Filosofia Kantiana do Direito e da Política Seminário Internacional 4 FICHA TÉCNICA TÍTULO: FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA COORDENAÇÃO: Leonel Ribeiro dos Santos e José Gomes André COLECÇÃO: ACTA 5 EDITOR: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa CAPA: A República e os seus atributos. Cartaz alemão da II Internacional (c. 1890) Impressão e acabamento Tipografia Abreu, Sousa & Braga, Lda – Braga Depósito Legal n.º 260499/07 ISBN 978-972-8531-52-2 Apoiado no âmbito do Programa de Financiamento Plurianual das Unidades de I&D da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que se enquadra no Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação (POCTI), designadamente no Projecto POCTI/FIL/44903/2002 – «KANT 2004: POSTERIDADE E ACTUALIDADE». Este Programa insere-se no III Quadro Comunitário de Apoio e é co-financiado pelo Governo Português e pela União Europeia, através do Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (Feder). COORDENAÇÃO Leonel Ribeiro dos Santos José Gomes André Filosofia Kantiana do Direito e da Política Seminário Internacional CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA 2007 ÍNDICE Apresentação .................................................................................................................................................................. 9 André Berten A Compatibilidade do Republicanismo Kantiano com o Modelo do Contrato Social ........................................................................................................................................... 13 Javier García Medina La Ciudadanía en Kant ........................................................................................ 43 Maximiliano Hernandéz Marcos Política y Antropología en Kant ........................................... 65 José Gomes André Kant e James Madison: da Tolerância à Liberdade de Consciência ....................................................................................................................................................... António Manuel Martins Propriedade e Trabalho em Kant 101 ....................................................... 129 José Luís Villacañas Berlanga Herman Heller y el Argumento Kantiano. La Evolución de un Pensador y su Relación con el Idealismo Alemán ........................... 141 Pedro M. S. Alves Moral e Política em Kant ......................................................................................... 173 António Braz Teixeira Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-Brasileiro ................................................................................................................................................ 183 Leonel Ribeiro dos Santos Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica à Arqueologia da Razão Prática ............................................................................................................... 205 Aylton Barbieri Durão O Postulado Jurídico da Razão Prática como Lei Permissiva ......................................................................................................................................................... 225 Autores ........................................................................................................................................................................ 243 8 Apresentação O presente volume colige as comunicações apresentadas no Seminário Internacional de Filosofia Kantiana do Direito e da Política, realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nos dia 6 e 7 de Abril de 2006, com a participação de especialistas em filosofia kantiana da Bélgica, do Brasil, da Espanha e de Portugal. Integrado no Projecto «Kant 2004: Posteridade e Actualidade», desenvolvido no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa no triénio compreendido entre 2004 e 2006, o Seminário propunha-se destacar um aspecto do pensamento kantiano que mereceu nos últimos decénios uma atenção crescente. A filosofia do direito fora considerada, desde os dias de Kant, como um aspecto muito secundário e menor da filosofia kantiana, e até os neo-kantianos, no final do século XIX e nos princípios do século XX, a tinham por um domínio do pensamento kantiano que não teria chegado verdadeiramente a ser penetrado pelo espírito da filosofia crítica. Foi sobretudo a partir da década de 70 do século XX que vários intérpretes descobriram e reabilitaram esse campo para os estudos kantianos, pondo em destaque não só a importância do pensamento jurídico e político de Kant como proposta de compreensão da natureza do direito e da política, mas também a sua capacidade de iluminar o próprio programa da filosofia transcendental e de dar a ver a sua peculiar natureza. Desde então, tornaram-se cada vez mais incontornáveis não só a doutrina kantiana do Direito, que o filósofo só explicitamente deu a conhecer numa das últimas obras que publicou, em 1797, como Primeira Parte da sua Metafísica dos Costumes, como também a sua filosofia política, que expôs em alguns pequenos ensaios ao longo da década de 90. O indesmentível facto de que só no ocaso da sua longa vida de pensador Kant tenha publicado obras de explícito pensamento político e jurídico não significa, porém, que só então, depois de ter concluído a crítica da metafísica especulativa e a identificação dos princípios transcendentais da razão no plano teorético, 10 Leonel Ribeiro dos Santos prático e estético, tenha o filósofo acordado para as realidades do mundo das instituições que a razão propõe aos humanos para que desenhem a arquitectura viável e saudável da sua vida histórica em comum. Bem pelo contrário, o sentido do político e do jurídico faz parte do código genético do pensar kantiano e a filosofia política e jurídica de Kant estava escrita inequivocamente já na própria forma em que se construíra e se expusera a filosofia transcendental, a saber, como a envolvente e pregnante alegoria de uma comunidade racional de cidadãos livres, como uma inequívoca instauração republicana da razão. O que nos últimos decénios levou a olhar com novo interesse para esse domínio do pensamento kantiano, antes desatendido, secundarizado e mesmo desprezado, não foi só a renovada exegese do kantismo que se desenvolveu a partir da segunda metade do século XX, mas também as interrogações e perspectivas abertas por alguns destacados pensadores do político, como Hannah Arendt, John Rawls ou Jürgen Habermas, os quais, trilhando o seu próprio caminho, se encontraram com as propostas do velho filósofo de Königsberg, se não sempre para aproveitar, transformando-as embora, as suas soluções, pelo menos sim para, no diálogo explícito com ele, encontrar a melhor equação dos problemas políticos e jurídicos contemporâneos. Kant tornou-se sem dúvida o filósofo do passado mais presente nos grandes debates actuais sobre filosofia política e jurídica. Esta recente descoberta e a reabilitação da filosofia kantiana do direito e da política e o reconhecimento do seu alcance filosófico e da sua flagrante actualidade consentem que se diga que, a existir um novo neokantismo do último quartel do século XX, tem ele como núcleo primário do seu interesse por Kant não tanto já os problemas epistemológicos e gnosiológicos, que os neokantianos de finais do século XIX e dos primeiros decénios do século XX tentavam resolver lendo sobretudo a Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura, e nem sequer os problemas metafísicos ou ontológicos, postos depois em realce pela hermenêutica heideggeriana, mas é um novo kantismo movido por um renovado interesse pelas questões ético-político-jurídicas, o que leva a ler os escritos de filosofia jurídica e política do velho filósofo de Königsberg num derradeiro esforço por encontrar neles, para além da crítica da Metafísica e de todos os desconstrucionismos contemporâneos de que esta tem sido alvo e objecto, uma hipótese viável de refundação de uma racionalidade prática que possa dar ainda um sentido, se não já um fundamento, para a vida histórica dos seres humanos. Se há, pois, um neokantismo na actualidade, ele é sobretudo um neokantismo da razão prática, entendida esta, porém, em todo o seu âmbito, como compreendendo em relação orgânica as dimensões da Moral, do Direito e da Política. O presente volume é uma expressiva amostra dessa reconhecida fecundidade e actualidade do pensamento jurídico e político de Kant e constitui ele próprio um relevante contributo para um debate ainda só começado. Apresentação 11 Registe-se aqui o nosso muito sincero e cordial agradecimento, em primeiro lugar, aos Autores dos ensaios, não só pela sua participação no Seminário como pelo esforço que puseram em enviar-nos oportunamente os seus textos; agradecimento extensivo também aos participantes no Seminário, que, tendo apresentado nele as suas muito estimulantes comunicações, não puderam depois, por alguma razão, enviá-las em versão textual a tempo de as podermos publicar. Infelizmente, as condições estabelecidas pela entidade financiadora do Projecto não nos permitiram dilatar o tempo de espera. Leonel Ribeiro dos Santos A Compatibilidade do Republicanismo Kantiano com o Modelo do Contrato Social André Berten UNIVERSIDADE CATÓLICA DE LOVAINA Uma diferença fundamental entre o republicanismo e o liberalismo político diz respeito à concepção da liberdade, e principalmente da liberdade negativa. Essa diferença implica também uma recusa, pelo republicanismo, do modelo do contrato social e de seu individualismo; e finalmente uma desconfiança para com a democracia direta. Neste artigo, pretendo examinar se as idéias de liberdade, de contrato social e de democracia em Kant se aproximam da definição do republicanismo ou ficam antes marcadas pelo liberalismo. Para fazer isso, apresentarei uma concepção do republicanismo contemporâneo inspirada nas obras de Pocock, Skinner e Pettit, isto é, a concepção inspirada no republicanismo romano, italiano e anglo-saxão (mas muito menos no republicanismo francês). Em segundo lugar, discutirei três passagens importantes da obra kantiana que apresentam como característica da “república” um regime constituído pela liberdade do homem, a igualdade dos sujeitos e a independência dos cidadãos. Em seguida, discutirei a posição kantiana a respeito do contrato social e da democracia. A minha tese é que Kant fica dividido entre uma concepção jurídica preferentemente liberal e uma defesa política de alguns valores republicanos. Noutras palavras, o republicanismo kantiano situa-se entre o modelo liberal (Hobbes-Rawls) e o modelo neo-republicano (Rousseau-Pettit). FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 13-41 14 André Berten I. Do republicanismo O mais importante, na perspectiva que pretendo defender aqui, é dar primeiro uma definição (convencional e seletiva) do republicanismo, tal qual é apresentado numa corrente importante de filosofia política contemporânea. O republicanismo de que se trata nasceu na Roma antiga (Cícero)1, desapareceu durante a Idade Média, e renasceu nas cidades italianas no fim da Idade Média e do Renascimento: primeiro em Dante 2 e Marsílio de Pádua 3, e depois em Maquiavel4. Fala-se então também de “humanismo cívico”5. Mais tarde, o republicanismo de Montesquieu e Rousseau desempenhou um papel importante na Revolução francesa, apesar de o destino desta ter tomado rumos pouco compatíveis com as orientações fundamentais do republicanismo clássico. Nas últimas décadas, se defendeu a tese de que foi uma idéia republicana que inspirou o radicalismo britânico do século XVIII e a Revolução americana. Durante muito tempo, o consenso era que foi o liberalismo, principalmente de John Locke, que teve o papel o mais importante. Mas a escola revisionista, iniciada por J. G. A. Pocock 6, defendeu a tese de que no começo do século XVIII as idéias republicanas – como as de Harrington7 – foram tão importantes quanto as liberais. Hoje em dia, o termo “republicanismo” se aplica a muitas coisas diferentes (se tornou um termo “na moda”). Os maiores teóricos, na perspectiva que analisarei aqui, são Philip Pettit8 e Cass Sunstein9. J. G. A. Pocock e Quentin —————————————— 1 Por vezes, se apela a Aristóteles, pelo menos a uma certa leitura de Aristóteles (cf. Sérgio Cardoso, «Que república? Notas sobre a tradição do “governo misto”», in Newton Bignotto (org.), Pensar a República, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002, pp. 27-48). 2 Dante Alighieri, De monarchia (1313-1318). 3 Marsílio de Pádua, O Defensor da Paz (1324). Tradução de José Antonio C. R. de Souza, Petrópolis, Vozes, 1997. 4 Nicolau Maquiavel, Il Principe, (1513); Discorsi sopra la Prima Deca di Tito Livio, 3 volumes, (1512-1517). 5 Embora houvesse muitas afinidades entre o republicanismo e o humanismo cívico, prefiro distingui-los, considerando o primeiro como uma concepção antes política e o segundo como uma concepção também ética. No entanto, a distinção aqui será sobretudo metodológica (cf. as referências a Rawls neste artigo; cf. também a cuidadosa apresentação histórica em Newton Bignotto, Origens do Republicanismo Moderno, Belo Horizonte, ed. da UFMG). 6 J. G. A. Pocock, The Machiavellian Moment: Florentine Political Theory and the Atlantic Republican Tradition, Princeton (NJ), Princeton University Press, 1975. 7 Cf. James Harrington, The Commonwealth of Oceana (1656) in The Political Works of James Harrington (ed. J. Pocock), Cambridge, Cambridge University Press, 1997. 8 Philip Pettit, Republicanism. A Theory of Freedom and Government, Oxford, Clarendon Press., 1997. 9 Cass R. Sunstein, After the Rights Revolution. Reconceiving the Regulatory State, Cambridge (Mass.) & London, Harvard University Press, 1990. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 15 Skinner10, republicanos convictos, são mais historiadores do republicanismo do que teóricos. Talvez possamos contar também como republicano Michael Sandel11, apesar de ele ser melhor qualificado de comunitarista12. “República” refere, geralmente, uma forma de governo baseada sobre a virtude cívica, a liberdade dos cidadãos e da pátria, lei não arbitrária, o Estado de direito (rule of law), um governo misto, com separação dos poderes, uma preferência para uma dispersão do poder (assim como no federalismo, a descentralização e os “checks and balances”), a independência do judiciário, e, finalmente, direitos fundamentais que protegem a dignidade do indivíduo e a capacidade deliberativa de todos os cidadãos. A república se opõe simetricamente ao despotismo e à democracia direta. Portanto, a república deve ser um regime “representativo” sem conceder à representação um valor absoluto13. O republicanismo suscitou várias críticas. John Rawls, por exemplo, define a sua posição não somente contra o utilitarismo, o libertarismo e o comunitarismo, mas também contra uma certa forma de “republicanismo”, que ele chama de “humanismo cívico”. Porém, Rawls, ao definir o “republicanismo clássico” como «uma posição que exige dos cidadãos de uma sociedade democrática, se quiserem preservar suas liberdades e direitos fundamentais, inclusive os direitos civis que garantem suas liberdades privadas, possuírem também, num grau suficiente, as “virtudes políticas” e estarem prontos a participar na vida pública»14, está ele mesmo muito próximo do republicanismo. Apesar de reconhecer as diferenças que podem ser importantes, entre o republicanismo clássico e a teoria da justiça como equidade, ele estima que «não existe uma oposição fundamental pois o republicanismo clássico não pressupõe uma doutrina abrangente, religiosa, filosófica ou moral»15. A crítica é, sim, contra o “humanismo cívico” que Rawls considera como uma forma de aristotelismo «segundo a qual o homem é um animal social e até político cuja natureza essencial se realiza por excelência numa sociedade democrá—————————————— 10 Quentin Skinner, The Foundations of Modern Political Thought, vol.I, The Renaissance, vol. 2, The Age of Reformation, Cambridge, New York, Cambridge University Press, 1978. 11 Michael J. Sandel, Democracy's Discontent. America in Search of a Public Philosophy, Cambridge (Mass.), The Belknap Press of Harvard University Press, 1996. 12 Claro, há também outros autores republicanos, como Maurizio Viroli, Republicanism, New York, Hill and Wang, 2002; Jean-Fabien Spitz, La liberté politique, Paris, PUF, 1995; Gordon S. Wood, The Radicalism of the American Revolution, 1991. 13 Sendo dada a imperfeição insuperável da representação, os republicanos privilegiam as formas de controle a posteriori (cf. Pettit, 1997, o.c., cap. VII). 14 John Rawls, Libéralisme politique, tr. C. Audard, Paris, PUF (Political Liberalism, New York, Columbia University Press, 1993), V, 5, p. 250. 15 O.c., p. 250-251. 16 André Berten tica onde existe uma ampla e intensa participação política.»16. Rawls recusa uma tal concepção porque a participação política é aí considerada como uma forma da «vida boa»17. Jürgen Habermas também tenta situar-se entre o modelo liberal e o modelo republicano, mas dá uma interpretação deste último que o assimila ao humanismo cívico. Assim como a de Rawls, a posição habermasiana fica muito próxima do republicanismo, apesar da argumentação ser de um tipo especulativo que aspira a uma forma de síntese entre liberalismo e republicanismo18. As formas contemporâneas de republicanismo compartilham várias características com o liberalismo, o que facilitará, sem dúvida, o julgamento sobre o “republicanismo liberal” de Kant. Pois, o liberalismo e o republicanismo «compartilham uma mesma fé na autoridade da lei e do Estado de direito.»19. Da liberdade negativa Há uma distinção importante que, muitas vezes, fica ocultada por uma outra. Geralmente, se faz uma distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva, atribuindo esta última ao republicanismo. Mas, na verdade, o republicanismo de que se trata aqui adota também uma concepção negativa da liberdade: a distinção importante situa-se entre duas formas de liberdade negativa. Para tornar isso claro, lembremos a diferença clássica entre o que Benjamin Constant chamou de liberdade dos Antigos e liberdade dos Modernos20. Contrapondo a liberdade dos indivíduos em relação ao Estado ou ao público à liberdade dos cidadãos no Estado, Constant afirma que a primeira forma de liberdade seria característica dos “modernos”, isto é das sociedades marcadas pela prevalência dos interesses individuais, permitindo que os indivíduos pudessem dedicar-se a procurar seus fins pessoais. A liberdade dos modernos é a ausência de ingerência da autoridade pública na conduta da vida dos indivíduos: liberdade de consciência, de —————————————— 16 O.c., p. 251. 17 Rawls atribui essa concepção a Rousseau, seguindo aqui Charles Taylor (Philosophical Papers II, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, pp. 334-335) e Hannah Arendt. Uma boa discussão do caráter social do indivíduo se encontra em Philip Pettit, The Common Mind: An Essay on Psychology, Society and Politics, New York, Oxford University Press, 1993. 18 Cf. entre outros, Jürgen Habermas, A inclusão do outro. Estudos de teoria política, tr. G. Sperber & P.A. Soethe, São Paulo, Edições Loyola, 2002; (tr. de Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main), pp. 269-285. 19 Philip Pettit, «Libéralisme. Libéralisme et républicanisme», in Monique Canto-Sperber (dir.), Dictionnaire d'éthique et de philosophie morale, Paris, PUF, 2004, vol. II, p. 1082. 20 «De la liberté des Anciens comparée à celle des Modernes» (1819) in Benjamin Constant, De la liberté chez les modernes: écrits politiques, Paris, Livre de Poche, 1980, pp. 493-515. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 17 escolher sua concepção da vida boa. Essa liberdade dos Modernos corresponde a «liberdade negativa» de Isaiah Berlin21. Segundo esse autor, o significado do conceito de liberdade negativa é «a liberdade de não ser impedido de agir», liberdade limitada pela liberdade igual do outro. Esse conceito recebeu uma formulação poderosa em Thomas Hobbes, que define o direito de natureza como «liberdade que cada um tem de usar como queira seu poder próprio» e a liberdade como «ausência de obstáculo exterior»22. A segunda forma de liberdade – a dos “antigos” (antigos gregos e romanos) – é aquela que diz respeito à possibilidade de participar, à igualdade com os outros cidadãos, à decisão política, à direção dos negócios públicos: é a liberdade cívica, dita também liberdade “positiva”. Os liberais, em geral, desde Hobbes, adotaram uma concepção “moderna” da liberdade: ser livre define-se “negativamente”, pela ausência de constrangimentos, e portanto pela não-interferência do Estado sobre o privado. O republicanismo como entendido aqui defende a liberdade negativa, mas tem uma concepção diferente da liberdade negativa – Pettit fala de liberdade como não-dominação. As citações seguintes deixam claro o significado dessa concepção da liberdade. Para o liberalismo, «A lei sendo uma forma de ingerência – no mínimo, ela tem um efeito coercitivo sobre os indivíduos –, ela é um exemplo do tipo mesmo de ato que é contrário à liberdade; se ela aumenta globalmente a liberdade, é porque ela produz um efeito compensador e positivo do fato de que ela proíbe a ingerência dos outros. A relação entre a lei e a liberdade é portanto meramente extrínseca.»23. Para o republicanismo, pelo contrário, «Segundo a doutrina republicana mais antiga, são as leis de um Estado aceitável, em particular, as leis de uma república, que criam a liberdade da qual desfrutam os cidadãos.»24. Por outras palavras, não há liberdade sem leis e civitas. Ou, como o afirmou claramente Pettit, a liberdade não é somente a ausência fatual de constrangimento, mas a “não-dominação”, isto é uma liberdade garantida e criada pela lei25. —————————————— 21 Isaiah Berlin, «Two concepts of liberty», in Four Essays on Liberty, Oxford, 1969, p. 122-134. 22 Thomas Hobbes (1651), Leviathan, Part II, cap. 21. 23 Pettit, 2004, a.c., p. 1082. 24 Ib. 25 Essa concepção fica conectada com uma forma original de “individualismo holista”, isto é a idéia que muitas características do indivíduo dependem, de maneira necessária, de suas relações com os outros ou as instituições (Cf. Pettit, 1993, o.c., cap. 3 e 4). 18 André Berten O primeiro que defendeu uma concepção radicalmente liberal da liberdade foi Hobbes que considerou que se podia ser livre sob qualquer regime. A liberdade começa no silêncio das leis. Ela é portanto uma questão de grau, uma questão empírica. É por isso que Hobbes pôde até defender um poder absoluto. Harrington foi o primeiro a lhe responder. Locke, embora liberal em alguns aspectos e muitas vezes considerado como tal, defende contudo uma concepção positiva – e republicana – da lei: «O que só nos impede de cair nos […] precipícios merece mal o nome de constrangimento; […] a finalidade da lei não é abolir a liberdade nem restringi-la, mas preservá-la e ampliá-la.»26. Liberalismo, republicanismo, democracia «No que toca ao processo político, liberais e republicanos são todos, de maneira geral, democratas, e ainda mais, pode-se supor que são adeptos da democracia universal.»27. No entanto, pode se distinguir dois perfis diferentes do processo político eletivo. Os liberais têm tendência para adotar uma concepção “preferencial” do voto: os eleitores são como consumidores e os homens políticos como vendedores ou fornecedores de bens. Os republicanos têm a tendência para adotar uma concepção do voto “segundo o juízo” (é, mais ou menos, um modelo deliberativo). «Enquanto o principal argumento em favor do modelo preferencial do voto é que ele fica mais bem situado para favorecer o fim utilitarista que constitui a satisfação global das preferências, para defender o modelo do voto baseado sobre o juízo, se utiliza dois tipos de argumentos diferentes. O primeiro argumento é que se a população participa nos debates e expressa suas opiniões sobre —————————————— 26 «…for law, in its true notion, is not so much the limitation as the direction of a free and intelligent agent to his proper interest, and prescribes no farther than is for the general good of those under that law: could they be happier without it, the law, as an useless thing, would of itself vanish; and that ill deserves the name of confinement which hedges us in only from bogs and precipices. So that, however it may be mistaken, the end of law is not to abolish or restrain, but to preserve and enlarge freedom: for in all the states of created beings capable of laws, where there is no law, there is no freedom: for liberty is, to be free from restraint and violence from others; which cannot be, where there is no law: but freedom is not, as we are told, a liberty for every man to do what he lists: (for who could be free, when every other man’s humour might domineer over him?) but a liberty to dispose, and order as he lists, his person, actions, possessions, and his whole property, within the allowance of those laws under which he is, and therein not to be subject to the arbitrary will of another, but freely follow his own.», (John Locke, Two Treatises of Government, Second Treatise, sect. 57). 27 Pettit, a.c., 1084. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 19 o que permite melhorar as políticas e sobre a questão de saber que conjunto de políticas é realmente o melhor, então haverá uma probabilidade maior de que o conjunto que é melhor, segundo os critérios mais bem defendidos, seja efetivamente escolhido. O outro argumento é que se a população participa nessas atividades, isso aumentará a qualidade da participação política e da comunidade no seio da sociedade; isto sensibilizará os cidadãos para um assunto de interesse público, de uma maneira intrínseca e instrumentalmente benéfica.»28. Da mesma maneira, Pettit desenha duas figuras de homens políticos diferentes. O liberal será antes um “negociador” (ele representa as preferências dos eleitores, preferências que não discute mas tenta defender) enquanto o republicano será antes um “deliberador”.29 Por outro lado, a separação dos poderes e a sua dispersão devem impedir uma pessoa, um grupo ou até a maioria de impor sua vontade a toda a sociedade. Os republicanos pensam que é importante premunir-se contra o exercício arbitrário do poder «inclusive contra o arbitrário do poder exercido pelo povo»30. É por isso que a “separação dos poderes” não pode ser absoluta, pois isto significaria que o poder legislativo (o poder institucionalizado da maioria) seria absoluto. Isto também impediria o governo (o executivo) de tomar decisões (as leis não podem prever tudo) e o judiciário de decidir nos casos difíceis. O constitucionalismo de Pettit implica também que «devemos tentar garantir que as leis investidas dessa supremacia não estarão demasiado acessíveis às mudanças queridas pela maioria»31. «Os argumentos republicanos que pleiteiam em favor de uma proteção contra a vontade maioritária, pelo menos para algumas leis, são muito simples. A maioria se forma facilmente – ela tem facilmente tendência em transformar-se em agente real e não mais somente virtual; por conseguinte, se a vontade da —————————————— 28 Pettit, a.c., 1085. 29 Cf. Pettit, a.c., 1086. Pode se comparar essa caracterização do republicanismo por Pettit com aquela dos modelos de democracia em Habermas (Jürgen Habermas, A inclusão do outro. Estudos de teoria política, o.c.). É interessante também, nessa perspectiva, ver as críticas aos modelos de democracia deliberativa em Philip Pettit, «Deliberative Democracy and the Discursive Dilemma», Philosophical Issues (Supp. Nous), 2001, ol 11. 30 Philip Pettit, Republicanism, o.c., cap. VI. 31 Ib. 20 André Berten maioria não for contida, terá tendência a exercer um poder mais ou menos arbitrário.»32. «A idéia de instituir proteções contra a maioria exige uma concepção da lei na qual a lei em sentido próprio – e eu falo aqui da lei propriamente dita, e não daquilo que foi querido pelo legislativo – se reconhece a um critério que não se reduz ao fato que essa lei foi votada pela maioria. Os Republicanos pensam que esse critério é constituído pelo ideal da liberdade como não dominação»33. Essa última citação mostra claramente que os critérios de um regime republicano não podem ser somente empíricos e formais ou procedimentais. Minha tese é que Kant “balança” entre uma concepção liberal – principalmente na sua definição do direito – e uma concepção republicana, principalmente na crítica do despotismo. II. O republicanismo de Kant «… a constituição republicana [die republikanische Verfassung], a única que seja plenamente conforme aos direitos do homem, é também a mais difícil de estabelecer e de conservar» (Zum ewigen Frieden, primeiro suplemento 1, Ak. VIII, 366) a) Três textos Eu vou tomar como definição kantiana do “republicanismo” as três formulações diferentes onde Kant expõe os “princípios” fundamentais de uma constituição republicana: - Um texto de 1793, Über den Gemeinspruch, (UdG) Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis (Ak. VIII, pp. 273-313). (Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática, In A paz perpétua e outros opúsculos, pp. 57-102. Tradução de A. Mourão, Lisboa, Edições 70, 1988). - Um texto de 1795, Zum ewigen Frieden (ZeF) («Primeiro artigo definitivo» Zum ewigen Frieden: Ein philosophischer Entwurf (Ak. VIII, 314-386). (A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1988) —————————————— 32 Ib. 33 Ib. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 21 - Um texto de 1797, Rechtslehre (RL) (§ 46) Metaphysik der Sitten, Erster Teil: Anfangsgründe der Rechtslehre. (Ak. VI, 203-493). (A metafísica dos costumes, trad. e notas de E. Bini, São Paulo, Edipro, 2003, pp. 49-216) Nesses textos, os três princípios fundamentais são a liberdade, a igualdade e a independência (em ZeF, a dependência). Em ZeF, Kant diz explicitamente que esses princípios determinam uma constituição [Verfassung ou Konstitution] como “republicana” [republikanische]. Em UdG, Kant fala do estado civil considerado como estado jurídico [rechtlicher] e indica que um cidadão deve ser considerado como membro de um “gemeine Wesen”, o que pode ser traduzido por “república”34. Em RL, Kant utiliza de novo a expressão “gemeine Wesen”. Além disso, ele dá uma definição do Estado onde essa expressão remete para a expressão latina res publica: «Esse estado dos indivíduos no seio de um povo na sua relação recíproca é chamado de estado civil (status civilis), e o conjunto destes em relação aos seus próprios membros, é chamado de Estado (civitas), o qual, devido a sua forma, enquanto ele está ligado pelo interesse comum de todos de permanecer no estado jurídico, é chamado de república [das gemeine Wesen] (res publica latius sic dicta).» (Ak. VI, 311) Essa expressão, gemeine Wesen, é interessante também porque ela evoca a idéia de “bem comum”, idéia central na perspectiva neo-republicana, e pode ser associada com “res publica”, coisa pública, corpo comum, comunidade, comunidade ética35. —————————————— 34 Em UdG, Kant não utiliza o termo “republikanisch” ou “Republikanism” (como em ZeF), mas sempre “gemeine Wesen”. Contudo, a descrição de gemeine Wesen corresponde à de “republikanische Verfassung” em ZeF. (O uso de “Republik” é mais raro e visa antes as repúblicas existentes – como a República francesa). Na Crítica da faculdade do juízo, § 60, Kant escreve: «A tendência ativa a uma sociabilidade legal constitui um povo como corpo comum [gemeine Wesen] duradouro». Na Carta a Jung-Stilling, março 1789, Ak. XI, p. 10, Kant escreve: «A legislação civil tem como princípio supremo essencial realizar o direito natural do homem que, no status naturalis (antes da associação civil) é uma mera Idéia, isto é submeter esse direito a prescrições públicas gerais, acompanhadas da coerção adequada, segundo as quais pode ser garantido ou proporcionado a cada um seu direito […] Salus rei publicae (a conservação da simples forma legal de uma sociedade civil) suprema lex est.». 35 Kant utiliza o termo nesse sentido em A religião dentro dos limites da simples razão: Begriff eines «ethischen gemeinen Wesens»; «Begriff einer in den Prinzipien Freiheit und Gleichheit gegründeten Gesellschaft». Cf. Samuel Klar, Moral und Politik bei Kant. Eine Untersuchung zu Kants praktischer und politischer Philosophie im Ausgang der «Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft», Würzburg, Königshausen & Neumann, 2007, cf. cap. 6.2: «Das “ethische gemeine Wesen” als das “höchste sittliche Gut”: das gesellschaftliche supremum», pp. 192 sq. 22 André Berten Em UdG, os princípios a priori são aqueles do estado civil, isto é de todo estado jurídico. Em RL, se trata da sociedade civil ou do Estado, e seus membros são considerados como legisladores [«zur Gesetzgebung vereinigten Glieder»]. Eis os textos: A. Über den Gemeinspruch (1793) «Assim, o estado civil [bürgerliche Zustand], considerado simplesmente como estado jurídico [rechtlicher], está fundado sobre os princípios a priori seguintes: 1. A liberdade de cada membro da sociedade como homem. 2. A igualdade deste com todo outro, como súdito [Unterthan]. 