1 Introdução à sociologia de Durkheim. 1. O Indivíduo e a Sociedade • O indivíduo e a sociedade, para Durkheim, compõem uma inter-relação conjugada, onde uma parte pertence ao outro em harmonia constante. Na verdade, uma tensão entre indivíduo e sociedade seria um equívoco em termos, pois o indivíduo não existe em sua plenitude, ou seja, as ações sociais não dependem do indivíduo, mas sim, do coletivo. • Há uma precedência lógica da sociedade. • O homem e o animal são semelhantes em essência, sendo a sociedade que os diferencia. A sociedade é a causadora do desenvolvimento de uma humanidade, com a ajuda de capacidades que outras espécies não possuem, como é o caso da linguagem, da compreensão e comunicação. • A educação, as leis e as regras em geral, especialmente o direito, representam mecanismos de coerção social exteriores ao indivíduo; são construídas e impostas por fatores externos a ele. Esses fatores são dados pela sociedade e não podem ser explicados por fatores biológicos, psicológicos ou ambientais. • Os fenômenos sociais têm uma sócio-lógica. 2. O fato social • “É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior", ou ainda, "que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais”. • Três características dos fatos sociais: a. COERÇÃO SOCIAL b. EXTERIORIDADE c. GENERALIDADE 3. Coerção social 2 • A força que obriga o indivíduo a conduta e a formas de pensar específicas – manifestas em representações coletivas e regras de comportamento. • Exemplos: modelos de relações familiares, religião, língua, códigos legais etc. • Coerção social direta: direito, educação, família e religião; coerção social indireta: língua, sistema econômico, desenvolvimento tecnológico. • “A coerção social não exclui necessariamente a personalidade individual”. 4. Exterioridade • Existem e atuam sobre os indivíduos independentemente de sua vontade ou de sua adesão consciente, ou seja, eles são exteriores aos indivíduos. • As regras sociais, as crenças, os costumes, as leis e os valores já existem antes do nascimento das pessoas; são a elas impostos por mecanismos de coerção social, como a educação. Portanto, os fatos sociais são ao mesmo tempo coercitivos e dotados de existência exterior às consciências individuais. • Uma conclusão lógica importante é que todo processo de socialização implica um alto grau de coerção (imposição). 5. Generalidade • É social todo fato que é geral, que se repete em todos os indivíduos ou, pelo menos, na maioria deles. • Os fatos sociais manifestam sua natureza coletiva ou um estado comum ao grupo, como as formas de habitação, de comunicação, os sentimentos e a moral. • A generalidade distingue o essencial do fortuito e especifica a natureza sociológica dos fenômenos. • Mas, ATENÇÃO: um fato social é geral porque é coletivo, mas não pode ser considerado um fenômeno coletivo apenas por ser geral. Quando falamos em um fato coletivo, afirmamos que esse fato é independente de suas 3 manifestações individuais. Dito de outro modo, um fato não é social por ser generalizado em uma dada coletividade, porém é geral para a coletividade por ser social. 6. Um fato social é passível de punição • O grau de coerção dos fatos sociais é percebido pelas punições a que estão sujeitos os indivíduos. • Punições legais: prescritas pela sociedade sob a forma de leis. • Punições espontâneas: as que afloram em decorrência da infração das normas sociais de um grupo qualquer – podem ser manifestadas por meio de uma simples censura (pelo olhar, por exemplo) ou até mesmo de modo violento (agressão física). "Se, ao me vestir, não levo em consideração os usos seguidos em meu país e na minha classe o riso que provoco, o afastamento em que os outros me conservam, produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita". Ou ainda, "Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos e técnicas do século passado: mas, se o fizer, terei a ruína como resultado inevitável". 7. A educação • Desempenha, segundo Durkheim, uma importante tarefa nessa conformação dos indivíduos à sociedade em que vivem, a ponto de, após algum tempo, as regras estarem internalizadas e transformadas em hábitos. • "Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente". 