O imutável e o perecível (Expresso: 11-09-2004) Há palavras em que me engano sistematicamente. Uma delas é meteorologia. Se não tenho cuidado, acabo por me esquecer de um «o» ou de colocar um «e» a mais. Depois lembro-me de «meteoro» e basta-me acrescentar «logia», sufixo que vem do grego «lógos» (palavra), significando «estudo». Mas imagino que para alguns leitores esta minha mnemónica seja intrigante. Que tem a meteorologia, ou seja, o estudo dos fenómenos atmosféricos, a ver com os meteoros, ou seja, os riscos luminosos (estrelas cadentes) provocados pela queda de partículas de matéria interplanetária? Em suma, que tem a atmosfera terrestre a ver com os astros? A confusão tem origem nas teorias de um filósofo grego que viveu há 24 séculos. Chamava-se Aristóteles (384-322 a.C.) e dividia o mundo em duas partes: a terrena e a celeste. Segundo ele, o que existia sobre a Terra era mutável e imperfeito, enquanto o que estava nos céus era perfeito e imutável. Os meteoros, por isso, tinham de ter origem na atmosfera terrestre, pois eram fenómenos irregulares e precários. O mesmo se passaria com os cometas, acontecimentos também irregulares e mutáveis que teriam por isso de ser atmosféricos. Se o filósofo grego tinha alguma razão quanto aos meteoros, pois estes, apesar de provirem do espaço, resultam do atrito de partículas com a atmosfera terrestre, já nenhuma tinha no que se refere aos cometas. Foi o que se verificou em 1577, quando vários astrónomos europeus estudaram um cometa espectacular que entretanto surgiu. O dinamarquês Tycho Brahe (15461601), em particular, tomou medidas rigorosas da posição desse cometa contra o firmamento e concluiu, irrefutavelmente, que ele se encontrava para lá da Lua e não podia, por isso, ser um fenómeno atmosférico. Afinal, os céus também eram mutáveis e irregulares. A teoria de Aristóteles começou a cair. Percebido que os cometas se encontravam no espaço interplanetário, faltava explicá-los. A que se devia a sua espectacular cauda, por exemplo? O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) foi um dos primeiros a intuírem o que se passava. Na sua obra Teoria dos Céus (1755), de que acaba de sair a primeira tradução portuguesa integral na Ésquilo, fala em «cabeleiras e caudas de vapor», mas interroga-se sobre as «substâncias leves» que originariam esses «vapores dos cometas». A explicação só apareceu em 1950, com os trabalhos do astrónomo norteamericano Fred Whipple (1906-2004), o primeiro a perceber que os cometas eram «conglomerados gelados» ou, numa expressão que se popularizou, «bolas de lama congelada». Whipple viu a sua teoria corroborada quando a sonda «Giotto» fotografou de perto o cometa Halley, em 1986, e se observou um núcleo em evaporação e lenta desagregação. A investigação não parou. A missão Stardust, da NASA, colheu amostras do cometa Wild 2 e trará essas amostras para a Terra em 2006. Entretanto, a ESA lançou a sonda «Rosetta», que pousará no cometa 67/P em 2014, enviando-nos dados vários sobre a sua composição. Fred Whipple tinha muitas esperanças no sucesso destas missões, e costumava brincar dizendo que gostaria que o seu centésimo aniversário fosse festejado com os resultados da missão Stardust. Se os próprios céus são mutáveis e os cometas são perecíveis, também os humanos o são. Fred Whipple, astrónomo cujo nome ficará para sempre ligado ao estudo dos cometas, faleceu a semana passada em Cambridge, nos arredores de Boston, com a bonita idade de 97 anos. uno Crato