3. A independência de todo membro de uma república [gemeinen Wesens], como cidadão [Bürgers].» (Ak. VIII, 290) B. Zum ewigen Frieden (1795) «Erster Definitivartikel zum ewigen Frieden» «Die bürgerliche Verfassung in jedem Staat soll republikanisch sein» «A constituição que se funda [gestiftete Verfassung,] primeiro sobre o princípio [Prinzipien] da liberdade dos membros de uma sociedade (como homens), em segundo lugar sobre o princípio [Grundsätzen] da dependência de todos (como súditos) de uma legislação única, e em terceiro lugar sobre a lei da igualdade desses (como cidadãos), essa constituição é a única que procede da idéia do contrato originário e sobre a qual deve se fundamentar toda legislação jurídica de um povo. Uma tal constituição é republicana [republikanische]. Ela é portanto, em si, no que diz respeito ao direito, aquela que está na base originariamente de toda a espécie de constituição [Konstitution] civil.» (Ak. VIII, 349-350) C. Rechtslehre, § 46 (1797) «Os membros dessa sociedade [Gesellschaft] (societas civilis), que se acham unidos para legislar, ou seja, os membros de um Estado, são chamados de cidadãos [Staatsbürgers] (cives), e os atributos jurídicos inseparáveis de sua A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 23 essência (enquanto tal) são a liberdade legal de obedecer unicamente à lei à qual deu seu assentimento; a igualdade civil, consistindo em não reconhecer em relação a si mesmo no povo outro superior [Oberen] que aquele que tem o mesmo poder moral de obrigar juridicamente que o outro pode obrigá-lo e, em terceiro lugar a independência civil, que consiste em não dever sua existência e preservação ao arbítrio [Willkür] de um outro indivíduo no povo, mas aos seus próprios direitos e forças como membro da república [gemeinen Wesens], e por conseguinte a personalidade civil [bürgerliche Persönlichkeit], que consiste em não ser representado por nenhum outro nos casos de direito.» (Ak. VI, 314) b) O status dos direitos Os princípios ou direitos fundamentais são princípios racionais, inerentes à humanidade e imprescritíveis. Eles pertencem a um estado jurídico idealizado, suprasensível, mas devem definir a positividade do direito efetivo. Em UdG, Kant escreve: «Esses princípios são menos leis que dá o Estado já instituído [errichtete] que (leis) segundo as quais só a instituição de um Estado [Staatserrichtung] é possível, conforme aos puros princípios racionais [Vernunftprincipien] do direito humano externo em geral.» (Ak. VIII, 290) Em ZeF, comentando os três princípios fundamentais, Kant acrescenta: «A validade desses direitos inatos, necessariamente inerentes à humanidade e imprescritíveis, se acha confirmada e enaltecida pelo princípio das relações jurídicas do próprio homem a um mundo mais alto (se ele concebe um tal), onde o homem percebe-se segundo os mesmos princípios, enquanto cidadão de um mundo suprasensível.» (Ak. VIII, nota, 350) Em RL, Kant diz que «o princípio formal da possibilidade» do estado jurídico [der rechtliche Zustand] deve ser «considerado segundo a Idéia de uma vontade legislando universalmente» [§ 41, Ak. VI, 305-306]. Esse status dos direitos básicos pode ser considerado como um quadro regulador. O direito ideal deveria ser deduzido dos princípios da razão mas o direito real deve ser avaliado ou julgado – e não pode ser deduzido – a partir da Idéia reguladora do direito ou da “república”, como Kant já dizia na Crítica da razão pura36: —————————————— 36 Kant critica aqueles que consideram que a Idéia de República platônica corresponde a um puro sonho irrealizável e, portanto, deveria ser afastada. «Uma constituição que procura a maior liberdade humana segundo leis que permitem que a liberdade de cada um possa coexistir com a dos demais (…) é em 24 André Berten «Um Estado (civitas) é a reunião de uma multiplicidade de homens sob leis jurídicas. Na medida em que estas são, como leis a priori necessárias, isto é procedem por elas mesmas de conceitos do direito exterior em geral (não são estatutárias), sua forma é a forma de um Estado em geral, isto é do Estado na sua idéia, como ele deve [soll] ser segundo puros princípios de direito, idéia que serve de linha diretriz [Richtschnur] (norma) para toda reunião efetiva em vista de constituir uma república [gemeine Wesen] (portanto de maneira interior).» (RL, § 45, Ak. VI, 313) Isto significa claramente que, idealmente, na forma (isto é, formalmente), o Estado deve ser deduzido de leis a priori, necessárias, mas que as leis concretas (estatutárias) devem ser avaliadas segundo a sua maior ou menor aproximação a essa “linha diretriz”. Colocando a questão da república no pensamento kantiano, devemos nos lembrar dessa caraterística “reguladora” do modelo político, principalmente quando, ao analisar as limitações impostas por Kant à liberdade, igualdade e independência, encontraremos contradições entre esses direitos fundamentais e absolutos e as posições concretas no contexto histórico e político do século XVIII. Agora, vamos ver como Kant define os termos de liberdade, igualdade e independência nessa constituição republicana. c) A questão da liberdade A questão da liberdade é central para entender a definição do republicanismo em geral, e em Kant em particular. Pois, na concepção do republicanismo que adotei na primeira parte, a defesa de uma liberdade negativa específica é o que permite distinguir o republicanismo tanto do liberalismo como das formas mais fortes de humanismo cívico ou mesmo do comunitarismo. Como o notou Norberto Bobbio37, nos textos políticos e jurídicos de Kant, existem duas noções de liberdade que não são bem distintas. Bobbio toma como referência os conceitos clássicos, desde Constant e Berlin, de liberdade “negativa”, de tipo liberal, e liberdade “positiva”, de tipo republicano ou rousseauista – isto é, —————————————— todo caso pelo menos uma Idéia necessária que se deve tomar como fundamento, não somente no bosquejo dos primeiros contornos de uma constituição política, mas também para todas as leis…». Embora uma constituição perfeita nunca pudesse ser realizada, «a Idéia fica contudo totalmente justa que estabelece esse máximo como o modelo necessário para aproximar sempre mais, em referência a este, a constituição jurídica dos homens da maior perfeição possível.» (Crítica da razão pura, Dialética transcendental, Ak. III, 247-248). 37 Norberto Bobbio, «Deux notions de la liberté dans la pensée politique de Kant», in Annales de philosophie politique, 4, La philosophie politique de Kant, Paris, PUF, 1962, pp. 105-118. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 25 tenta situar Kant na oposição clássica do liberalismo e do republicanismo38. Essa ambiguidade vem, a meu ver, do fato de Kant usar um modelo liberal na sua teoria do direito e um modelo quasi republicano na sua teoria política. A liberdade significa, por um lado, a faculdade de cumprir ou não cumprir certas ações quando não estamos impedidos pelos outros, ou pela sociedade ou pelo Estado – é o sentido liberal39; por outro lado, significa o poder de obedecer apenas às regras que nós impusemos a nos mesmos: é o sentido moral que, na sua extensão, corresponde à autonomia política ou democrática40. Ora, essa oposição dificilmente dá conta do uso kantiano do conceito de liberdade (aliás dos dois conceitos de “Freiheit” e “Willkür”), principalmente do conceito moral de liberdade. Não podendo discutir aqui a complexidade desse uso através da obra de Kant, ficarei no contexto delimitado do uso dos conceitos na perspectiva de sua inserção na filosofia política, mais precisamente, do uso do conceito de liberdade como um dos princípios – com a igualdade e a independência – da república, isto é do regime político privilegiado por Kant. A liberdade “negativa”, entendida pelos liberais – segundo a leitura de Berlin – significa a liberdade de fazer qualquer coisa sem ser impedido pelos outros. No sentido kantiano, se trata mais de Willkur que de Freiheit. A liberdade que Kant defende como primeiro princípio parece, em primeira vista, a Freiheit. - A liberdade no quadro do direito Kant adota a perspectiva moderna do direito entendido como direito subjetivo. Por conseguinte, a conexão do direito e da liberdade subjetiva não é somente estrita, ela é constitutiva da definição mesma do direito: «o conceito de um direito externo em geral é derivado inteiramente do conceito de liberdade [Freiheit] nas relações mútuas externas dos seres humanos» (UdG, Ak. VIII, 289). – «O direito é a limitação da liberdade de cada um sob a condição de seu acordo com a liberdade de todo outro, enquanto essa [limitação] é possível nos termos de um lei geral.» (ib. 289-290) – «O direito é portanto o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser unido com o arbítrio de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade.» (RL, Einleitung, § B «O que é o direito?» Ak.VI, 229) – «Toda ação é justa [recht] que, de acordo com as máximas, pode fazer coexistir a liberdade do —————————————— 38 Mas sem levar em conta a possibilidade de uma definição nova do republicanismo. 39 «A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem» (Montesquieu, Esprit des Lois, XI, 3). 40 «A obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade» (Rousseau, Contrat social, L. I, ch. VIII). 26 André Berten arbítrio [die Freiheit der Willkür] de cada um com a liberdade de todos os demais segundo uma lei universal.» (id. § C Princípio universal do direito, Ak. VI, 230)41. Devemos portanto definir o tipo de liberdade que está em jogo nessas definições. Na definição do direito, em RL, Kant insiste sobre o fato que o conceito de liberdade em relação com o direito é um conceito meramente formal. O conceito de direito, em primeiro lugar, remete somente para uma relação exterior (enquanto as ações como facta podem ter uma influência umas sobre as outras). Em segundo lugar, ele diz respeito às relações entre o arbítrio [Willkür] de um e do outro. Em terceiro lugar, nessa relação recíproca entre arbítrios, não intervém a matéria do arbítrio, isto é o fim que todo o indivíduo pode conceber para o objeto que ele quer, mas somente a forma da relação entre os arbítrios considerados simplesmente como livres, para que a ação de um dos dois se deixe conciliar com o arbítrio do outro segundo uma lei universal (cf. Ak. VI, 230). Essa formalidade se justifica em função de um direito “natural”: o direito de cada um escolher livremente seus fins empíricos. O direito não se pode determinar a partir de princípios “empíricos”, mas deve ser baseado sobre um «critério universal ao qual se pode reconhecer em geral o justo e o injusto (justum et injustum)» e «a fonte desses julgamentos» deve ser procurada «na simples razão» (Ak. VI, 230). Há um aspecto negativo: o direito «não tem nada a ver com o fim que todos os homens têm por natureza (isto é o objectivo de realizar sua felicidade) ou com os meios reconhecidos para alcançar esse fim. E portanto esse fim não deve de maneira nenhuma interferir como uma determinação das leis que governam o direito externo» (UdG, AK. VIII, 289). E isso porque «Os homens têm concepções tão diferentes do fim empírico da felicidade e em que ela consiste, que, em relação à felicidade, eles não podem ser levados sob um princípio comum [gemeinschaftliches Prinzip] nem portanto sob uma lei externa harmonizando a liberdade de cada um.» (290). Mas, positivamente, essa formalidade se funda sobre o direito de cada um de procurar livremente seus fins empíricos, o que é um princípio fundamental da modernidade liberal, mas faz parte também das reivindicações republicanas: «ninguém pode compelir-me em ser feliz à maneira dele (aquela da qual ele concebe o bem-estar dos outros homens), mas é permitido a cada um procurar a felicidade na via que lhe parece, a ele, ser a boa» (290). —————————————— 41 Kant afirma também que o princípio de direito é «um postulado que não é mais passível de qualquer prova» (Ak. VI, 231), que é um «axioma de direito» (Ak. VI, 250). G. A. de Almeida cita também o artigo sobre «O presumido direito de mentir por amor aos homens», onde Kant diz que uma metafísica do direito requer «um axioma, isto é uma proposição apodicticamente certa, que resulta imediatamente da definição do direito externo (concordância da liberdade de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal» (Ak. VIII, 349, in Guido Antônio de Almeida, «Sobre o princípio e a lei universal do direito em Kant», Kriterion (Universidade Federal de Minas Gerais), n° 114, julho-dezembro 2006, p. 211). A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 27 - A liberdade no sentido político Encontramos aqui portanto uma definição não da liberdade moral – a liberdade exigida «para a constituição» – mas da liberdade de escolha (a autorização de procurar, cada um à sua maneira, sua felicidade), isto é, liberdade negativa (limitada pela mesma liberdade para os outros), definição que, sem outras precisões, é tanto liberal quanto republicana. A intenção aqui não é estritamente jurídica, pois se o que é importante, é a interdição de impor a outrem sua própria concepção da vida boa, resulta daí a crítica política dos governos “paternalistas” e “despóticos”. «Um governo [Regierung] que fosse fundado sobre o princípio da benevolência para com o povo, como aquele do pai para com os seus filhos, é um governo paterno [väterliche] (imperium paternale), onde, por conseguinte, os súditos, assim como crianças menores [unmündige] incapazes de decidir o que lhes é verdadeiramente útil ou danoso, são obrigados em comportar-se de maneira unicamente passiva e em esperar unicamente do juízo do chefe de Estado a maneira como eles devem ser felizes, e unicamente de sua vontade que ele o queira, – um tal governo, digo eu, é o maior despotismo que se possa conceber (constituição que suprime toda liberdade dos súditos que, a partir de então, já não possuem mais nenhum direito).» (Ak. VIII, 290-291) Conforme a idéia de «saída da menoridade» que Kant tinha desenvolvido em 1784 em Was ist Aufklärung?, ser maior significa decidir livremente, por si mesmo, o que é útil ou danoso, o que torna feliz ou não. Kant acrescenta que «não é um governo paternal [väterlich], mas um governo patriótico [vaterländlisch] (…) aquele que é o único concebível para homens capazes de direitos (…)» (291). Esse governo patriótico é o governo republicano, «Pois, a maneira de pensar é patriótica quando cada indivíduo no Estado (sem excetuar o Chefe) considera a república [gemeine Wesen] como o seio maternal, ou ainda o país como o solo paternal do qual ele é procedente e onde ele próprio nasceu, e que ele tem de deixar como um penhor precioso com o único fim de preservar os direitos [do país, do solo] pelo meio das leis da vontade comum sem considerar-se como autorizado a dispor desses direitos segundo o seu arbítrio incondicionado. – Esse direito da liberdade lhe pertence a título de membro da república [gemeinen Wesens] enquanto homem, isto é enquanto ser que de maneira geral é capaz de direitos» (Ak. VIII, 291). O que conforta essa interpretação da liberdade jurídica como sendo já política, e não unicamente negativa é o fato de Kant ligar a definição da liberdade à 28 André Berten obediência à lei desde que essa lei possa ser aceite como racional e justa42. Pois, em ZeF, escreve: «Não se pode definir, como de costume, a liberdade jurídica [rechtliche Freiheit] (por conseguinte, exterior): “a faculdade de fazer tudo o que queira, desde que não se lese o direito de outrem”. […] É muito melhor definir minha liberdade exterior (jurídica): a faculdade de não obedecer a outras leis exteriores senão aquelas às quais eu pude dar meu assentimento.» (ZeF, Primeiro artigo definitivo, nota, Ak, VIII, 350) Aparece aqui a oposição entre as duas concepções da liberdade. Kant fala da liberdade jurídica, mas, na verdade, introduz uma concepção política: a concepção liberal e negativa se une a uma concepção democrática – que não é idêntica à autonomia moral (não obedecer a outras leis senão aquelas que eu me dou a mim mesmo enquanto ser razoável, ou às leis da razão), pois a lei jurídica não é a lei moral. Em UdG, Kant defendia a liberdade de escolher a sua concepção da felicidade. Em ZeF e em RL, Kant defende uma concepção mais próxima da liberdade democrática. De uma certa maneira, há uma justificação “crítica” para essa idéia da liberdade como ligada à autonomia política: Kant introduz uma hierarquia entre a liberdade como característica da razão humana e o livre arbítrio que se manifesta empiricamente. A primeira (Freiheit) não pode ser conhecida teoricamente: «O conceito de liberdade é um conceito racional puro e que por isto mesmo é transcendente para a filosofia teórica, ou seja, é um conceito tal que nenhum exemplo que a ele corresponda pode ser dado em qualquer experiência possível, e de cujo objeto não podemos obter qualquer conhecimento teórico: o conceito de liberdade não pode ter validade como princípio constitutivo da razão especulativa, mas unicamente como princípio regulador desta e, em verdade meramente negativo.» (RL, Ak. VI, 221) Embora o direito esteja ligado só ao aspecto exterior da liberdade, organizando a compatibilidade dos livres arbítrios, a obrigatoriedade do direito se funda sobre um imperativo categórico: a obrigação de sair do estado de natureza, a obrigação de entrar no estado civil, a obrigação de obedecer às leis positivas. Essa hierarquia tem como consequência que «não é possível definir a liberdade do arbítrio [Freiheit der Willkür] – como alguns tentaram defini-la –, como a faculdade [Vermögen] de realizar uma escolha [Wahl] a favor ou contra a lei (libertas indiffe—————————————— 42 É verdade também que Kant não confia muito no juízo empírico dos “súditos” e, condenando todo direito de resistência, concede à lei positiva existente uma validade a priori. Isto provém do fato que um “direito” de resistência seria uma contradição in terminis, e de que é sempre melhor ter um direito, mesmo imperfeito e injusto, que nenhum direito. É uma questão controversa nos comentadores de Kant. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 29 rentiae)», mesmo que o arbítrio forneça exemplos disso na experiência. Kant reconhece que «não podemos apresentar teoricamente a liberdade e mostrar como ela pode exercer constrangimento sobre o arbítrio sensível; somos incapazes, portanto, de apresentar a liberdade como uma propriedade positiva.». E devemos aceitar a imperfeição do nosso conhecimento das relações complexas entre a liberdade moral e a fraqueza de nosso arbítrio: «É igualmente perceptível para nós que a liberdade jamais pode consistir em que um sujeito razoável seja capaz de escolher em oposição à sua razão (legisladora), ainda que a experiência prove com suficiente freqüência que isso acontece (embora que não compreendamos como é isso possível). […] Somente a liberdade em relação à legislação interna da razão é realmente uma capacidade [Vermögen]; a possibilidade de dela se desviar é uma incapacidade. Como pode a primeira ser definida pela última? Seria uma definição que acrescentaria ao conceito prático o exercício dele, como o ensina a experiência, uma definição híbrida (definitio hybrida) que apresenta o conceito sob uma falsa luz.» (RL, Einleitung in die Metaphysik der Sitten, IV: Vorbegriffe zur Metaphysik der Sitten; Ak. VI, 226-227) A liberdade legal faz parte dos atributos jurídicos do cidadão, inseparáveis de sua essência [Wesen]: «a liberdade legal [gezetsliche], é o atributo de obedecer unicamente a lei à qual ele deu seu assentimento». É por isso que o contexto empírico que limita drasticamente o exercício da liberdade não pode ser uma objeção a essa característica essencial do homem. Depois de ter discutido a igualdade e a independência jurídicas, Kant constata os fatos de desigualdade e de dependência e faz o seguinte comentário: «Esta dependência [Abhängigkeit] da vontade de outros e esta desigualdade não se opõem, de modo algum, à sua liberdade [Freiheit] e igualdade [Gleichheit] na qualidade de homens que, juntos, constituem um povo» (RL, Ak. VI, 315). Podemos ficar profundamente insatisfeitos da maneira kantiana de resolver os problemas políticos da liberdade. No meu modo de ver, Kant fica preso da rígida arquitetônica crítica, da partição absoluta entre razão teórica e razão prática e de sua convicção que o direito sendo a melhor aproximação concreta da moral acaba por ser também absolutamente obrigatório, e simultaneamente, que as injustiças manifestam de uma certa maneira o “mal radical” e devem por conseguinte ser 30 André Berten superadas. Para conciliar esses dois pontos de vistas, só resta uma filosofia da história cujo estatuto deve depender do juízo reflexionante43. d) Igualdade Não discutirei detalhadamente a questão da igualdade. Kant defende uma concepção formal da igualdade jurídica, mas admite formas importantes de desigualdade, ligadas aos preconceitos de seu tempo. Por outro lado, Kant tem uma verdadeira dificuldade em pensar a democracia como o regime que seria o mais igualitário – entre outras razões, como veremos, porque ele não pode criticar de maneira explícita o poder monárquico. Vemos em primeiro lugar o aspecto formal e jurídico da igualdade. Da mesma maneira que o direito tem uma conexão interna e necessária com a liberdade, a igualdade também faz parte da definição do direito – mas aqui a relação insiste sobre o aspecto coercitivo, exterior do direito. «… a igualdade exterior (jurídica) num Estado é essa relação dos cidadãos segundo a qual ninguém pode obrigar juridicamente os outros a algo sem submeter-se à lei que consiste em poder ser obrigado igualmente por este, e da mesma maneira.» (ZeF, Ak VIII, 349) «a igualdade civil, consistindo em não reconhecer em relação a si mesmo no povo outro superior [Oberen] que aquele que tem o mesmo poder [Vermögen] moral de obrigar juridicamente que o outro pode obrigá-lo» (RL, § 46, Ak. VI, 314) No comentário do princípio de igualdade, Kant afirma que a igualdade jurídica é compatível com as maiores desigualdades, não somente econômicas (fortuna) e de condições (talentos, superioridade física ou intelectual), mas de estatuto (dono e empregado, marido e mulher…). Essas desigualdades e diferenças devem, no entanto, ser regidas pela lei, pois «nenhum pode coagir o outro senão em virtude da lei pública…». E Kant introduz uma crítica que poderia questionar indiretamente a legitimidade de poder monárquico, pois as desigualdades não podem ser algo «hereditário»44 – isto é, perpétuo: «é preciso que todo membro do corpo pudesse alcançar todo grau de condição […] onde o seu talento, sua atividade e sua chance podem levá-lo…» (UdG, Ak. VIII, 292). —————————————— 43 Cf. principalmente «Idee zur einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlichen Absicht», (1784, Ak. VIII, pp. 15-31); Der Streit der Fakultäten (1798, Ak. VII, 1-116); Zum ewigen Frieden, Primeiro suplemento, Da garantia da paz perpétua (Ak. VIII, 360-368). 44 Kant critica abertamente os privilégios da nobreza hereditária. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 31 Na verdade, poder-se-ia aqui comparar o texto de Kant com as discussões contemporâneas sobre a justiça, sobre o problema das desigualdades naturais (os talentos), sobre as situações econômicas herdadas, etc. No meu modo de ver, o kantismo de John Rawls, sua preocupação com a equidade, corresponde bastante ao espírito de Kant, embora, no contexto concreto das sociedades atuais, possa haver muitas diferenças. Admitindo que Rawls representa uma forma de liberalismo político próxima às vezes do republicanismo, essa convergência pleiteia para uma interpretação republicana de Kant45. Veremos aliás que essas desigualdades devem ser encaradas num perspectiva evolutiva, típica da filosofia da Aufklärung. e) Independência A questão da independência fica ligada imediatamente ao status de “cidadão” e, mais precisamente, às condições de participação ativa na política. Kant adota, como no caso da igualdade, posições marcadas pelos estereótipos culturais de sua época. Em primeiro lugar, há a afirmação clara que o princípio básico de independência – direito “inato” e “imprescritível” – está ligado à condição de cidadão, isto é de “co-legislador”: «A independência (sibisuficientia) de um membro da república como cidadão [Bürger], isto é como co-legislador.» (UdG, Ak. VIII, 294)46 «a independência [Selbständigkeit] civil, que consiste em não dever sua existência e preservação ao arbítrio [Willkür] de um outro indivíduo no povo, mas aos seus próprios direitos e forças como membro da república [gemeinen Wesens], e por conseguinte a personalidade civil, isto é o atributo de não ser representado por nenhum outro nos casos de direito.» (RL, § 46, Ak. VI, 314) Agora, qual é a qualificação que torna o cidadão capaz de ser co-legislador, isto é de votar? Kant defende uma posição que podemos considerar como “ilustrada”, pertencendo ao ideário do progresso tornado possível pela educação. Para —————————————— 45 Nenhum pensador político importante defendeu um princípio igualitarista radical. O sentido da exigência de igualdade deu lugar a um número incalculável de discussões (uma boa apresentação se encontra na Stanford Encyclopedia of Philosophy, artigo «Equality», http://plato.stanford.edu/ entries/equality/). Para a posição de Kant nessa perspectiva, cf. entre outros, Joaquim Algado. A idéia de justiça em Kant: Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1986; Leslie A. Mulholland, Kant's System of Rights, New York/Oxford, Columbia University Press, 1990). 46 Em ZeF, Kant parece se contradizer pois ele fala do princípio de dependência [Anhängigkeit]. Contudo, a definição do princípio de dependência corresponde à do princípio de igualdade jurídica e não merece um comentário particular: «O princípio da dependência jurídica, desde que já está incluído no noção de uma constituição em geral, não precisa de definição». Kant não introduz aqui a idéia de independência como ele faz em UdG e RL. 32 André Berten votar, tem que se possuir condições intelectuais e materiais. A condição intelectual, é querer ser um membro efetivo da república, ser um cidadão ativo. «A única qualificação para ser cidadão é estar apto a votar. Mas estar apto a votar pressupõe a independência de alguém que, integrante do povo, deseja ser não uma simples parte [bloss Teil] da república [gemeinen Wesens], mas também um membro [Glied] desta, isto é, uma parte da república que atua a partir de sua própria escolha em comum com os demais. Esta qualidade de independência, contudo, requer uma distinção entre cidadãos ativos e passivos, embora o conceito de cidadão passivo pareça contradizer o conceito de cidadão em geral.» (RL, § 46, Ak. VI, 314) Um cidadão ativo é um cidadão que não depende do outro para a sua subsistência. Kant dá exemplos: a mulher dependendo do marido, o empregado dependendo do empregador, não têm a independência necessária para participar ativamente da vida pública. Sem dúvida, esse julgamento revela o quanto Kant depende aqui dos preconceitos de seu tempo. No entanto, isso não impede considerar as suas opiniões como politicamente “progressistas”47 na medida em que essas limitações, em geral, podem ser consideradas como transitórias. Se todos os cidadãos não têm a capacidade de contribuir para a formulação das leis ou mesmo de avaliar a sua pertinência, pelo menos, enquanto cidadãos passivos, têm um direito absoluto em serem tratados segundo as leis naturais da liberdade e da igualdade, «liberdade e igualdade que consistem em poder ascender dessa condição passiva a uma ativa» (RL, § 46, Ak. VI, 315). De qualquer maneira, a independência corresponde a uma idéia republicana essencial. A liberdade como “não-dominação” pressupõe exatamente a não dependência de outrem – e uma não dependência que não seja o resultado da boa vontade arbitrária do soberano ou dos superiores: uma não dependência fundada sobre o reconhecimento jurídico do cidadão. É nesse sentido que Kant critica a nobreza hereditária, isto é as formas de dominação que não têm justificação funcional. f) Contrato social Uma pedra de toque da definição do liberalismo individual moderno e contemporâneo é a adoção do modelo do contrato social como contrato fundador da sociedade civil e da sociedade política (quando há uma dualidade explícita ou implícita de contratos: contrato de associação e contrato de submissão). Kant, aparentemente, formula também uma teoria do contrato originário, do contrato social —————————————— 47 Vale a pena lembrar que o sufrágio universal é recente (por exemplo, 1944 na França, 1948 na Bélgica). Por certo, Kant nunca podia imaginar o voto das mulheres… A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 33 e, nesse sentido, deveria ser incluído na família liberal. Mas o que é interessante em Kant, é a diferença radical entre todos os contratos – contrato entendido como «ato dos livres arbítrios conjugados [vereinigten] de duas pessoas» (RL, § 18, Ak. VI, 271) – e o contrato social ou contrato originário. A idéia básica do contrato social liberal é simples. A questão é: como homens livres, iguais, independentes por natureza, poderiam submeter-se a uma autoridade, conservando seus direitos individuais. Portanto, o que formalmente torna um sistema de instituições sociais coletivamente coercitivas legítimo é que ele é o objeto de um acordo das pessoas que estão submetidas a ele. No caso de um contrato real, por exemplo numa venda de um bem, cada parte tem uma razão para respeitar os termos do contrato ao qual ele deu seu acordo. Da mesma maneira, no caso do contrato social no sentido de Hobbes ou Rawls, cada cidadão deve ter razões para respeitar os termos do contrato, isto é, as leis que resultam dos procedimentos democráticos (ou da vontade do soberano). Por outro lado, se sabe que os republicanos convergem nas críticas da idéia de contrato liberal típico, como foi formulado com a maior coerência por Hobbes e ultimamente por Gauthier48. Habermas expressa claramente essa crítica a Hobbes, mostrando que, para passar racionalmente do estado de conflito permanente para o de cooperação protegida coercivamente, os sujeitos «teriam que poder compreender o significado geral de uma relação social apoiada no princípio da reciprocidade». Mas, no estado natural, «ainda não aprenderam, antes de qualquer socialização, a assumir a perspectiva de um outro e a considerar-se a si mesmos na perspectiva de uma segunda pessoa»49. E, da mesma maneira, os sujeitos naturais não podem assumir a perspectiva social de uma primeira pessoa no plural. «Sob premissas hobbesianas, eles não podem assumir o ponto de vista a partir do qual qualquer um pode avaliar se a reciprocidade da coerção, que limita o arbítrio de cada um segundo leis gerais, é do interesse simétrico de todos, podendo, por isso, ser querida por todos os participantes.»50. Por outras palavras, a pressuposição dos indivíduos “naturais” tornaria o contrato social impossível. E todas as críticas das teorias da sociedade baseadas sobre um contrato mostram que os indivíduos pretendidos naturais são tipos de pessoas histórica e culturalmente determinadas: o contrator individualista de Hobbes, o proprietário de Locke, o bom selvagem de Rousseau, a pessoa racional e —————————————— 48 David Gauthier, Morals by Agreement, Oxford, Oxford University Press, 1986. 49 Jürgen Habermas, Direito e democracia entre facticidade e validade, 2003, tr. de F. B. Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, vol. I, p. 124. 50 O.c., p. 125. 