Ponte Miocárdica Sintomática ou Doença de

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Arq Bras Cardiol
2003; 80: 329-31.
Cabral
e cols
Relato
de Caso
Ponte miocárdica sintomática ou doença de Whipple
Ponte Miocárdica Sintomática ou
Doença de Whipple Cardíaca
Virgínia L. Ribeiro Cabral, Daniella Knecht, Regina Célia Pego, Nuno C. Figueiredo Silva
São Paulo, SP
Paciente com manifestações cardíacas da doença de
Whipple, diagnosticada somente quando os sintomas
gastrintestinais surgiram, uma vez que todos os sintomas
cardíacos haviam sido atribuídos exclusivamente à ponte
miocárdica. Após 18 meses de tratamento com trimetoprimsulfametoxazol, o paciente encontra-se completamente
assintomático, apresentando ecocardiograma normal.
A doença de Whipple é uma doença sistêmica crônica
rara, causada por um bacilo identificado recentemente,
Tropheryma whippelii 1. Mais de 80% dos pacientes afetados são homens e brancos. Sua apresentação clínica clássica inclui diarréia crônica, má absorção e perda de peso;
entretanto, esses sintomas podem aparecer em um estágio
avançado da doença. Os sintomas relacionados ao comprometimento de outros órgãos, como coração, pulmão, cérebro, articulações, linfonodos, olhos e pele, sem manifestação gastrintestinal, sempre retardam o diagnóstico 2. O diagnóstico é baseado na presença de macrófagos contendo
grânulos positivos para ácido periódico de Schiff na lâmina
própria dos tecidos afetados. Na microscopia de eletrônica,
pela detecção de bacilos intra e extra celulares 3. Recentemente, Tropheryma whippelii foi identificado, pela reação
em cadeia da polimerase (PCR), em células mononuclreares
de sangue periférico.
Relato de caso
Homem de 50 anos, com sintomas cardíacos atribuídos, exclusivamente, à ponte miocárdica. A doença iniciouse há seis anos, com poliartrites migratórias não deformantes soronegativas associadas a comprometimento axial, que
se redimiram, espontaneamente, sem tratamento. Um ano
Hospital Heliópolis - São Paulo.
Correspondência: Virgínia L. Ribeiro Cabral – Rua Rafael Sampaio Vidal, 77 –
09550-170 – São Caetano do Sul, SP – E-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 20/8/01
Aceito em 2/10/02
após o início dos sintomas articulares, sofreu dispnéia progressiva, palpitação e dor precordial. Foi admitido no hospital com diagnóstico de doença coronariana e flutter atrial.
Dosagem sérica de enzimas cardíacas e testes laboratoriais
de rotina foram considerados normais, exceto por uma anemia microcítica leve. Foi submetido à cardioversão elétrica e
iniciada amiodarona oral. A ecocardiografia revelou
hipocinesia leve da parede ântero-lateral, dilatação ventricular esquerda moderada com fração de ejeção preservada,
espessamento dos folhetos da valva mitral e tricúspide, regurgitação aórtica e mitral, e derrame pericárdico moderado.
Monitoramento eletrocardiográfico demonstrou taquicardia
supraventricular e, o cateterismo cardíaco, artérias coronárias
normais e ponte miocárdica na artéria coronária descendente
anterior. O paciente permaneceu assintomático por um longo
período, embora a repetição da ecocardiografia tenha sido
consistente com os achados anteriores.
Foi internado novamente devido a um histórico de
diarréia líquida de 10 meses, má nutrição, anemia e anorexia.
Previamente, foi submetido a colonoscopia com biópsia de
reto, demonstrando uma colite crônica não específica, tratada com sulfassalazina e corticosteróides sem melhora clínica. Pressão arterial de 90/60mmHg e púrpura não trombocitopênica foi verificada nas duas pernas. Ausculta cardíaca detectou sopro pansistólico grau II no ápex. Exame laboratorial apresentou hemoglobina de 8,8g/dL, volume corpuscular médio de 65fL, nível sérico de ferritina normal, velocidade de hemossedimentação sérica (VHS) de 59mm/h,
contagem de plaquetas de 480.000mm³ e albumina sérica de
29g/L. Estudo do intestino delgado, utilizando enema baritado, foi normal, a colonoscopia detectou mucosa de cólon
esquerdo eritematosa e a biópsia demonstrou mucosa
colônica normal. Tomografia computadorizada abdominal
mostrou espessamento das paredes intestinais. Na endoscopia gastrintestinal alta, a mucosa do duodeno apresentava-se eritematosa com petéquias. Exame histopatológico
detectou infiltração de macrófagos PAS positivos e ZiehlNeelsen negativos, na lâmina própria. Foi iniciada terapia
oral com trimetroprim-sulfametoxazol e folato, mantidos por
18 meses.
