Gilles Deleuze e o sistema da natureza e da filosofia

Propaganda
Mogens Laerke (doutor em Filosofia)
Fundação Carlsberg
Gilles Deleuze e o sistema da natureza e da filosofia1
Há um ponto em que devo concordar com Alain Badiou. A filosofia de
Deleuze é um sistema metafísico clássico.
Digamos que a filosofia de Deleuze, como a minha
própria, é definitivamente clássica. E é bem fácil definir,
neste assunto, o que é o classicismo. Clássica é toda
filosofia que não se submete às injunções críticas de Kant;
que age como se o julgamento pretendido por Kant não
fosse nada e nunca tivesse acontecido.2
Uma afirmação como esta não deveria surpreender alguém familiarizado
aos textos de Deleuze: “Eu acredito na filosofia como sistema [...]. Sinto-me como
um filósofo bastante clássico”, Deleuze se explica bem claramente na cartaprefácio ao livro de Jean-Clet Martin, Variações, de 19933. Encontramos
afirmações similares em O que é a filosofia?.
Em todo caso, não tivemos jamais um problema
concernente à morte da metafísica ou à superação da
filosofia: são disparates inúteis e penosos. Fala-se hoje da
falência dos sistemas, quando é apenas o conceito de
sistema que mudou.4
Como podemos explicar esta estranha parábola teórica que leva um
filósofo contemporâneo como Deleuze a reivindicar uma herança metafísica
clássica?
Pode-se simplesmente apontar para seu trabalho a respeito de
metafísicos clássicos: dois livros e vários artigos sobre Espinosa e um livro sobre
Leibniz. Todos sabem que Deleuze é devedor com relação à Ética (uma
concepção de imanência) e à Monadologia (uma concepção do indivíduo). 5 Tanto
Diferença e Repetição quanto Lógica do sentido referem-se aos dois metafísicos
pós-cartesianos em lugares cruciais da argumentação. Os dois livros no projeto
Capitalismo e esquizofrenia estão salpicados de referências explícitas e implícitas
a Espinosa. Em Conversações, o próprio Deleuze descreve O Anti-Édipo como
uma espécie de “espinosismo do inconsciente”6, e em Mil platôs encontramos a
Ética de Espinosa descrita como uma espécie de manual esquizoanalítico:
Finalmente, o grande livro sobre o CsO não seria a Ética? [...] Os
drogados, os masoquistas, os esquizofrênicos, os amantes, todos os CsO prestam
homenagem a Espinosa. O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de
consistência própria do desejo7.
Quanto a Leibniz, A dobra. Leibniz e o barroco, de 1988, desenvolve
o contexto sistemático para a noção de subjetividade como dobra, a qual Deleuze
já tinha proposto dois anos antes em Foucault8. Mas Leibniz tem um papel
importante em outras áreas também. Foi ele que inventou a relação lógica original
de “(in-)compossibilidade” – isto é, uma (in-)compatibilidade entre um conceito
individual e um mundo _ que, de acordo com Lógica do sentido, governa a gênese
estática ontológica do mundo. A compossibilidade determina que intensidades se
aninham nas dobras do mundo virtual que elas atualizam9. Tentei mostrar, em
outra ocasião, o quanto o conceito de “devires” individuais em Mil platôs deve à
descrição de Leibniz da natureza dos corpos orgânicos e da transubstanciação em
suas cartas à Bartholomeus Des Bosses10. Etcetera.
Há uma herança clássica na filosofia de Deleuze porque ele toma
emprestado elementos de filósofos clássicos. Mas, mais importante, ele também
se diz um metafísico clássico no mesmo sentido em que eles são, isto é, a sua
filosofia é organizada estruturalmente de um jeito comparável ao sistema
metafísico clássico. O que significa sistema nesse contexto? É o significado
completo disso que eu gostaria de apresentar em seguida lendo o deleuzianismo
como um racionalismo de quatro desdobramentos: como um sistema da razão
reta; da razão natural; da razão unificada; e da razão moral universal. Não
pretendo provar que a filosofia de Deleuze é um tal racionalismo quadruplamente
desdobrado. Isto seria não apenas terrivelmente pretensioso, mas também muito
redutor: nada deve impedir uma outra leitura de ir na direção exatamente oposta.
A ambição é mais de ver que tipo de coerência (se há alguma) a assunção de um
tal racionalismo quadruplamente desdobrado pode render.
§2
Vamos assumir, então, que o deleuzianismo é mais uma apologia do
que uma crítica da razão; que ele é uma defesa de um tipo particular de razão que
Deleuze às vezes chama de problemática (Diferença e repetição) e outras vezes
criativa (O que é a filosofia?). Se essa assunção é verdadeira, racionalismo no
sentido deleuzeano seria um esforço para reverter um movimento de desrazão que
tinha deixado o mundo de cabeça para baixo. Tal ambição de endireitar a razão
origina-se de Espinosa (a crítica do finalismo na Ética) e de Nietzsche (a crítica
da reversão dos valores na Genealogia da moral). Mas fazer a razão ficar de pé
por si mesma é também a ambição geral dos metafísicos clássicos: todos eles se
consideram partidários da “razão reta” (recta ratio). Contrariamente à maioria dos
metafísicos clássicos (à exceção de Espinosa), contudo, Deleuze define recta ratio
como o oposto de sensus communis. Podemos dizer que a filosofia de Deleuze é
um tremendo esforço para repensar a maneira em que a razão ainda seria
defensável, e que um livro como Mil platôs desenvolve as condições de
possibilidade para uma recta ratio legítima, se bem que uma razão reta que
freqüentemente aparece estranhamente inclinada ou curiosamente curvada –
precisamente porque não está mais ligada ao sensus communis.Isso é, novamente,
uma lição de Espinosa, mas dessa vez, do Tratado teológico-político: a razão foi
terrivelmente corrompida. Nós não apenas deliramos sem razão, mas deliramos
com razão (insanire cum ratione)11. A imagem do pensamento pinta o que é torto
como reto, o que é reativo como ativo, o que é negação como afirmação. E não é
simplesmente uma questão de uma representação “má” ou “falsa”. A imagem do
pensamento corrompe o próprio representandum. Aqueles subjugados a essa
imagem estão criando a natureza conforme seu próprio delírio, nota Espinosa,
“como se a totalidade da natureza estivesse delirando com eles” (quasi tota natura
cum ipsis insaniret)12 . Como Espinosa, Deleuze aventura-se a criar uma nova
imagem do pensamento que endireite a razão. Coisa estranha para se dizer de uma
esquizoanalítica, mas ainda assim adequada: é o mundo que é louco, não o
esquizofrênico.