34 André Berten razoável de Rawls, etc.51. Na maioria dos casos, se trata de uma extrapolação do modelo do contrato privado, entre duas pessoas. Nesse sentido, em primeiro lugar, Kant afirma claramente que o contrato originário é radicalmente diferente de todos os outros contratos: «Entre todos os contratos pelos quais uma multidão de homens se une para formar uma sociedade (pactum sociale), o contrato estabelecendo uma constituição civil (pactum unionis civilis) é de uma natureza tão particular que, enquanto em relação a sua execução, ele tem muito em comum com todos os outros (que são similarmente orientados para um fim escolhido que deve ser perseguido por um esforço comum), ele é essencialmente diferente de todos os outros no princípio de sua instituição (constitutionis civilis). Em todos os contratos sociais [Gesellschaftsverträgen], encontramos uma união de muitos indivíduos para um fim (comum, que eles todos compartilham). Mas uma união desses mesmos homens, que é um fim em si (que todos devem compartilhar), portanto uma união em todas as relações exteriores dos homens em geral, que não podem evitar influenciar-se mutualmente, é um dever incondicional e primário: ela se encontra somente numa sociedade enquanto ela constitui um estado civil, isto é uma república [gemeine Wesen].» (UdG, Ak. VIII, 289)52. Em segundo lugar, Kant não instaura um corte radical entre um estado de natureza asocial e o estado civil. Pelo contrário, ele considera que o estado de natureza é já um estado social, um estado onde existem regras de direito privado. «Se não se quisesse, antes de entrar no estado civil, reconhecer como jurídica absolutamente nenhuma aquisição, nem sequer a título provisório, esse estado civil mesmo seria impossível.» (RL, § 44, Ak. VI, 312). O indivíduo no estado de natureza é um homem, no sentido completo do termo que já está orientado pelos puros conceitos da razão. As leis relativas ao meu e ao teu – leis de direito privado – contêm, no estado de natureza, exatamente a mesma coisa que elas prescrevem no estado civil. Kant vai ainda mais longe: «Nesse sentido, se, no estado de natureza, não tivesse também, a título provisório, um meu e um teu exteriores, tampouco existiriam deveres de direito [Rechtspflichten] a respeito deles, e por conseguinte, não haveria nenhum mandamento [Gebot] impondo para sair de esse estado.» (RL, § 44, Ak. VI, 313). —————————————— 51 52 Cf. Carole Pateman, The Sexual Contract, Stanford, Stanford University Press, 1988. «Kant percebeu que os direitos subjetivos não podem ser fundamentados segundo um modelo extraído do direito privado. Contra Hobbes, ele levanta a seguinte objeção convincente: ele não levou em consideração a diferença estrutural entre a figura de legitimação do contrato de socialização e um contrato privado.», (Habermas, o.c., vol. I, p. 126). A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 35 Essas citações mostram como Kant fica entre o modelo liberal (o direito privado diz respeito ao meu e ao teu) e uma consideração da realidade moral e social dos indivíduos, da qual surge a obrigação, o imperativo: «até no estado de natureza podem existir sociedades conformes ao direito (por exemplo, a sociedade conjugal, paterna, doméstica em geral, e muitos outras ainda), a respeito das quais vale nenhuma lei a priori desse tipo: “Tu deves entrar nesse estado”, enquanto, sem dúvida nenhuma, pode ser dito do estado jurídico [rechtliche] que todos os homens que podem manter uns com outros (até involuntariamente) relações de direito devem entrar nesse estado.» (§ 41, Ak. 306, tr. 120). O contrato social contém uma dimensão moral que o direito privado não contém53. E, claro, nessa perspectiva não se pode deduzir o contrato social a partir do cálculo interessado dos participantes. Como o notou Habermas, «Sob este aspecto, o contrato social serve para a institucionalização do direito “natural” a iguais liberdades de ação subjetivas. Kant vê esse direito humano primordial fundamentado na vontade autônoma de indivíduos singulares, os quais dispõem preliminarmente, enquanto pessoas morais, da perspectiva social de uma razão que examina as leis, a partir da qual eles podem fundamentar moralmente, e não apenas pela astúcia, a sua saída do estado de liberdades inseguras.»54. É significativo também que, em muitos aspectos, o contrato pensado por Kant fica muito mais próximo do modelo de Rousseau55 do que do modelo de Hobbes. No entanto, apesar de todas as diferenças, Kant fica ligado ao modelo “proprietário” (e, em outros aspectos, também, repete alguns dos argumentos de Hob—————————————— 53 Pode-se assimilar o direito privado a um estado de natureza. Kant não quer dizer, pelo contrário, que no estado de natureza não tem “direito”. Há por exemplo um direito “doméstico, familiar”, etc., sem o qual a passagem ao estado civil e ao direito público coercitivo ficaria impensável. 54 55 O.c., pp. 126-127. «O contrato originário segundo o qual todos (omnes et singuli) no povo renunciam à sua liberdade externa para reassumi-la imediatamente como membros de uma república [eines gemeinen Wesens], isto é do povo como Estado (universi)» (RL, § 47, Ak. VI, 315). Cf. Rousseau: «Aquilo que o homem perde pelo contrato social, é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que o tenta e que ele pode conseguir; o que ele ganha, é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que ele possui.» (Contrat Social, I, VIII). Da mesma maneira; Kant, na sua filosofia da história, apresenta a necessidade de sair do estado de natureza não somente como um dever moral, mas como o resultado da “insociável sociabilidade”, muito próximo nisso de Rousseau que escreve: «Suponho os homens chegados nesse ponto onde os obstáculos que prejudicam a sua conservação no estado de natureza vencem as forças que cada indivíduo pode usar para manter-se nesse estado» (ib. I, VI). 36 André Berten bes56) na medida em que o fim, a maior condição formal de todos os outros deveres externos, é o direito dos homens pelo qual «a cada um pode ser dado o que lhe é devido e assegurado contra o ataque de todo outro», isto é uma finalidade “econômica”, ligada ao direito de propriedade: «E o fim que é um dever em si nessas relações externas, e que é de fato a maior condição formal (conditio sine qua non) de todos os outros deveres externos, é o direito dos homens sob leis públicas coercitivas [öffentlichen Zwangsgezetsen] pelo qual a cada um pode ser dado o que lhe é devido e seguro contra o ataque de todo outro.» [UdG, Ak. VIII, 289] Como a maioria dos teóricos, Kant considera o contrato social como uma ficção. Mas essa ficção não propõe um modelo explicativo da necessidade de sair do estado de natureza – a partir de uma antropologia pessimista ou otimista – mas tem o status de uma idéia prática radicalmente (e ideal mais que formalmente) democrática: «uma simples idéia da razão, mas ela tem uma realidade (prática) indubitável, no sentido em que ela obriga todo legislador a publicar suas leis como podendo ter emanado da vontade coletiva de um povo todo, e em considerar todo súdito, enquanto ele quer ser cidadão, como se ele tivesse colaborado em formar através do seu voto uma vontade desse tipo. Pois isso é o critério [Probirstein] da legalidade [Rechtmässigkeit] de toda lei pública. Pois, se essa lei é de tal natureza que fosse impossível que um povo todo pudesse lhe dar o seu consentimento (se por exemplo, ela decreta que uma classe determinada de súditos deve ter hereditariamente o privilégio da nobreza), não é justa; mas se é somente possível que um povo lhe desse seu consentimento, é então um dever considerar a lei como justa, mesmo supondo que o povo está presentemente numa situação ou numa disposição de sua maneira de pensar tais que se fosse consultado sobre essa questão, recusaria provavelmente seu consentimento.» (UdG, Ak. VIII, 297) —————————————— 56 Por exemplo quando ele afirma que no estado de natureza «Ninguém é obrigado a abster-se de violar a posse alheia se o outro não lhe proporcionar igual certeza de que observará a mesma abstenção em relação a ele.» (RL, § 42, Ak. VI, 306). «Dada a intenção de estar e permanecer nesse estado de liberdade sem lei exterior, os seres humanos não causam de modo algum injustiça [unrecht] mútua quando se hostilizam, uma vez que o que é válido para um é válido também, por seu turno, para o outro (…); mas em geral causam injustiça no mais elevado grau, desejando ser e permanecer num estado que não é jurídico, isto é no qual ninguém está assegurado do que é seu contra a violência.» (§ 42; Ak. 307-308) Comparar com Hobbes: «O esforço para obter a paz, durante o tempo que o homem tem esperança de alcançá-la, fazendo para isso uso de ajudas e vantagens da guerra, é uma norma ou regra da razão.» (Leviathan, parte I, cap. 14) A lei de reciprocidade faz com que as obrigações sociais sejam hipotéticas. A diferença está no fato de que, para Kant, sair do estado de natureza é também uma obrigação moral. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 37 Podemos então reconhecer que Kant fica – como Hobbes ou Locke – no horizonte de um «individualismo possessivo»57. Mas com uma diferença fundamental: esse individualismo liberal está absolutamente subordinado a um imperativo moral: o imperativo de sair do estado de natureza e entrar no estado civil. g) Republicanismo e democracia O republicanismo, como foi dito, não é a favor de uma democracia radical, ainda menos da democracia direta. O pensamento kantiano tampouco é democrático no sentido de ser favorável à soberania absoluta do povo empírico. Porém, para o republicanismo como para Kant, a idéia do poder do povo, ou do povo legislador, permanece um “horizonte” regulador. Kant foi muitas vezes criticado por não ser suficientemente democrático. No entanto, a sua desconfiança a respeito da democracia não deve ser considerada como uma desqualificação de seu pensamento político, pois a forma ideal do seu modelo de Estado corresponde aos regimes de democracia constitucional representativa que são geralmente aceites nos Estados contemporâneos. Kant afirma explicitamente que «não se deve confundir a constituição republicana com a democrática» (ZeF, primeiro artigo definitivo, Ak., VIII, 351-352). Ele nota que deve se distinguir entre a forma da soberania [Beherrschung] (forma imperii) – que pode ser, segundo as pessoas, autocracia, aristocracia ou democracia – e a forma de governo [der Regierung] (forma regiminis), isto é a maneira de governar [Regierungsart]: Esta «diz respeito ao modo, baseado sobre a constituição (sobre o ato da vontade geral que faz da multidão um povo), segundo o qual o Estado usa de seu poder absoluto; e, deste ponto de vista, ela é ou republicana ou despótica.» (ZeF, primeiro artigo definitivo, Ak. VIII, 352) A forma da soberania, ou forma do Estado, é uma realidade empírica, importante mas não determinante, transitória. É a forma do governo (a maneira de governar) que deve corresponder à legislação originária. «As diferentes formas de Estado são apenas a letra (littera) da legislação originária no estado civil e podem, portanto, subsistir enquanto são mantidas, por força do velho costume há muito existente (e assim apenas subjetivamente) pertencendo necessariamente ao mecanismo da constituição. Mas o espírito desse contrato originário (anima pacti originarii) envolve a obrigação por parte do poder constituinte de tornar o modo de governo [Regierungsart] ajustado a essa idéia.» (RL, § 52, Ak., VI, 340) —————————————— 57 C. B. MacPherson, The Political Theory of Possessive Individualism. Hobbes to Locke, Oxford, Oxford University Press, 1962. 38 André Berten O termo “Beherrschung” (na forma da soberania) deve ser entendido como poder legislativo – que pode pertencer a um, a vários ou a todos os cidadãos. Em RL, Kant escreve: «o soberano [Beherrscher] (o legislador) do povo não pode ser também seu regente, uma vez que este está sujeito à lei e, assim, é submetido à obrigação através da lei por um outro, a saber o soberano [Souverän]. Este pode também retirar do regente a sua autoridade, depô-lo ou reformar sua administração.» (RL, § 49, Ak. VI, 316). O espírito da constituição republicana é de ser «a única constituição de Estado que dura, a constituição na qual a própria lei governa e não depende de nenhuma pessoa privada» (RL, § 52, Ak. VI, 341). Essa prioridade da lei e portanto do poder legislativo, não impede de defender a separação dos poderes e a autonomia relativa de cada um desses poderes. A constituição republicana defende claramente a tese da separação dos poderes58: «O republicanismo é o princípio de Estado da separação do poder executivo (o governo) e do poder legislativo; o despotismo é o princípio segundo o qual o Estado executa por si próprio as leis que ele mesmo fez, por conseguinte, é a vontade pública agida pelo chefe de Estado como se fosse sua vontade privada.» (ZeF, Ak VIII, 352) Em seguida, há uma condenação da democracia direta assimilada a um despotismo: «Das três formas de Estado, aquela da democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque ela funda um poder executivo onde todos decidem […], por conseguinte, uma forma de Estado onde todos, que no entanto não são todos [a maioria] decidem – o que põe a vontade universal em contradição com ela mesma e com a liberdade.» (ZeF, Ak. VIII, 352) Mas o sentido dessa condenação é claro. Kant visa a democracia direta onde o povo detém o poder executivo. Contra essa aberração, é preciso uma forma ou outra de representação: «Toda forma de governo que não é representativa é uma não-forma [Unform], pois o legislador não pode ser, numa única e mesma pessoa, o executor de sua vontade.» (ZeF, Ak. VIII, 352). Aliás, vimos que o modo de governo – isto é a oposição entre governo republicano e despótico – é mais importante que a forma do Estado. Ao contrário de Rousseau que considerava o sistema representativo como uma traição do povo59, Kant está muito consciente dos perigos —————————————— 58 Essa separação não pode ser absoluta. No caso contrário, significaria um poder absoluto do legislativo e a dominação das maiorias flutuantes. 59 Rousseau, Du Contrat Social, L. III, ch. 3. A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 39 populistas da democracia, pois o exercício do poder pela multidão pode facilmente instaurar um despotismo da maioria. O poder do povo não pode ser incarnado somente numa forma de poder (seja este legislativo ou executivo). Pelo contrário, é significativo que Kant, na análise mais precisa da diferenciação dos poderes, introduza uma apresentação “trinitária”, no sentido que só existe uma vontade universal, mas incarnada em três pessoas: «Todo Estado contém em si três poderes [Gewalten], a saber, a vontade universalmente unificada em uma tripla pessoa (trias politica): o poder soberano [die Herrschergewalt] (soberania) [Souveränität] na pessoa do legislador, o poder executivo na pessoa do governo [Regierers] (em conformidade com a lei) e o poder judiciário (como capacidade de atribuir a cada um aquilo que é o seu segundo a lei) na pessoa do juiz (potestas legislatoria, rectoria et judiciaria) – análogos às três proposições de um silogismo da razão prática: a maior, que contém a lei de essa vontade, a menor, que contém o mandamento de comportar-se segundo a lei, isto é o princípio da subsunção sob a maior e a conclusão, que contém a decisão de justiça (a sentença), quer dizer aquilo que é de direito no caso concernido.» (RL, § 45, Ak. VI, 313) Se sabe, já desde Rousseau, que a idéia de uma «vontade universalmente unificada» – a idéia de vontade geral60 – coloca problemas críticos difíceis, na medida em que essa vontade só pode ser ideal e nunca encontrada empiricamente. O interessante, em Kant, é a idéia de que essa vontade geral não corresponde ao único poder legislativo, mas está na base de toda a construção constitucional. Isto reforça o “idealismo” da construção kantiana, mas também mostra o que idealmente pode valer como modelo. Esse modelo ideal não é estritamente liberal nem radicalmente democrático. No meu modo de ver, ele é “republicano”, dando a supremacia à lei. É certo que, para aperfeiçoar essa apresentação, seria preciso introduzir, no “silogismo”, uma perspectiva mais reflexiva, isto é, a forma de juízo reflexionante da terceira Crítica. Pois, o aspecto “nôumenal” do modelo – como aliás, da própria liberdade – tem uma conseqüência essencial: nenhuma realização histórica concreta pode ser considerada como adequada ao modelo. Basta recordar que se a liberdade nunca pode ser conhecida empiricamente, da mesma maneira, o Estado ideal baseado na vontade unificada do povo não pode ser dado em nenhuma experiência possível porque ele é uma idéia reguladora prática. Nesse sentido, pode se dizer que as formas concretas não podem ser julgadas ou avaliadas como se o modelo de avaliação fosse institucionalmente decidível. —————————————— 60 Cf. Rousseau: Du Contrat Social, Livre II, ch. 3: «Há muitas vezes uma grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta cuida apenas do interesse comum, a outra do interesse privado e é somente uma soma de vontades particulares.». 40 André Berten Uma monarquia constitucional, desde que o monarca fique submetido à lei, pode ser conforme ao ideal republicano. Aliás, Kant usa argumentos lógicos para mostrar que a vontade unificada, legisladora, não pode ser imediata. É certo que, e isto merece um parêntesis, a posição de Kant pode parecer ambígua, por exemplo quando ele excetua o chefe de Estado da condição de sujeito. Há uma real dificuldade no que respeita ao estatuto do monarca ou chefe de Estado. Desde UdG, a definição formal da igualdade fica ligada à concepção do direito, e do direito de coerção. Essa definição implica imediatamente um problema “lógico”, o caráter excepcional do “chefe de Estado”: «A igualdade enquanto súdito, pode ser formulada assim: cada membro do corpo comum possui um direito de coerção sobre todo outro, salvo sobre o único chefe de Estado (porque este não é membro desse corpo, mas seu criador ou conservador) que, só, tem o poder de coagir sem ser ele mesmo submisso a uma lei de coerção.» (UdG, Ak. VIII, 291) Essa afirmação, aparentemente “lógica”, remete para o poder executivo o que não pode ser assumido pelo poder legislativo. Por outro lado, poderíamos afirmar que o “criador” do corpo comum só pode ser o próprio povo que, no contrato originário, é depositário da vontade legisladora61. Apesar dessas dificuldades de seu pensamento político, Kant é, penso eu, profundamente “republicano”, não somente idealmente mas, dado o contexto, na sua avaliação da situação de seu tempo. Ainda se deveria acrescentar que, do ponto de vista da filosofia da história de Kant, as situações de desigualdade econômica e jurídica devem ser consideradas como provisórias – salvo algumas exceções (como o julgamento sobre as mulheres como sendo por natureza inferiores e incapazes de se tornar cidadãos). Por exemplo, falando das relações entre a letra e o espírito da constituição, Kant escreve: «Conseqüentemente, se isso não puder ser realizado imediatamente, constitui obrigação mudar o tipo de governo gradual e continuamente, de modo que se harmonize no seu efeito com a única constituição conforme ao direito, nomeadamente, aquela de uma pura república [einer reinen Republik], de tal modo que as velhas formas estatutárias (empíricas), que serviram apenas para produzir a submissão do povo, sejam substituídas pela forma originária (racio—————————————— 61 Cf. também o texto ambíguo de RL: «A associação civil [bürgerliche Verein] (unio civilis) não pode ser classificada ela mesma como uma sociedade, pois entre o soberano [Befehlshaber] (imperans) e o súdito (subditus) não há parceria [Mitgenossenschaft]. Eles não são associados [Gesellen]: um está subordinado ao outro e não em coordenação com ele, e aqueles que se coordenam entre si devem, por isso mesmo, se considerar iguais, uma vez que estão sujeitos a leis comuns. Essa associação [Verein] não é bem uma sociedade [Gesellschaft], mas o que a constitui.» (§ 46, Ak. VIII, 306-307). A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social 41 nal), a única forma que faz da liberdade o princípio e, realmente, a condição para qualquer exercício de coerção, como é requerido para uma constituição jurídica de Estado no estrito sentido da palavra.». Seria o tópico de um outro artigo mostrar que, na perspectiva de Was ist Aufklärung? as situações de desigualdade, ligadas a situações de “menoridade”, são situações transitórias. Kant, por exemplo, defendeu a idéia de que é absurdo pensar que um povo não está maduro para exercer a liberdade: «Eu confesso não poder resignar-me a essa expressão, empregada até pelos homens sábios: um tal povo (que está elaborando sua liberdade legal) não está maduro para a liberdade; os servos de um proprietário de terras ainda não estão maduros para a liberdade, e também, os homens ainda não estão maduros para a liberdade de consciência. Numa hipótese desse tipo, a liberdade nunca acontecerá; pois não se pode amadurecer para a liberdade se não se fosse já colocado em liberdade (é preciso estar livre para usar utilmente de suas forças na liberdade). As primeiras tentativas de exercer a liberdade serão provavelmente grosseiras e ligadas habitualmente a uma condição mais penosa e perigosa que quando se encontrava ainda sob as ordens de outrem, mas também na sua proteção; porém jamais se amadurece para a razão de uma outra maneira que não através de suas tentativas pessoais (que necessitam da liberdade para serem efetuadas). Que os que têm autoridade, forçados pelas circunstâncias do tempo, adiem para uma época ainda longe, longínqua, o momento de quebrar essas três cadeias, não posso criticá-los. Mas defender como princípio que a liberdade não vale de maneira geral (überhaupt die Freiheit nicht tauge) para aqueles que dependem deles e que tivessem o direito de afastá-los dela para sempre, eis aqui um insulto aos direitos soberanos da própria divindade, que criou o homem para a liberdade.»62. Essa longa citação poderia servir de conclusão. Para alcançar a liberdade, há que exercitá-la. Na RL, Kant fazia uma distinção entre cidadãos ativos e passivos, distinção que ele reconhece como problemática e contraditória. Mas ele termina o parágrafo dizendo que as leis votadas pelos cidadãos ativos não somente não podem entrar em contradição com as leis naturais de liberdade e de igualdade, mas que «a liberdade e a igualdade consistem em poder trabalhar a erguer-se desse estado passivo ao estado ativo» (RL, § 46, Ak. VI, 315) – a tornar-se verdadeiros cidadãos de uma república. —————————————— 62 Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, IV, 2, § 4, nota, Ak. VI, 188. La Ciudadanía en Kant Javier García Medina UNIVERSIDAD DE VALLADOLID 1. Justificación El modo de inserción y el status de los individuos que integran un espacio político hoy radicalmente transformado es un tema crucial para la filosofía política y jurídica contemporánea. Es un espacio caracterizado, por una parte, por la tendencia a la universalización de la ciudadanía en el interior de cada sociedad política, y de otro por la interconexión e interacción de individuos y sociedades a escala planetaria, más allá de las fronteras políticas tradicionales y también de los límites entre el ámbito político y el resto de las esferas sociales (en suma, el fenómeno que se conoce como “globalización”). Pero es al mismo tiempo un espacio en el que subsisten fuertes desigualdades (asimetrías), tanto internas –sociales y culturales- como en la relación con los otros situados en los márgenes de la propia sociedad. Situación que plantea problemas de inclusión y exclusión, y de relación entre identidad (pertenencia y diferencia). En consecuencia, los debates actuales en el seno de la filosofía política y jurídica han de abordar hoy, junto al problema de la relación entre sociedad moral universal y sociedades políticas particulares, los nudos problemáticos correspondientes al eje identidad /diferencia: la (re)definición de la ciudadanía, del status de los individuos en las sociedades políticas, y el problema de la alteridad (del status político, jurídico y moral de quienes se encuentran en los márgenes de la ciudadanía). Pese al universalismo moral dominante en la teoría política actual, la ciudadanía sigue siendo un status particular excluyente dentro de las distintas sociedades. Un status que marca una diferencia clave respecto a los inmigrantes extranjeros que acceden a las ricas sociedades occidentales. Sin embargo, todo suceso histórico tiene raíces y precedentes en el pasado; y seguramente también las interpretaciones que se construyen del mismo. FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 43-64 44 Javier García Medina 2. Objetivo y estructura Se pretende con este trabajo analizar la concepción kantiana de la ciudadanía y su eventual papel en la configuración de la ciudadanía en los debates actuales. La estructura metodológica de este trabajo será la siguiente: en primer lugar, se analizarán los elementos definitorios de la ciudadanía y los modelos que a partir de aquellos se pueden constituir; y, en segundo lugar, se procederá a determinar qué elementos aparecen en la concepción kantiana de la ciudadanía y a qué modelo se puede reconducir. 3. Introducción Los ciudadanos son titulares de un estatus jurídico al ser sujetos de derechos y deberes en el marco político, lo que quiere decir que sujetos y espacio político están mutuamente interrelacionados y la concepción de uno condiciona la definición del otro. Nos enfrentamos con un mundo complejo ya que el acceso a una serie de derechos (sanidad, educación, etc.) está condicionado por la ciudadanía y los derechos que la misma lleva aparejados. De esta manera se pone de relieve que los sistemas de derechos se encuentran atravesados por las diversas interpretaciones que se formulan sobre conceptos a ella vinculados, como el de nación o Estado, con influencias teóricas, culturales, históricas, religiosas, cuyo sentido en muchas ocasiones no es explícito sino tácito, y que una adecuada comprensión de esta complejidad exige explicitar. Si se acepta la idea de que las sociedades que habitamos son problemáticas, se ha de conceder también que cuestionar la posición de los sujetos en el espacio político implica cuestionar al mismo tiempo dicho espacio. La complejidad y problematicidad de las sociedades actuales proviene de la incapacidad de entender con claridad en qué consiste hoy día ser ciudadano. La razón de esa insuficiencia se puede sintetizar en un grado de cambio muy rápido en cuestiones que han provocado transformaciones substanciales en la vida social; se ha pasado de un marco de homogeneidad cultural a uno de heterogeneidad cultural, en el que la incertidumbre deja paso a las absolutas certezas existentes en lo moral, en lo sexual, e, incluso, en lo familiar. Toda transición supone cambios también en el dominio de lo urbano frente a lo rural, presencia de nuevos estilos de vida, modificaciones en el ámbito económico, en las condiciones de trabajo; supresión de fronteras; procesos de inmigración internos y externos; modificaciones en los ámbitos de decisión (quién decide y cómo); deslocalización económica, en definitiva, cambio en los espacios ciudadanos. La Ciudadanía en Kant 45 Todo ello afecta a la manera de comportarnos y nos interroga sobre cómo actuamos. Este nuevo panorama hace necesario cambiar la perspectiva a la hora de argumentar y razonar la cuestión pública en el espacio público. De esa manera la idea de ciudadano aparece interpelada por las transformaciones culturales internas, como las que se aprecian entre los géneros o en la cuestión de la inmigración. Estas transformaciones sociales, morales, políticas, etc., en principio no necesariamente tienen que provocar ningún tipo de patología social, pero ésta aparecerá cuando algunos individuos piensen que tales cambios afectan a su seguridad. Por tanto, la forma en cómo reaccionemos ante las incertidumbres es determinante. Así, podemos encontrar posturas reactivas – que pueden derivar en reaccionarias – negadoras de la complejidad del mundo actual y que se refugian en certezas pasadas. Evidentemente, se trata de un regreso imaginario a algo que existió y en el que se busca reafirmar la identidad y las creencias, con el fin de defenderse de una realidad presente que no se puede soportar. El sujeto reactivo viene definido por su falta de “reacción”, es decir, se trata de un sujeto que se entiende a sí mismo como sólido, recio, con ideas y creencias claras, siendo precisamente esas características las que, ya se defina el sujeto como progresista o conservador, impiden una correcta reacción ante aquello que no se soporta. Esta reacción se hace patológica porque, en general, es negadora y nos cuestiona, y cualquier duda provoca que se reaccione cerrando la comunidad y generando, entre otras cosas, el odio social con el cual construir la identidad. Otra forma de reaccionar es “huir del mundo”, adoptar la idea de “no me interesa nada”, que provoca una separación del mundo, no se quiere participar de él, lo que lleva al individuo a volverse hacia los espacios que considera de refugio –el hogar- donde no se siente interrogado por el mundo y donde no percibe ni le interroga un mundo que entiende inseguro. Hay en este caso, una oposición al mundo. Ambas formas de reacción ante un mundo complejo y problemático nos conducen a una negación de la ciudadanía. La pregunta es qué hacer, para generar una identidad comunitaria que dé seguridad sin las incertidumbres señaladas. La solución, a nuestro juicio, pasaría por el desarrollo de una virtud que supondría la capacidad de ponernos en el lugar del otro, en el sentido en que ya lo proponían Kant, Leibniz o H. Arendt. No sería suficiente una tolerancia basada en un mero soportar sino una tolerancia activa y positiva. El punto de partida debe ser el reconocimiento de la complejidad; de la percepción y comprensión de la diferencia y la observación del mundo con la mirada del otro. Se puede objetar a esta propuesta que esa alteración de perspectiva puede anularnos a nosotros mismos o, incluso, que a pesar de los esfuerzos no se vea con claridad qué visión del mundo tiene ese otro. Tal objeción se puede superar ejercitando la capacidad de juicio y presentando nuestras aceptaciones o rechazos de forma comprensiva. La adquisición de estas competencias nos permite ser más flexibles pero también más sólidos, pues debemos proponer también formas claras y determinantes de rechazo, de no tole- 46 Javier García Medina rancia, a aquello que daña en el espacio público, como, por ejemplo, la exclusión por diferentes, los nuevos modos de esclavitud, la violencia de género que ha irrumpido en el espacio público aunque se produzca en el seno de lo estrictamente privado. Está claro que se trata de una experiencia dañina que se percibe por ponerse en el lugar del otro, por el desarrollo de sensibilidades compartidas. Es posible que esta estrategia nos permita una mejor comprensión del mundo problemático que vivimos. 4. Elementos y modelos de ciudadanía La concepción de la ciudadanía viene determinada por el lugar y el tiempo histórico que consideremos, lo que dificulta establecer un concepto de ciudadanía con validez para todo tiempo y lugar, o si se quiere, intemporal y universal. La perspectiva política y jurídica que se adopta también influye en la determinación de qué se pueda entender por ciudadanía, ya que de ella se deriva una consideración diferente de la identidad política o de las relaciones entre el individuo y la sociedad. De ahí que, en primer lugar, la ciudadanía puede abordarse como posición para recibir los beneficios materiales que la prosperidad permite distribuir de la manera más equitativa para dignificar la vida humana. En segundo lugar, la ciudadanía como requisito para alcanzar una serie de recursos considerados necesarios para una realización humana efectiva. En tercer lugar, la ciudadanía como inclusión, como instrumento para eludir las trabas que impiden a algunos grupos humanos marginados convivir dentro del espacio político en el que habitan. En último lugar, la ciudadanía como autogobierno, esto es, como medio para participar en la vida política. La consideración de la ciudadanía en atención a las perspectivas señaladas remite, en definitiva, a la idea de “derechos”. Pero de unos derechos que se tienen por pertenecer a una comunidad y que pueden exigir la participación del sujeto para su efectiva protección y garantía. En consecuencia, de lo expuesto podemos extraer unos elementos nucleares que juegan en el concepto de ciudadanía: pertenencia, derechos y participación1. Sirva a modo de acercamiento, no demasiado preciso, la siguiente consideración. Cuando se incide en los derechos como centro esencial sobre el que gira la ciudadanía nos encontraríamos con una postura cercana a posiciones liberales. Para el comunitarismo sería la pertenencia su elemento fundamental, mientras que el republicanismo incidiría en la ciudadanía en términos de participación. Aunque cada una de esas posiciones resalta un aspecto relevante de la ciudadanía, ello no quiere decir que prescindan de los demás. —————————————— 1 J. Peña, La ciudadanía hoy: problemas y propuestas, Secretariado de publicaciones de la Universidad de Valladolid, Valladolid, 2000, p. 24. La Ciudadanía en Kant 47 Corresponde, por tanto, una breve referencia a los elementos mencionados. En primer lugar, por lo que se refiere a la pertenencia indicar que la noción de ciudadanía está vinculada a un modo de pertenencia. Ésta no refleja sólo una concurrencia de derechos y deberes entre los miembros sino también la conciencia de formar parte de una comunidad que posee una propia identidad más allá de quienes la integran. La cohesión social deriva de los vínculos de solidaridad y no de simples vínculos legales, por tanto la ciudadanía no se identifica esencialmente con un status jurídico-político o conjunto de derechos, sino más bien con la lealtad y el afecto hacia la comunidad patria como fundamento del interés por lo común. Es el modelo de la polis de Aristóteles o de la Sittlichkeit hegeliana que inspira las posiciones comunitaristas frente al enfoque liberal del universalismo de los derechos. Visto lo que supone la pertenencia hay que preguntarse cuándo se pasa a pertenecer a una comunidad, dicho de otro modo, qué criterios sirven para acceder a ser un miembro ciudadano de la sociedad política o, si se quiere, en qué se fundamenta la exclusión de la ciudadanía a algunos sujetos. Pero la propia pregunta revela la existencia de, al menos, dos grupos: nosotros los ciudadanos y vosotros o ellos los no ciudadanos, que implica, a su vez, demandarse cómo se ha formado y bajo qué criterios el “nosotros los ciudadanos”. Demanda que nos coloca ante elementos prepolíticos cómo pueden ser un territorio compartido, la historia, la cultura común, rasgos étnicos, etc.. Habría, en ese caso, una identidad prepolítica común2 en la que residiría la posterior atribución de la ciudadanía, dicho de otra forma, la nacionalidad precede a la ciudadanía3. Hay una identidad grupal comunitaria previa que sostiene y legitima la comunidad política y respalda sus vínculos de cohesión, da sentido a la obligación política y fija las preferencias en cuanto a valores, objetivos y procedimientos en las situaciones conflictivos. Se consagra, por tanto, una posición nacionalista frente a la moderna comprensión de la ciudadanía en la que prevalece la voluntad política de los ciudadanos sin precondicionamientos. La perspectiva de la pertenencia que hemos ilustrado podría servir para proceder a incluir o a excluir a los individuos dentro de comunidades políticas homogéneas pero no nos permite dar respuesta a problemas que se plantean en las sociedades actuales en las que la diferencia y su reconocimiento ponen en tela de juicio la consideración de la ciudadanía en su versión anterior. Estamos haciendo referencia a la cuestión del multiculturalismo, esto es, a grupos cuyos miembros ostentan la ciudadanía legal pero entienden que sus caracteres diferenciadores propios no se encuentran reconocidos y piden una serie de derechos propios basados en tales diferencias. La cuestión, en la que aquí no vamos a entrar, será cómo afrontar tales —————————————— 2 En torno a la identidad podemos reflexionar sobre si es algo dado o construido, por qué se toman unos rasgos para su formación y no otros, por qué prevalecen unos y no otros, etc.. 3 Las posturas contractualistas irían en un sentido diferente ya que tanto la existencia como la forma de la propia comunidad política procede de la voluntad de los sujetos que se asocian. 