requer, antes, a investigação do hiato que separa os conceitos de pensamento e conhecimento.
Lorieri, baseando-se no pressuposto kantiano que distingue verdade e significado (2002, p. 93), contribui com
o seguinte esclarecimento: “o pensamento é a busca e a produção do significado, ao passo que o conhecimento é o processo de busca e de produção da verdade” (LORIERI, 2002, p. 92-93). Há de se considerar que o
pensamento ou o ato de pensar, é uma prerrogativa humana e que, em face das mais diversas circunstâncias, o
homem vê-se incitado a pensar sobre essa ou aquela realidade. Assim, a prerrogativa do pensamento deve ser
o ponto de partida da “iniciação filosófica educativa por si mesma” como sugere Lorieri.
A prática de ensino da disciplina deve, dessa maneira, cuidar para que o jovem em contato com a filosofia exercite, de forma livre, o seu pensamento. Que transite pelos problemas filosóficos a fim de formular
autonomamente suas questões. Há que se fazer do espaço da sala de aula, um lugar de exercício e prática da
filosofia; espaço de investigação, de constituição de uma cultura do pensamento e, por sua vez, de construção
de conhecimento.
Em tempo, é importante ressaltar o papel orientador do professor de filosofia que deve ter uma constante preocupação pedagógica no desenvolvimento desse pensamento que, permeado de incertezas conceituais
não pode se processar às cegas. É preciso ensinar a pensar bem; a bem conduzir o pensamento para que ele, o
educando, aprenda a colocar-se diante do questionado para avaliar, considerar e formular conceitos e juízos.
Esta é a dimensão do pensamento autônomo que deve se constituir na interface com a reflexão e com a crítica
e, deslocado do perspectivismo, caracterizar-se pela profundidade e contextualização.
O pensamento deve, por via de regra, ser autônomo, o que não quer dizer que não deve ser fundamentado teoricamente. Pelo contrário, deve não só considerar, mas partir de pressupostos teóricos. Interrogar sobre
a autonomia do pensamento exige identificar o hiato que o distingue de formas de pensamento condicionadas.
O pensamento autônomo deve ter como ponto de partida o momento em que o educando interpela o filósofo
e a si mesmo diante dele, ou seja, dialoga com o pensamento do filósofo questionando-o e questionando a si
mesmo diante desse pensamento.
A dimensão reflexiva do pensamento é também uma outra face da relação dialógica entre educando e
filósofo. Isso porque constitui o retorno sobre o próprio pensamento. Na medida em que o educando dialoga
com o filósofo e constrói o seu pensamento ele deve converter-se sobre si mesmo, a fim de pensar novamente
o já pensado. Esse exercício é próprio de aprimoramento, de lapidação e correção do pensamento e deve ser o
princípio do pensamento crítico.
176 Entende-se aqui por problemas concretos e universais e que podem ser trabalhados nas aulas de filosofia, temas que se presentificam no cotidiano:
a origem da vida, a liberdade, a existência, a política, que é o homem, o que é o transcendente, Deus, etc.
Exercitar a reflexão do pensamento nada mais é que possibilitar a crítica a si mesmo na forma da problematização do pensado. O exercício da crítica do pensamento é fundamental para que o educando aprenda a
questionar o seu pensamento e a construir hipóteses. É o exercício da auto-correção que permite ao educando
direcionar de forma correta e não míope o seu pensamento em relação ao objeto de estudo.
Neste palco da reflexão, autonomia e crítica do pensamento são faces da intrínseca relação entre filosofia e filosofar, como já foi dito e justificam a indissociabilidade entre a teoria filosófica e a prática do ensino
na disciplina de filosofia. Contudo, há ainda outros elementos da prática do ensino que devem ser elencados, a
saber, a forma do rigor, da radicalidade e abrangência que o pensamento deve obter.