§3
Mas a questão permanece: que razão? Que retitude? Em primeiro
lugar, a recta ratio deleuzeana não é mais uma razão crítica do que uma crítica da
razão. O primeiro aspecto que uma leitura “classicista” de Deleuze precisa trazer
para o primeiro plano é aquele também notado por Badiou: a recusa da virada
crítica13. A filosofia de Deleuze não é uma filosofia crítica. É uma metafísica
criativa. Primeiro, embora tenha aprendido muito com seu tão respeitado
adversário, Deleuze não é um kantiano. Segundo, seria preciso uma releitura
criativa da crítica alemã do pós-guerra ao Esclarecimento para considerar a
filosofia de Deleuze uma “crítica da razão” na tradição de Adorno e Horkheimer
(embora, reconhecidamente, isso seja bem possível). Finalmente, seria
completamente errado considerar o deleuzianismo – como alguns críticos de mávontade fizeram – como um “anti-racionalismo” (Bata sua cabeça aqui!). A
filosofia de Deleuze é um construtivismo. Seu primeiro princípio é a criação.
Um leitor de Deleuze apegado ao potencial crítico de sua filosofia
objetaria o seguinte: e Nietzsche e a filosofia? Esse livro estabelece uma relação
muito íntima entre crítica e criação. Pode-se até pensar que são termos
intercambiáveis. Eles convergem na noção nietzscheana de avaliação14. E é
verdade: criação e crítica são aspectos de uma mesma estimativa filosófica que
nos permite avaliar a existência de acordo com os critérios do devir. Segundo
Deleuze, Nietzsche acusa Kant de ter rompido a ligação entre julgamento e
criação, e assim ter proposto uma crítica que “não cria valores”15. Mas é esse
critério da criação que condiciona o da crítica. Não é o potencial criativo que nos
permite avaliar um conceito que criamos. Antes, o que um conceito é capaz de
criar é a medida do seu potencial crítico: um conceito representa uma força crítica
na medida em que afirma um poder de “pensar de outro modo” (penser
autrement)16. Em Nietzsche é, por vezes, difícil determinar exatamente como esta
relação de condicionamento mútuo entre crítica e criação está inclinada, pendendo
às vezes para um lado, às vezes para o outro. Mas deve-se sempre ter o cuidado de
não confundir Deleuze e o filósofo que ele está comentando: ele raramente
concorda completamente com eles. É apenas a filosofia nietzscheana que
“permanece abstrata e dificilmente compreensível se não se descobre contra quem
ela é dirigida”17. A filosofia de Deleuze, não menos que a de Nietzsche, é um antihegelianismo. Mas, ao contrário de Nietzsche, não é essa oposição que define os
contornos do sistema deleuzeano.
A vantagem de pensar Deleuze segundo este vetor criativo pode ser
mais bem explicada se consideramos as conseqüências de manter o oposto. Em
resumo, inclinar o pensamento de Deleuze em direção a uma filosofia crítica
resultaria em considerá-lo uma má versão de Michel Foucault, um foucauldiano
que não sabe permanecer nos limites que estabeleceu para seu próprio
pensamento. Numa palestra em 1978 na Sociedade Francesa de Filosofia sobre “O
que é crítica?”, Foucault explica que todo pensamento crítico, incluindo o seu
próprio, é necessariamente assombrado pelo fato de que não pode existir sem a
coisa que critica18. Esse é o limite que Foucault estabeleceu pra seu próprio
pensamento crítico: não pode existir em e por si mesmo. A herança que ele
reclama é a do esclarecimento kantiano. Sapere aude! É primeiro a coragem de
propor um contra-poder, um poder “de dizer não ao governo” (num sentido bem
amplo, dizer não a qualquer “direção da mente” em vocabulário cartesiano).
Crítica é arte de “não ser governado assim, nem para isto, nem por eles” (ibid).
Em si mesma, é um projeto maravilhoso, mas não tem nada a ver com o de
Deleuze, não importa o quanto Deleuze adapte e retorça o pensamento de
Foucault para encaixar no seu em Foucault19.
A ambição de Deleuze é bem diferente: não é pensar de outro modo
em relação a uma forma de pensamento x que se tornou insuportável, mas fazer
toda forma de pensamento x pensar de outro modo em relação a si mesma, fazê-la
“gaguejar”, fazê-la existir afirmando um devir nela. Ele está tentando fazer
formas existentes de pensamento criarem seus próprios monstros através de
estranhas combinações com outras formas de pensamento (imaculada concepção
= síntese disjuntiva)20. E através deste ecletismo perverso, ele tenta criar algo que
pare em pé sozinho, que dura (duração = evolução criadora = diferir de si
mesmo). A filosofia da imanência é mais um monumento do que uma arma, mais
uma arte combinatória de “agenciamentos” do que uma arte estratégica de
“dispositivos” (uma noção foucauldiana que conota a distribuição estratégica de
forças numa situação de guerra). Mesmo quando Deleuze fala de máquinas de
guerra, ele está construindo máquinas, não travando um combate. Contrariamente
a Foucault, ele não critica prioritariamente formas de governo, mas cria um
sistema de orientação no pensamento, uma “máquina de orientação”, como
Arnaud Villani o chamou21. Todos sabem: esse é um tema kantiano, essa questão
de se orientar no pensamento, da razão como um senso de localização22. Mas
poderia vantajosamente ser revivido num sentido não kantiano: não como um
sistema de orientação no meu pensamento, como se o pensamento fosse uma
qualidade inerente de um sujeito constitutivo, mas como um sistema que
permitiria ao sujeito se orientar num pensamento do qual ele participa como uma
de suas manifestações (do mesmo modo que a alma para Espinosa é uma simples
modificação do atributo do pensamento, e uma parte da mente de Deus). Não é
um guia para a consciência individual, mas um mapa para se mover num mundo
feito de pensamento. Poderíamos dizer que a filosofia de Deleuze é um sistema
para orientar numa concepção espinosista do pensamento.
§4
Segunda assunção: a razão reta é a razão natural ou a razão na
natureza. A filosofia de Deleuze está flutuando (mais do que assenta) numa
enorme ambição de construir um sistema de orientação total e criar um novo
senso de localização (uma nova “imagem do pensamento”). A esse respeito, ela
herda projetos da metafísica do século XVII, como a characteristica universalis
de Leibniz e o sistema more geometrico demonstratum de Espinosa que nutrem
ambições similares de uma “filosofia total”.
Essa ambição é, em Deleuze como nos sistemas clássicos,
intimamente relacionada com a noção de um sistema da natureza. A Ética de
Espinosa e a Monadologia de Leibniz não são simplesmente livros, mas mundos.
Em Deleuze, o sistema da natureza é chamado de “o virtual”. Para medir a
profundidade desse segundo aspecto do classicismo de Deleuze, é preciso
questionar o estatuto ontológico desse sistema da natureza, isto é, o estatuto
ontológico do virtual. Esse é outro lugar onde Badiou está no caminho certo,
embora ele interprete mal a natureza da ontologia envolvida23. De acordo com
Kant, as coisas são cognoscíveis porque o sujeito esquematiza os fenômenos
dados a ele na percepção antes que eles sejam apresentados às categorias do
conhecimento: o esquema “prepara” ou “condiciona” as percepções para serem
processadas no entendimento. O esquema é um sistema subjetivo para ordenar os
fenômenos (um “mapa” subjetivo da percepção em que o entendimento marca os
nomes dos lugares). Se Deleuze às vezes compara seu conceito ed virtual com o
conceito kantiano de esquema, é apenas para se distanciar do subjetivismo do
modelo kantiano. O sujeito não está nunca na origem do esquema, mas o sujeito
está no esquema, porque o esquema é, na realidade, um sistema da natureza. O
sujeito está imerso no infinito. Estamos familiarizados com esse traço clássico do
pensamento de Deleuze: seu ponto de partida está no infinito24.