48 Javier García Medina diferencias y cómo solucionar los problemas que genera la presencia de grupos diferenciados por una u otra razón. Hicimos antes mención a que ser ciudadano equivale a la ostentación de ciertos derechos pero también de ciertos deberes, lo que implica la consideración del ciudadano como un sujeto de derechos. Esta comprensión de la ciudadanía centrada en los derechos encuentra su manifestación histórica en la ciudadanía romana, en la cual lo relevante es el status legal y no el político. Precedente histórico que inspira la concepción liberal de la ciudadanía, a partir de los supuestos individualistas de la teoría liberal clásica y cuyo caldo de cultivo será el desarrollo del capitalismo y de las revoluciones burguesas. La libertad individual, en esta concepción de la ciudadanía, pasa a tener preferencia frente a la inserción y pertenencia a una comunidad política. Pero si los derechos son el núcleo esencial de la ciudadanía, la pregunta es qué derechos. Si en la versión contractualista el hombre natural y el estado natural preceden al hombre político o ciudadano y a la sociedad política, entonces los derechos que se ostenten como ciudadanos vendrán condicionados por cómo se entienda a aquellos, si se considera o no que en el estado de naturaleza se tienen derechos, qué derechos se tienen, cómo se articulan en el contrato social y qué papel les corresponde en la sociedad civil. En cualquier caso, y puesto que se ha roto con la idea de que el hombre ya no es un ser naturalmente político, será la sociedad civil la que defina el status de ciudadano. Por eso pasan a primer plano libertad y propiedad y se reduce la participación, ya que lo prioritario es el espacio privado y los derechos que lo amparan. Además, independientemente de qué derechos conformen el eje de la ciudadanía, ésta se entiende como algo propio y particular de un espacio cerrado. De manera que, si bien en el ámbito de inclusión del Estado-nación la ciudadanía se va extendiendo progresivamente, se va generando al mismo tiempo un marco de exclusión que expulsa del disfrute de derechos y deberes a quien está fuera. Se observa, pues, la contradicción entre la idea de unos derechos de ámbito universal pero que, en la práctica, sólo se reconocen a los nacionales, o, si se quiere, el conflicto entre universalidad y diferencia, cuya única solución sería una consideración cosmopolita de la ciudadanía, la cual a su vez genera la crítica del olvido de las circunstancias concretas en las que los individuos se mueven. La ciudadanía en términos de derechos supone una distribución formal igual de la misma, pero todos sabemos que el ejercicio de los derechos inherentes a la ciudadanía está condicionado por la disponibilidad de recursos materiales, lo que revela la conexión entre el status jurídico-político de la ciudadanía y su entorno económico-social4. —————————————— 4 Nos encontramos aquí con la idea de la ciudadanía social, basada en la atribución de una serie de recursos materiales con los que poder hacer frente a una ciudadanía plena. Pero esos derechos sociales no La Ciudadanía en Kant 49 La primera de las concepciones de la ciudadanía que hemos visto hace prevalecer a la comunidad sobre el individuo, mientras que la segunda coloca al sujeto individual y sus derechos sobre la comunidad, de lo que puede inferirse que entre ambas hay una mutua vinculación pero también cierto grado de conflicto. En el primer caso, es la pertenencia la que fundamenta el disfrute por parte de los ciudadanos de una serie de derechos; y en el segundo, se corre el riesgo de neutralizar la ciudadanía al hacerla coincidir con los derechos humanos. Por último hacer algunas consideraciones sobre la participación. Su precedente histórico lo encontramos en Atenas, donde el núcleo central de la ciudadanía era tomar parte activa en los asuntos públicos. Concepción de la ciudadanía que pasa al republicanismo para el cual la participación en el espacio público es condición para el mantenimiento de la propia libertad. Evidentemente, esta forma de ciudadanía se entiende poco operativa en las sociedades actuales dado que sería viable en sociedades cerradas y homogéneas y no en sociedades abiertas y heterogéneas como las actuales; pero, además, exigir un compromiso con lo público en nuestras sociedades actuales pasaría por el ejercicio de una virtudes cívicas que quizás ya no se tengan y que si se quiere implantarlas se puede invadir el espacio de los derechos individuales. El desarrollo de los elementos de la ciudadanía – pertenencia, derechos, participación – permite la construcción de tres modelos de ciudadanía que forman parte del debate contemporáneo sobre la misma: el modelo liberal, el modelo comunitarista y el modelo republicano. El modelo liberal de ciudadanía afirma el predominio de los derechos individuales, su distribución igualitaria, la neutralidad del Estado y la separación del espacio público y del espacio privado, frente a cualquier consideración de carácter identitario o colectivo. El modelo comunitarista, por su parte, realza la vida comunitaria como una precondición en la que el individuo puede asumir valores colectivos y el consiguiente compromiso con el bien común, generándose la cohesión y solidaridad necesaria para el mantenimiento de la sociedad. Habría una concepción compartida de lo bueno, creando en el individuo un sentido de integración que le lleva a participar en la creación del bien común. El modelo republicano se puede colocar en medio de ambos pues comparte elementos con uno y otro pero los articula de modo propio. Así, frente al individualismo liberal el republicanismo exigiría un compromiso con la comunidad, ahora bien, y aquí se separa del comunitarismo, no entiende que la comunidad tenga sustantividad por sí misma y previa a los propios individuos, sino que la construcción de la vida social se basa en la participación en las diversas instituciones que dan sentido a la comunidad. El modelo republicano admitiría la defensa de la autonomía y de los derechos individuales propios del liberalismo, eso si, como —————————————— serán bien vistos por los liberales o neoliberales, lo que nos lleva a la discusión de éstos frente a los partidarios del Estado del Bienestar. 50 Javier García Medina cuestiones que han de ser debatidas dentro de la comunidad y no como algo previo que condiciona la vida social. La definitiva implantación del liberalismo supuso también el triunfo de su concepción de la ciudadanía que no busca el autogobierno sino la autonomía privada, dentro de un Estado limitado que no interfiera en el ejercicio de sus derechos individuales. Modelo pasivo de ciudadanía que desincentiva el compromiso con lo público, reduciendo la política a algo ajeno y profesionalizado y que convierte al ciudadano en un estricto sujeto de derechos. Pero este modelo no es privativo de la orientación liberal, sino también de los Estados del Bienestar, en los que los ciudadanos se reducen a demandantes de servicios, que reciben a cambio de una mínima participación. Esta situación es la que hace que en los momentos actuales se sienta una distancia cada vez mayor entre la denominada clase política y los ciudadanos. Éstos entienden que los políticos no se preocupan por las cuestiones que son del interés general sino exclusivamente de aquellas que pueden dar un rédito electoral y que el papel de los ciudadanos es prácticamente irrelevante. Si los ciudadanos formulan esa queja es porque se sienten mal representados y porque consideran que su opinión no se va a tener en cuenta. Parece, pues, que lo que se impone es un cambio en el modelo de ciudadanía hacia terrenos de mayor participación lo cual nos conduciría a revisar el modelo liberal y a sustituirlo o enmendarlo desde la óptica republicana. Atendiendo al objetivo de este trabajo parece que la pregunta es si Kant sostiene un concepto de ciudadanía, si éste se puede reconducir a alguno de los modelos expuestos y si puede aportar alguna solución superadora y válida para la redefinición del concepto de ciudadanía. 5. La ciudadanía en Kant Kant en la Metafísica de las Costumbres escribe «que sólo la voluntad concordante y unida de todos, en la medida en que deciden lo mismo cada uno sobre todos y todos sobre cada uno, por consiguiente, sólo la voluntad popular universalmente unida puede ser legisladora», es decir, la voluntad unida del pueblo es la única titular del poder legislativo puesto que garantiza que el derecho que procede de él no puede ser injusto. Kant añade que «los miembros de una sociedad semejante (societas civilis) –es decir, de un Estado-, unidos con vistas a la legislación, se llaman ciudadanos (cives) y sus atributos jurídicos, inseparables de su esencia (como tal), son los siguientes: la libertad legal de no obedecer a ninguna otra ley más que a aquella a la que ha dado su consentimiento; la igualdad civil, es decir, no reconocer ningún superior en el pueblo, sólo a aquel al que tiene la capacidad moral de obligar jurídicamente del mismo modo que éste puede obligarle a él; en La Ciudadanía en Kant 51 tercer lugar, el atributo de la independencia civil, es decir, no agradecer la propia existencia y conservación al arbitrio de otro en el pueblo, sino a sus propios derechos y facultades como miembro de la comunidad, por consiguiente, la personalidad civil que consiste en no poder ser representado por ningún otro en los asuntos jurídicos». Tres son, por tanto, los elementos esenciales de la ciudadanía: libertad, igualdad e independencia. Kant concreta algo más en que haya de consistir la ciudadanía y señala que «sólo la capacidad de votar cualifica al ciudadano; pero tal capacidad presupone la independencia del que, en el pueblo, no quiere ser únicamente parte de la comunidad, sino también miembro de ella, es decir, quiere ser una parte de la comunidad que actúa por su propio arbitrio junto con otros. Pero la última cualidad hace necesaria la distinción entre ciudadano activo y pasivo, aunque el concepto de este último parece estar en contradicción con la definición del concepto de ciudadano en general». Kant eleva la nota de la independencia a decisiva para la distinción entre el ciudadano activo y el pasivo, e ilustra la misma con algunos ejemplos como los del mozo que trabaja para el comerciante o artesano, el sirviente, el menor de edad, todas las mujeres y, en general, quien por su propia actividad no puede procurar su existencia; son ejemplos de sujetos que carecen de personalidad civil al encontrarse obligados a someterse a los mandatos de otros. Pero, continúa Kant, «esta dependencia con respecto a la voluntad de otros y esta desigualdad no se oponen en modo alguno a su libertad e igualdad como hombres, que juntos constituyen un pueblo; antes bien, sólo atendiendo a sus condiciones, puede este pueblo convertirse en Estado y entrar en una constitución civil. Pero en esta constitución no todos están cualificados con igual derecho para votar, es decir, para ser ciudadanos y no simples componentes del Estado. Porque del hecho de que puedan exigir ser tratados por todos los demás como partes pasivas del Estado, según leyes de la libertad natural y la igualdad, no se infiere el derecho a actuar con respecto al Estado mismo, a organizarlo como o a colaborar en la introducción de ciertas leyes, como miembros activos; sólo se infiere que, sea cual fuere el tipo de leyes positivas que ellos votan, no han de ser contrarias a las leyes naturales de la libertad y de la igualdad-correspondiente a ella- de todos en el pueblo de poder abrirse paso desde ese estado pasivo al activo»5. Una breve reflexión nos permite apreciar que las categorías de ciudadano activo y pasivo pueden ser reconducidas, a su vez, a ciudadano y parte pasiva del Estado, de modo que la ciudadanía sólo se predica del primero pero no del segundo, pues a éste no le corresponde votar, condición imprescindible para entender que se ostenta una ciudadanía plena. Por tanto, la participación en la voluntad popular legisladora aparece en Kant como un atributo esencial de la ciudadanía, y —————————————— 5 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, 314, 315, Tecnos, Madrid, 2005, 4ª ed., pp. 143-145. 52 Javier García Medina como precondición, por un lado, de la libertad legal, en cuanto facultad de no obedecer más leyes que aquellas a las que se ha dado consentimiento, se entiende a través del voto y, por otro lado, de la igualdad civil, pues el voto de un ciudadano vale igual que el de otro. Dicho de otro modo, libertad civil, igualdad civil e independencia sólo son aplicables a los ciudadanos. La cuestión es ahora determinar quienes pueden ser ciudadanos, a lo que Kant ya nos ha respondido que quienes sean independientes. Para Kant la igualdad civil no supone una distribución igualitaria de la propiedad, situación que genera vínculos de poder y de dependencia de unos sobre otros. La ciudadanía plena se basa en no estar sometido al arbitrio de otro. Y aquello que confiere independencia es la propiedad. Se observa, por tanto, una estrecha relación entre la posición que se ocupa en el ámbito privado y en el ámbito público, pues quien tiene asegurada la independencia en su existencia y conservación por ser un propietario es quien puede alcanzar la ciudadanía. No se produce en Kant una tajante separación entre el espacio público y el espacio privado, pues la correcta participación en el espacio público mediante el ejercicio de la virtud, sin incurrir en corrupción y sin poder ser presionado, requiere la independencia en el terreno privado. Pero no se trata de establecer un filtro para excluir a quien en el terreno privado no es un propietario sino de instaurar unas garantías que eviten que los acaudalados en riqueza y poder puedan imponer su criterio. Esta perspectiva, por un lado, acerca a Kant al pensamiento republicano6, pues en éste la propiedad se consideraba un elemento privado material que aseguraba la independencia en el espacio público; y, por otro, le aleja de la comprensión liberal del Estado como un mero equilibrio de propietarios egoístas que se conforman con la no-interferencia de los poderosos. Permítase una digresión a tenor de lo expuesto. Algunos autores consideran que Kant estaría utilizando las categorías del Derecho Romano, sui iuris y alieni iuris, para aludir en el primer caso a quien es dueño de sí mismo y no está sometido a ninguna voluntad ajena; y, en el segundo caso, para referirse a quien está sujeto al poder de otro. Además, se da un paso más y se hace equivaler sui iuris, propietario y ciudadano, mientras que se entiende que el alieni iuris no puede ser propietario, y en consecuencia, tampoco ciudadano. Estas correspondencias puede que describan una buena parte de los casos pero aplicadas en general son falsas, porque en Derecho Romano, se podía ser alieni iuris y ostentar derechos políticos plenos, como algunos menores sometidos a la patria potestas que llegaban a ocupar puestos políticos. La mujer a quien automáticamente se la considera alieni iuris, pero —————————————— 6 En general la tradición republicana es propietarista, esto es, defensora de una propiedad mínima que asegurase independencia en la esfera pública y que respaldase la autonomía de juicio de los llamados a ser ciudadanos. Considérese, a modo de ejemplo, la utopía republicana de Harrington, la Océana, habitada por pequeños propietarios o las medidas de distribución de la tierra por parte de Robespierre cuando accede al poder. La Ciudadanía en Kant 53 «si no está bajo la potestad de su padre y se casa sine manu (sin entrar bajo la potestad marital) es ella misma sui iuris. […] También se hace sui iuris a la muerte del titular de la potestad: pater familias o marido, en su caso»7. Es de suponer que Kant conocía el Derecho Romano en este sentido8, de manera que si Kant efectivamente utiliza las categorías en el sentido que marcan algunos autores entonces está simplificando el sentido de las expresiones sui iuris y alieni iuris, pero, a nuestro entender, Kant lo que pretende es ilustrar, más bien, situaciones de dominación de su época. Si se analiza la propuesta de ciudadanía de Kant, a la luz de los elementos que en ella se han distinguido – pertenencia, derechos, participación –, puede señalarse que nuestro autor subraya la participación como primera característica de la ciudadanía. Es el hecho de votar lo que da plenitud a la ciudadanía. En torno a la ciudadanía centrada en los derechos, se ha de apuntar que Kant acepta la tesis republicana de que se debe renunciar a los derechos naturales individuales, puesto que en el estado civil todo derecho proviene del consentimiento de los ciudadanos mediante su libertad legal9. Por tanto, el derecho de propiedad no es un derecho inalienable. En el estado de naturaleza, en que solo hay la posesión empírica, hay una presunción de derecho10 o una propiedad provisional en comparación y en espera de la realización del estado civil en que ocurre la posesión definitiva, a partir del consentimiento de todos sobre todos11. Kant se separa de las concepciones contractualistas de Hobbes y Locke. Para el primero, la situación de amenaza constante que caracteriza el estado de naturaleza se presenta como insatisfactoria para los sujetos que la pueblan, haciéndoseles urgente salir de ella. El instrumento al que recurre Hobbes es la hipótesis de un contrato social12 que supondría renunciar unánimemente a la violencia e instaurar una autoridad que otorgue normas —————————————— 7 T. Giménez-Candela, Derecho Privado Romano, Tirant lo blanch, Valencia, 1999, p. 228. 8 S. Goyard-Fabre, Kant et le problème du droit, Librairie Philosophique J.Vrin, París, 1975, p. 19: «[…] parce qu’il a etudié le droit romain à travers les compilations impériales marquées par l’influence stoïcienne […]». 9 J. Carvajal Cordón (coordinador), Moral, Derecho y Política en Immanuel Kant, Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 1999, p. 55. 10 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 312, p. 141: «[…] esta adquisición […] es sólo provisional mientras no cuente con la sanción de una ley pública, porque no está determinada por una justicia (distributiva) pública ni asegurada por ningún poder que ejerza este derecho». 11 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 312, p. 141: «[…] es menester salir del estado de naturaleza, en el que cada uno obra a su antojo, y unirse con todos los demás (con quienes no puede evitar entrar en interacción) para someterse a una coacción externa legalmente pública; por tanto, entrar en un estado en el que a cada uno se le determine legalmente y se le atribuya desde un poder suficiente (que no sea el suyo, sino uno exterior) lo que debe ser reconocido como suyo; es decir, que debe entrar ante todo en un estado civil». 12 T. Hobbes, Leviatán, Editora Nacional, Madrid, 1979 (edición preparada por C.Moya y A.Escohotado), Cap. XIII, p. 268. 54 Javier García Medina comunes, que tiene poder coactivo para poder hacer que los pactos se cumplan. Se crea, pues, un poder soberano gracias al cual lo que era un grupo aislado de individuos se convierte en una comunidad políticamente organizada. Locke opera ya en el estado de naturaleza con unos conceptos moralizados de igualdad y libertad. Frente a la libertad ilimitada hobbesiana, Locke propone un estado de naturaleza13 regido por la ley natural que actúa como ley moral y que prescribe preservar la creación de Dios, es decir, impone el deber general de autoconservación y el deber de no realizar daño alguno a los otros en vida, integridad física, libertad y posesiones14. Los hombres a través de la recta razón acceden a estos imperativos morales que la ley natural ha inscrito en el corazón de los hombres. Surgen así unos derechos originarios, no convencionales, unos derechos naturales individuales15: derecho a la vida, derecho a la integridad física, derecho a la propiedad, derecho a la libertad. La ley natural tiene la virtualidad de fijar unas normas básicas comunes gracias a las cuales los hombres pueden establecer relaciones cooperativas, aún en ausencia de normas jurídicas coercitivas. Pero el estado de naturaleza de Locke puede convertirse en un estado de guerra cuando los hombres confundidos por sus apetitos no respetan la ley natural, pudiéndose generar conflictos cuya única solución es la justicia privada16. Esta situación de inseguridad producida por la poca claridad de la ley natural sobre lo que manda y lo que prohíbe y por la falta de un juez imparcial para la resolución de conflictos, se intenta perfeccionar, no cortar con ella como hacía Hobbes, mediante la creación de la sociedad civil y el Estado17, con el fin de garantizar los derechos individuales. Para ello es necesario que los individuos renuncien unánimemente a su capacidad de interpretar y aplicar la ley natural. El tránsito del estado de naturaleza a la sociedad civil se realiza mediante un contrato social basado en el consentimiento de los individuos, sin el cual no se podría hablar de la legitimidad del estado. La quiebra del consentimiento anula la legitimidad del poder político, lo cual no supone, como en Hobbes, volver al estado de naturaleza ya que Locke había diferenciado entre “pacto societario” – creación de una comunidad política – y “pacto de sometimiento”. Por éste último el cuerpo político constituye un gobierno cuya acción está definida y limitada por el respeto a los derechos individuales – sobre todo el de propiedad – la generalidad e igualdad ante la —————————————— 13 J. Locke, Segundo tratado sobre el gobierno civil, Alianza Editorial, Madrid, 1990, Cap. 2, p. 36 y ss. 14 I. Hampsher-Monk, Historia del pensamiento político moderno, Ed.Ariel S.A., Barcelona, 1996, p. 105. 15 J. I. Solar Cayón, «Los derechos naturales en la filosofía política de Locke» en Historia de los Derechos Fundamentales, Tomo I: Tránsito a la modernidad. Siglos XVI y XVII, Dykinson, Madrid, 1998, cap. VIII, pp. 601 y ss. 16 Hampsher-Monk, Op. cit., p. 107. 17 Locke, Op. cit., Cap. 9, p. 133 y ss. La Ciudadanía en Kant 55 ley, la soberanía intransferible (de serlo permitiría a los ciudadanos ejercer el derecho de resistencia en defensa de sus derechos individuales) y la separación de poderes. Para Kant el contrato ha de asegurar la libertad de todos a través de leyes generales que proceden de la soberanía de los ciudadanos. Se trata de un pacto de unión civil cuyo objetivo es proteger y promover la autonomía, ejercitando la libertad personal, dado que el estado jurídico creado permite la libertad de todos sin interferencias arbitrarias de nadie. En palabras de Kant: «El acto por el que el pueblo mismo se constituye como Estado – aunque, propiamente hablando, sólo la idea de éste, que es la única por la que puede pensarse su legalidad – es el contrato originario, según el cual todos (omnes et singuli) en el pueblo renuncian a su libertad exterior, para recobrarla en seguida como miembros de una comunidad, es decir, como miembros del pueblo considerado como Estado (universi); y no puede decirse que el Estado, haya sacrificado a un fin una parte de su libertad exterior innata, sino que ha abandonado por completo la libertad salvaje y sin ley, para encontrar de nuevo su libertad en general, integra, en la dependencia legal, es decir, en un estado jurídico; porque esta dependencia brota de su propia voluntad legisladora»18. Resta por aludir a la ciudadanía kantiana desde la óptica de la pertenencia, dicho de otro modo, desde la inclusión y la exclusión. Cuando en la Metafísica de las Costumbres alude a la relación del ciudadano con su patria y con el extranjero señala que «el territorio (territorium) cuyos habitantes son conciudadanos de la misma comunidad en virtud de la constitución misma, es decir, sin necesidad de realizar un acto jurídico especial (por tanto, por nacimiento), es la patria; el territorio en el que se encuentran sin que se cumpla esta condición, es el extranjero»19. Parece, por tanto, que Kant alude a la pertenencia a una comunidad política, presidida por una constitución, ubicada en un territorio, y a la que se accede por nacimiento. Si bien se habla de un concepto de ciudadanía normativa, Kant alude al nacimiento como criterio de inclusión y exclusión dentro de la comunidad política. Pero esta fórmula es ambigua y tiene consecuencias diferentes, ya que si basta nacer dentro del territorio de la comunidad para considerarse un miembro de esa comunidad entonces estaría vigente el ius soli y las consecuencias para fenómenos actuales como la inmigración serían diversas; mientras que si se sostiene que rige el ius sanguinis, entonces se consideran miembros de la comunidad aquellos que descienden (de forma biológica o adoptiva) de miembros de la misma. La primera interpretación permite una mejor correlación entre su cosmopolitismo moral y el patriotismo; la segunda, por su parte, es más excluyente y puede conducir a una postura comunitarista o, si se quiere, a un patriotismo nacionalista, pues se alude al —————————————— 18 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit.,315,316, pp. 145-146. 19 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 337, pp. 174-175. 56 Javier García Medina territorio común como elemento prepolítico de referencia, de manera que la nación preceda a la ciudadanía. Aclarar estas cuestiones exige realizar algunas consideraciones. Al tratar sobre Antropología, en Reflexionen, Kant se hace eco de la idea según la cual los sujetos tienden a pensar que la propia nación es claramente superior a las demás; postulado que puede superarse mediante una adecuada comprensión del patriotismo y del cosmopolitismo. En los debates actuales, el término patriotismo se emplea en ocasiones como sinónimo de nacionalismo; mientras que al cosmopolitismo se le atribuye la pérdida de las raíces y, por tanto, opuesto a la familia, a la comunidad y a la nación. Se aprecia, pues, una cierta incompatibilidad entre estas dos acepciones. Pero en el siglo XVIII, la incompatibilidad iba en una dirección pero no en otra, es decir, los sujetos que se consideraban patriotas tendían a denostar el cosmopolitismo pero un cosmopolita no rechazaba el patriotismo, es más éste se convertía en su referente. Y éste puede ser el caso de Kant. Es verdad que la cuestión, en tal caso, es cómo combinar patriotismo y cosmopolitismo, y qué concepción de ambos pueden ser considerados en su obra. Aludiremos brevemente, dado su general conocimiento, al cosmopolitismo. Kant puede ser definido como un cosmopolita moral, en el sentido de que todos los seres humanos son miembros de una misma y única comunidad moral y en virtud de ello tienen obligaciones morales hacia los demás sin considerar su nacionalidad, costumbres, religión o lengua20. En cualquier caso, la consideración de la ciudadanía supondría que los individuos son libres e iguales en tanto colegisladores dentro de sus respectivas comunidades. En Kant también existe una versión política del cosmopolitismo. En su filosofía política hay dos aspectos relevantes en este sentido: su conocida teoría de la federación de Estados, y la doctrina del “derecho cosmopolita”. En la Paz Perpetua y en la Metafísica de las Costumbres, Kant argumenta que los Estados deberían abandonar el estado de naturaleza y construir una liga de Estados que promueva la paz. Federación que carecería de poder coercitivo para imponer sus leyes. Los Estados mantendrían su total independencia y sólo se les pediría la conformidad voluntaria con las leyes. En ambos libros, Kant añade una nueva categoría de derecho público, a saber, el derecho cosmopolita. Mientras el derecho internacional es el derecho entre Estados, el derecho cosmopolita regula la interacción entre Estados y extranjeros, siempre que dicha interacción no esté regulada por legítimos tratados entre aquellos Estados. De acuerdo con el derecho cosmopolita, Estados e individuos tienen el derecho para intentar establecer relaciones con otros Estados y sus ciudadanos, —————————————— 20 I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, Tecnos, Madrid, 1994, pp. 30 y 38. Lo curioso es que hace esta reflexión partiendo de una analogía, es decir, entiende esta obligación como si fuesen ciudadanos de un mundo moral, o si se quiere, en términos políticos, de un estado trasnacional. La Ciudadanía en Kant 57 pero no el derecho a entrar en el territorio extranjero. Los Estados, por su parte, tienen el derecho a rechazar a los visitantes, pero no de forma violenta y carecerían de tal derecho si del rechazo se derivase la muerte de aquellos. Los extranjeros tienen el derecho de “hospitalidad”, que consiste en no ser tratado con hostilidad por el mero hecho de llegar a la tierra de otro21. Nadie tiene derecho a asentarse en la tierra de otro, a no ser que un tratado ampare la ocupación. Buena parte de la discusión de Kant acerca del derecho cosmopolita constituye una fuerte crítica de las prácticas colonialistas; y puede considerarse una aportación inicial sobre los derechos de los refugiados al amparo del derecho internacional. La defensa de Kant del cosmopolitismo moral y político cuestiona su postura en torno al patriotismo en general. Porque si los humanos, en tanto sujetos morales, pertenecen a una comunidad moral más allá de las fronteras nacionales, deberían ser tratados de la misma manera que los compatriotas y los extranjeros. Pero en la teoría política de Kant cabe el patriotismo, a pesar del peso que la idea de una federación internacional de Estados y los derechos de los visitantes extranjeros puedan ejercer en su obra. Puede encontrarse en Kant la defensa de un patriotismo que se puede denominar cívico. Defensa que aparece en diversos momentos de su obra, sobre todo en aquellos casos en que compara el gobierno “paternalista” y el gobierno “patrio”; y considera al primero como “despótico”, mientras que acepta el segundo, y caracteriza al patriótico como aquel «en que el Estado mismo (civitas) trata a sus súbditos efectivamente como miembros de una familia, pero a la vez como ciudadanos, es decir, según las leyes de su propia independencia, de modo que cada uno se posea a sí mismo y no dependa de la voluntad absoluta de otro, que está junto a él o por encima de él»22. El Estado estaría gobernado por las reglas de derecho, legislado en función de la voluntad general, y a partir de la igualdad e independencia de todos los ciudadanos. Kant de este modo introduce la noción de patriotismo en el marco de la discusión de las otras tres ideas centrales de su republicanismo: libertad, igualdad, e independencia. Para Kant, hay un claro nexo entre patriotismo y republicanismo. Kant en ocasiones menciona el patriotismo como una cualidad bien del Estado bien del ciudadano, pero sin que sea posible establecer una escisión entre ambas. Un Estado patriótico ha de considerar de igual forma a sus ciudadanos. El patriotismo del ciudadano reside en verse a sí mismos como miembros colegisladores del Estado, y no meramente como su propiedad. En consecuencia ambos se implican porque para que haya patriotismo del ciudadano ha de existir también patriotismo por parte del Estado, pues éste se construye a partir del pequeño sentimiento ciudadano de verse a sí mismo como un miembro colegislador del Estado, en caso contrario, el Estado al no considerar así a sus miembros no estaría contri—————————————— 21 I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, cit., p. 27 y ss.. 22 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 317, p. 147. 