4 • A isso chamamos de SOCIALIZAÇÃO 8. A objetividade do Fato Social • A sociedade se manifesta como um fato objetivo. Ela existe, é algo que não pode ser negado e que se tem de levar em conta. A sociedade é externa a nós. Ela nos cerca, circunda nossa vida por todos os lados. Estamos na sociedade, localizados em setores específicos do sistema social. Essa localização pré-determina e pré-define quase tudo quanto fazemos, desde a linguagem até a etiqueta, desde nossas convicções religiosas até a probabilidade de que venhamos a cometer suicídio. A sociedade como fato objetivo e externo, manifesta-se sobretudo na forma de coerção. Suas instituições moldam nossas ações e até mesmo nossas expectativas • Os fatos sociais são “coisas”: “OS FENÔMENOS SOCIAIS SÃO OBJETOS E DEVEM SER TRATADOS COMO TAIS (...) É OBJETO, COM EFEITO, TUDO O QUE É DADO, TUDO O QUE SE OFERECE, OU ANTES, SE IMPÕE À OBSERVAÇÃO. TRATAR OS FENÔMENOS COMO COISAS É TRATÁ-LOS NA QUALIDADE DE DADO QUE CONSTITUEM O PONTO DE PARTIDA DA CIÊNCIA”. 9. Sociedade: um organismo em adaptação • A Sociologia tem por finalidade não só explicar a sociedade como encontrar remédios para a vida social. • A sociedade possui estados normais e patológicos, isto é, saudáveis ou doentios. 10. Objetivo da vida social: progresso e harmonia • Partindo do principio de que o objetivo máximo da vida social é promover a harmonia da sociedade consigo mesma e com as demais sociedades, e que essa harmonia é conseguida através do consenso social, a "saúde" do organismo social se confunde com a generalidade dos 5 acontecimentos e com a função destes na preservação dessa harmonia, desse acordo coletivo que se expressa sob a forma de sanções sociais. • Isso tem correspondência no conceito de função: um fenômeno ou aspecto da estrutura de uma sociedade cumpre uma função social quando contribui para a manutenção do sistema. 11. Fato social normal • Quando se encontra generalizado pela sociedade ou quando desempenha alguma função importante para sua adaptação ou sua evolução. • A generalidade de um fato social, isto é, sua unanimidade, é garantia de normalidade na medida em que representa o consenso social, a vontade coletiva, ou o acordo de um grupo a respeito de uma determinada questão. "Para saber se o estado econômico atual dos povos europeus, com sua característica ausência de organização, é normal ou não, procurar-se-á no passado o que lhe deu origem. Se estas condições são ainda aquelas em que atualmente se encontra nossa sociedade, é porque a situação é normal, a despeito dos protestos que desencadeia”. 12. Fato social patológico • Quando um fato põe em risco a harmonia, o acordo, o consenso e, portanto, a adaptação e a evolução da sociedade, então estamos diante de um acontecimento de caráter mórbido e de uma sociedade doente. • Patológico é aquele que se encontra fora dos limites permitidos pela ordem social e pela moral vigente. Como as doenças, são transitórios e excepcionais. • Uma sociedade que não consegue se proteger punindo seus membros, pois lhe falta os parâmetros do “certo” e do “errado”. Uma sociedade anômica. 6 • Anomia: ausência de regras instituídas e orientadoras da conduta dos indivíduos. 13. A vida social como “reino moral” • Os meios ambientes no qual vivem os seres humanos. • Os principais fenômenos sociais, como a religião, o direito, a economia e a educação são na verdade sistemas de valores. • A sociedade está na cabeça dos homens e das mulheres, de todos e de cada um de nós. • É como uma mistura química em que os sentimentos e idéias individuais tornam-se compartilhados e dão origem a algo qualitativamente diferente – como no caso da água (síntese química do hidrogênio e do oxigênio). 14. A consciência coletiva • Toda a teoria sociológica de Durkheim pretende demonstrar que os fatos sociais têm existência própria e independente daquilo que pensa e faz cada indivíduo em particular. • Formas padronizadas de conduta e pensamento. • A definição de consciência coletiva aparece pela primeira vez na obra Da Divisão do Trabalho Social: "conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade" e que "forma um sistema determinado com vida própria". • A sociedade na cabeça de cada um: o quanto há dos outros em nós – as representações coletivas. • Tipo psíquico da sociedade; a forma moral vigente na sociedade; aparece como regras fortes e estabelecidas que delimitam o valor atribuído aos atos individuais; define o que, numa sociedade, é considerado "imoral", "reprovável" ou "criminoso". • Origem das representações coletivas: a cooperação ou, nas palavras de Durkheim, da solidariedade. 