Não é o sujeito que pensa, mas o sujeito aparece no pensamento.
Longe de ser uma doutrina reservada aos espinosistas, essa era também a intuição
de Hume na leitura ontológica um tanto estranha de Deleuze do empirismo. Hume
não mostrou que o sujeito existente tem hábitos. Ele mostrou que o próprio sujeito
é um hábito de existência, hábito sendo uma espécie de repetição “material”
espontânea no próprio Ser25. Lido dessa forma curiosa, Hume não é um precursor
da filosofia crítica, mas antes um pensador clássico imerso na infinitude do Ser.
Se Hume mostra, contra os racionalistas clássicos, que a origem da ordem da
natureza são simples hábitos, a ordem da natureza que é produzida por esses
hábitos são hábitos da natureza infinita, não do sujeito finito que a contempla; se
a ordem da natureza é produzida por hábitos e não por Deus, o sistema é, ainda
assim, um jeito de ser da natureza e não uma ficção do sujeito. Lido dessa forma,
Hume está mais próximo de Espinosa do que de Kant.
§5
É a oscilação conceitual entre Espinosa e Hume que nos permite
definir mais precisamente a ontologia do sistema da natureza.
No pensamento clássico, há duas concepções principais da noção de
“sistema”. Há uma noção nominalista e uma noção realista: sistema concebido
como modelo da natureza, sistema concebido como um modo de ser da natureza.
Em Leibniz, por exemplo, a noção de sistema pertence à própria
natureza.: não é um modelo, mas uma maneira de ser. Tudo o que uma filosofia
faz é representar uma ordem que pertence ontologicamente à própria natureza
independentemente de sua representação sistemática (como a harmonia préestabelecida de Leibniz). Essa é também a concepção que Michel Foucault analisa
em As palavras e as coisas em relação a outros domínios de pensamento que não
a filosofia (história natural, gramática geral, análise da riqueza). O pensamento
clássico é um pensamento que representa porque repousa na pressuposição de um
a ordem na própria natureza26 .
A noção ôntica de sistema é criticada por certos nominalistas
radicais. De acordo com Hobbes, por exemplo, todos os sistemas conceituais são
simples funções de uma ordem arbitrária imposta pelo sistema da linguagem. Por
esta razão, todos os sistemas de pensamento são simples modelos no pensamento
(Leibniz designou isso de “super-nominalismo”). É esse princípio nominalista que
encontramos generalizado no empirismo radical de Hume: todos os sistemas são
exteriores em relação ao que eles sistematizam. Ou seja, todas as relações
ordenadas que o pensamento estabelece entre as coisas são puramente extrínsecas
e não fundadas nas coisas elas mesmas. De acordo com a leitura de Deleuze,
Hume é uma espécie de anti-Leibniz. Ele reverte o princípio de razão suficiente
(esse “grito da razão”, como Deleuze o denomina). A expressão lógica do
princípio de razão é aquela da natureza universal e analítica da verdade, a
inerência de todos os predicados possíveis no sujeito ou a interioridade de todas
as relações aos seus termos (in esse)27. O princípio que governa o empirismo de
Hume é o exato oposto: Hume descobre a exterioridade das relações aos seus
termos. É “uma pura lógica das relações”28.
Leibniz ou Hume, então? Eu diria que Deleuze escapa a esta
alternativa entre nominalismo sistêmico e realismo sistêmico, muito embora seu
pensamento se incline em direção à concepção realista. Mas como isso é possível?
Antes de tentar explicar a possível coexistência dessas duas concepções,
precisamos primeiro considerar como essas duas concepções de sistema (nominal
e real) fazem sua entrada na filosofia de Deleuze.
Deleuze insiste freqüentemente na “realidade” do virtual. “O virtual
[...] não é oposto ao real, ele tem uma plena realidade por si mesmo”29. Ele tem o
estatuto ontológico um tanto enigmático de ser “real sem ser atual, ideal sem ser
abstrato”, como diz Deleuze com uma forma que toma emprestado de Proust30.
Essa afirmação levou Badiou a rotular a filosofia de Deleuze de “platonismo do
virtual”31. Mesmo que esta seja uma interpretação inadequada, permanece
verdadeiro que essa “realidade do virtual” é de enorme importância para qualquer
entendimento do pensamento de Deleuze. No nosso contexto, o fato de que o
virtual tenha uma ontologia torna bastante claro que Deleuze adere, de uma
maneira ou de outra, a uma concepção ôntica do sistema da natureza.
Mas e a exterioridade das relações descoberta por Hume? Essa idéia
envolve uma separação entre a ordem do pensamento e a existência do Ser,
tornando-as (ao menos momentaneamente) exteriores uma a outra, tirando um
pouco do poder do pensamento, mas também liberando um pouco de caos dos
regimes da representação. Tal concepção parece envolver um certo dualismo que
Deleuze, de fato, endossa (ao menos provisoriamente). Ele fala das “duas metades
do absoluto” e distingue entre um “poder de Ser” e um “poder de pensar”32. Estes
são também duas faces do plano de imanência: “o plano de imanência tem duas
faces, como Pensamento e como Natureza, como Physis e como Nous”33.
Mas como Deleuze pode afirmar que essas duas faces do absoluto,
extrínsecas uma em relação à outra, ainda são duas faces do mesmo absoluto? E
como pode afirmar a realidade do sistema (pensamento, representar a natureza),
se o sistema é exterior à realidade (natureza, ser)? Expresso no aparato conceitual
um tanto técnico de Diferença e repetição, o problema do estatuto ontológico do
sistema diz respeito a como o domínio do virtual (o céu, o poder de pensar, o
virtual, o sistema, Nous) está relacionado ao domínio do intensivo (a terra, o poder
de ser, o intensivo, a natureza, Physis).: a tradição racionalista clássica defende a
interioridade do virtual no intensivo (pressuposição da ordem), enquanto a
tradição empirista radical afirma o exato oposto, isto é, a exterioridade do virtual
em relação ao intensivo. Como podemos afirmar que o virtual é exterior ao ser,
mas que ele ainda assim tem uma ontologia, sem postular dois tipos de ser (isto é,
uma equivocidade do Ser)? Essa é maneira como a realidade do sistema virtual da
natureza deve ser enunciada: o problema é espinosista mais do que platônico. É
também a questão que deve ser posta para entender como Deleuze concilia os dois
conceitos de sistema (como modelo ou como sistema da natureza): como pode o
sistema, ao mesmo tempo, ser um puro modelo de pensamento extrínseco à
natureza e uma ordem de ser intrínseca à natureza?