Arq Bras Cardiol, volume 80 (nº 3), 329-31, 2003
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Cabral e cols
Ponte miocárdica sintomática ou doença de Whipple
Arq Bras Cardiol
2003; 80: 329-31.
Fig. 1 - Biópsia de duodeno (corado com hematoxilina- eosina )- vários macrófagos
esponjosos com citoplasmas granular em lâmina própria.
Fig. 2 - Biópsia do duodeno (corado com PAS) – infiltração acentuada da lâmina própria por macrófagos PAS- positivos.
Os sinais clínicos de má absorção desapareceram,
houve normalização dos achados laboratoriais e, à ecocardiografia, reversão das anomalias cardíacas. Seis meses
após suspensão do tratamento, e mantém-se normal sem
remissão dos sintomas.
Discussão
A doença de Whipple tem apresentação clínica variável. Quando não apresenta sintomas intestinais é sempre
diagnosticada já em estágio tardio. Ocorre freqüentemente
em homens brancos, entre a 4ª e 6ª década de vida. Há predominância de casos descritos nos Estados Unidos e na
Europa. As características demográficas e de prevalência
desta doença são desconhecidas no Brasil.
Neste caso, os sintomas digestivos foram precedidos
durante seis anos por atralgias. Inicialmente, uma anemia
leve foi detectada e os sintomas cardíacos foram atribuídos
à presença de ponte miocárdica, que se caracteriza pela compressão sistólica segmentar de uma artéria coronária por um
feixe de músculo cardíaco. A ponte muscular freqüentemente compromete a artéria descendente anterior e, na maioria dos casos, tem uma evolução benigna 5. Relatos de associação entre essa alteração e angina de peito, infarto do miocárdio, arritmias e morte súbita 6,7. Neste caso anemia, derrame pericárdico e deformidades valvares não puderam ser
atribuídos a essa anomalia anatômica. Uma relação causal
possível entre doença de Whipple e comprometimento cardíaco foi estabelecida com o desaparecimento das alterações ecocardiografias, após terapêutica antibiótica. Uma revisão da literatura demonstrou alta prevalência de manifestações cardíacas em pacientes com doença de Whipple.
Atualmente, está estabelecido que deformidades nas válvulas cardíacas presentes em pacientes com doença de
Whipple decorrem desta infecção e não da coexistência de
cardiopatia reumática, como se acreditava.
Na doença de Whipple, os três folhetos cardíacos podem se acometidos. O pericárdio é freqüentemente afetado
por pequenos derrames assintomáticos ou pericardite fibrinosa. Miocardite e/ou anormalidade do tecido de condução
com identificação do bacilo no nó atrioventricular e no feixe de
His foram documentados 9. Comprometimento endocárdico
inclui lesões valvares ou mesmo a presença de vegetações,
geralmente erroneamente diagnosticadas como endocardite
bacteriana clássica 2,10-12. As artérias coronárias podem estar
comprometidas e a identificação do bacilo na túnica média
pode estar associada com degeneração isquêmica focal do
miocárdio 13. Este fato reforça a hipótese de que as infecções
multifocais podem ser responsáveis pela doença obstrutiva
progressiva das artérias coronárias. É interessante discutir se
os sintomas da isquemia do miocárdio apresentados pelo
paciente podem ser atribuídos exclusivamente à ponte
miocárdica. Deve ser enfatizado que a doença de Whipple
pode existir sem sintomas gastrintestinais e, nessa situação,
o diagnóstico é de extrema importância já que é uma doença
potencialmente curável e, se não diagnosticada, pode levar a
eventos catastróficos e, até mesmo, à morte.
Agradecimentos
Ao Dr. Anderson da Costa Lino Costa pela colaboração prestada.
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Dra. Patrícia M. Cury - São Paulo
Editor da Seção de Fotografias Artísticas: Cícero Piva de Albuquerque
Correspondência: InCor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP - E-mail: delcicero@incor. usp.br
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