58 Javier García Medina buyendo en ese sentido. “Patriotismo”, por tanto, es el término para designar tanto el “identificarse con” como la actividad cívica en nombre de la comunidad política, concretada tanto en la participación en el gobierno de la república o en su defensa como en la promoción del bienestar de sus ciudadanos, considerados como libres e iguales. La república ha de estar al servicio del bien político común de los ciudadanos. Se trata, en último término, de un patriotismo cercano al de la tradición republicana, que no implicaría la noción de una nación en un sentido étnico23. Pero en Kant puede encontrarse un patriotismo nacionalista al considerar la comunidad política en la que cada uno es un ciudadano en cuanto grupo nacional al cual uno pertenece. Se trataría de un patriotismo en términos de pertenencia a una nación, a partir de unos comunes ancestros nacionales que se afirman como el fundamento del patriotismo. Y al tiempo defiende la idea de que todos los humanos descienden de unos ancestros comunes y que esto justifica y precisa del cosmopolitismo. De este modo, los ancestros comunes son presentados como la base de un deber de amar a los connacionales y de un deber general de amar a los seres humanos24. Se puede identificar una última clase de patriotismo que consiste en el amor al propio país que resulta de la propia experiencia de unos rasgos y cualidades particulares, como ser hospitalarios, generosos, humildes, cosmopolitas, etc., cualidades que Kant podría considerar como caracteres definitorios de los alemanes. Parece contradictorio ver el cosmopolitismo como justificación del patriotismo, pero en un examen más detallado no es per se incoherente amar al propio país a causa de las loables características de sus habitantes. Estas tres clases de patriotismo no se excluyen entre sí. Así, se puede ser un cívico patriota y también amar al propio país a causa de sus características, y considerar, por tanto, que uno tiene especiales deberes hacia los miembros de su propia nación. La incompatibilidad entre estos patriotismos ha de buscarse en otro sitio. Los tipos expuestos muestran que la perspectiva del patriotismo puede ser local, regional, de ámbito estatal, o incluso más amplio, dependiendo de lo que cada uno defina como patria. Además, no se determina cuál de estas formas de patriotismo supone en la práctica la adecuada actitud hacia los no-compatriotas. Cada una de —————————————— 23 De este modo, no es un principio (conceptualmente) imposible renunciar a la propia ciudadanía en un Estado a favor de la de otro, aunque esto depende de las leyes de inmigración y emigración para ser una opción real. Finalmente, el patriotismo cívico no requiere la abstención en la crítica de las instituciones de la república. Efectivamente, muchos autores del siglo XVIII presentan su criticismo a las prácticas sociales y políticas como una señal de su patriotismo, puesto que ellos tenían la intención de aumentar la calidad de la república apelando a sus reformas. 24 El patriotismo, el amor hacia el propio país, y el cosmopolitismo se implican (en la categoría de amor general a los otros). En ambos la determinación al amor a los otros está basada en los ancestros comunes: pero el primero es a los del lugar, y es amor hacia el propio país en su sentido verdadero cuando está dirigido a la sociedad unida del pueblo (vereinigte Volksgesellschat), el cual consideramos como nuestro tronco/tribu (Stamm), y de la cual nos consideramos como rama/miembros (Glied); el segundo está dirigido a los ancestros generales globales (Allgemeine Weltabstammung). La Ciudadanía en Kant 59 las tres variedades puede degenerar en un fanatismo militante, y cada una puede debilitarse hacia un vago sentimiento sin significado práctico. En el primer caso el patriotismo claramente excluye al cosmopolitismo, y en el segundo son insignificantemente compatibles. El asunto aquí es cómo establecer vínculos entre estos dos extremos. Lo expuesto nos cuestiona, por un lado, si Kant sostiene o no algún tipo de patriotismo; y, por otro lado, el nexo entre ciudadanía política y cosmopolitismo moral y político, pues, el cosmopolitismo moral puede neutralizar la noción de ciudadanía. En el caso de un Estado mundial ideal, el propio país y la república mundial coincidirían, y esto eliminaría la zona de conflicto, por lo menos al nivel de ideal teórico. Por tanto la cuestión estaría resuelta, al menos para el patriotismo cívico y el basado en rasgos. Pero, en su filosofía política madura, Kant rechaza el ideal de un Estado mundial y aboga por la formación de una federación voluntaria de Estados sin poderes coactivos. Él considera justificada, e incluso necesaria, la pluralidad de Estados existentes y con esta conjetura trabaja25. En definitiva, la pregunta sobre la congruencia entre patriotismo y cosmopolitismo se mantiene. El hecho de que todos los seres humanos, en tanto racionales, sean considerados moralmente iguales no significa que sean tratados exactamente igual. El propio deber de hacer perfecto implica exigencias que uno debe a todos, y a todos igualmente26. Pero el deber propio imperfecto tiene en cuenta la libertad sobre cómo y hasta qué punto uno cumple con ellos. Deberes tales como el deber de ayudar a otros en situación de necesidad o el deber de promover la felicidad general, requiere que uno adopte ciertas máximas; estos deberes no establecen actos específicos, y la decisión de qué se haga se deja al agente. Puede pensarse que esta libertad se utiliza para justificar el patriotismo, y que el hecho de que no se pueda ayudar a todos, y que de cualquier modo se tenga reducido el ámbito de actuación, le permite a uno dirigir su acción positiva hacia sus compatriotas o connacionales. Kant considera que el cumplimiento de los deberes propios imperfectos es un asunto de juicio, y explícitamente niega que sea posible determinar en abstracto cómo otros cumplirían sus deberes imperfectos27. Decir que los deberes imperfectos posibilitan la libertad equivale a decir precisamente que no hay en la moral reglas que prescriban en abstracto acciones específicas que los particulares realicen en las situaciones concretas, por lo que no cabe otro recurso que el juicio moral. Cabe, pues, plantearse si el ejercicio de esta libertad puede admitir un tratamiento preferente en atención a la connacionalidad o cociudadanía o si tal preferencia supondría un acto de discriminación reprochable contra los otros. Kant ar—————————————— 25 I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, cit., p. 41. 26 De ese modo, uno no debería mentir a los otros, a cualquiera y dondequiera que se esté, y sin reparar en si actuando así se beneficiase a otros con quienes uno se encuentra en una relación especial. 27 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 433, p. 296. 60 Javier García Medina gumenta que normativamente se requiere que todos los individuos que interactúan con otros sean miembros en un Estado. Sostiene que todos los seres humanos tienen un innato e igual derecho a la libertad externa, y que por lo tanto habría que crear un sistema de acuerdo con el cual la libertad de cada uno pueda coexistir con la libertad de los demás. Desde el punto de vista de Kant, el Estado justo es la “república”, en la que los ciudadanos son libres, iguales, y colegisladores independientes. Todo ciudadano “activo” tiene derecho a votar, pero su actividad legislativa es reemplazada por sus representantes: «Una verdadera república es y no puede ser otra cosa que un sistema representativo de personas, en orden a proteger sus derechos en su nombre, por todos los ciudadanos unidos y actuando a través de sus delegados (diputados)»28. En orden a evitar abusos, una república separaría las funciones de gobierno legislativa, ejecutiva y judicial29. Esta clase de Estado implicaría ciertos deberes de los ciudadanos hacia el Estado. Pero qué actividades de cada ciudadano requiere el patriotismo cívico dependerá de la situación y de las propias capacidades. Al ser un deber imperfecto no precisa un listado de lo que necesariamente debe ser hecho bajo determinadas circunstancias. Como mínimo, se incluiría participar en el debate público, votar y permanecer formado e informado. Cosas todas ellas necesarias para mantener un estado justo y para mejorar a uno no perfectamente justo. Pero, el argumento anterior no justifica directamente los esfuerzos morales y políticos de un ciudadano hacia los propios compatriotas mientras no se consideren las necesidades de otros. El deber del patriotismo cívico es el deber de promover el funcionamiento y el perfeccionamiento de la república como una institución de justicia. Éste no es originariamente un deber de sostener a los propios compatriotas sino, más bien, el deber de promover la institucionalización de la justicia. Es probable que aquí se diera el caso en el que los compatriotas reciben ciertos beneficios como resultado, pero éste no lo es simplemente a causa de que ellos sean compatriotas sino más bien porque son miembros de una república justa que uno debe sostener y mantener como una institución de justicia. Esto muestra que efectivamente Kant puede defender consistentemente el punto de vista según el cual los ciudadanos tienen deberes especiales hacia el Estado justo del que son miembros, deberes que no se tienen hacia otros Estados o sus miembros. Pero mostrando que el patriotismo cívico es un deber imperfecto no está suficientemente demostrado que este deber pueda también ser reconciliado con nuestro deber general cosmopolita hacia otras personas morales. Parece, por tanto, que existe un conflicto de deberes, a pesar de que claramente Kant asegura que tales conflictos no existen30. Porque, en primer lugar, el —————————————— 28 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 341, p. 179. 29 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 313, p. 142. 30 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 224, p. 30-31. La Ciudadanía en Kant 61 deber imperfecto de patriotismo cívico ha de ceder en algunos momentos a nuestros deberes morales cosmopolitas, siempre que éstos sean deberes perfectos. En segundo lugar, Kant señala que el verdadero deber de patriotismo se aplica simétricamente a gentes de otras repúblicas justas en otras partes del mundo: tienen un deber cívico patriótico hacia su república justa. Es más, Kant considera que patriotismo cívico y cosmopolitismo llevan la misma dirección31, y ésta hace incluso deseable que la gente en cualquier parte adopte el máximo de patriotismo cívico. Las repúblicas son por naturaleza más pacíficas que las tiranías, argumenta Kant, porque los ciudadanos tendrían voto para decidir si inician o no una guerra, y tendrían que soportar las cargas de la guerra ellos mismos, y es improbable que ellos voten a favor de esto32. Tendiendo hacia la paz, las repúblicas es más probable que hagan avanzar la causa de la federación de Estados y promover la meta cosmopolita de la paz perpetua, la cual a su vez aumenta la estabilidad de las repúblicas mismas. Por tanto, cuantos más patriotas cívicos de los que Kant establece haya en el mundo, cuanta más gente haya apoyando formas republicanas de gobierno, más cercana tendremos la paz global. A la inversa, Kant sostiene que oponer el bien patriótico al bien cosmopolita implica una mala comprensión de lo anterior y es autodestructivo a largo plazo. Por último, según Kant, no hay dificultad para pensar en situaciones en las cuales los dos son compatibles o en las cuales ambos pueden ser realizados al mismo tiempo. La promoción de la justicia de la propia república, pasa por concertar pactos justos con otros Estados. Esto implica que no es equivocado actuar según la propia máxima del patriotismo cívico en favor de algún fin cosmopolita, o a la inversa, a condición de que uno haya efectivamente adoptado ambas máximas. Así, nuevamente, no hay un verdadero conflicto de deberes como tal, y el deber de patriotismo cívico es compatible con los propios deberes cosmopolitas33. Kant también parece sostener un deber hacia los connacionales y al propio país derivado del patriotismo nacionalista, con argumentos que recuerdan a Rousseau, pues critica a aquellos que se sienten más cerca de la humanidad en general y de sus problemas que de aquellos que tienen presentes en su comunidad. El argumento se asienta aquí en una premisa psicológica empírica. Kant asume que la práctica del amor necesita cristalizarse alrededor de o enfocarse a algún particular —————————————— 31 G. Raulet, Kant, histoire et citoyenneté, PUF, París, 1996, p. 244: «C’est bien pourquoi, de point de vue du droit, Kant recommande une féderation d´États de droit demeurant autonomes afin qu’au sein de chacun d’eux le citoyen puisse advenir, que le sujet devienne Homme, donc membre d’une fraternité universelle. Ce n’est qu’en chacun des États que ce passage peut se faire. Il y a certes une validité pratique universelle de la morale mais pas de résolution universelle a priori des différends». 32 33 I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, cit., p. 17. Ya que un deber imperfecto es el deber de adoptar una cierta máxima, no el deber de hacer un determinado acto, Kant considera no estar equivocado cuando se actúa según una máxima particular en algunas ocasiones, La Metafísica de las Costumbres, cit., 225, p. 31. 62 Javier García Medina subgrupo de humanos hacia los cuales uno siente un apego emocional, porque la falta de tal enfoque amenaza los propios esfuerzos para cumplir los deberes de cada uno. Kant parece estar argumentando que es psicológicamente imposible por afectos y devociones personales realizar la propia beneficencia si ésta está dirigida a la humanidad en general, ya que la completa falta de tales afectos personales constituye un obstáculo para la acción moral, y esa falta de enfoque debe por lo tanto ser evitada. El patriota nacionalista entendería que siendo fiel a su país, permitiría hacer avanzar el bienestar de todo el mundo. Sin embargo, el argumento de Kant tiene dos problemas. En primer lugar, Kant inicia el argumento hablando acerca del patriotismo basado en comunes ancestros, pero acaba expresándolo en términos de fidelidad al propio país. Pero esto sólo es válido si uno asume que los límites de las naciones y los Estados coinciden y que las naciones efectivamente tienen comunes ancestros. Ahora bien, esta es una suposición general que en muchos casos puede ser falsa, ya que ni las fronteras de las naciones y Estados necesariamente coinciden, ni los miembros de una nación tienen siempre los ancestros comunes. Además, no se puede evitar que haya grupos que deseen beneficiar a alguien más allá de su propio país, dependiendo del grupo del que se está hablando y del país en que uno vive. En resumen, el argumento de Kant no justifica un deber hacia los connacionales desde el patriotismo nacionalista. A pesar de que Kant atempera su defensa del deber patriótico nacionalista en la versión publicada de la Metafísica de las Costumbres, continúa usando la analogía entre el país y la familia. Dado que el patriotismo nacionalista es frecuentemente defendido para señalar los deberes propios hacia los miembros de la propia familia y argumentando que uno tiene deberes análogos hacia los propios connacionales, uno se preguntaría si el uso de Kant de la analogía familiar muestra que todavía defiende implícitamente una versión de patriotismo nacionalista. Kant emplea la analogía familiar en diferentes lugares. En la Metafísica de las Costumbres, habla del tratamiento de los súbditos «como miembros de una familia, pero a la vez como ciudadanos» del Estado34. Y en otra parte de la misma obra dice que «los hombres que constituyen un pueblo pueden representarse, según la analogía de la procreación, como indígenas procedentes de un tronco paterno común (congeniti), aunque no lo sean; sin embargo, en un sentido intelectual y jurídico, en cuanto nacidos de una madre común (la república), constituyen –por así decirlo- una familia (gens, natio), cuyos miembros (ciudadanos) son todos de igual condición (…)»35. Defensores del patriotismo nacionalista hablan de las dos como análogas en tanto que ambas son invocadas para establecer deberes especiales por parte de sus miembros hacia los connacionales. La cuestión es si Kant opina lo mismo. Pero esto no es lo que Kant tiene aquí en mente. Por el contrario, la analogía se asienta —————————————— 34 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 317, p. 147. 35 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 343, p. 181. La Ciudadanía en Kant 63 en el hecho de que todos los miembros tanto de la familia como de la república tienen el mismo rango. Del mismo modo que todos los niños en la familia pertenecen a una misma clase social, todos los ciudadanos en una república son iguales. Así la mera comparación de un pueblo con la familia no hace de Kant un patriota nacionalista. En último término, nos queda plantear si el patriotismo fundado en rasgos o caracteres genera o no algún tipo de deber hacia los connacionales. La respuesta es negativa y la razón es una bien simple. La presencia de diferentes rasgos presupone la existencia de pueblos diferentes y esta forma de patriotismo está explícitamente enraizada en el sentimiento y en las contingencias de la psicología individual. Por lo tanto, esto no puede ser objeto de un deber general. Puesto que el patriotismo basado en rasgos se origina por definición en un sentimiento36, y porque uno no puede ser moralmente obligado a tener ciertos sentimientos, este no es un deber de raíz kantiana. 6. Conclusión En resumen, el patriotismo cívico es la única forma de patriotismo que Kant puede defender consistentemente como deber, ya que sólo este patriotismo puede conciliarse con el cosmopolitismo. Si un sujeto está firmemente comprometido con el principio moral cosmopolita según el cual uno debe promover la felicidad de otros eso quiere decir que su acción tiene valor moral. Esto demuestra que Kant está comprometido con la perspectiva según la cual cuando la deliberación moral oriente a uno para juzgar que los múltiples cursos de acción son iguales en línea con la máxima moral propia, el propio amor al país debería ayudar a decidir qué elige uno. El valor moral de las acciones no depende de su patriotismo, sino de su subrayada máxima para promover la felicidad de otros, del deber. Si el patriotismo levanta sospechas entre muchos se debe a que muchos actos realizados en su nombre no estuvieron de acuerdo con el deber como tal, siendo injustas para otros Estados y naciones o individuos de fuera – o incluso con individuos dentro del Estado a quienes se les consideraba una amenaza para la conformación del Estado o de la nación. Se dice también frecuentemente que el patriotismo ha degenerado en un fanatismo que atribuye un más alto nivel moral a los compatriotas o connacionales que a otros seres humanos. Y en tales casos, se vio—————————————— 36 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 449, p. 318: «Ahora bien, no entendemos aquí el amor como un sentimiento (estéticamente), como placer experimentado por la perfección de otros hombres; no lo entendemos como amor de complacencia (porque los demás no nos pueden obligar a tener sentimientos), sino que tiene que concebirse como una máxima de benevolencia (en tanto que práctica), que tiene como consecuencia la beneficencia». 64 Javier García Medina lan los principios básicos de la teoría moral y política de Kant, pues éste deja espacio para una forma debida de patriotismo, a saber, el patriotismo cívico. A la vista de lo expuesto el modelo de ciudadanía que Kant nos propone se corresponde, a nuestro juicio, con el modelo republicano ya que si bien a través del patriotismo cívico se está exigiendo un compromiso con la comunidad, el rechazo de un patriotismo nacionalista o basado en unos peculiares caracteres marca la idea de que la comunidad no anula y absorbe al individuo, y que la comunidad es el producto de la participación de los ciudadanos en la vida social. Los individuos pueden esperar la defensa de su autonomía y de sus derechos porque Kant estaría admitiendo la idea de autolegislación, como eje fundamental del Estado civil. Decíamos al principio que parte de los males de la sociedad actual derivaban de la incapacidad de ponernos en el lugar del otro, como consecuencia de considerarlo como alguien que nos es indiferente o, aún peor, por verlo como una amenaza. A esta cuestión se refiere Kant en la Metafísica de las Costumbres, al indicar que «aunque no es en sí mismo un deber sufrir (y, por tanto, alegrarse) con otros, sí lo es, sin embargo, participar activamente en su destino y, por consiguiente, es un deber indirecto a tal efecto cultivar en nosotros los sentimientos compasivos naturales (estéticos) y utilizarlos como otros tantos medios para la participación que nace de principios morales y del sentimiento correspondiente. Así pues, es un deber no eludir lo lugares donde se encuentran lo pobres a quienes falta lo necesario, sino buscarlos; no huir de las salas de los enfermos o de las cárceles para deudores, etc., para evitar esa dolorosa simpatía irreprimible: porque éste es sin duda uno de los impulsos que la naturaleza ha puesto en nosotros para hacer aquello que la representación del deber por sí sola no lograría»37. Esta confianza en la naturaleza humana se completa con su rotunda defensa de una educación moral, como se observa al final de la Metafísica de las Costumbres. Educación moral que sería el colofón de una educación que tendría además como objetivos: la instrucción científica y técnica y la adecuada adaptación del individuo al medio social mediante el desarrollo de las habilidades sociales necesarias. Es evidente que el objetivo de Kant no es el mismo que el que puede tener ahora la denominada Educación para la Ciudadanía, pero lo que si es cierto es que Kant estaba elevando la moral racional a referente necesario del joven y, por tanto, del ciudadano38. —————————————— 37 I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 457, p. 329. 38 J. Carvajal Cordón (coordinador), Moral, Derecho y Política en Immanuel Kant, cit., pp. 303-304. Política y Antropología en Kant Maximiliano Hernández Marcos UNIVERSIDAD DE SALAMANCA Este trabajo quiere ofrecer una reconstrucción sintética de la «antropología política» de Kant1. Con ello se alude al intento de desentrañar la concepción del hombre que está en la base de su visión del Estado y del quehacer político en general2. Se trata, sin duda, de abordar la relación entre política y antropología en el —————————————— 1 En el presente artículo las obras de Kant se citan conforme a la siguiente nomenclatura: AA = Kant’s gesammelte Schriften, edición de la Academia Prusiana de las Ciencias, Walter de Gruyter 1910 y ss.; Dissertatio = Dissertatio de mundo sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (1770); KRV = Kritik der reinen Vernunft (1781, 1787); Prolegomena = Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können (1783); Idee = Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht (1784); GMS = Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785); Mutmasslicher Anfang = Mutmasslicher Anfang der Menschengeschichte (1786); KpV = Kritik der praktischen Vernunft (1788); KU = Kritik der Urteilskraft (1790); Die Religion = Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft (1793); Über den Gemeinspruch = Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis (1793); ZEF = Zum ewigen Frieden (1795); RL = Die Metaphysik der Sitten. Erster Theil, metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre (1797); TL = Die Metaphysik der Sitten. Zweiter Theil, metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre (1798); Anthropologie = Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (1798); SF = Der Streit der Fakultäten (1798). En cuanto al modo de citar, aparece siempre tras la referencia a la obra el volumen, si lo hubiere, y la página según la primera (A) y/o la segunda edición (B). Por lo demás, este trabajo se inscribe dentro del proyecto de investigación HUM 2005-01063/FISO del Ministerio de Educación y Ciencia español. 2 No se pretende, pues, reconstruir aquí ninguna antropología filosófica que aspire a desvelar la esencia humana o a responder a la pregunta global “¿qué es el hombre?” (Kant también renunció a esta ambición especulativa); tampoco se quiere hacer lo que el filósofo crítico ocasionalmente denominó “antropología trascendental” y llevó a cabo en buena medida en su Crítica de la razón pura, a saber, un análisis del ser humano en sus capacidades cognoscitivas superiores (entendimiento, facultad de juzgar y razón) (cf. Reflexion 903, AA XV.1, p. 395); ni siquiera se tiene el propósito de extraer del filósofo de Königsberg una especie de «antropología política» al uso de los antropólogos sociales contemporáneos a base de recomponer inductivamente observaciones etnográficas o etnohistóricas. Para el concepto más teórico de «antropología política» que se maneja aquí véase M. Hernández Marcos, «Idea de una antropología política en sentido moderno. Breve bosquejo epistemológico», en: Naturaleza y Libertad. La filosofía ante los probleFILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 65-100 66 Maximiliano Hernandéz Marcos pensamiento kantiano desde una perspectiva externa a la obra estrictamente histórica del filósofo de Königsberg. Pero este enfoque metodológico tiene la ventaja nada baladí – como se mostrará a lo largo de este breve ensayo – de que contribuye a iluminar de manera más eficaz la relación entre sendos ámbitos epistémicos desde la perspectiva interna de la construcción doctrinal del criticismo, es decir, nos permite comprender mejor el lugar sistemático que corresponde a la antropología en la teoría kantiana de la praxis política. En concreto, podremos entender que la función esencial de mediación asignada por Kant al conocimiento antropológico en su visión de la praxis política responde, en el fondo, a que su manera de entender esta última así como su peculiar concepción del Estado y de lo que significa la vida civil en general tiene como presupuesto una determinada idea fundamental del hombre y de su destino histórico, sin la cual la doctrina crítica del derecho y de la política sería otra bien distinta. El tratamiento de este tema requiere secuenciar la argumentación en cuatro momentos. En primer lugar, es preciso trazar los rasgos básicos de la teoría kantiana de la praxis política, tal como se bosquejan en el Apéndice de Zum ewigen Frieden (1795) [1.], y hacer hincapié a continuación en el papel intra-sistemático que juega ahí el conocimiento antropológico [2.]. Posteriormente nos detendremos en el concepto kantiano de «antropología pragmática» para poner de manifiesto que se trata de un saber sobre el hombre orientado precisamente hacia la prudencia política del ciudadano y, particularmente, del hombre de Estado [3.]. Por último, se expone la concepción kantiana del ser humano que corresponde a la visión del quehacer político examinando la célebre y problemática teoría de las «disposiciones naturales» de la especie humana [4.]. Con esta imagen «antropológico-política» final de un hombre estructuralmente propenso a las ideas morales podrá confirmarse hasta qué punto en el republicanismo de Kant van indisociablemente unidos «idealismo jurídico» y «realismo político». 1. La teoría de la praxis política. La convergencia necesaria entre «idealismo jurídico» y «realismo político». Como es sabido, el único lugar en el que Kant formula una teoría ciertamente escueta pero precisa y rigurosa sobre la praxis política, es en el Apéndice de Hacia la paz perpetua (1795). Ese breve texto constituye, en realidad, el precipi—————————————— mas del presente, Salamanca: ed. Sociedad Castellano-Leonesa de Filosofía, 2005, pp. 181-196 (también en: http//saavedrafajardo.um.es). Un ejercicio análogo de reconstrucción antropológico-política pero comparando dos modelos distintos, el teológico-hobbesiano y el republicano, puede encontrarse en J. L. Villacañas Berlanga, «Crítica de la antropología política moderna», en: M. Cruz Rodríguez (comp. .), Los filósofos y la política, Madrid/México: F.C.E., 1999, pp. 161-190. Política y Antropología en Kant 67 tado final de una reflexión que se remonta al menos hasta el ensayo de 1793 Sobre el tópico, en el que se hace una primera aproximación, bastante insuficiente por excesivamente teórica y abstracta, al problema del quehacer político, y que va madurando progresivamente en esos años al hilo de la polémica, desencadenada por la Revolución Francesa, con el jacobinismo kantiano alemán y con el pensamiento contrarrevolucionario de orientación burkeana y neoaristotélica (Gentz y Garve) o de cuño tradicionalista inspirado en J. Möser (Rehberg), a cuyas objeciones y desafíos conceptuales, dada la relevancia de sus implicaciones históricas en aquel momento, era necesario ofrecer una respuesta coherente con el propio criticismo, además de deshacer injustos malentendidos ideológicos sobre este último3. Y esa respuesta genuinamente crítica figura ya al comienzo del Apéndice al ser caracterizada la política (Politik) como «doctrina ejecutiva del derecho» (A 66/B 71). La importancia de esta definición general, el verdadero alcance histórico de esta concepción de la acción política como aplicación o ejecución del derecho reside en que, como se mostrará a continuación, Kant se aparta tanto de una visión utópico-revolucionaria del quehacer político en la línea del jacobinismo como de su contrapartida empirista y conservadora al estilo de los contrarrevolucionarios seguidores de E.Burke o de J. Möser, para defender en su lugar un «realismo político» inseparable del «idealismo jurídico» de la razón pura práctica. Antes de pasar al análisis de lo que significa en concreto la expresión «doctrina ejecutiva del derecho», y con el fin de comprender el sentido «crítico» de esta posición kantiana, vamos a servirnos de una analogía y de una distinción terminológica, ambas tomadas del propio arsenal teórico del criticismo. Cuando Kant en la Crítica de la razón pura, al definir su postura doctrinal acerca del mundo de la experiencia, se califica a sí mismo de “idealista trascendental” (“crítico” o “formal”) y a la vez de “realista empírico”, lo hace porque, por un lado, considera que los objetos se conocen bajo ciertas formas a priori, ciertamente universales y necesarias, pero propias del sujeto humano (espacio, tiempo y categorías), y porque, por —————————————— 3 Sobre la formación de la teoría kantiana de la política en ese contexto histórico revolucionario, en la que no podemos entrar ahora, véase M. Hernández Marcos, «Política, ley permisiva y facultad de juzgar a propósito de Kant (I)», en: P. García Castillo (ed.), Trabajos y días salmantinos. Homenaje a D. Miguel Cruz Hernández, Salamanca: Anthema, 1998, pp. 51-71; «Política y ley permisiva en Kant», en: J. Carvajal Cordón (coord.), Moral, derecho y política en el bicentenario de la Metafísica de las Costumbres de Immanuel Kant, Cuenca: ed. Universidad de Castilla-La Mancha, 1999, pp. 365-380; y «Gentz, divergencia e insuficiencia del criticismo político de Kant», Res Publica (Murcia), 6 (2000), pp. 227-247. En estos artículos puede hallarse también un análisis más exhaustivo del tema de la política en Kant, del cual aquí sólo cabe presentar una visión sintética. Para la polémica con el ensayo de Ch. Garve, Abhandlung über die Verbindung der Moral mit der Politik (1788), que está también en el origen del Apéndice de Hacia la paz perpetua, véase M. Stolleis, Die Moral in der Politik bei Christian Garve, München, 1967, Staatsraison, Recht und Moral in philosophischen Texten des späten 18. Jahrhunderts, Meisenheim am Glan: Antón Hain, 1972, espec. pp. 43 y ss., 78 y ss.; así como Z. Batscha, «Despotismus von jeder Art reizt zur Widersetzlichkeit». Die Französische Revolution in der deutschen Popularphilosophie, Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1989, pp. 13-56. 