A reconciliação dessas duas concepções aparentemente opostas
repousa no apelo à criatividade, invenção e experimentação na leitura de Deleuze
do empirismo. Essa interpretação reverte mais uma vez a tradição filosófica
segundo a qual o empirismo de Hume é um prelúdio à crítica kantiana. Segundo
Deleuze, o empirismo não é um pensamento pré-crítico que destrói a
pressuposição racionalista de uma ordem da natureza, mas é um pensamento
criativo que mostra como tal ordem é produzida. Ele mostra como o sistema da
natureza é e precisa ser criado e inventado através de experimentação34. O
empirismo de Hume se torna uma extensão criativa do paradigma clássico.
Deleuze reconcilia as concepções empirista e racionalista de sistematicidade
sugerindo que uma ordem da natureza, ou um sistema no sentido ôntico, não é
simplesmente o que é, que nós apenas descobriríamos (como a maior parte da
tradição racionalista afirma). Isto é, não é a construção de um sujeito perceptivo,
um simples esquema (como a tradição crítica afirma), mas a ordem da natureza é
algo que vem a ser (no sentido ôntico do termo) através de um sujeito perceptivo.
O empirismo é uma ars combinatoria. As experimentações empiristas são
propostas para modos de ser, esboços sistemáticos que aparecem na natureza
(constelações). E o empirista é um “inventor de lógica”, um pequeno bricoleur.
Tal sujeito constitutivamente aberto funciona como uma espécie de relé através
do qual o poder de ser é ordenado e distribuído num ato de experimentação ou
invenção de ordem. Esse sujeito-relé aberto será chamado de máquina em
Capitalismo e esquizofrenia.
§6
Um sistema representacional ou “imagem do pensamento” torna-se
efetivo através de uma máquina-sujeito. O poder de ser (ou o intensivo) atualiza o
poder de pensar (ou o virtual); o virtual, por sua vez, organiza o intensivo num
determinado jeito de ser. A Physis ou Natureza se torna um sistema através do
Nous ou pensamento- Nous ou sistema devém através da Natureza ou Physis.
Esta concepção do sistema como sistema-produção tem a seguinte
conseqüência: nenhum pensamento é simplesmente a representação de algo que
ele não condiciona ao mesmo tempo (ordem divina, transcendência, ordem natural
dada). Antes, o próprio representado só existe no ato de representar (o virtual não
existe fora das suas atualizações – Deleuze o repete constantemente). É por isso
que Deleuze se dá tanto ao trabalho de advertir contra os “regimes da
representação” no capítulo central de Diferença e repetição. Eles não são apenas
abstrações ou “falsas” imagens. Os regimes da representação não representam
algo que não existe (falsidade), mas trazem à existência o que representam. São
perigosos porque muito reais: os regimes da representação não são simplesmente
más maneiras de pensar, eles induzem uma existência má (isto é, reativa).
Mas como isso é possível? Como representar algo pode faze-lo
tornar-se igual ao seu representado? Resumindo: como pensar afeta o ser?
Deleuze, não menos que os pós-cartesianos, confronta-se com o clássico problema
psico-físico da relação (ou ausência de relação) entre corpo e mente. Segundo a
terminologia de Diferença e repetição, esse é o problema de como o virtual se
relaciona com o intensivo 35.
A solução para o nosso problema é simples e espinosista: se o virtual
pode afetar (isto é, organizar) o intensivo e o intensivo pode afetar (ou seja,
atualizar) o virtual é porque o virtual ou poder de pensar já é um aspecto do
poder de Ser. Essa construção é perfeitamente análoga à maneira como Deleuze
explica a doutrina do (duplo) paralelismo na metafísica de Espinosa36. Uma das
lições que Deleuze aprendeu de Espinosa é de que o pensamento afeta o ser
porque participa desse ser (o “atributo pensamento” de Espinosa). O puro
pensamento do virtual não é simplesmente situado em frente de um mundo de
intensidades que escapa de suas representações, mas há no próprio virtual um
“tipo” de ser, um grau de intensidade, uma participação do Ser que não tem nada
a ver com o mundo das Idéias platônico. Deve ser, entes, entendido segundo o
modelo do conceito de atributo pensamento de Espinosa, o virtual sendo, ao
mesmo tempo, o que é uma representação global da natureza (como o intellectus
Dei de Espinosa) e uma das expressões da natureza que ele representa (como o
atributo pensamento de Espinosa ou cogitata absoluta)37.
O virtual tem sempre uma parte imersa no domínio selvagem das
intensidades: ele participa daquilo que representa. O dualismo do momento
“empirista” (exterioridade entre virtual e intensivo, entre relações e termos) é aqui
resolvido num monismo complexo (inscrição do virtual no intensivo, o virtual
como intensidade ou o ser do virtual). A parte intensiva do pensamento é
determinada, em Diferença e repetição, como a faculdade da imaginação, que
“transgride todos os domínios” e alcança “a unidade da natureza e do espírito”38.
É através da imaginação que o pensamento afeta o ser, porque ela é, ao mesmo
tempo, representação e produção de pensamento-ser (“o ser cru do pensamento”,
diria Foucault). Mas é também por intermédio da imaginação que ser se torna
pensar, ou um sistema de pensamento se torna o sistema da natureza, e
pensamento se torna ser.
§7
Mas como isso acontece mais especificamente: quais são os
mecanismos pelos quais um sistema adquire existência e um modelo se torna
natureza? Deleuze trata essa questão sob o nome de “síntese passiva” em
Diferença e repetição. Há três dessas sínteses: hábito, memória e eterno retorno –
Hume, Bergson e Nietzsche. As duas primeiras sínteses são estáticas, elas
concernem o modo pelo qual algo passa a ser. A terceira, o eterno retorno, é uma
síntese dinâmica: ela concerne apenas o devir e coloca o princípio de acordo com
o qual as coisas são na medida em que devêm.
Hábito e memória são dois mecanismos pelos quais um sistema ou
imagem de pensamento se impõe sobre a natureza através de um sujeito-máquina
pelo qual o pensamento permeia o ser e vice-versa.
O hábito é um ímpeto do pensamento para o futuro: é precipitação
ou ante-visão, expectativa. Mas também é, num certo sentido, “ante-fazer”.
Hábitos não são simplesmente hábitos de pensamento, mas também hábitos de ser
(não temos hábitos, somos hábitos)39. O hábito não é só nosso hábito de ligar uma
coisa com outra pelo pensamento, mas o hábito age sobre o ser porque estabelece
relações seriais entre singularidades e conecta intensidades (“sujeitos larvares”).