15. Como os indivíduos podem viver em sociedade? 7 A origem da COESÃO SOCIAL • Solidariedade Mecânica 9 Predominava nas sociedades pré-capitalistas, onde os indivíduos se identificavam através da família, da religião, da tradição e dos costumes, permanecendo em geral independentes e autônomos em relação à divisão do trabalho social. A consciência coletiva aqui exerce todo seu poder de coerção sobre os indivíduos. É um vínculo por semelhança. • Solidariedade Orgânica 9 Típica das sociedades capitalistas, onde, através da acelerada divisão do trabalho social, os indivíduos se tornaram interdependentes. Essa interdependência garante a união social, em lugar dos costumes, das tradições ou das relações sociais estreitas. Nas sociedades capitalistas, a consciência coletiva se afrouxa. Assim, ao mesmo tempo em que os indivíduos são mutuamente dependentes, cada qual se especializa numa atividade e tende a desenvolver maior autonomia pessoal. É um vínculo por diferença. 16. O que dá origem à diferenciação social: • Volume Æ o número de indivíduos de uma determinada sociedade, isto é, o total de sua população. • Densidade material Æ o número dos indivíduos em relação à superfície do solo ou território. O que a moderna demografia denomina “densidade demográfica”. • Densidade moral Æ a intensidade das comunicações e trocas entre os indivíduos de uma dada sociedade, ou seja, a intensidade de sua interação. ¾ DA COMBINAÇÃO ENTRE VOLUME, DENSIDADE MATERIAL E DENSIDADE MORAL SURGE A DIFERENCIAÇÃO SOCIAL EXPRESSA NUMA COMPLEXIFICAÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL. QUANTO MAIS INDIVÍDUOS PROCURAM VIVER JUNTOS, MAIOR É A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA EM CONDIÇÕES DE RECURSOS 8 ESCASSOS, DE MODO QUE SOMENTE A DIFERENCIAÇÃO SOCIAL PERMITE DIMINUIR A COMPETIÇÃO FAZENDO CADA INDIVÍDUO CUMPRIR UM PAPEL, OU SEJA, REALIZAR UMA FUNÇÃO SOCIAL TORNANDO-SE NECESSÁRIO E DISTINTA DOS DEMAIS, CONTRIBUINDO PELA SOBREVIVÊNCIA DO TODO. 17. A diferenciação social: a divisão do trabalho social • O meio moral, que é a vida coletiva, é produzido pela cooperação entre os indivíduos, através de um processo de interação que chamamos de divisão do trabalho social. • Conforme o tipo de divisão do trabalho social que predomina na vida coletiva numa determinada época, temos um tipo diferente de cooperação entre os indivíduos. • Este tipo diferente de cooperação, por sua vez, dá origem a uma vida moral diferente. Vida moral que será a base dos conteúdos transmitidos na forma de crenças, valores e normas de geração para geração. E que cada nova geração, ao nascer, recebe pronta na forma de educação. • Como conseqüência, uma condição fundamental para que a sociedade possa existir é a presença de um consenso. Sem consenso não há cooperação entre os indivíduos e, portanto, não vida coletiva possível. • A diferenciação social significa a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, similar à luta pela sobrevivência entre os animais. Justamente devido a competição, os seres humanos diferenciam-se. • Solidariedade mecânica: a consciência coletiva é mais forte e coercitiva, exercendo maior influência sobre o indivíduo. • Solidariedade orgânica: a consciência coletiva é mais fraca e mais fragmentária, exercendo tanto menos influência sobre o indivíduo quanto mais complexa for a divisão social do trabalho – pois a socialização é bastante diferenciada. • Como conseqüência, temos maior margem para as interpretações individuais – maior senso de mim mesmo. • SM Æ regras rígidas & maior homogeneidade (pouca diferenciação entre funções). 9 • SO Æ regras fracas ou relativizadas & mais coordenadas para a definição da posição social (classes sociais, status, ocupação profissional, religião, ideologias políticas, modelos de relações familiares etc). 