68 Maximiliano Hernandéz Marcos otro lado, entiende, no obstante, que esas estructuras subjetivas sólo operan o se aplican cuando los objetos externos se dan empíricamente a los sentidos, cuando la realidad material del mundo comparece como tal ante nuestra sensibilidad4. Las formas cognoscitivas puras son, sin duda, «ideales» por constituir el esqueleto de la subjetividad cognoscente, pero no funcionan como tales al margen de la experiencia sino únicamente en el seno de ella y con ella, como estructuras ordenadoras de la diversidad empírica del mundo que se da en la intuición. En el Apéndice de Hacia la paz perpetua la defensa kantiana de la concordancia entre “moral” y “política” tiene en el ámbito «práctico» un sentido análogo al de la doctrina «teórica» de la compatibilidad entre “idealismo trascendental” y “realismo empírico”, un sentido que, parafraseando la analogía, pretendemos evocar al hablar de armonía o convergencia necesaria entre «idealismo jurídico» y «realismo político», entre las formas racionales a priori del derecho y la diversidad práctica de la materia histórica. Pero para ilustrar más adecuadamente esta idea introduzcamos ahora la distinción terminológica anunciada anteriormente. Cuando en la época de surgimiento de la Dissertatio, hacia 1769-1770, Kant reflexiona sobre la posibilidad de una “doctrina de la moralidad”, distingue dentro de ella una parte teórica, objetiva, que versa sobre los principios del enjuiciamiento moral (principia diiudicandi), y una parte propiamente práctica, subjetiva, que atiende a las condiciones de ejecución de los principios racionales puros (media o principia executionis), sin las cuales éstos no llegarían a realizarse efectivamente en la vida humana5. Esta distinción entre principia diiudicandi y media executionis nos ayudará a definir mejor el modo como la teoría pura del derecho (“moral”) concuerda con la doctrina de su aplicación (“política”) y el «idealismo jurídico» de la razón pura práctica converge necesariamente con el «realismo político» del hombre de Estado. Pasemos, pues, a desentrañar ya el verdadero significado «crítico» de la caracterización inicial de la praxis política como «doctrina ejecutiva del derecho». Esta formulación contiene, en efecto, dos ideas básicas. En primer lugar, con ella se subraya que la acción política es (ha de ser) la aplicación de una teoría nor—————————————— 4 Cf. KRV A 369-370; A 491-492 / B 519-520; A 27-28 / B 44; Prolegomena §13, Observaciones II y III. 5 «Una doctrina es práctica si no sólo contiene conocimientos ociosos sino además un medio para su execution. Ésta es la manera en que la mayor parte de las veces se pone en práctica la lógica. La filosofía práctica es una filosofía acerca de la praxis, muchas veces parece otiosa y un medio propio de la diiudication, no de la execution.» (Reflexion 6608, AA XIX, p. 107; I. Kant, Reflexiones sobre filosofía moral, Salamanca: Sígueme 2004, p. 47. Cf. Reflexionen 6613, 6619, 6628; y Dissertatio §9, A 11). Como puede comprobarse, esta distinción se retrotrae, en último término, a la división habitual de la Lógica en una parte theorica, docens y una parte practica, utens, tal como puede encontrarse en el Auszug aus der Vernunftlehre (1752) de G.F. Meier utilizado por Kant. Reinhard Brandt, Immanuel Kant: Política, Derecho y Antropología, México: Plaza y Valdés, 2001, p. 136, ha recordado que la expresión «doctrina ejecutiva del derecho» se explica a partir de ese mismo contexto lógico. Política y Antropología en Kant 69 mativa del deber (Sollen), basada en conceptos y principios racionales de libertad que no cabe extraer de la experiencia6. De ahí que Kant dirija ante todo su mirada polémica en el Apéndice de Hacia la paz perpetua contra quienes entienden la política como una mera técnica o «arte de gobierno» consistente en aplicar una serie de reglas o máximas de astucia derivadas del conocimiento empírico de la naturaleza humana y de la historia. Este empirismo «tecnocrático», que el filósofo de Königsberg divisaba en burkeanos, tradicionalistas y neoaristotélicos defensores del absolutismo ilustrado de su tiempo, constituye para él la auténtica “sofística” o ilusión dialéctica de la política, no sólo porque hace depender la tarea del estadista de simples fines materiales del arbitrio (felicidad, bienestar, etc.), sino también porque de este modo busca, en el fondo, únicamente garantizar el “poder” y la dominación de los hombres en vez del “derecho” de los mismos7. Frente a esto, Kant quiere hacer valer, sin embargo, su «idealismo jurídico» como la genuina teoría moral, normativa pura, que evita la reducción dialéctico-“realista” de la acción política a simple técnica o arte del poder y la convierte en auténtica praxis, implicada de manera prioritaria en el destino moral del hombre. Para ello es preciso que los gobernantes dejen de guiarse por reglas empíricas derivadas exclusivamente del comportamiento histórico de los seres humanos y empiecen a adoptar en su lugar las ideas y principios a priori de la razón jurídico-práctica como criterios rectores (principia diiudicandi) de su labor pública. Ello significa que la meta y tarea principal del político, el «fundamento» de su obrar no es, pues, la consecución y mantenimiento del poder, la consagración de la tradición, ni siquiera propiamente la administración del bienestar de los hombres, sino la realización del derecho y la justicia de acuerdo con las formas prácticas puras de la subjetividad libre. He aquí el verdadero «giro copernicano» que Kant plantea a la política moderna, atrapada hasta entonces entre dos formas sofísticas de «realismo», el de la vieja prudencia aristotélica y el de la reciente «razón de Estado» maquiavélica. El primer argumento del Apéndice de Hacia la paz perpetua concluye por ello dejando bien claro este primado del derecho en la praxis política: «La verdadera política no puede dar un paso sin haber homenajeado antes a la moral, y si bien la política es por sí misma un arte difícil, su unión con la —————————————— 6 7 Cf. Über den Gemeinspruch A 204 y ss. Cf. ZEF A 82-83/ B 87-88, A 69-70 / B 74-75. En el fondo Kant viene a poner de manifiesto que la sofistería política de los empiristas en cuestiones de Estado descansa en su «realismo jurídico», esto es, en la convicción de que el derecho emana exclusivamente de la facticidad del poder y está a su servicio (cf. Ibidem A 69 / B 74). Ello se debe, sin duda, a que no reconocen más moral que la política misma, a que hacen de la «prudencia política», abandonada a sí misma, el único principio válido de la acción estatal y la convierten así en una «pseudo-sabiduría del interés” de poder y de la razón de Estado (cf. Monique Castillo, «Moral und Politik: Misshelligkeit und Einhelligkeit», en: O. Höffe (hrsg.), Immanuel Kant. Zum ewigen Frieden, Berlin: Akademie Verlag, 1995, p. 103). 70 Maximiliano Hernandéz Marcos moral no es un arte, pues ésta [la moral] corta el nudo que aquélla es incapaz de desatar cuando ambas se oponen entre sí. El derecho de los hombres debe mantenerse sagrado por muy grandes sacrificios que pueda costar al poder dominante. Aquí no puede haber división en partes iguales ni cabe inventar la cosa intermedia de un derecho condicionado pragmáticamente (entre derecho y utilidad), sino que toda política debe doblegar su rodilla ante aquél [el derecho]»8. No obstante, Kant difícilmente habría salvado la objeción de sus críticos conservadores sobre el carácter “quimérico” de su teoría pura del derecho por la supuesta impracticabilidad de sus exigencias normativas9 y menos habría dado cuenta de la acusación paralela de que su “metafísica” de la razón pura era, precisamente por “platónica” y “quimérica”, la causa de revoluciones políticas como la de Francia10, si hubiera extendido el idealismo práctico más acá del cometido jurídico-racional del obrar público, hasta convertirlo en el proceder de la política misma, transformando subrepticiamente de este modo la idealidad pura de los principios de la acción en una idealidad fáctica de los medios de ejecución. Pero el idealismo kantiano, limitado a los fines jurídicos, si bien presupone ciertamente la viabilidad o factibilidad del derecho racional en cuanto exigencia normativa de la praxis política (carece de sentido plantear una tarea moral, un deber, que no pueda realizarse), no incluye, sin embargo, ni se refiere al modo de aplicación de las ideas jurídicas al mundo empírico11, que constituye, sin duda, el trabajo cotidiano del político. Por eso el segundo argumento del Apéndice de Hacia la paz perpetua, el que se sigue de la caracterización de la Politik como práctica o ejecución de la teoría pura del derecho, consiste en sostener que la idealidad moral de los principios ha de ser complementada y restringida a la vez por el realismo político de los medios y condiciones fácticas de su traslación efectiva a una determinada sociedad humana (media executionis). Kant, espoleado por la observación crítica de Friedrich von —————————————— 8 ZEF A 91/ B 97. 9 Sobre esta objeción que siempre planeó sobre el «idealismo jurídico» kantiano, y que ha llevado a entenderlo hasta hace un par de décadas como una forma de «utopismo», v. Volker Gerhardt, Immanuel Kants Entwurf «Zum ewigen Frieden». Eine Theorie der Politik, Darmstadt: WBG, 1995, p. 39, quien recuerda cómo Silvestre Chauvelot, en una carta a Kant del 18 de septiembre de 1796, aún le reprochaba que la propuesta de paz perpetua constituyese «un viaje al país de las quimeras». Cf. Asimismo R. Brandt, o.c., p. 138. 10 Kant mismo se hace eco de esta interpretación ampliamente difundida en la época, en la cual coincidían en Alemania los jacobinos kantianos (Erhard, Fichte…) y sus detractores burkeanos y tradicionalistas (Gentz, Rehberg…), en los Trabajos preliminares de En torno al tópico (1793) al plantear la cuestión de si el dicho «lo correcto en teoría vale también para la práctica» sólo tiene un significado político revolucionario (cf. AA XXIII, p. 127). 11 En esto radica la diferencia de la «política» con respecto a la «ética», entendidas ambas como prácticas de la moral (cf. AA XXIII, pp. 13-131). Política y Antropología en Kant 71 Gentz acerca de la insuficiencia e impotencia de la doctrina racional pura para convertirse en práctica sin una teoría suplementaria de la experiencia (Theorie aus Erfahrung) o de los «principios intermedios»12, se percató de que en el tránsito de los principios jurídicos de la razón a la realidad empírica del mundo y de los hombres ha de tenerse en cuenta la materia histórica que aquéllos van a conformar, de manera que no es posible, so pena de poner en peligro la buena realización de la teoría normativa, aplicar inmediatamente lo que ordena la razón jurídico-práctica (como es el caso de los deberes «éticos»), como si pudiera darse una irrupción originaria y pura del derecho en la vida social y la praxis política viniera entonces a confundirse con una acción mesiánica sobre un mundo traspasado del todo por el caos y la corrupción. Este «idealismo político» de los jacobinos alemanes, que entendía la tarea moral de la política en términos de acción revolucionaria, ignoraba, entre otras cosas, que no cabe una manifestación absoluta, una creatio ex nihilo del derecho racional en sí en un momento privilegiado de la historia humana, sin precedentes ni mediaciones institucionales del mismo, porque la «idealidad» normativa del derecho no supone su clausura en un reino trascendente de meras ideas a la espera de un acto de intervención providencial en el acaecer mundano; muy al contrario, para Kant la idealidad de los conceptos jurídicos – como la de las formas a priori del sujeto cognoscente – va unida a su realidad práctica objetiva en forma de «derecho positivo», de estructuras efectivamente ordenadoras de la diversidad fáctica de la acción social, si bien esa realización práctica es siempre la de una manifestación empírica imperfecta y “provisional” que simplemente participa, cual mera copia platónica, de aquel ideal puro del «derecho racional»13. Pero esto, en cualquier caso, quiere decir que – contra todo dualismo radical entre un supuesto mundo trascendente de pureza jurídica y un mundo empírico presuntamente contaminado de raíz – no hay un grado cero de las formas jurídicas en la historia humana, una especie de «estado de naturaleza» bruta que haya que erradicar de golpe para iniciar el orden del derecho, sino una «materia histórica» (una sociedad, un pueblo determinado) que ya tiene la forma del derecho (positivo) en —————————————— 12 Se trata de: F. von Gentz, «Observaciones complementarias al razonamiento del Sr. Profesor Kant sobre la relación entre teoría y praxis» (Berlinische Monatsschrift, 22, 1793), Res Publica (Murcia), 6 (2000), pp. 247-261. 13 R. Brandt, p. 131, ha interpretado con acierto la relación entre «derecho positivo» o «estatutario» y «derecho racional» en Kant en términos de méthexis (participación) platónica, en la se funda (pero también se restringe normativamente) el principio de continuidad jurídica. Sobre esta «realidad práctica» del derecho racional en términos de “participación” imperfecta del derecho positivo en él o de mera “provisionalidad” de este último con respecto a la relación entre constitución republicana y constituciones políticas históricas cf. RL §52, A 212-213/B 241-242; y SF A 154-156. No es casual que ahí se haga uso de la distinción «crítica», idealista, entre «númeno» y «fenómeno» para aclarar esa relación práctica. Asimismo, en nombre de la ley de continuidad jurídica que de este modo se hace valer, Kant interpreta la Revolución Francesa como «evolución de una constitución iusnaturalista» (SF A 148-49). 72 Maximiliano Hernandéz Marcos un cierto grado de aproximación a la idea, gracias a la cual se garantiza una lex continui de la razón jurídica en su devenir mundano. El político no puede pasar por alto esta realidad positiva del derecho (instituciones sociales, formas de organización política, derechos privados, etc.) ni tampoco el conjunto de condiciones empíricas (geográficas, culturales, económicas…) que definen el ser histórico de la sociedad a la que se ha de aplicar la forma racional, so pena de precipitarla en el abismo de la anarquía, de esa barbarie que consiste en la ausencia de todo derecho. Sólo que la valoración de la idoneidad y oportunidad de las circunstancias históricas para la recepción y aplicación de las ideas racionales puras no depende del conocimiento a priori del deber jurídico, que es incondicionado, ni de un sentido arraigado de la justicia, sino de un saber empírico sobre el hombre y la sociedad concreta que proporciona el «juicio» sobre el presente, así como de una capacidad técnico-práctica para usarlo correctamente para el fin del derecho y, por ende, de la felicidad de todos. Esta capacidad para el juicio y la decisión ejecutiva basada en el conocimiento empírico de las condiciones históricas y de los medios adecuados para la realización de las ideas jurídicas es, sin duda, la vieja prudencia política (Staatsklugheit)14, que Kant reclama ahora como compañera inseparable de la conciencia jurídica, en un esfuerzo por integrar el tradicional «arte de gobierno» dentro de las condiciones liberal-emancipatorias de la modernidad marcadas por el «giro copernicano» de la política, esto es, por el primado del derecho sobre la «razón de Estado» y sobre el mero poder de la historia. La convergencia necesaria entre el idealismo de los principios y fines jurídicos y el realismo de los medios y modos de aplicación política de los mismos a la realidad se traduce así en la exigencia de entender la acción del estadista en términos de sabiduría política (Staatsweisheit)15, una exigencia que se hace visible en el —————————————— 14 En la Fundamentación de la metafísica de las costumbres se define la «prudencia» [Klugheit] “en sentido estricto” como «la habilidad en la elección de los medios para el mayor bienestar propio» (GMS AB 42). Referida a la política, esa habilidad ha de concernir a la toma de decisiones adecuadas para lograr el «fin general del público», a saber, la felicidad (ZEF A 13 / B 111). Kant no se opone, pues, a la «prudencia» como tal, sino a una prudencia abandonada a sí misma y elevada a principio único y absoluto, a «moral» exclusiva de la acción política, tal como la entienden los «moralistas políticos» Sobre la relación de la «prudencia política» con el «juicio» del público v. J.L. Villacañas, Res Publica. Los fundamentos normativos de la política, Madrid: Akal, 1999, pp. 206-210; y Enrique Serrano Gómez, La insociable sociabilidad. El lugar y la función del derecho y la política en la filosofía práctica de Kant, Barcelona: Anthropos, 2004, pp. 203-221. 15 En KpV AB 194 y ss. Kant presentó ya la «sabiduría» como el ideal racional práctico del «sumo bien» y, por ende, como la realización efectiva de la unión entre moralidad y felicidad que se logra mediante la virtud (cf. TL A 46-47). Con este mismo sentido «ejecutivo» de puesta en práctica de las ideas morales entiende Kant aquí la «sabiduría política», si bien ahora se trata de la ejecución del derecho puro que concuerda con las condiciones de la felicidad general, marcadas por la prudencia, sin las cuales no se lograría el «sumo bien» a nivel colectivo y cosmopolita, pero tampoco a nivel individual. De ahí que la versión «política» de la sabiduría sea la condición prioritaria y con ello la forma por excelencia de la sabiduría práctica misma, en consonancia con la decantación «política» del «sumo bien» posible en la Tierra (v. E. Serrano Gómez, La insociable sociabilidad…, p. 67 y ss., 176 y ss.). Política y Antropología en Kant 73 nuevo ideal del «político moral», en contraste con su contraimagen tecnocrática, el «moralista político», que encarna la visión sofística de la praxis política: «Puedo pensar ciertamente un político moral, es decir, uno que toma los principios de la prudencia política de tal modo que puedan coexistir con la moral, pero no un moralista político, que se forja la moral que considera más útil para la conveniencia del estadista. […] Ahora bien, el primer principio [el principio «material» de la razón práctica], el del moralista político (el problema del derecho político, de gentes y cosmopolita) es una mera tarea técnica (problema technicum); en cambio, el segundo principio [el principio «formal» del derecho], como principio del político moral, para el cual es una tarea moral (problema morale), es totalmente diferente del otro en el procedimiento para lograr la paz perpetua, a la que desea no sólo como un bien físico sino también como un estado surgido del reconocimiento del deber. […] La solución de este segundo problema, a saber, el de la sabiduría política, se impone por sí misma, por así decir, es clara para todo el mundo, convierte en vergüenza toda artimaña y lleva directamente al fin, pero acordándose de la prudencia para no arrastrarlo precipitadamente de manera violenta, sino ir aproximándose a él sin interrupción, según las condiciones de unas circunstancias favorables»16. A manera de conclusión de lo expuesto hasta ahora, podemos resumir de la siguiente manera la concepción «crítica» de la praxis política en términos de mediación entre idealismo jurídico y realismo político, esto es, de complemento y restricción entre ambos. Por un lado, la acción política está sujeta a los principios normativos del derecho (público), que no cabe extraer de la experiencia histórica, sino que son enteramente a priori, ideas racionales de la subjetividad libre, pero que, en calidad de formas ideales de regulación de la praxis común, el político ha de realizar en el mundo convirtiéndolas en estructuras ordenadoras de la diversidad práctica de la vida social. Esta tarea moral no sólo amplía o complementa el hacer político más allá del mero proceder empírico-instrumental de la «prudencia» (le otorga una perspectiva de unidad y universalidad), sino que sobre todo restringe o limita el alcance de ésta al exclusivo ámbito técnico y pragmático de los «medios de ejecución», evitando su injerencia en el orden de los fines prácticos y su subsiguiente degeneración totalitaria, «inmoral» en la sofistería del «moralismo político» (absolutismo de la «razón de Estado» y del solo interés de poder). Por otro lado, la acción política, que siempre opera en el mundo real de la sociedad y de la historia, ha de proceder, sin embargo, según reglas instrumentales de prudencia derivadas del conocimiento empírico de los hombres y de las condi—————————————— 16 ZEF A 71/ B 76; A 83 / B 88-89; A 84-85 / B 90. 74 Maximiliano Hernandéz Marcos ciones fácticas de vida de un pueblo. Este saber empírico-técnico sobre la realidad histórica no sólo complementa la conciencia jurídica que ha de orientar al político (le añade una perspectiva de pluralidad y particularidad), sino que al mismo tiempo restringe la realización del derecho racional a las condiciones y «medios» de viabilidad fáctica que aconseja la prudencia en función de la materia histórica a la que aquél se ha de aplicar, evitando así que la conciencia moral del político interfiera en el modo de su traslación al mundo de la experiencia, con el consiguiente peligro de caer en la ilusión dialéctico-totalitaria del «misticismo de la revolución». En suma: no hay (no ha de haber) praxis política en el mundo que no esté regida por la idealidad a priori de la normatividad jurídica del sujeto libre, pero a su vez el derecho racional no puede, a través de la acción política, dar forma y ordenar la vida social (de manera pura) más que condicionado, en su realización, por la materia histórica a la que se aplica. 2. Lugar y función de la antropología en la teoría de la política. ¿Qué tiene que ver la antropología con todo lo anterior? ¿Desempeña algún papel y ocupa algún lugar en esta teoría de la política? De entrada, salta a la vista que si a la antropología le compete alguna función en la visión kantiana del quehacer político, no estará relacionada en modo alguno con el orden de los fundamentos y fines morales, con la teoría racional de los principios jurídicos que han de guiar al estadista, sino en todo caso únicamente con el orden de los media executionis de aquella tarea moral, con la teoría empírico-realista de la prudencia política. Pues siempre que Kant se ha pronunciado sobre su estatuto epistémico dentro de la filosofía crítica en algunos de sus escritos, la ha considerado como una ciencia empírica ligada a la “aplicación” de la «metafísica de las costumbres»17. Como doctrina «ejecutiva» de la teoría moral pura parece, en principio, confluir claramente con la política y, en concreto, ocupar un espacio, si es que ha de tenerlo, dentro de la doctrina de la prudencia. —————————————— 17 En el Prólogo de la Fundamentación de la metafísica de las costumbres se considera la así llamada «antropología práctica» como la parte “empírica” de la Ética o filosofía práctica en general, a diferencia de su parte “pura”, que es la “moral” o “metafísica de las costumbres” (GMS AB). En la Metafísica de las Costumbres se recuerda que la “antropología” no es necesaria para fundamentar la «metafísica de las costumbres» ni para fijar, por ende, la teoría pura del derecho, sino sólo para aplicarla. En este sentido se habla allí de una «antropología moral» que «contendría sólo las condiciones subjetivas, tanto obstaculizadoras como favorecedoras de la realización de las leyes de» aquella metafísica racional «en la naturaleza humana, la creación, difusión y consolidación de los principios morales (en la educación y en la enseñanza escolar y popular) y de igual modo otras enseñanzas y prescripciones fundadas en la experiencia» (RL AB 11). Pero esta “antropología práctica” o “moral” no llegó a ser escrita por Kant ni constituyó el tema de sus célebres Lecciones de Antropología. En su lugar lo que apareció en 1798 fue, en la línea de las Lecciones, una antropología «pragmática». V. Al respecto nuestra nota 24. Política y Antropología en Kant 75 Ahora bien, ¿ha planteado el propio Kant esa presumible relación entre política y antropología y ha llegado a definir, en su caso, el lugar que a ésta le corresponde en el marco de su concepción de la Politik? La parquedad del filósofo crítico en este asunto nos obliga a tener que colegir una hipotética respuesta a partir de algunas afirmaciones ocasionales relacionadas con el tema. En el Apéndice de Hacia la paz perpetua encontramos tres declaraciones sintomáticas en el contexto de la polémica con los «moralistas políticos». Por un lado, Kant sostiene que la visión técnico-realista de la política como una práctica de poder siguiendo principios contrarios al derecho se escuda en «el pretexto de una naturaleza humana incapaz de hacer el bien según lo que prescribe la razón», y para la que es, pues, «imposible cualquier mejora» moral18. La concepción pesimista del hombre como un ser «malo» o corrupto por naturaleza parece ser aquí el supuesto antropológico de una concepción escéptico-realista de la política como mera técnica del poder destinada a controlar y demorar el mal. Este sentido meramente instrumental de la acción política y de la relación de los mandatarios con los ciudadanos y los pueblos se halla refrendado por el hecho de que el pesimismo antropológico va unido ahí a una visión «mecánico-naturalista» de la historia y de los seres humanos que los sitúa «en la misma clase que las restantes máquinas vivientes», con la sola diferencia ciertamente de contar con la «conciencia de no ser seres libres»19, pero siendo en realidad igualmente manipulables. Por otro lado, Kant atribuye esa antropología naturalista y pesimista de los «moralistas políticos» a un conocimiento empírico de «los hombres (lo cual puede esperarse, por cierto, ya que tienen que tratar con muchos)», pero no «del hombre y de lo que puede hacerse de él (para lo cual se requiere un punto de vista superior de observación antropológica)»20. Frente a una concepción tan empirista de los seres humanos que no es capaz de trascender con su mirada el plano meramente fenoménico de los individuos y del mecanismo natural de sus comportamientos particulares, del cual sólo cabe extraer conclusiones pesimistas y una correspondiente práctica de astucia y de poder, el filósofo de Königsberg viene a plantear aquí la necesidad de hacer pivotar la praxis política sobre una antropología que proponga una concepción del hombre resultante no de la inmediatez de la experiencia en su diversidad sino de una contemplación de la misma desde una perspectiva “superior” y externa a ella, que nos permita obtener un visión de unidad y totalidad acerca del —————————————— 18 ZEF A 74 / B 78-79. 19 Ibidem, A 86 / B 91-92. Obviamente este naturalismo antropológico, que niega la libertad del ser humano, sólo puede traer consigo una restricción técnico-realista de la política a mera doctrina de la prudencia, ya que la Klugheit se atiene a la experiencia humana y la comprende sólo bajo «la legislación única del entendimiento», ignorando la legislación moral de la razón (Cf. M. Castillo, «Moral und Politik…», p. 205). 20 ZEF A 75-76 / B 81. 76 Maximiliano Hernandéz Marcos ser humano en su existencia empírica. Parece claro que esta perspectiva global y unitaria sólo puede suministrarla la razón en el uso empírico de su principio regulativo, proyectado aquí sobre la diversidad de la experiencia humana y de su historia21. La importancia de esta antropología hecha desde el punto de vista global de la razón estriba en que sólo mediante ella Kant puede mostrar a los adversarios empírico-realistas que su teoría jurídica de la constitución republicana y de la paz perpetua, así como la tarea idealista que ella comporta para la praxis política, no constituye una quimera impracticable, una «idea vacía»22 que exceda de las posibilidades y capacidades reales del hombre, sino que es incluso «más realista que la mera prudencia de los políticos orientados al mundo»23, porque se ajusta mejor a lo que la naturaleza humana y la historia, consideradas en conjunto, en cierto modo buscan o tienden a hacer. Si el estadista hace suya esta perspectiva antropológica “superior”, si se aparta de la estúpida ceguera que impone la atención exclusiva al juego cotidiano de pasiones e intereses de quienes le rodean, entonces se convencerá – tal es el argumento kantiano de fondo contra los «moralistas políticos» – de que actuar según principios jurídicos, además de ser moral, es también más prudente que obrar contra el derecho, pues de esta manera cumplirá ciertamente lo que la razón pura ordena (según la Staats- und Völkerrechtslehre), pero también estará haciendo a la vez lo que aconseja (conforme a la Staatsklugheitslehre) la experiencia del acontecer histórico mismo. Estas observaciones nos permiten pergeñar ya el lugar y función sistemáticos del conocimiento antropológico dentro de la teoría kantiana de la praxis política. En primer lugar, puede decirse con carácter general que la antropología forma parte de los media executionis de la Politik, en la medida en que suministra un conocimiento empírico sobre el hombre que resulta indispensable para la prudencia de las decisiones políticas. En segundo lugar, hay que matizar, sin embargo, que, para Kant, no cualquier antropología o doctrina del hombre presta este servicio prudencial sino sólo aquélla que contempla la naturaleza humana y su variado acaecer histórico desde el punto de vista unitario de la razón. Ello se debe a que únicamente este saber antropológico “superior” cumple la función que propiamente corresponde a la antropología dentro de la «doctrina de la prudencia política»: no sólo (ni principalmente) la de enseñarnos (y enseñar al político) cómo actúa de hecho el hombre (o los hombres) para proceder astutamente en consecuencia, sino sobre —————————————— 21 Sobre el principio regulativo de la razón en su uso empírico v. KRV A 643 y ss. / B 671 y ss.; y KU AB XXXII-XXXVIII, XLIX y ss. Es obvio, como se mostrará después, que se trata del concepto “teleológico” de naturaleza que se aplica aquí al caso del hombre como ser natural, tal como se bosqueja al final de la Crítica de la facultad de juicio. 22 ZEF A 14 / B112. 23 R. Brandt, Immanuel Kant… (2001), p. 138. Política y Antropología en Kant 77 todo la de indicarnos «lo que puede hacerse de él» («was aus ihm gemacht werden kann»), es decir, la tendencia general observable en la naturaleza humana que nos asegura la viabilidad o factibilidad de la tarea jurídica de la política. Dicho de otro modo: no se trata tanto de adoctrinar al estadista sobre cómo ser prudente en este o en aquel caso proporcionándole información empírica relevante sobre la conducta y motivaciones de los hombres, cuanto más bien de sugerirle la forma general de actuar siempre con prudencia (que no es otra que la de realizar el derecho siguiendo el principio de publicidad) mostrándole que el ser empírico del hombre, la naturaleza de las cosas humanas en su conjunto confluye con lo que manda la moral, con lo que “debe ser” según la razón práctica. La convergencia necesaria entre derecho y prudencia política, entre moralidad y felicidad (públicas) que – como es sabido – asegura a cada decisión particular del estadista la fórmula positiva del principio de publicidad al final de Hacia la paz perpetua, tiene, pues, en esa antropología “superior” su base empírica general, su garantía cognoscitiva racional. Y con ella se fundamenta al mismo tiempo la posibilidad de que el «idealismo jurídico» del estadista sea también la mejor forma de «realismo político». Pero ¿cuál es esa antropología “superior” que viene a garantizar la viabilidad política de la Constitución republicana y de la paz perpetua? ¿Cuál es la concepción del hombre en general que ella contiene, y que avala la tarea jurídica del político? A responder a estas dos cuestiones: la del perfil científico o epistémico de la antropología política y la de su contenido propio, dedicamos los dos apartados siguientes. 3. Idea y alcance político de la antropologia «pragmática». El tratado antropológico que Kant publica en 1798 no contiene la «antropología práctica» o «moral» mencionada en varias ocasiones como complemento empírico y «ejecutivo» de la filosofía moral sino un estudio científico del hombre, basado ciertamente en la experiencia, pero hecho – como reza en el título de la obra – «desde un punto de vista pragmático» (Anthropologie in pragmatischer Hinsicht)24. En el Prólogo de la obra hay indicaciones bastante claras acerca del esta—————————————— 24 Aunque no faltan textos en las Vorlesungen über Anthropologie en los que parece tener lugar esa identificación, al considerarse en ellos la Antropología, ya entendida en sentido «pragmático», como inseparable de la Moral por ser la «ciencia de las reglas del comportamiento real del hombre» que nos da a conocer si el sujeto humano «puede» o «está en condiciones de realizar lo que se exige de él» moralmente (Ethik-Vorlesung de 1774-75, editada por Paul Menzer, AA XXVII, 244; cf. Friedländer-Vorlesung über Anthropologie, invierno de 1775-76, AA XXV.1, p. 471-72; Mrongovius-Vorlesung über Anthropologie, 1784-85, AA XXV.2, 1211), R. Brandt, Kommentar zu Kants Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, Hamburg: Meiner, 1999, pp. 15-16 ha aducido, sin embargo, tres razones contra la idea de que el tratado de 1798 sea el complemento sistemático de la Moral: 1) No hay coincidencia alguna en las palabras clave de 78 Maximiliano Hernandéz Marcos tuto epistémico de esta Antropología. Ante todo Kant deja bien claro que no nos entrega una ciencia meramente teórica del ser humano, que se limite a ampliar nuestra erudición sobre su naturaleza o sobre lo que el hombre supuestamente es mediante una indagación empírica o especulativa de su ser psicofísico o de la relación entre el alma y el cuerpo, tal como era habitual en la época. Alejándose de la orientación científico-experimental de la antropología psicofisiológica de Ernst Platner y Charles Bonnet, lo mismo que de la tradición racionalista alemana de la «Psicología empírica» como parte de la Metafísica (Wolff y Baumgarten)25, Kant propone y ofrece una antropología que selecciona los conocimientos empíricos sobre el ser humano en función de su utilidad para la acción del individuo en el —————————————— ambos lados: en los escritos de Moral se habla de antropología «práctica», pero no de «pragmática», y tanto en la Anthropologie publicada como en los manuscritos de las Lecciones no hay la más mínima alusión a términos éticos clave como «imperativo» y «categórico». 2) Tampoco hay una discusión, ni siquiera una alusión en la Anthropologie de 1798 a su posible relación sistemática con la Filosofía Moral, como tampoco en los escritos de filosofía moral se menciona la «Antropología pragmática» y el posible papel sistemático de ésta; y 3) Kant concibió y fue elaborando la Antropología como una disciplina autónoma, en su origen ligada a la Psicología Empírica de Baumgarten, pero desde mediados de los setenta orientada a la interacción global del ser humano, no restringida al ámbito moral, y concebida por ello como una «doctrina de la prudencia del hombre en cuanto ser mundano», que se halla vinculada más bien con la Geografía Física (Kant de hecho presenta en la Anthropologie ambos cursos unitariamente como dos formas de «conocimiento del mundo» -Anthropologie AB XIII-XIV). Ni en su comienzo ni en su desarrollo posterior está, pues, la idea de ser un «complemento de la filosofía moral». Conviene añadir, no obstante, que esta concepción de la «Antropología en sentido pragmático» como un saber independiente de la Filosofía Moral en su enfoque, objetivos y buena parte de los contenidos no significa que en ella no se aborden algunas de esas “condiciones subjetivas”, empíricas de realización (u obstaculización) de la moralidad (a saber, sentimientos, apetitos e inclinaciones, etc.) de las que se supone debería ocuparse exclusivamente la «Antropología práctica» o «moral»; más bien ocurre lo contrario, y en este aspecto la obra de 1798, sin ser restrictivamente la aplicación antropológica de la teoría de la razón pura práctica, contiene muchos elementos empíricos complementarios de ésta, elementos que, por otra parte, aparecen también diseminados en la Metafísica de las costumbres. Para un análisis más minucioso de la problemática de la Antropología pragmática y de las correspondientes Lecciones, véanse los trabajos de R. Brandt ya citados (el Kommentar, 1999; e Immanuel Kant, 2001, aquí especialmente el ensayo titulado «La idea rectora de la Antropología Kantiana y la determinación del Hombre», pp. 197-219), así como su «Einleitung» de Vorlesungen über Anthropologie, AA XXV.1, pp. VII-CLI, trabajos que tenemos muy presentes en este apartado. 