A síntese passiva da memória é, não menos que o hábito, uma ação
do pensamento sobre o ser. Ela coordena as séries conectivas que o hábito
estabelece coordenando séries anteriormente presentes (x como realmente foi) e
séries presentemente presentes (y como realmente é), fazendo-as comunicar uma
com a outra. A memória pura ou coexistência virtual resulta desta ressonância
entre eventos. É estrutura sem termos, nem x nem y, mas a essência de sua
diferença: isso é o passado puro, o modo como as coisas nunca foram, ou o virtual
enquanto tal (dy/dx)40. Os hábitos são apenas “trapos” muito ardilosos de
virtualidade: não duram para além do presente de sua constituição repetitiva. Com
a segunda síntese, adquirimos um sistema completo capaz de se manter na
existência e se reproduzir em outras áreas do pensamento.
Vou insistir mais uma vez: estes sistemas de ressonância não são
simplesmente instrumentos do entendimento. A memória não é um elemento em
uma psicogênese que tem lugar num sujeito constitutivo. É antes o sujeito que é
constituído nas dobras da rememoração. O sujeito é aquele que resulta da
ressonância. A memória, como o hábito, é parte de uma ontogênese geral e o
virtual é uma espécie de memória global na qual as coisas são determinadas41. A
questão do souvenir pur e o estatuto do virtual não são uma questão de psicologia.
É uma questão de ontologia: “Só o presente é psicológico, - mas o passado é pura
ontologia, apenas a memória pura tem significação ontológica”42. Ora, como
Deleuze coloca em Cinema II - A imagem-tempo, não é a memória que está em
nós, mas nós é que nos movemos em um uma memória-ser, um mundomemória43.
Hábito e memória “capturam singularidades”. Eles concretamente
“agarram” as coisas: “já vi algo assim antes; é algo assim ou assado, etc. Não é
uma questão de simples identificação, mas o próprio processo pelo qual as coisas
se tornam identificáveis. Um evento x se singulariza como exatamente x ao
mesmo tempo em que se torna cognoscível. A síntese passiva implica uma
aplicação particular do princípio berkeleyano do esse est percipii: x é x porque eu
o percebo assim, porque eu agarro e moldo (ou dobro) esta singularidade desta
maneira particular.
Não há nada místico nesta operação: todos nós a realizamos
constantemente, fazendo um evento se tornar este evento, identificando x em
relação a y através de determinação recíproca e diferencial (dy/dx).Contudo,
temos a tendência de acreditar que x era x independente de nossa percepção dele,
de acreditar que a determinação (dy/dx) é derivada do determinandum (x e y), e
não o contrário. A sínteses passivas do hábito e da memória são intimamente
ligadas a uma função de esquecimento e mascaramento44. Hábito e memória nos
permitem identificar, mas também nos fazem esquecer de onde as coisas vieram.
Esquecemos que somos pequenas máquinas através das quais as coisas se tornam
o que são; pensamos que a determinação de x emanou do próprio x como de algo
semelhante a ele. É através desse esquecimento que as coisas adquirem uma
essência ou uma idéia de que nos recordamos por trás de cada uma de suas
efetuações como algo tanto perdido quanto presente (reminiscência). Por formular
o conceito de reminiscência, o platonismo é a arte de esquecer as origens do
pensamento.
§8
A terceira síntese passiva do eterno retorno introduz o devir,
diferença no ser e não apenas entre entes. Nietzsche e a filosofia relaciona de
perto o eterno retorno à idéia de um lance de dados, ou à afirmação do acaso45. O
é um lance de dados do ser. Mas o que é um lance de dados? É um ímpeto caótico
do poder de ser, mas também o retorno de outra ordem de necessidade (imagem
do pensamento): “O jogo tem dois movimentos, que são os do lance de dados: os
dados jogados e os dados caindo”46. É um lance do ser em que o virtual é
arranjado numa constelação particular. O mundo é organizado e distribuído numa
forma necessária pela ação do acaso. O lance de dados é a natureza propondo um
sistema para si mesma através de algum sujeito-máquina. É uma distribuição das
coisas, um sistema da natureza no sentido ôntico do termo sistema. Lançando
dados, a natureza experimenta consigo mesma, Deus como um pequeno bricoleur.
O eterno retorno faz.nos mover da diferenciação (como as coisas diferem umas
das outras) para a diferençação (como as coisas diferem de si mesmas), segundo o
termo complexo que Deleuze constrói para a individuação dinâmica em Diferença
e repetição, a noção de indi-diferenci/çação47.
O eterno retorno ou síntese dinâmica é o princípio de transformação
imanente. É, em primeiro lugar, um princípio que nos permite introduzir a
diferença sem introduzir ruptura. Diz-se que Deleuze redescobriu o eterno
retorno como um princípio de diferença, como eterno retorno do diferente. Mas
Deleuze não foi o único a fazê-lo. Ele tinha isso em comum com vários
pensadores da sua geração, sobretudo, Pierre Klossowski48. Certamente, Deleuze
fornece uma forte leitura do conceito original de Nietzsche. Mas o que há de
muito original nesta leitura é que Deleuze concebe tal conceito como princípio de
unidade e de continuidade. Os filósofos envolvidos na construção desse conceito
original de unidade são Espinosa, Leibniz, Bergson e Nietzsche: unidade da
substância (univocidade), princípio de continuidade, evolução criadora, eterno
retorno. Essa é a base para a nossa terceira afirmação concernente ao classicismo
de Deleuze. Sua metafísica é uma apologia para uma razão unificada. O sistema
de Deleuze sempre permanece um sistema, um sistema dinâmico e em
transformação, é claro, um sistema em evolução criadora constante, mas, ainda
assim, um sistema sem quaisquer rupturas: a natureza deleuzeana não dá saltos. È
nisso que se sente muito fortemente a diferença entre Deleuze e seu amigo
Foucault. Enquanto Foucault está sempre apegado à noção de ruptura introduzida
na epistemologia francesa por Bachelard e Canguilhem, Deleuze dá continuidade
às reflexões de Bérgson em torno da evolução criadora.
Leibniz costumava dizer que tudo é contínuo no oceano do
conhecimento, que todas as ciências se comunicam com todas as demais. Não há
ruptura no conhecimento verdadeiro porque não há ruptura na ordem da natureza.
Todas as maneiras de conhecer, se são verdadeiras, falam exatamente do mesmo
mundo49. Deleuze e Guattari fazem uma alegação semelhante em O que é a
filosofia? Quando afirmam que há um plano de imanência, apenas um plano
unívoco sobre o qual os planos de imanência se comunicam. Este mundo,
contudo, não é mais o da harmonia pré-estabelecida, mas da síntese disjuntiva, da
harmonia constantemente restabelecida, perpetuamente recomposta através de
movimentos forçados. É o mundo do eterno retorno.
Não é que haja uma ordem ou um sistema da natureza. É antes a
natureza que se torna uma ordem ou sistema, ou o próprio sistema está em devir.
Ou seja, está sempre se transformando numa dinâmica imanente. Deleuze
freqüentemente descreve esta dinâmica por meio da noção de multiplicidades
qualitativas (uma multiplicidade que muda de princípio métrico em cada estágio
de seu desenvolvimento. Esse acento no múltiplo, contudo, não deve nos fazer
esquecer da unidade dessa evolução criadora. É um princípio de continuidade, ou
“duração”, em termos bergsonianos50.