18. A evolução das sociedades • Durkheim considerava que todas as sociedades haviam evoluído a partir da horda, a forma social mais simples, igualitária, reduzida a um único segmento onde os indivíduos se assemelhavam aos átomos, isto é, se apresentavam justapostos e iguais. Desse ponto de partida, foi possível uma série de combinações, das quais originaram-se outras espécies sociais identificáveis no passado e no presente, tais como os clãs e as tribos. • Com a crescente complexificação das sociedades, ocorreu uma diversificação social por meio da divisão do trabalho social. Ainda assim, Durkheim acreditava que as modernas sociedades industriais conviviam com segmentos sociais, isto é, grupos relativamente isolados ou autosuficientes, ou ainda, com alto grau de coesão social, como a família. • Daí a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica como o motor de transformação de toda e qualquer sociedade: devido a complexificação da divisão social do trabalho. • As sociedades evoluiriam por fases, de tal modo que a normalidade somente poderia ser compreendida em função do estágio social analisado: “Um fato social não pode, pois, ser acoimado de normal para uma espécie social determinada senão em relação com uma fase, igualmente determinada, de seu desenvolvimento”. 19. Disciplina e uma “moral científica” como solução para as sociedades individualistas modernas • Os indivíduos passam a guiar-se pela busca da satisfação de interesses que são cada vez mais pessoais e cada vez menos coletivos, na luta pela sobrevivência que aprende na sociedade complexa em que nasce. É a divisão do trabalho 10 e a diferenciação social que possibilitam o surgimento da liberdade moderna. Só numa sociedade complexa e diferenciada é que se torna possível diminuir a rigidez das regras sociais, sua validade geral e indistinta, e só assim o indivíduo pode ter certa liberdade de julgamento e de ação. Mas quanto mais liberdade individual, mais individualismo, entendido como a perda dos sentimentos gregários e de respeito às normas gerais da sociedade. • O homem individual é um homem de desejos e, por isso, a primeira necessidade da moral e da sociedade é disciplinálo. O homem precisa ser disciplinado por uma força superior, autoritária e amável, isto é, digna de ser amada. Esta força, que ao mesmo tempo se impõe e atrai, só pode ser a própria sociedade. Mas, por que meio? A família e a religião apresentam sérias limitações atualmente. A educação contribuiria, porém também com limitações. O único grupo social que pode fornecer a integração dos indivíduos na coletividade nas condições das sociedades modernas é, por conseguinte, a profissão ou, nos termos de Durkheim, a corporação. 20. Durkheim: o demiurgo da sociologia científica e de seu método • • • • • • • • • Postura empírica: ênfase na observação e descrição. Crença na neutralidade científica. Crença na objetividade dos fatos sociais. Inovação pelo uso da estatística. Elaboração de um método sociológico a partir de regras simples, objetivas e precisas. Ênfase na comparação entre as sociedades. Defesa da particularidade e autonomia do social. Sistematização da noção de sistema: busca pela interação entre o particular e o universal numa visão de totalidade. Fundamento ou “inspiração” científica: o evolucionismo e o positivismo do Séc. XIX. O Darwinismo social e a filosofia positivista de Augusto Comte. 11 Para Durkheim, como para todos cientistas da sua época, não haveria explicação científica se o pesquisador não mantivesse certa distância e neutralidade em relação aos fatos, resguardando a objetividade de sua análise. É preciso que o sociólogo deixe de lado suas pré-noções, isto é, seus valores e sentimentos pessoais em relação ao acontecimento a ser estudado, pois eles nada têm de científico e podem distorcer a realidade dos fatos. Bibliografia consultada ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BERGER, Peter I. e LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. BERGER, Peter I. Perspectivas Sociológicas – uma visão humanística. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1976. DURKHEIM, E. Os pensadores. Tradução de Carlos Alberto R. de Moura. São Paulo: Abril Cultural, 1978. DURKHEIM, E. Sociologia. Org. José Albertino Rodrigues. 6. ed. São Paulo: Ática, 1993 FORACCHI, Marialice Mencarini & MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade (Leituras de introdução à Sociologia).Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1999. RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da educação. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000.