25 La Antropología pragmática no es, pues, ni una antropología filosófica que aspire a desvelar mediante la razón la «esencia» del ser humano respondiendo a la cuestión “¿qué es el hombre?” –según la formulación de las cuatro célebres preguntas rectoras de la «filosofía pura» en la Lógica (1800) y en la carta a C.F. Stäudlin del 4 de mayo de 1793-, ni una antropología trascendental, que mediante el «autoconocimiento del entendimiento y de la razón humana» (cf. Reflexion 903) delimite el campo de lo cognoscible a priori; por la metodología empírica que desde el inicio la caracterizó, la Antropología (pragmática) fue siempre concebida por Kant como una disciplina al margen de su sistema puro de filosofía crítica (cf. R. Brandt, Kommentar…, pp. 16-17, 8). Mas no por ello la antropología kantiana se abandona a la orientación fisiológica (e incluso fisiológico-médica) de la emergente Psicología experimental, a la que, según Kant ya en 1773, se ve abocada la «Psicología empírica», la cual –contra Baumgarten- en modo alguno puede pertenecer ya a la metafísica, y se limita a indagar los mecanismos físico-naturales que intervienen en los procesos psíquicos, suministrando con ello un mero conocimiento contemplativo, que no conduce a resultado práctico alguno (cf. Anthropologie AB IV-V; R. Brandt, Kommentar…, p. 11, 59 y ss.; Immanuel Kant…, p. 204). Política y Antropología en Kant 79 mundo, una antropología orientada a la formación de ciudadanos, elaborada, por tanto, para ser aplicada al “hombre mismo”, «como ser que actúa libremente»26. Este giro científico desde la mera descripción y explicación cognoscitivas del acontecer psíquico de los hombres («lo que él hace»), siguiendo el planteamiento de Baumgarten, hacia la investigación de los fenómenos psicofísicos desde una perspectiva «pragmática» («lo que puede hacer de sí»), que se inicia en el semestre de invierno de 1773-74, vino determinado por la necesidad de establecer un «puente desde la escuela o universidad hacia el mundo»27, y se halla expresamente recogido en el Anuncio de las Lecciones de Geografía Física para el semestre de verano de 1775: «El conocimiento del mundo [Weltkenntnis] es el que sirve para proporcionar lo pragmático a todas las ciencias y habilidades adquiridas de otro modo, gracias a lo cual éstas se tornan útiles no solamente para la escuela, sino también para la vida, y el aprendiz ya formado se introduce en el escenario de su destino [Bestimmung], es decir, en el mundo»28. Pero ¿qué es «lo pragmático» de todos los conocimientos antropológicos?; ¿en qué consiste la perspectiva «pragmática» en la investigación de la naturaleza empírica del hombre? Cuando Kant se planteó por primera vez dar este giro a su curso de Antropología, su intención inicial fue abarcar todo el ámbito de «lo práctico», y no sólo ni prioritariamente el territorio estricto de lo moral, según se nos informa en la carta a Marcus Herz del otoño de 1773. Es claro, no obstante, que en una teoría empírico-antropológica de la «razón práctica» en general que aspiraba a erigirse en una forma de «conocimiento mundano» frente al mero «conocimiento escolar», el criterio desde el que tenía que enfocarse y abordarse la diversidad del material de observación disponible no podía ser otro que el del fin natural subjetivo de la acción en el mundo, a saber, la «felicidad» humana29. Esta finalidad eudemó—————————————— 26 Anthropologie AB III-IV; cf. AB VI. La «libertad» de acción que aquí entra en juego no es, pues, la del concepto «trascendental» de KRV o del «positivo»-moral de KpV, sino la que corresponde a la perspectiva exclusivamente empírico-mundana de la observación antropológica: la «libertad del arbitrio», la libertad de decisión y acción, la de la «distinción cotidiana entre actos que está en nuestro poder hacer u omitir conforme a experiencia» (R. Brandt, Kommentar…, p. 39). 27 R. Brandt, Kommentar…, p. 11; cf. Immanuel Kant…, pp. 204-05. 28 «Ankündigung der Vorlesungen der physischen Geographie im Sommerhalbjahre 1775», en: AA II, p. 443. Cf. asimismo el «Proemium» de la Friedländer-Vorlesung de 1775-76 (AA XXV.1, pp. 469-471). 29 Para Kant, lo que determina la orientación «mundana» o «cosmopolita» de un saber es el criterio teleológico desde el que se organizan sus conocimientos. Así, cuando en la Crítica de la razón pura se defiende una concepción “mundana” (conceptus cosmicus) de la filosofía pura frente a la meramente “escolar”, se apela a la «teleología de la razón humana» para estructurar el sistema arquitectónico de los conocimientos a priori en torno a una Metafísica (inmanente) de la Naturaleza y a una Metafísica de las Costumbres (cf. KRV A 838-841/ B 866-869). Análogamente, la consideración de la Antropología como parte del «conocimiento mundano» (Weltkenntnis), junto a la Geografía Física (que se ocupa de la utilidad del 80 Maximiliano Hernandéz Marcos nica de la existencia práctica es precisamente la que lleva a Kant a concebir su Antropología como una «doctrina distributiva de la prudencia»30 y a calificarla por ello de «pragmática» por extensión metafórica de un término de origen político, las así llamadas «pragmáticas» de los gobiernos, con el que se aludía a las «providencias» de los Estados «para el bienestar general»31. Que el modo como el conocimiento antropológico sirve para introducir en el «mundo» pasa, pues, por su transformación en un «arte de la prudencia», se sigue claramente de la evidencia práctica de que el fin natural de la felicidad sólo puede lograrse mediante una administración prudente de nuestras capacidades, sentimientos y apetitos, sin la cual al individuo le resultará muy difícil convivir de manera razonable o saludable con los demás individuos en sociedad así como consigo mismo. Semejante formación «mundana» o capacitación para el trato social (prudente) con los hombres y con uno mismo entra dentro de «lo que puede hacerse a partir de» cualquier ser humano o de «lo que éste puede hacer de sí» o «extraer de sí mismo» («aus sich selbst herausbringen») si desarrolla sus disposiciones y, en particular, sus impulsos e inclinaciones naturales de acuerdo con la capacidad ra—————————————— saber sobre la otra parte del mundo, o sea, la «naturaleza» en general, la Tierra en particular), se debe también a su enfoque «teleológico», sólo que en una ciencia empírica del hombre no pueden invocarse los fines últimos de la razón pura que inspiran el sistema metafísico, sino la finalidad natural (subjetiva) de la acción humana, que no es, sin embargo, el «fin último» de la naturaleza para la especie. 30 R. Brandt, Immanuel Kant…, p. 205. En este mismo sentido se pronuncia, por ejemplo, la Ch.C. Mrongovius-Vorlesung correspondiente al curso de 1784-85: «En la antropología escolástica se indago las causas de la naturaleza humana. En la pragmática me limito a estudiar su estructura y trato de encontrar aplicaciones a mi estudio. La antropología se denomina pragmática cuando no sirve a la erudición, sino a la prudencia [Klugheit]» (AA XXV.2, p. 1211). De ahí que Kant en la Fundamentación de la metafísica de las costumbres califique de «pragmáticos» a los «consejos de prudencia», en la medida en que son «imperativos hipotéticos» relacionados con la consecución de la «felicidad» (cf. GMS AB 42-44). 31 GMS AB 44 nota. Y en esa misma nota añadía Kant: «Una historia [Geschichte] está redactada pragmáticamente cuando nos hace prudentes [klug], es decir, cuando instruye al mundo acerca de cómo puede procurar su provecho mejor o al menos tan bien como en tiempos pasados». Esta idea de una «Historia en sentido pragmático» (o «cosmopolita») la había concebido Kant ya algunos años antes como una disciplina complementaria de la Antropología pragmática y se había referido a ella – sin llegar a escribirla – en los cursos de Antropología como una forma alternativa de escribir la historia que, frente al tradicional relato meramente descriptivo de los acontecimientos gloriosos del pasado (guerras, sucesión de dinastías…), reconstruyese los acontecimientos políticos desde la perspectiva de “un mundo mejor”, recordando para «la posteridad sólo aquellas acciones que contribuyeron a la prosperidad de todo el género humano» (Menschenkunde oder philosophische Anthropologie [hacia 1780], ed. Por F. Ch. Starke, Leipzig 1831, p. 374). Esta «Historia pragmática» parece que debía tener la misma función y cumplir el mismo propósito que la correspondiente Antropología: dar a conocer los fenómenos del hombre, en ese caso históricos (más que empírico-psicológicos), que pueden favorecer un arte de la prudencia en el trato práctico con el mundo (y con nosotros mismos), que pueden contribuir, por tanto, a la formación de buenos ciudadanos y que, de manera especial, han de servir de guía cognoscitiva para una praxis política de buen gobierno. Para este concepto de «historia pragmática» y su conexión con la Antropología v. R. Rodríguez Aramayo, «Kant ante la razón pragmática (Una excursión por los bajos del deber ser)», estudio preliminar de: I. Kant, Antropología práctica (Según el manuscrito inédito de C.C. Mrongovius, fechado en 1785), Madrid: Tecnos, 1990, pp. IX-XLIX (espec. pp. XVII-XXI). Política y Antropología en Kant 81 cional que nos ha sido dada en lugar del “instinto”, según lo establecido por Kant en la tercera proposición de sus Ideas para una historia universal en sentido cosmopolita (1784)32. Ahora bien, hacer prudentes a los hombres o enseñarles a que ellos mismos se hagan prudentes mediante consejos sacados del conocimiento empírico de su naturaleza equivale a formarles para ser buenos ciudadanos, capaces de llevar una vida «cívica» en sociedad, ya que todo proyecto de felicidad, aunque es siempre individual, sólo puede llevarse a cabo en el medio de la vida social y, en última instancia, en una comunidad humana, de manera que la formación «civil» en la «prudencia mundana» es parte inseparable de la formación propia en la «prudencia privada»33. Esta dimensión «civil» de la felicidad y de la prudencia explica precisamente que un conocimiento orientado a «saber vivir» en el mundo y a educar, en este aspecto, para la ciudadanía pueda ser calificado de «pragmático», dado que, al igual que las «pragmáticas» de los gobiernos, no sólo tiene por objeto el bienestar de los individuos sino que además presupone la condición y decantación política (común, pública, social) del mismo. A la vista de la conexión conceptual de carácter práctico recién descrita entre felicidad, prudencia y ciudadanía sobre la que se articula la «razón pragmática», se comprende que una antropología elaborada desde esta perspectiva sea la que, precisamente por su finalidad civil, ocupe un lugar destacado entre los media executionis de la Politik. En efecto, el conocimiento empírico del hombre orientado a la acción prudencial en el mundo tiene una doble utilidad «pragmática» para el político, en su doble condición de individuo y de estadista. En cuanto a lo primero, la antropología pone a su disposición un conjunto de enseñanzas sobre los sentimientos, apetitos, inclinaciones y pasiones del hombre así como sobre el mejor modo de ordenarlas satisfactoriamente que le ayuda a formarse como un buen ciudadano, a convertirse en un hombre prudente en el mundo de las relaciones sociales en el que ha de moverse, que en su caso es primordialmente el mundo de la vida pública. Pero también el hombre de Estado (no ya sólo el ciudadano particular) recibe, por otro lado, del conocimiento antropológico una información indispensable acerca de la naturaleza humana que ha de servirle de base para un arte de la prudencia política o del buen —————————————— 32 Idee A 390. Repárese en la identidad casi literal de las tres expresiones antropológicas que recogen la naturaleza práctica del hombre: «was aus ihm gemacht werden kann» (ZEF A 76 / B 81); «was er […] aus sich selber macht, oder machen kann…» (Anthropologie, AB IV); «…dass der Mensch alles […] gänzlich aus sich selbst herausbringe » (Idee A 389-390). 33 En la Fundamentación de la metafísica de las costumbres se establece con nitidez esta conexión: «El término “prudencia” se toma en un doble sentido; en el primero puede llamarse “prudencia mundana”, en el segundo “prudencia privada”. La primera es la habilidad de un hombre para influir en otros con el fin de usarlos de cara a sus propósitos. La segunda es la perspicacia para hacer converger todos esos propósitos con su propio provecho duradero. Esta última es propiamente aquélla a la que se retrotrae incluso el valor de la primera, y de quien es prudente según el primer tipo pero no conforme al segundo, sería más correcto decir que es hábil y astuto, pero en suma, sin embargo, imprudente» (GMS AB 42). 82 Maximiliano Hernandéz Marcos gobierno, al menos en el sentido fundamental y general de llevarle a decidir públicamente teniendo en cuenta lo que los hombres quieren y «pueden hacer» (y no sólo «lo que de hecho hacen»), así como el modo más adecuado de satisfacer este fin natural del público (la felicidad), lo cual implica, de entrada, poner en marcha una administración distributiva de los bienes y recursos comunes que contribuya al bienestar de todos en la comunidad estatal. Gobernar, pues, para la felicidad del pueblo: tal parece ser la consecuencia de que la prudencia llegue «a las cortes desde los gabinetes de estudio» de la Antropología y de la Historia «pragmáticas»34; tal parece ser también el modo como la «prudencia política» viene a coincidir con la «prudencia privada» del político que aspira personalmente a mantenerse en el poder o a conquistar «un recuerdo glorioso en la posteridad»35. Este saber sobre el hacer humano y sobre sus capacidades psíquicas orientado al manejo prudencial de los hombres y a la administración racional de los intereses colectivos ¿es todo lo que la Antropología «pragmática» puede aportar a la Politik? ¿Cómo podría entonces esta ciencia empírica del hombre acreditar una praxis de prudencia política distinta de la del «absolutismo ilustrado» de un Federico II, por ejemplo, quien gobernaba ciertamente de manera autocrática pero para el bien del pueblo, y hacerse valer como una concepción alternativa y “superior” del hombre frente a la visión empirista y alicorta de los hombres puesta en práctica por los «moralistas políticos», si permanece atrapada en el vertiginoso devenir de los fenómenos psíquicos y de sus mecanismos ciegos de acción, sin la posibilidad de ofrecer otras reglas de conducta en el mundo que las de la sola Klugheitslehre, elevada así a única moral? ¿Puede una Antropología que se agote en el solo «arte de la prudencia» avalar la viabilidad de la tarea jurídica de la política y proporcionar a la ciudadanía una formación «cívica» concordante con las exigencias normativas del espíritu republicano? La Antropología kantiana, como parte sistemática de su teoría de la Politik, no puede permanecer ajena a la convergencia necesaria entre «idealismo jurídico» y «realismo político» que se reclama para la praxis política. También ella ha de abandonar, pues, el suelo pantanoso de la razón pragmática, situarse fuera de la centrípeta mirada empirista que absorbe a ésta, y contemplarla desde allí, remitiéndola a sus debidos límites, en el lugar que le corresponde dentro de la praxis humana. Esa perspectiva «idealista», «trascendente» a la experiencia, desde la cual, sin embargo, ha de contemplarse la realidad empírica de las acciones de los hombres, procede – como se indicó arriba – de la razón pura en su esfuerzo —————————————— 34 Cf. Reflexion 1436, AA XV.2, p. 628. En esta Reflexion Kant exige, en realidad, que la “sabiduría”, en vez de la sola prudencia, llegue «a las cortes desde los gabinetes de estudio», en un alegato claramente crítico contra el absolutismo ilustrado de la época. 35 Idee A 411. Como es sabido, el motivo del interés privado del príncipe en gobernar para el bien del pueblo, e incluso de acuerdo con las leyes promulgadas por él mismo, fue frecuentemente aducido por los teóricos oficiales del absolutismo ilustrado en Alemania para ahuyentar el peligro de despotismo (forma suprema de imprudencia, a la vez política y privada) que se cernía jurídicamente sobre los monarcas absolutos. Política y Antropología en Kant 83 por alcanzar la totalidad universal y unitaria de la pluralidad y diversidad de los cursos pragmáticos del hacer humano, y ha de constituir, sin duda, el signo distintivo de la Antropología “superior” que Kant echa de menos en los partidarios de la sola teoría de la prudencia política. ¿Hay rastros doctrinales de esta consideración “superior” del hombre en el tratado antropológico de 1798? En la fenomenología general de las capacidades psíquicas del sujeto humano y de sus comportamientos patológicos que se ofrece en la primera parte, la más amplia de la obra, la «Didáctica antropológica», encontramos ciertamente un variado mosaico de «lo que el hombre hace» de hecho (facticidad psíquico-práctica) y de «lo que puede hacer(se) de él» en función de su ser empírico (consejos prudenciales), esto es, atendiendo a lo que, en realidad, «la naturaleza hace del hombre»36 al dotarle de determinados talentos (capacidades cognoscitivas) y temperamentos (capacidades afectivo-apetitivas), pero en modo alguno podemos hallar ahí (exceptuado el último párrafo sobre «el bien físico-moral» – §88) indicaciones sobre lo que el ser humano «hace» o «puede hacer de sí mismo» en sentido estricto y radical (más allá de lo que quepa hacer con él desde un punto de vista instrumental y pragmático) ni sobre la perspectiva de totalidad que unifica y da sentido a los múltiples cursos individuales de acción así como al uso y desarrollo de esas dotaciones naturales de los hombres. Ese horizonte “superior” sobre la existencia humana se dibuja, sin embargo, con bastante nitidez en la segunda parte, la «Característica antropológica», y, en concreto, en el capítulo final sobre «El carácter de la especie». La importancia de ese capítulo es doble. En primer lugar, allí se sustituye la miopía analítica y empirista de las facultades y hechos de los hombres por la contemplación sintético-práctica de los mismos en su dimensión histórico-sistemática, como fenómenos que han de ser valorados desde el punto de vista global, «colectivo» del todo de la humanidad como especie natural sobre la Tierra («universorum»), desde el cual el agregado múltiple de estrategias y complejos de acción individuales así como de formas diversas de despliegue de las capacidades cognoscitivas, afectivas y apetitivas («singulorum») puede tener un sentido unitario o responder a una finalidad específica dentro del reino de la naturaleza en su conjunto. Como es sabido, para Kant los individuos humanos no representan nada de por sí en el orden natural, pues a diferencia de los animales y demás seres vivos no pueden realizar en ellos el fin de su naturaleza y, por ende, son simples medios para el desarrollo de la especie. Ello se debe, sin duda, a la peculiaridad de su carácter como especie biológica, que no viene dado de antemano por una serie de determinaciones fijas e instintos innatos, sino que ha de ser adquirido mediante la acción a lo largo de la historia, en el curso ininterrumpido de las generaciones sucesivas. En segundo lugar, en la exposición de esta doctrina del «carácter» de la especie humana encontramos dos ideas fundamentales que nos sitúan en los límites —————————————— 36 Anthropologie A 267 / B 265. 84 Maximiliano Hernandéz Marcos de la Antropología «pragmática», ya que plantean la consumación de ésta avanzando precisamente más allá de su limitada comprensión «naturalista» de las acciones humanas. Me refiero, por un lado, a la idea del destino moral de la especie humana que se reconoce de antemano en su «carácter» o signo diferencial entre los seres vivos: la «perfectibilidad» o capacidad de «darse sus propios fines», gracias a la libertad (de su arbitrio) y a la razón, en virtud de la cual se abre para el hombre la perspectiva, trascendente a la naturaleza sensible, de crearse un carácter «inteligible» propio (moral) con absoluta independencia de ésta, desde el cual cobra un sentido total y unitario su existencia, tanto a nivel individual como colectivo. Pues «lo que el hombre puede hacer de sí mismo» por libre arbitrio según se naturaleza psíquica (talentos y temperamentos) queda entonces condicionado por lo que «debe hacer» según su libertad trascendental y su destinación a la autodeterminación racional pura37. El orden «pragmático» de la vida de los individuos y de los pueblos, la multiplicidad de sus cursos de acción prudencial según el mecanismo de los sentimientos y pasiones, el desarrollo de las capacidades cognoscitivas, afectivas y apetitivas de los hombres, que por sí solo considerado tiene un «precio» en el intercambio teleológico-instrumental de las relaciones sociales y carece, por ende, de una finalidad última, tiene sentido ahora como medio de realización de la tarea moral, a la vez que recibe un valor absoluto al convertirse también en asunto de moralidad, en objeto de deberes jurídicos y éticos38. Incluso la naturaleza entera, no ya sólo nuestra vida sensible como especie racional, cobra también sentido como un sistema de fines subordinado al ser moral del hombre en cuanto «fin final de la creación»39. La perspectiva “superior”, trascendente, del destino moral de la especie humana nos conduce así, por otro lado, a la segunda idea fundamental, aquélla en la que se cifra el genuino servicio «pragmático» que la Antropología presta al «po—————————————— 37 R. Brandt, Immanuel Kant…, pp. 198 y ss., especialmente 205-206; Kommentar…, p. 9 y ss., ha mostrado que la Antropología es el resultado del ensamblaje de los tres aspectos prácticos del hombre: el fáctico (“lo que el hombre hace”), el pragmático (“lo que puede hacer”) y el normativo (“lo que debe hacer”), que recogen los tres estratos de formación del texto y de evolución de las Lecciones, y ha subrayado además que el último estrato incorporado al Curso de Antropología desde mediados de los años setenta fue precisamente el del «carácter» y «destino moral de la especie humana» como consecuencia de la asunción de la idea rousseauniana de la perfectibilidad del hombre. Con esta cuestión del destino moral de la especie Kant suministraba así la «unidad histórico-sistemática» de todos los cursos particulares de acción y les daba el sentido de “totalidad” que no puede encontrarse en lo meramente pragmático. 38 Como es sabido, la «libertad del arbitrio» es en la Rechtslehre el único «derecho innato» y, por ende, el objeto y base fundamental de todo el orden jurídico, orientado a garantizar precisamente la autonomía empírica de acción y decisión de los hombres en sus diversos grados o niveles sociales. A su vez en la Tugendlehre tanto la propia conservación física como el cultivo y perfeccionamiento «pragmático» de las propias facultades naturales (corporales, psíquicas, espirituales…), además incluso de la felicidad ajena, forma parte de los deberes éticos del individuo. 39 KU §84, AB 398-99; Cf. AB 396 nota; y Mutmasslicher Anfang A 10-11. Sobre esta cuestión del carácter de la especie volveremos en el próximo apartado. Política y Antropología en Kant 85 lítico moral», al concienciarle del «realismo» de su praxis jurídica guiada por la meta republicano-cosmopolita de la razón pura. Se trata del nuevo punto de vista, también “superior” pero inmanente, sobre el hacer empírico del hombre que supone concebir la naturaleza en general y la del ser humano en particular no en los términos meramente mecánico-deterministas que nos entrega la experiencia inmediata, sino en el sentido “teleológico” que Kant elabora en la segunda parte de la Crítica de la facultad de juicio, y que en sus escritos políticos y de filosofía de la historia ha vinculado, reelaborándolas, a la idea cristiana de “Providencia” y a la vez a la estoica de “destino” (fatum)40. Pues este nuevo concepto nos lleva a vislumbrar en la pluralidad fáctica de las acciones individuales y de sus estrategias patológicas o prudenciales un hilo conductor común, una «tendencia natural» que nos permite comprender racionalmente y encontrar un sentido unitario en el variopinto teatro de indignación que es la historia real de los seres humanos, un sentido que ha de ser, desde luego, concordante con nuestro destino moral, esto es, con la posibilidad real de crearnos un carácter propio por medio del obrar. Pues si la perspectiva suprasensible de la moralidad como destino de la especie nos otorga la confianza en la actividad humana, en la capacidad de mejora mediante la acción, no podemos entonces admitir como definitiva esa visión pesimista de la naturaleza del hombre que nos ofrece la conducta de los hombres no ya sólo en “la historia antigua” sino también “en la historia de cada día”, con el espectáculo habitual de la idiotez, el ocultamiento y el engaño deliberado, más propio de una “caricatura” despreciable y burlesca que de una especie con un “puesto de honor entre las restantes” de la Tierra; visión negativa que, por lo mismo que sólo invita a la pasividad de los ciudadanos, abandonados así al mero juego eficaz del poder para controlar o demorar el mal (a la manera del katechon schmittiano), sirve únicamente para justificar – como lo acredita incluso el caso de Federico II – un gobierno despótico, basado en la “impostura” de la sola «astucia política»41. Frente a esta imagen de la desesperanza histórica, con la idea de la moralidad ha de abrirse paso (salvo que aceptemos sin más una absurda esquizofrenia en el ser humano o la contradicción de una finalidad destinada a no poder cumplirse) una concepción esperanzada del hacer empírico de los hombres que sea compatible con su autodeterminación pura, que nos haga tomar conciencia de que nuestra naturaleza no es reacia u hostil a los fines normativos de la razón sino que incluso apunta hacia ellos, de manera que entonces lo que el estadista debe hacer según los principios a priori del derecho tenga la sanción de «viabilidad» característica de lo que la naturaleza humana puede hacer por sí misma siguiendo la necesidad de su propio curso histórico. —————————————— 40 Para estas diversas denominaciones de la naturaleza teleológica v. ZEF AB 47-51. Cf. También R. Brandt, Immanuel Kant…, p. 216 y ss. 41 Cf. Anthropologie A 332-334 / B 330-332. Acerca de esta interpretación de Federico II como «político moralista» o de la mera «prudencia política» en nombre de una visión empírico-pesimista del hombre como una “raza malvada” o corrupta, véase la última nota a pie de página de la Antropología. 86 Maximiliano Hernandéz Marcos Pero ¿cuál es ese concepto teleológico de la naturaleza humana? ¿Qué notas lo definen de tal modo que podamos pensarlo en concordancia con los conceptos morales de libertad? Aunque Kant llega a una formulación bastante precisa de ese concepto ya en los años ochenta (aparece claramente en Idea de una historia universal en clave cosmopolita y se sugiere implícitamente tres años antes en la «Disciplina de la razón pura» a propósito del camino dialéctico o de ofuscación cognoscitiva que sigue la metafísica), es en la Anthropologie de 1798 donde se presenta vinculado al «carácter de la especie», y es considerado precisamente como la garantía real, en calidad de estímulo, del perfeccionamiento humano. Se trata de la comprensión global del mecanismo empírico y negativo de la «discordia», el «mal» o el «antagonismo» en el despliegue de las facultades psicofísicas que determina causalmente el curso práctico de la historia y de los hombres como una estructura teleológica que conduce, no obstante, hacia el «fin último» de la naturaleza en el hombre como especie viva, esto es, hacia la cultura como forma de desarrollo de todas las disposiciones naturales: «… pero en todo ello lo característico de la especie humana, en comparación con la idea de posibles seres racionales sobre la Tierra en general, es esto: que la naturaleza ha puesto en ella el germen de la discordia y ha querido que su propia razón saque de ésta aquella concordia, o al menos la aproximación constante a la misma, que es en la idea el fin, pero de hecho, en el plan de la naturaleza, es sólo el medio de esta última y suprema sabiduría inescrutable para nosotros: la de producir el perfeccionamiento del hombre por medio del progreso de la cultura, aun cuando sea con más de un sacrificio de las alegrías de su vida»42. Sobre esta idea estoico-teleológica de naturaleza vamos a hacer aquí sólo tres aclaraciones. La primera es que, en consonancia con el planteamiento de la Crítica de la facultad de juicio, la representación del curso fenoménico de la acción humana en su conjunto como un mecanismo natural que tiende, sin embargo, a un fin, no tiene valor cognoscitivo o explicativo («teórico»), pues carece de una realidad objetiva acreditable en la intuición empírica; es simplemente un concepto «problemático» de la razón pura que funciona como principio regulativo de la facultad de juicio reflexionante en relación con la totalidad del hacer histórico del hombre en cuanto ser vivo, gracias al cual podemos entender globalmente su com—————————————— 42 Anthropologie A 316 / B 313-314. La traducción sigue el manuscrito «H» de la Anthropologie, el propio de Kant, no el texto publicado en 1798 con las correcciones del copista Külpe que cambian del todo el sentido al concebir la «discordia», en vez de la «concordia» como el «medio» de la naturaleza para el fin de la cultura humana. Cf. Al respecto R. Brandt, Kommentar…, p. 471. Otra formulación del mismo concepto teleológico, más general, es la de KU §67, AB 300-301: «“todo cuanto hay en el mundo es bueno para algo y nada en él es gratuito”». Política y Antropología en Kant 87 portamiento real o hacerlo inteligible de acuerdo con nuestras propias categorías, teleológico-prácticas, de racionalidad, es decir, en analogía con nuestra «capacidad de actuar según fines»43. No se trata, pues, de que la naturaleza humana opere de hecho con intenciones, proponiéndose como fin «último» la cultura de sus diversas capacidades ni, por ende, de que persiga este fin conscientemente hasta lograrlo; se trata más bien de que la razón exige que juzguemos el propio mecanismo causal, en sí ciego, de los procesos empírico-prácticos del hombre en su totalidad, como si fuera un proceder con sentido, fundado en una «causalidad final», de la misma índole que la que mueve los actos de nuestra voluntad libre, porque dicho mecanismo parece conducir de por sí al mismo resultado que conseguiría un ser inteligente que se lo hubiera propuesto como objetivo práctico. Ese proceder concordante (de manera casual o contingente) del ser natural humano con el del ser racional práctico tiene, en segundo lugar, un carácter dialéctico que Kant formula de diversas formas (discordia concordante, surgimiento del bien a partir del mal y antagonismo social o «insociable sociabilidad»44), coincidentes todas ellas en poner de manifiesto que la plena realización de las capacidades naturales del hombre es el resultado de la suprema complexio oppositorum, es decir, tiene lugar únicamente cuando se da la máxima diversidad y discrepancia, la máxima libertad particular posible bajo las mejores condiciones de unidad y comunidad, de coexistencia pacífica de las libertades. Dicho de otro modo: el perfeccionamiento natural de la especie humana depende, por un lado, de que se —————————————— 43 Cf. KU §61, AB 268-270; §64, AB 285; §67, AB 301. Asimismo ZEF AB 48-51: Esta causa teleológica «no podemos propiamente conocerla en las construcciones artísticas de la naturaleza ni tampoco inferirla de ellas, sino que sólo podemos y debemos pensarla (como en toda relación de la forma de las cosas con fines en general), para formarnos un concepto de su posibilidad, por analogía con las acciones artísticas del hombre, pues representarse la relación y concordancia de la misma con el fin que la razón nos prescribe inmediatamente (el fin moral) es, empero, una idea que, si bien es delirante en sentido teórico, está, sin embargo, bien fundada según su realidad y dogmáticamente en sentido práctico (por ejemplo, para utilizar aquel mecanismo de la naturaleza en relación con el concepto de deber de la paz perpetua)». Para una visión más exhaustiva de esta noción teleológica de naturaleza y su utilidad práctica v. P. Laberge, «Von der Garantie des ewigen Friedens», en: O. Höffe (ed.), Immanuel Kant…(1995), pp. 149-170; y recientemente M. Meinhardt, «Der Naturbegriff in Kants Entwurf zum ewigen Frieden», en: H.W. Ingensiep/ H. Baranzke/ A. Eusterschulte (eds.), Kant-Reader. Was kann ich wissen? Was soll ich tun? Was darf ich hoffen?, Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005, pp. 271- 291. 