O rigor na construção de um pensamento deve assegurar ao educando que o exercício que ele realiza
sobre o seu objeto de estudo o encaminhará de forma segura ao conhecimento e que o conhecimento, por sua
vez, é verdadeiro. Por esse motivo o professor de filosofia deve estar sempre atento ao exercício filosófico que
se desdobra sobre o texto e temas que são objeto de estudo. Celso Favaretto (2007) indica no projeto “Filosofia no Ensino Médio” aquilo que Lorieri denominou “passo a passo” na constituição rigorosa do pensamento.
Segundo Favaretto, há operações no ensino de filosofia que devem ser observadas com cautela. São elas: detectar os pressupostos presentes no texto, objeto de estudo, a fim de reconstruir os argumentos utilizados pelo
filósofo. Ou seja, identificar as hipóteses consideradas e por meio do diálogo crítico com o texto, construir
novos argumentos que justifiquem o tema. Ainda, utilizar o diálogo crítico para confrontar as teses filosóficas
presentes no texto e arriscar, ainda que prematuramente, a emissão de juízos.
A radicalidade do pensamento, por sua vez, indica a quebra com a cultura da superficialidade. A prática
da filosofia deve incitar no educando o desejo de conhecer mais profundamente qualquer tema com que se depare. Neste aspecto a prática deve perscrutar a interdisciplinaridade, uma vez que defrontado por temas de outras
áreas de conhecimento, o educando se veja na condição de buscar fundamentação e construir conhecimento.
Por fim, a abrangência constitui a possibilidade de contextualizar o conhecimento, estabelecer relações
e mediações entre os saberes. Indica que o pensamento, sobretudo a partir da prática filosófica, não deve ser
perspectivado. A dimensão perspectivada do pensamento não somente é míope como tolhe o educando da
compreensão totalizada da realidade ou de seu objeto de estudo.
Conclusão
A prática de ensino na disciplina de filosofia deve ser um dos principais instrumentos na constituição da
subjetividade do educando no sentido de que deve prepará-lo para olhar a realidade, percebê-la e perceber-se
como sujeito. No palco do ensino, a filosofia deve possibilitar um exercício de pensamento que
“[...] acompanha a vida e é ele mesmo a quintessência desmaterializada do estar vivo. E
uma vez que a vida é um processo, sua quintessência só pode residir no processo real do
pensamento, e não em quaisquer resultados sólidos ou pensamentos específicos. Uma vida
sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar sua própria
essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam
são como sonâmbulos” (apud LORIERI, 2002, p. 92)
Deve ainda constituir para o educando o mesmo que o cuidado de si constituía para os gregos “exatamente no momento em que os olhos se abrem, em que se sai do sono e se alcança a luz primeira” (FOUCAULT,
2006, p. 11).
Assim, as contribuições do pensamento de Hannah Arendt e Michel Foucault aqui comparecem nessas
conclusões – mediadas pelas reflexões sobre a prática do ensino na disciplina de filosofia – para apontarem a
essência da filosofia em relação à educação. Essência essa que está imbricada no ato de filosofar. A filosofia
justifica-se em seus fundamentos, formas e métodos no ensino para os jovens, se for instrumento para despertálos do dogmatismo, da superficialidade e do tecnicismo. Em suma, trata-se de educá-los para a vida do pensamento, na imersão da essência própria de ser homem e sujeito e de cuidar de si e do outro.
Referências Bibliográficas
ASPIS, Renata Pereira Lima. O professor de filosofia: ensino de filosofia no ensino médio como experiência
filosófica. In: Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 64, p. 305-320, set./dez. 2004.
Disponível em http://www.cedes.unicamp.br
FAVARETTO, Celso F. Sobre o ensino de filosofia. In: Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 19, n.
1, p. 97-102, jan./jun. 1993.
FILOSOFIA no ensino médio. São Paulo: Atta mídia e comunicação, 2007. 1 DVD (41min42seg.)
LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.
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