A idéia lebniziana de que “a natureza não salta” é mais claramente
formulada no conceito de univocidade do eterno retorno que Deleuze desenvolve
na vigésima quinta série de Lógica do sentido e em Nietzsche e a filosofia através
da metáfora da unidade dos lances de dado (eventum tantum)51. Unidade deve ser
entendido num sentido muito particular, porque não é uma determinação
numérica52. Mais do que um princípio de unidade (o número 1), a univocidade é
um princípio de continuidade53. A doutrina da univocidade do lance de dados
afirma que o sistema está em duplo contínuo devir. O devir sempre retorna sem
interrupção porque é um único evento que retorna incessantemente como evento,
como algo (diferente) que acontece: “(a univocidade do ser) acontece como um
único evento para tudo aquilo que acontece às mais diversas coisas, Eventum
tantum para todos os eventos54”. No eterno retorno, apenas subsiste o
Acontecimento, o único Acontecimento, Eventum tantum para todos os contrários,
que se comunica consigo mesmo através de sua própria distância, ressoa através
de todas as disjunções”55. Não é que o ser repita o mesmo, mas o ser é sempre a
mesma repetição da diferença (síntese da diferença ou “síntese disjuntiva”).
O que o eterno retorno expressa é o novo significado de síntese
disjuntiva. O eterno retorno não é dito do mesmo (“ele destrói identidades”). Ao
contrário, é só o Mesmo que é dito daquilo que difere em si mesmo 56.
A unidade do sistema é uma unidade mais de acaso do que de
necessidade. A unidade é a do lance. Se não é nunca a mesma constelação que
resulta, é sempre o mesmo lance de dados, o mesmo acaso ou caos que é
afirmado:
Não são nunca vários lances de dados que, em função de seu
número, chegariam a reproduzir uma mesma combinação. Pelo contrário: é um só
lance de dados que, em função do número da combinação produzida, consegue se
reproduzir enquanto tal57.
É a unidade do caos (ou do acaso – o lance) que constitui a filosofia
de Deleuze como um sistema unificado. Isso também é expresso na estranha
noção de “universal a-fundamento” em Diferença e repetição. A introdução dessa
noção está longe de implicar uma negação da fundação ou do princípio de razão
suficiente, mas antes o contrário. É a fundação no processo de se desmantelar, de
se recriar, mas, ainda assim, é alguma fundação, uma fundação, caosmos (nihil
sine ratione est).
O sistema de Deleuze gira em torno da concepção da unidade e
continuidade do lance de dados, o operador final da univocidade do devir. Não
tem nada a ver com um novo transcendentalismo. Não se pode garantir qualquer
status especial ao virtual, como se fosse um reino transcendental das idéias. É
assim que Alain Badiou tende a ler Deleuze em O clamor do ser. Não vejo como
se poderia concordar58. O classicismo do sistema de Deleuze não se provém de
uma transcendência da ordem, mas de uma continuidade da ordem – se bem que
uma ordem muito estranha, porque é uma ordem do caos, caosmos como razão
unificada.
§9
Assunção final: o deleuzeanismo é uma defesa da razão moral
universal. A razão pela qual assumimos isso é, mais uma vez, a univocidade do
eterno retorno, mas não no mesmo sentido. O eterno retorno é tanto um princípio
de seleção ético quanto ontológico. Este é o sentido da dupla afirmação que
Deleuze discute em Nietzsche e a filosofia59. O lance de dados é o ser em devir,
mas deve ser também afirmado como ser em devir. Afirmando a afirmação,
mudamos do ser para a avaliação.
Deleuze faz uma manobra extraordinariamente não moderna quando
coloca o eterno retorno como único princípio dinâmico do devir e como único
objeto de toda afirmação ética verdadeira. Esse é ainda um paradoxo do
classicismo de Deleuze: ele é profundamente clássico por causa (e não apesar) de
seu nietzscheanismo: construir uma filosofia moral sobre a base de uma afirmação
vitalista dos ser, fazer da existência um valor e da afirmação da existência, uma
virtude. Uma filosofia da avaliação que propõe como critério supremo de seleção
ética a afirmação do ser como devir implica um retorno reflexivo ao atalho prékantiano do “é” ao “deve ser” tão característico dos metafísicos do período
clássico. Mas não há erro categorial: é uma ilusão nominalista acreditar que o “é”
pode ser separado do “deve”, como se o pensamento não afetasse o ser, como se a
natureza fosse completamente indiferente aos sujeitos-máquina que a atualizam.
O teste ético do eterno retorno é um princípio de seleção: ele
seleciona tudo, menos o mesmo porque a única coisa que retorna é a própria
seleção ou afirmação da diferença60. É o ser selecionando a si mesmo como
devir61. Mas o que significa exatamente dizer que o ser “seleciona” a si mesmo? É
tudo uma questão de qual sistema a própria natureza afirma como sendo o sue
próprio, e qual sistema da natureza nega a natureza, uma “razºao delirante” que
faz “a natureza delirar” consigo, parafraseando Espinosa. O sistema que a
natureza mesma seleciona é a própria definição de recta ratio. Não é uma questão
de se a razão passa no teste ou não, mas que razão passa no teste: ativa ou reativa,
reta ou distorcida. Uma virtualidade específica (um sistema da natureza ou
imagem do pensamento) é a expressão de uma razão, a sedimentação de um tipo
específico de racionalidade num sistema estendido de pensamento e ser. É uma
organização do pensamento de acordo com princípio específico (ou ratio)
designado pelo lance de dados. Esta ratio pode ser “avaliada” de acordo com
critérios imanentes como potência, alegria, afirmação (Espinosa), ou mais
precisamente, de acordo com o critério do quanto afirma o ser do devir
(Nietzsche). Há muitos tipos de racionalidade, mas elas não são moralmente
indiferentes. Algumas são melhores, mais “retas” do que outras. E a avaliação de
se uma razão é reta, ou se ela merece ser afirmada é o teste do eterno retorno.
Como princípio unívoco de seleção, o teste ético do eterno retorno
aspira à universalidade. A seleção do eterno retorno é um princípio de moralidade
que Deleuze não hesita em colocar como alternativa ao imperativo categórico
kantiano. Diferente do teste formal proposto por Kant, aspira à mesma
universalidade. É “uma nova formulação da síntese prática: o que você quiser,
você deve querer de tal maneira que você queira também o seu eterno retorno”62.
Este teste onto-ético é formalmente sempre o mesmo teste: “o único Mesmo que é
dito de tudo o que difere em si mesmo”63. È sempre e universalmente a mesma
questão que deve ser feita: posso afirmar isto? Posso sempre afirmá-lo? Em outras
palavras, o teste do lance de dados, ou da dupla afirmação, é um princípio
universal (mais não transcendental) de ética: razão moral universal.
§ 10
Esses são os componentes precisos que constituem o sistema de
Deleuze como um sistema metafísico clássico: define-se como a empresa de
defender a razão reta, razão natural, razão unificada, razão moral universal.
Essas não são determinações que normalmente acompanhariam um
comentário sobre um filósofo que é geralmente (com alguma justificação)
arquivado na caixa com a etiqueta “pós-estruturalismo” e às vezes (sem nenhuma
justificação) colocado mesmo naquela etiquetada “pós-modernismo”. Na mente
de qualquer filósofo ligado ao modernismo e à crítica da metafísica, o quádruplo
racionalismo de Deleuze seria mais do que suficiente para desqualificar seu
pensamento sem maiores esclarecimentos. E os modernistas estariam
perfeitamente certos em considerar o pensamento de Deleuze como
constitutivamente não moderno. Mas talvez devêssemos para de ser modernos e
nos tornar um pouco mais clássicos? Talvez seja este o significado da ambígua
afirmação de Foucault sobre o século se tornar “deleuzeano”64, ao menos se
seguirmos a interpretação do próprio Deleuze acerca da observação:
Eu não sei o que Foucault queria dizer, nunca perguntei a ele. Ele
tinha um senso de humor diabólico. Talvez ele quisesse dizer o seguinte: que eu
era o mais ingênuo dos filósofos da nossa geração. Eu não era o melhor, mas o
mais ingênuo, uma espécie de art brut, digamos, não o mais profundo, mas o mais
inocente (o que tinha menos sentimento de culpa de “fazer filosofia”65.
“Fazer filosofia” é o que está envolvido na quádrupla determinação
do racionalismo deleuzeano que propus acima. “Ingenuidade” é a confiança na
razão que esta atividade implica. O Art brut é a universalidade sistemática a que
ele aspira, esse ar decepcionante de abstração pura que emana de Diferença e
repetição.
Certamente, essas determinações são também, de outra perspectiva,
estritamente opostas ao pensamento de Deleuze. Em outros aspectos, al
pensamento é da dispersão mais que da organização (desenhando linhas de fuga
mais que planos de organização); da singularidade mais que da universalidade
(enquanto filosofia do acontecimento); da multiplicidade mais que da unidade
(como filosofia das multiplicidades qualitativas), etc. É oposto ao princípio mestre
de mesmidade que Leibniz evoca freqüentemente para ilustrar a harmonia de seu
próprio sistema, a afirmação que Arlequim fez depois de uma visita à lua: lá é
como aqui, como em todo lugar, partout comme ici66. Em Lógica do sentido,
Deleuze exclama: o Ser, o Uno e o Todo são mitos de uma falsa filosofia toda
impregnada de teologia67. Zaratustra é o adversário de Arlequim: de acordo com o
profeta de Nietzsche, não é nunca o mesmo aqui, lá ou em qualquer lugar. Ao
contrário, nada é o mesmo, exceto pelo fato de que tudo difere. Não apenas a lua é
diferente da Terra, mas a Terra até difere de si mesma. – nulle part comme ici,
même pas ici... Nada volta jamais. Este é mesmo um momento de multiplicidade.
Mas, pode ser decepcionante opor categoricamente Zaratustra ao
princípio de Arlequim. Porque o próprio retorno retorna e permanece o mesmo: é
o mesmo retorno da diferença que retorna aqui e lá, e em todo lugar, o eventum
tantum. A própria diferença é universal (afirmação) e deve ser universal
(afirmação da afirmação). A univocidade do eterno retorno traz o círculo
completo do sistema deleuzeano de volta a uma metafísica da unidade (e não do
Uno). É o princípio de continuidade ou duração que constitui a filosofia da
diferença de Deleuze como um sistema unificado da natureza e como um
universalismo moral.
1
A pesquisa para este artigo foi financiada pela Fundação Carlsberg. Agradeço a Hasana Sharp pela
correção da língua inglesa. Quaisquer descuidos restantes são de minha responsabilidade.
2
Cf. A. Badiou. Deleuze. La clameur de l’être. Paris 1997, p. 69. See also A. Villani, “Deleuze et
l’anomalie métaphysique”. Eric Alliez (ed.). Gilles Deleuze. Une vie philosophique. Paris 1998, p.
51.
3
G. Deleuze. ”Lettre-préface”. J.-C. Martin. Variations. Paris 1993, p. 7.
4
G. Deleuze and F. Guattari. Qu’est-ce que la philosophie ?. Paris 1991, p.14. Tradução brasileira
de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992,
p. 17.
5
Cf. Deleuze cit. in M. Joughin. “Translator’s Preface”. G. Deleuze. Expressionism in Philosophy:
Spinoza. New York 1992, p. 11. See also Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 49, p. 59.
6
G. Deleuze. Pourparlers. Paris 1990, p. 198.
7
G. Deleuze & F. Guattari. Mille plateaux. Paris 1980, p. 190-91. Tradução de Aurélio Guerra
Neto. Mil platôs, Rio de Janeiro, Ed. 34, pp. 14 e 15.
8
Cf. G. Deleuze. Le Pli. Leibniz et le baroque. Paris 1988. Para Foucault, ver G. Deleuze.
Foucault. Paris 1986, p. 101-30 ; p. 133-41. Embora Deleuze persiga dois alvos analíticos
diferentes nestes dois livros, é, na minha opinião, o mesmo conceito de dobra operando em ambos:
esssa idéia de um sujeito “vivendo nas dobras”.
9
G. Deleuze. Logique du sens. Paris 1969, p. 200-201.
10
Cf. M. Lærke. “Deleuzian ‘becomings’ and Leibnizian Transubstantiation”. Pli.Warwick Journal
of Philosophy 12 (2001), p. 104-117.
11
Cf. B. De Spinoza. Traité théologico-politique. Ed. Latim / Francês realizada por F. Akkerman,
P.-F. Moreau & J. Lagrée ? Paris 1999, chap. XV, p. 482-83.
12
Cf. ibid., Praefatio, p. 58-59.
13
Concerning Deleuze and Badiou, ver também o artigo extremamente útil de Alberto Toscano.
“To have done with the end of philosophy”. Pli. Warwick Journal of Philosophy 9 (2000), p. 237
sqq.
14
Cf. G. Deleuze. Nietzsche et la philosophie. Paris 1962, 19982, p. 1.
15
Ibid., p. 107.
16
Cf. Foucault, op. cit., p. 54 sqq.
17
Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 9.
18
Cf. M. Foucault: “Qu’est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”. Bulletin de la Société
française de philosophie, LXXXIV (1990), p. 35-53.
19
Cf. Foucault, op. cit.
20
21
Cf. Pourparlers, op. cit., p. 15.
Cf. A. Villani, op. cit , p. 44.
Cf. I. Kant. “Was heiszt sich in Denken orientieren”. Berlinische Monatsschrift (october 1786).
23
Cf. A. Badiou, op. cit., p. 67 sqq.
24
Cf. Foucault, op. cit., p. 94, p. 131-34; G. Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression, Paris
1968, p. 22.
25
Cf. G. Deleuze. Empirisme et subjectivité, Paris 1953, 19982, p. 15, p. 120; Qu’est-ce que la
philosophie?, op. cit., p. 49; G. Deleuze. Empiricism and Subjectivity, New York 1991, Prefácio à
edição inglesa, p. x.
26
Cf. M. Foucault. Les mots et les choses. Paris 1966, p. 92-228.
27
Cf. G. W. Leibniz. Discours de métaphysique, passim.
28
Cf. G. Deleuze and C. Parnet. Dialogues. Paris 1996, 69; G. Deleuze. ”Hume”. F. Chatelet ed.
Histoire de la philosophie. Les lumières, le XVIIIème siècle. Paris 1972. See also G. Deleuze.
Empirisme et subjectivité. Paris 1953, 19982, p. 120.
29
Cf. Différence et répétition, op. cit., p. 269.
30
Cf. G. Deleuze. ”A quoi reconnaît-on le structuralisme?”. F. Châtelet ed. Historie de la
philosophie: la philosophie au XXème siècle, Paris 1979, p. 307; Différence et répétition, op.cit., p.
269 sq.; Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 148..
31
Cf. A. Badiou, op.cit., p. 69-70.
32
Cf. Différence et répétition, op. cit., p. 134-35; Spinoza et le problème de l’expression, op. cit., p.
103-4; Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 50. A distinção entre os dois poderes é,
originalmente, de Espinosa. Ver Ethica II, prop. 7, corol., e a Letter XL to Jarig Jelles.
33
Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 41.
34
Cf. Dialogues, op. cit., p. 68-73.
35
Cf. Différence et répétition, op. cit., p. 96-108.
36
Cf. Spinoza et le problème de l’expression, op. cit., p. 99-113. See also G. Deleuze. Spinoza.
Philosophie pratique. Paris 1981, p. 92-98.
37
Para a distinção entre pensamento e intelecto em Espinosa, ver Ethica I, prop. 31.
38
Cf. Différence et répétition, op. cit., p. 284.
39
Cf. ibid., p. 107-8.
40
Cf. G. Deleuze. Le bergsonisme. Paris 1966, 19972, p. 45-70; G. Deleuze. Proust et les signes.
Paris 1964, 19982, p. 75-76, p. 183.
41
Cf. Différence et répétition, op. cit., p. 114, p. 274..
42
Cf. Le bergsonisme, op. cit., p. 51.
43
Cf. G. Deleuze. Cinema II: L’image temps. Paris 1985, p. 129-30.
44
Cf. Différence et répétition, op. cit., p. 28.
45
Cf. Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 29-31.
46
Cf. ibid., p. 29-30.
47
Cf. Différence et répétition, p. 270 sqq., p. 284-85, p. 358.
48
Cf. P. Klossowski. Nietzsche et le cercle vicieux, Paris 1969.
49
Cf. G. W. Leibniz. Essais de Théodicée, § 9; Nouveaux essais sur l’entendement humain, IV, xxi,
§ 4.
50
Le bergsonisme, op. cit., p. 32-36; G. Deleuze. ”Bergson. 1859-1941”. M. Merleau-Ponty (ed.).
Les philosophes celèbres. Paris 1956, p. 295.
51
Cf. Logique du sens, op. cit., p. 208-211.
52
O absoluto não contém números, mas apenas qualidades. Isto é obviamente uma teoria
bergsoniana. Mas, encontramos isso também em Espinosa (ver Eth, I, prop. 8).
53
Univocidade significa unidade mais no sentido de união do que no sentido de um caráter único
(em inglês, o autor jogou com uma oposição entre unity e oneness), porque a univocidade não é
uma determinação numérica cf. Spinoza et le problème de l’expression, op. cit., 21-32).. Esta é a
razão pela qual a controvérsia de Badiou segundo a qual a filosofia de Deleuze seria uma
“metafísica do Uno” (Badiou, op. cit., p. 20) deve ser considerada com muita precaução. Notamos o
22
comentário ambíguo da p. 39: “univocidade não significa primeiramente que o ser seja
numericamente uno, o que seria uma asserção vazia”. Esta asserção parece de fato implicar que
Badiou considera univocidade como uma determinação numérica, embora não seja seu significado
“primeiro”. A respeito desta questão, ver também meu artigo “The Voice and the Name. Spinoza in
the Badioudian critique of Deleuze”. Pli. Warwick Journal og Philosophy 8 (1999), p. 86-99, and
A. Toscano, op. cit.
54
Logique du sens, op.cit., p. 210.
55
Ibid., p. 207.
56
Ibid. p. 348-49.
57
Différence et répétition, op. cit., p. 29.
58
Cf. A. Badiou, op. cit., 68-72. Não vou elaborar mais longamente uma crítica da leitura de
Deleuze feita por Badiou que publiquei alhures (artigo citado acima). Badiou pode estar certo de se
irritar contra todos os “pos deleuzeanos” (como eu) que passam seu tempo dizendo a ele que ele
está lendo mal Deleuze (a respeito do texto não publicado de Badiou “Onze notes sur le petit
deleuzien”, ver A. Toscano, op. cit., p. 229). O objeto dessa explanação é simplesmente evitar que
minha leitura da filosofia de Deleuze como um sistema clássico seja confundida com a definição
dela por Badiou como um platonismo do virtual. Para mim, ela não o é.
59
Cf. Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 77-80, p. 217; Nietzsche, Paris 1965, 19972 , p. 37-38.
60
Cf. Différence et répétition, op. cit., p. 152, p. 381-82.
61
Cf. G. Deleuze. ”Le mystère d’Ariane selon Nietzsche”. Critique et clinique. Paris 1993, p. 13334.
62
Ibid., p. 77.
63
Logique du sens, op. cit., p. 348-49.
64
Cf. M. Foucault. ”Theatrum Philosophicum”. Dits et Ecrits 1970-75. Paris 1994, p. 75-99.
65
Pourparlers, op. cit., p. 122.
66
Cf. G. W. Leibniz. Nouveaux essais sur l’entendement humain, IV, xvi, § 12.
67
Cf. Logique du sens, op. cit., p. 323.
! Mogens Laerke. Nascido em 1971. De
nacionalidade dinamarquesa. Doutor (Docteur
ès Lettres) em História da Filosofia pela
Universidade de Paris -Sorbonne com uma tese
a respeito de Leibniz e Espinosa orientada por
P.-F. Moreau. Escreveu alguns artigos acerca
de Deleuze, G. W. Leibniz e B. de Espinosa.
Publicou recentemente um livro a respeito da
presença do cabalismo na filosofia do século
XVII. ("Kabbalismen i den europaeiske tanke",
Modtryk 2005). Atualmente, empregado como
pesquisador de pós-doutorado com bolsa da
Fundação Carlsberg. Projeto geral: teologia e
política no racionalismo do século XVII.
e-mail: [email protected]
www.alegrar.com.br
Download