44 Conviene aclarar que el concepto dialéctico-teleológico de naturaleza no se restringe al mecanismo de la «insociable sociabilidad». Éste, en realidad, es –como se verá en el próximo apartado- únicamente la forma dialéctica de desarrollo de la «facultad apetitiva» y, por lo tanto, sólo una de las manifestaciones de una naturaleza que se sirve también de otros mecanismos dialéctico-teleológicos en los restantes ámbitos de la vida humana: por ejemplo, el mecanismo de la confusión y el ocultamiento cognoscitivos para llegar a la verdad (ámbito del saber o de la «facultad de conocer») o el mecanismo del dolor como medio de activación para acceder al placer del arte y de la cultura (ámbito de «la facultad de sentir») (cf. Brandt, Kommentar…, p. 13). Aquí, no obstante, nos referiremos fundamentalmente a aquella forma «pragmática» de la concordia discordante de la naturaleza, porque, al ser la implicada directamente en el desarrollo del ámbito práctico y social del hombre, es la que también tiene un claro signo político. 88 Maximiliano Hernandéz Marcos alcance el mayor grado de pluralidad y diferencia en el desarrollo de los individuos y los pueblos, pero esto sólo es posible, por otro lado, si entre ellos se da una situación de unidad y armonía social completa, que garantice aquella total diversidad sin perjuicio o menoscabo de la libertad de alguna(s) parte(s). En este sentido la Quinta Proposición de Idea de una historia universal en clave cosmopolita declara por ello que el «fin último» o «propósito supremo» de la naturaleza en la especie humana, a saber, la cultura o el pleno «desarrollo de todas sus disposiciones naturales», sólo puede lograrse en una «sociedad civil que administre universalmente el derecho», es decir, en una sociedad de “máxima libertad” o «antagonismo generalizado entre sus miembros», pero a la vez de «protección y fijación máximamente exacta de los límites de esa libertad» para asegurar la coexistencia de las libertades de todos45. Obviamente Kant piensa que esa situación sólo se dará en una «sociedad cosmopolita» articulada sobre la base de Estados de constitución republicana, y que, por tanto, ésta, como forma suprema de «concordia», es también la «tarea suprema de la naturaleza para la especie humana»46. Repárese en un detalle importante: la sociedad de paz cosmopolita no es el fin último de la naturaleza en el hombre sino la «única condición formal bajo la cual ésta puede conseguir ese propósito final suyo» que es la «cultura» de todas las disposiciones47. En este aspecto la armonía social en general y, en particular, la armonía perfecta de una sociedad universal justa es sólo un «medio» (el único medio) para el “plan” o «fin último» de la naturaleza – de acuerdo con el fragmento citado del manuscrito «H» de la Anthropologie –, aunque, como «tarea» real en «poder del hombre», venga a ser a efectos prácticos el fin pragmático de la naturaleza en nosotros. Ahora bien, la dialéctica entre concordia y discordia en el mecanismo natural de la especie humana no se refiere sólo a la meta ni consiste en exclusiva en que únicamente bajo condiciones de «concordia», y a fortiori de concordia suprema, se obtenga la máxima discordia o desarrollo diferenciado de las disposiciones naturales. Este aspecto, con frecuencia descuidado por la historiografía kantiana sobre el tema, es, sin embargo, inseparable de la otra cara de la relación dialéctica, la que los intérpretes de Kant han subrayado suficientemente, a saber: que en el origen está la «discordia» como factor de la concordia, que la «insociabilidad» es el estímulo o acicate que activa o pone en marcha las capacidades naturales del hombre, posibilita así el desarrollo de las mismas frente a la inercia de la pasividad, la pereza o el abandono a la mera animalidad, y genera con ello formas de cultura y «sociabilidad» que controlan, limitan y favorecen a su vez un despliegue «sano» (pacífico) de las tendencias individualizadoras. Como motor desencadenante del —————————————— 45 Idee A 394-395. 46 Ibidem, A 395. Cf. Anthropologie A 331-332 / B 329-330; A 334 / B 332. 47 KU §83, A 388-89 / B 393. Política y Antropología en Kant 89 perfeccionamiento humano, el antagonismo de las inclinaciones egoístas es – según Idee, prop. 5ª – el «medio» de la naturaleza para que el hombre se haga a sí mismo y adquiera un «carácter» propio. Pero la discordia como tal no perfecciona al ser humano; lo hace sólo en la medida en que lleva consigo socialización, esto es, en la medida en que crea las condiciones de armonía y cultura social con las que o bajo las cuales se despliegan las capacidades naturales de manera diversa y saludablemente discordante. A este respecto, Kant, sirviéndose de la metáfora de los árboles que crecen rectos sólo si están juntos formando un bosque, señala que las inclinaciones naturales no pueden desarrollarse aisladamente y en estado de libertad salvaje, sino tan sólo en el «terreno acotado de la unión civil»48. En este sentido cabe decir que de la discordia, por la necesidad misma de autodespliegue de los impulsos, surge la concordia y que, por tanto, el antagonismo natural acaba siendo la causa del orden social o político. Ahora bien, como esta «tendencia natural» a la sociedad común desde el interés privado conlleva un proceso gradual y progresivo, en el horizonte del propio curso histórico de las cosas humanas está (es una posibilidad fundada) que el mecanismo de la insociabilidad pueda llegar a ser la causa de la fundación de una constitución republicana y de una sociedad de paz cosmopolita. Basta con que por la evolución tan negativa de los acontecimientos mismos (violencia insostenible, guerras aniquiladoras, depresiones económicas, etc.) se llegue a una situación en la que los hombres y los Estados se convenzan, por propio interés, de que la mejor forma de contrarrestar los efectos destructores de sus inclinaciones egoístas es una «buena organización del Estado» y de las relaciones internacionales. En esas circunstancias el consejo de la prudencia política, coincidirá con el imperativo de la moral, de tal suerte que entonces «el mecanismo de la naturaleza basado en las inclinaciones egoístas que se oponen externamente entre sí de modo natural», podrá «ser utilizado por la razón como un medio para hacerle sitio a su propio fin, el precepto jurídico, y, por ende, para fomentar y asegurar también la paz tanto interna como externa, en tanto que ésta descansa en el Estado mismo»49. De este modo, bajo la presión ineludible de las causas eficientes en el orden fenoménico de la historia natural, la razón pura práctica sacará de la discordia más insociable la genuina «concordia» del derecho según la causalidad inteligible de su representación en la idea, se la propongan o no los gobernantes como quehacer político: fata volentem ducunt, nolentem trahunt.50 Esta advertencia kantiana, dirigida a los políticos de su tiempo, acerca de la plausible inevitabilidad de la constitución republicana y de la paz internacional —————————————— 48 Idee A 395. 49 ZEF A 61 / B 62; cf. AB 51. 50 Ibidem A 58 / B 59. 90 Maximiliano Hernandéz Marcos según el determinismo natural de las inclinaciones humanas, constituye la conclusión extrema, a fortiori, del argumento antropológico con el que, en tercer lugar, quiere apoyar su defensa crítica de una praxis de «idealismo jurídico» como la mejor forma de «realismo político», a saber, el argumento de que la naturaleza empírica del hombre, lejos de ser contraria al fin jurídico-práctico de la razón pura – como argüían sus adversarios empiristas –, actúa en concordancia con ese fin, ya que los efectos y producciones sociables inherentes al mecanismo causal de los egoísmos particulares incluyen como medida más prudencial, tras una larga y penosa experiencia histórica (no puede saberse cuándo aquel mecanismo natural forzará la resolución más prudente), una organización social republicana y cosmopolita de todos los habitantes del globo terráqueo. Por consiguiente, si la especie humana tiende por naturaleza a lo que la razón ordena como deber moral, la tarea política de fundar constituciones republicanas y alcanzar la paz perpetua no es «quimérica» sino perfectamente «viable»; más aún: es la tarea más genuinamente «realista», la forma más prudente de hacer política, la que más se ajusta al curso natural de las cosas humanas. De esta manera, la praxis política del estadista que gobierne según la idea pura del derecho, se caracterizará no sólo por la certeza «científica» que emana del imperativo categórico de la razón (la de saber siempre «qué hacer»)51, sino también por la “certeza moral” que proporciona la garantía teleológica de la naturaleza humana: la de confiar en la eficacia o éxito del obrar moral, la de no desesperar en el esfuerzo político por conseguir un reino de paz y justicia en la Tierra, porque, a pesar de las apariencias, no nos hallamos en un mundo infernal o diabólico, sino en un orden natural que trabaja secretamente a favor del bien52. Para concluir este apartado, hagamos una reflexión final sobre la relación entre lo «pragmático» y lo «moral» en la Antropología y en la Política kantianas. En primer lugar, salta a la vista que el realismo superior del «político moral» que sigue la regla de la primacía del derecho, nos remite de nuevo al planteamiento «pragmático» que inspira la Antropología kantiana, y pone de manifiesto hasta qué punto el conocimiento del hombre orientado a la formación de ciudadanos prudentes ha de culminar con la doctrina del «carácter de la especie» y de su destino moral. Pues la moralidad, aunque de por sí trascienda el ámbito de la prudencia, tiene —————————————— 51 52 Cf. ZEF A 67-68 / B 72-73. Cf. Anthropologie A 328 / B 326: la perspectiva que abre la «tendencia de la naturaleza» al fin racional puede «esperarse, si no la cortan de una vez revoluciones naturales, con certeza moral (suficiente para el deber de cooperar a ese fin)». Cf. ZEF A 64-65 / B 66: «De este modo la naturaleza garantiza la paz perpetua mediante el mecanismo de las inclinaciones humanas mismas, ciertamente con una seguridad que no es suficiente para predecir (teóricamente) el futuro, pero que sí es suficiente en sentido práctico, y que convierte en deber trabajar con miras a ese fin (no meramente quimérico)». Sobre este sentido práctico inmanente de esa antropología «negativa» de la «insociable sociabilidad» para la acción jurídica del político véase también R. Brandt, Kommentar.., p. 13; Immanuel Kant…, p. 141, especialmente nota, y 217-218. Política y Antropología en Kant 91 una indudable utilidad «pragmática» para el trato social en el mundo, ya que implica una estabilidad en el obrar de los hombres que permite a cualquier individuo saber a qué atenerse con respecto a ellos con la misma infalibilidad con la que confía en el curso de las estrellas. En efecto, de un hombre que tiene “carácter” (moral) – afirma Kant –, «se sabe con seguridad lo que puede esperarse de su voluntad», dada la firmeza de sus principios de autodeterminación racional53. La misma certidumbre práctica en relación con sus fines propios con la que cuentan los individuos que se relacionan con personas de principios morales, es también la que tiene con respecto a los fines del público el político que actúa según la normatividad del derecho y el principio de publicidad, y la que los ciudadanos mismos pueden albergar de cara a sus propósitos privados bajo un gobernante así. El proceder moral en general garantiza, por tanto, la máxima prudencia, la única prudencia «cierta» (no la de la mera probabilidad empírica) en las relaciones sociales tanto al individuo como al hombre de Estado. Pero, en segundo lugar, la tendencia natural del mecanismo causal de los egoísmos hacia formas sociables nos permite hablar asimismo, en sentido inverso, de la utilidad «moral» de la prudencia, por más que el comportamiento «pragmático» no conlleve de por sí moralidad. Pues, por un lado, parece evidente que una conducta imprudente, de entrega a las pasiones propias, impide toda posible autonomía moral del individuo. En cambio, un proceder consigo mismo y con los demás según las reglas de la razón prudente, aunque no nos convierta en seres morales, crea las condiciones externas adecuadas para ser moralmente autónomos. En este sentido cabe decir que la prudencia, en el individuo lo mismo que en el estadista, trabaja a favor de la moralidad. 4. El concepto de homo politicus. La teoría de las «disposiciones naturales» de la especie humana. Una vez mostrado en el apartado precedente que la Antropología asegura la prudencia del estadista que actúa según los principios jurídicos de la razón, mediante la constatación de un proceder de la naturaleza humana que hace viable y sensata semejante praxis política, es preciso examinar ahora la idea concreta del hombre como especie natural que avala o fundamenta la concordancia entre tarea normativa y necesidad del curso empírico de las cosas que está en la base de esa concepción «crítica» de la Politik. Se trata, por consiguiente, de analizar el con—————————————— 53 Anthropologie A 256 / B 254; cf. A 266 / B 264. R. Brandt, Immanuel Kant…, p. 206 ha señalado que la perspectiva pragmática de la Anthropologie predomina incluso cuando se aborda el tema del «carácter» y destino moral de la especie, porque éste es considerado allí en relación con el trato práctico en el mundo. 92 Maximiliano Hernandéz Marcos cepto de homo politicus que nos brinda la Antropología kantiana, y que nos obliga a volver de nuevo al ya mencionado capítulo sobre «El carácter de la especie». La visión del hombre como «animal político» que se bosqueja allí se desprende básicamente de la relación entre dos nociones, la de «carácter» y la de «destino» [Bestimmung], así como del concepto que media o transita entre ellas: el de «disposición natural» [Naturanlage]. Veamos lo que cada uno de estos conceptos aporta a la visión kantiana de la naturaleza humana. Kant empieza ofreciéndonos esta primera imagen general del «carácter» distintivo del hombre como ser vivo de la naturaleza: «Para señalar al hombre su clase dentro del sistema de la naturaleza viva y así caracterizarle no nos queda, pues, más que decir lo siguiente: que tiene un carácter que él mismo se crea, al estar capacitado para perfeccionarse según fines sacados de sí mismo, gracias a lo cual, como animal dotado de la facultad de la razón (animal rationabile), puede hacer de sí mismo un animal racional (animal rationale)»54. Haciendo un uso rentable de la ambivalencia del término, Kant viene a poner de relieve ante todo que la especie humana no tiene propiamente un «carácter» natural sino la capacidad para adquirir o crearse un carácter, que será necesariamente «cultural». Dicho de otro modo: el signo distintivo (lo «característico» en general) del hombre como especie animal («universorum») está en que la naturaleza no le ha dado estas o aquellas cualidades o propiedades biológicas fijas y determinantes («carácter sensible»), sino tan sólo la «facultad, como ser racional, de otorgarse un carácter en general tanto para su persona como para la sociedad en la que le coloca la naturaleza»55. Que entre todos los seres vivos el ser humano es el único animal dotado de la facultad de la razón («rationabile») significa, pues, que es el único ser con capacidad de perfeccionarse y de conseguir un «carácter» propio convirtiéndose en animal racional («rationale»). La «perfectibilidad» que le caracteriza no es más que la capacidad de darse o «proponerse en general» fines propios56, con independencia de la constricción físico-biológica de la naturaleza, una capacidad que viene dada por el libre arbitrio del ser humano, frente al arbi—————————————— 54 Anthropologie A 315 / B 313. 55 Ibidem A 328 / B 325-26. Para esta distinción entre «carácter natural» o sensible y «carácter pura y simplemente» (moral) como «modo de pensar» (Denkungsart) v. Ibidem A 255-56 / B 253-54; A 266 / B 264. 56 Cf. TL A 23; KU §82, AB 383. Este planteamiento concuerda sustancialmente con el de la Tercera Proposición de Ideas para una historia universal en clave cosmopolita, en el que se dice que el hombre ha de sacar todo de sí mismo y buscar su felicidad haciendo uso de su razón y libertad. Para la procedencia histórica de la idea de «perfectibilidad» de Turgot y Rousseau v. R. Brandt, Kommentar…, pp. 466-67, quien, por otra parte, subraya la visión más negativa del hombre del texto de Ideas en comparación con el de Anthropologie. Política y Antropología en Kant 93 trium brutum del animal carente de razón. Ello presupone, sin duda, que el hombre es un «ser carencial» en cuanto a su constitución natural, en el sentido de no estar determinado (mecánicamente) por un cuadro instintivo y una serie de dotaciones fisiológicas de adaptación al medio para hacer frente a las necesidades de la vida. Mas no por eso es un ser «indeterminado», absolutamente plástico – como supone Pico della Mirandola –, para el que resulte indiferente lo que pueda hacer de sí, como si su capacidad racional representase una mera posibilidad lógica para elegir entre múltiples figuras alternativas igualmente plausibles y válidas. Muy al contrario, la facultad de otorgarse un carácter (no natural) indica una orientación práctica ineludible, significa que la especie humana está destinada a la acción en general y, en particular, a la acción absolutamente libre, independiente de cualquier determinación empírico-teleológica de su arbitrio (incluida la interna o psíquica, no sólo la externa de la naturaleza físico-biológica); es decir, está determinada (teleológicamente) a la tarea de la moralidad, a la autodeterminación racional pura como fin incondicionado de su existencia en el mundo57. El «carácter» de la especie humana nos permite reconocer, pues, su «destino». La perfectibilidad, que le sitúa por encima de la determinación coercitiva de la naturaleza, le orienta necesariamente hacia la emancipación gradual de ella para lograr el desarrollo o perfeccionamiento de sus capacidades naturales por medio de la autodeterminación según fines propios. En este sentido, cabe decir que la facultad de la razón destina al hombre a la cultura en general o «formación» de todas sus capacidades y fuerzas, conforme a lo establecido en el §83 de la Crítica de la facultad de juicio. Pero este «hacerse a sí mismo» por medio de la cultura no sólo requiere un progreso constante, sino que además cuenta con distintos niveles de desarrollo o usos de la razón en función de las fuerzas o capacidades humanas en juego, los cuales, sin embargo, se hallan entre sí en una relación sistemática de subordinación al nivel «supremo» de la existencia del hombre, que viene determinado por la «capacidad suprasensible» de la autodeterminación moral (jurídica y ética) como «fin final» de la creación (uso puro práctico de la razón). De ahí que la «suma de la Antropología pragmática» fije el «destino» de la especie en tres tareas «culturales» básicas, de las cuales las dos primeras, si bien no garantizan la realización moral del hombre, son, no obstante, condiciones necesarias de la misma en el proceso gradual de emancipación de la coacción de la naturaleza, a la vez que sólo tienen sentido y valor intrínseco como medios preparatorios de la moralidad: «La suma de la Antropología pragmática con respecto al destino del hombre y la característica de su formación [Ausbildung] es la siguiente. El hom—————————————— 57 R. Brandt, Immanuel Kant…, pp. 207-212, ha puesto de manifiesto este sentido teleológico de la Bestimmung del hombre sirviéndose de la distinción de M. Mendelssohn entre la «determinatio» por algo y la «destinatio» para algo. 94 Maximiliano Hernandéz Marcos bre está determinado por su razón a estar en sociedad con hombres y a cultivarse en ella por medio del arte y de las ciencias, a civilizarse y a moralizarse; por grande que pueda ser su propensión animal a abandonarse pasivamente a las incitaciones de la comodidad y del bien vivir, que él llama felicidad, está determinado más bien a hacerse digno de la humanidad activamente, en la lucha con los obstáculos que le vienen de la rudeza de su naturaleza»58. Culturización, civilización y moralización (Kultivierung, Zivilisierung, Moralisierung) son, pues, las tres tareas que definen el «destino» del hombre, las que le permiten alcanzar la única felicidad adecuada al carácter racional de su especie, aquélla que es posible bajo la condición restrictiva de la dignidad de merecerla, esto es, la «felicidad civilizada [gesittete Glückseligkeit]» como «sumo bien físico-moral»59. No podemos entrar aquí en más detalles sobre cada una de estas tareas ni sobre la relación entre ellas. Baste con añadir a lo dicho una advertencia relevante: esta tríada constitutiva del destino moral de la especie humana guarda un palmario paralelismo con las tres «disposiciones naturales» con las que cuenta el hombre de cara a la adquisición de un carácter inteligible. Pero antes de entrar en este tema, conviene hacer una breve observación acerca de las condiciones históricas necesarias que han de darse para que el ser humano pueda cumplir su «destino» moral y convertirse en «animal racional». De nuevo nos encontramos aquí con una tríada ascendente, en la que cada condición en el uso de la razón se mantiene y se amplía cualitativamente en la siguiente: la «conservación» (biológica) del individuo y de la especie; el ejercicio, la instrucción y la educación de la facultad de la razón para la «sociedad doméstica»; y el gobierno racional de los hombres en una sociedad civil y, en última instancia, cosmopolita60. Sólo esta última condición, la única propiamente «moral», es, pues, la que permite el pleno desarrollo de las capacidades naturales de las especie y una felicidad digna para todos los hombres. De ahí que la instauración de una «sociedad cosmopolita» sobre la base de una «progresiva coalición» de Estados de constitución civil republicana61 acabe siendo el gran objetivo histórico de la especie humana, aquél en el que ésta, fundándose en la autonomía jurídica de todos, se —————————————— 58 Anthropologie A 321 / B 318-19. Esta tríada figura también en Idee A 402-03 como la triple tarea de la «cultura». En KU §83, A 387-390 / B 392-395 se habla, sin embargo, de “cultura de la habilidad” y de la “disciplina”, la cual, sin identificarse exactamente con la «Zivilisierung», parece incluirla, mientras que la moralidad, por su índole suprasensible, trasciende como tal, coronándolo, el «fin último», cultural, de la naturaleza en el hombre. 59 Anthropologie §88, A 244 / B 243. Cf. Idee Prop. 3, A 390-391. 60 Cf. Anthropologie, A 315-16 / B 313. En KU §83, AB 393, se considera por ello la «sociedad civil cosmopolita» como «la única condición formal bajo la cual la naturaleza puede alcanzar su propósito final» de desarrollar al máximo todas las disposiciones naturales del género humano. 61 Ibidem A 331 /B 329; A 334 / B 332. Cf. Idee Prop. 5, A 394-95; Prop. 7. Política y Antropología en Kant 95 asegure la cultura plena de todas las facultades naturales y con ella un «carácter» inteligible propio. Éste es por ello también el «principio regulativo» que el político ha de asumir como meta y fundamento de su acción pública. Ahora bien, este destino del hombre concretado en la triple tarea de «cultivarse», «civilizarse» (y/o «disciplinarse») y «moralizarse», ¿cómo puede cumplirse?; ¿cuáles son los medios, poderes o fuerzas de la naturaleza humana cuyo uso o despliegue por medio de la razón constituye precisamente la realización de aquel destino?; ¿en qué competencias, capacidades o potencias naturales se concreta el «carácter» de la especie humana, su facultad de «perfeccionarse» racionalmente? La idea de que el ser humano, a diferencia de los restantes seres naturales, tiene que hacerse a sí mismo mediante su facultad racional, ha llevado a Kant a ordenar sistemáticamente las diversas fuerzas empíricas del hombre (psíquicas y físicas) según el criterio de los tres posibles ámbitos o usos prácticos de la razón, tal como se formularon por primera vez en la Fundamentación de 1785 con ocasión de la doctrina de los imperativos (cf. GMS AB 39 y ss.), y a hablar en este aspecto de tres «disposiciones naturales» correspondientes, es decir, de tres “tendencias” u orientaciones fundamentales de la especie humana no meramente posibles, sino reales, en tanto que descansan en potencias o fuerzas naturales (la constitución biológica del hombre y las «facultades del ánimo»)62, la tercera de las cuales, sin embargo, trasciende el mero orden sensible de la naturaleza, porque está ligada directamente a la dimensión propiamente suprasensible de la razón. Estas tres «disposiciones» antropológicas, que definen el carácter de la especie como una determinación a la acción en tres direcciones básicas, se presentan del modo siguiente en la Anthropologie: «Entre los habitantes vivientes de la Tierra el hombre se distingue notoriamente en su ser de todos los restantes seres naturales por su disposición técnica (mecánica pero con conciencia) al manejo de las cosas, por su disposición pragmática (a usar hábilmente a otros hombres para sus propósitos) y por la disposición moral (a actuar frente a sí mismo y a los demás según el principio de la —————————————— 62 Kant emplea, además del término «disposición» (Anlage, dispositio), también la palabra «tendencia» (Tendenz –cf. SF A 142), para subrayar, en analogía con el mundo biológico, la orientación «germinal» de determinadas fuerzas o facultades humanas a desarrollarse en cierta dirección marcada por un uso racional concreto de las mismas (en la Proposición Segunda de Idee A 388 se habla de las «disposiciones naturales, que están orientadas al uso de la razón –auf den Gebrauch seiner Vernunft abgezielt»). Sobre este punto véase también Pauline Kleingeld, Fortschritt und Vernunft. Zur Geschichtsphilosophie Kants, Würzburg: Königshausen & Neumann, 1995, p. 171 y ss. Es claro que, aunque la tríada de las facultades del ánimo (facultad de conocer, de sentir y de apetecer) que estructura la Primera Parte, la más empírico-psicológica, de Anthropologie, no se corresponde con la tríada de disposiciones naturales (técnica, pragmática y moral), hay, no obstante, una cierta conexión: la disposición técnica es impensable al menos sin la facultad de conocer, al igual que la disposición pragmática tiene su base empírica primordial, no exclusivamente en la facultad de apetecer. 96 Maximiliano Hernandéz Marcos libertad bajo leyes); y cada uno de estos tres niveles puede ya por sí solo diferenciar de manera característica al hombre de los otros habitantes de la Tierra»63. No podemos entrar aquí en una exposición exhaustiva de estas tres disposiciones naturales, que de alguna manera se hacen eco de las tres dimensiones humanas fundamentales o tipos de hombre y correspondientes formas de racionalidad reconocidas en nuestra historia cultural: la técnico-instrumental (homo faber), la eudemónico-prudencial (homo politicus) y la ético-espiritual (homo moralis). Sólo queremos hacer algunas aclaraciones sobre las dos disposiciones antropológicas que avalan y justifican a la vez más directamente una praxis de «sabiduría política», esto es, una forma de entender la acción en el Estado en términos de tarea moral («idealismo jurídico») y simultáneamente en términos de obrar prudente («realismo político»): las disposiciones moral y pragmática respectivamente. Empecemos por esta última. Lo primero que llama la atención de la «disposición pragmática» es su cariz político, al ser la base antropológica de la sociabilidad humana, ya que no puede desarrollarse sin que cada hombre entre en sociedad con otros hombres y sin generar de este modo formas de “concordia” o de cultura social (reglas de convivencia, orden social…) y “cualidades sociables” (cortesía, buenos modales…), que llevan a los individuos a abandonar la «rudeza de la autarquía [Selbstgewalt]» natural y a “civilizarse”, hasta fundar una sociedad civil y someterse a un poder común64. Por su tendencia inevitable hacia la vida social y al gobierno organizado de la praxis civil, la disposición pragmática constituye, sin duda, la dimensión sensible del hombre que fundamenta la posibilidad del Estado y del quehacer político, a la vez que garantiza además la «viabilidad» del cometido jurídico-normativo del gobernante. Esta orientación sociable que conduce a la civilización y a la vida política, se debe a que la disposición pragmática tiene su sede antropológica fundamental en la facultad de apetecer, que abre y conforma propiamente el ámbito de la acción humana, y, particularmente, en un desarrollo apetitivo que se adquiere empíricamente sobre la base de la «propensión» o “tendencia subjetiva” a influir en los otros; me refiero a la inclinación a poseer los medios de influencia sobre los hombres, en la medida en que tales medios (honor, poder y bienes o dinero) proporcionan una capacidad efectiva (Vermögen) para utilizar a los demás en función de nuestros fines —————————————— 63 Anthropologie A 316 / B 314. Esta teoría de las tres disposiciones naturales del hombre ya figura en La religión dentro de los límites de la mera razón (1793), aunque la concepción y denominación de las mismas allí («disposición para la animalidad», «disposición para la humanidad» y «disposición para la personalidad») no coincide exactamente con las de la Antropología en sentido pragmático (cf. Die Religion, A 13 / B 15 y ss.). 64 Cf. Ibidem A 319 / B 317; A 329-330 / B 318-19. Política y Antropología en Kant 97 particulares65. Estamos, pues, ante la tendencia, empíricamente consolidada, al dominio en las relaciones sociales con los otros, cuyo desarrollo pone en juego el proyecto de felicidad o bienestar individual de cada uno y requiere, por tanto, el correspondiente uso racional de máximas de prudencia en el trato social. Pues si por una administración imprudente de las inclinaciones al honor, al poder o al dinero, si por un uso insensato y no meramente estratégico de estos medios de dominio sobre los demás, esas inclinaciones degenerasen y se transformaran en las pasiones correspondientes («afán de honor», «afán de dominación» y «afán de posesión»), convirtiéndose así en objetivos únicos y prioritarios de la acción social en detrimento de los restantes apetitos humanos, con la consiguiente dependencia esclavizante de ellas, pasarían a ser entonces fuentes de “debilidad” frente a nuestros congéneres en vez de proporcionarnos una «capacidad» sólida de influencia sobre ellos66. Por tanto, sólo con una gestión prudencial de las inclinaciones constitutivas de la disposición pragmática puede lograr cada individuo en sus relaciones sociales el poder de dominio sobre los demás suficiente para su felicidad. Pero la inclinación a poder influir sobre los otros para usarlos de cara a los propios fines, por lo mismo que fomenta necesariamente la sociabilidad entre los hombres, favorece también su cualidad insociable, pues genera en todos ellos una “resistencia” paralela a ser utilizados y dominados por los demás y desarrolla así la tendencia a apartarse y aislarse de la vida social para obrar y decidir siempre «según su parecer» individual, que descansa en la «inclinación natural a la libertad externa»67. El conflicto inevitable que conlleva el desarrollo concurrente de ambas inclinaciones, la tensión dialéctica constante entre el impulso a la individualización y la propensión a entrar en sociedad para satisfacer y realizar las propias fuerzas y apetitos mediante el posible dominio sobre los demás, define la «insociable sociabilidad» que impulsa el desarrollo de la «disposición pragmática» del hombre, y que funciona como una especie de mecanismo «prudencial» de la naturaleza para lograr el pleno cumplimiento de la facultad apetitiva de la especie mediante el pro—————————————— 65 Sobre la «facultad de apetecer» (Begehrungsvermögen) y los conceptos de «propensión» (Hang) o tendencia apetitiva del sujeto, e «inclinación» (Neigung) o propensión sensible consolidada empíricamente, así como, en concreto, la «inclinación a la capacidad para influir en otros hombres» v. Anthropologie, 1.Teil, 3. Buch, §73, A 203 / B 202; §80, A 226 / B 225; A 229-230 / B 229; y §§84-85, A 235 y ss, / B 234 y ss. 66 Cf. Ibidem, §84, A 235-236 / B 234-235. Recuérdese que para Kant la «pasión» (Leidenschaft) es una inclinación convertida por la razón en máxima exclusiva o al menos predominante de la acción, con el subsiguiente perjuicio para todas las demás inclinaciones, que resultan así sacrificadas. De ahí que, en la medida en que las pasiones impiden una satisfacción equilibrada de todas las inclinaciones, Kant las considere «malas en sí» y las califique de «cánceres para la razón pura práctica» (Ibidem, §81, A 227 / B 226; cf. §80, A 226 / B 225). 67 Idee Prop. Cuarta, A 392. Parece claro que la base antropológica de la «insociabilidad», como tendencia a la individualización y al aislamiento, es la «inclinación natural», innata, «a la libertad externa», esto es, a no ser sometido a la voluntad de otro para ser feliz (cf. Anthropologie, A 229-230 / B 229, y §82, A 230 y ss. / B 229 y ss.). 98 Maximiliano Hernandéz Marcos greso en la civilización gracias a la cultura de la «apariencia social» y de la coexistencia «política» que dicho mecanismo genera por sí solo68. De esta manera – tal como se indicó antes – la disposición pragmática asegura mediante su modo dialéctico de despliegue, la insociable sociabilidad, la prudencia política del estadista que gobierna a favor de las formas de máxima concordia social definidas por el derecho, según la idea pura de la razón. La viabilidad de la tarea jurídica que el mecanismo natural así acredita, no exime, sin embargo, al político del deber moral de realizarla ni explica tampoco el carácter normativo de la misma. Pues ¿puede acaso el estadista abandonarse pasivamente a los procesos naturales de la historia y limitar su acción a gestionarlos en función de su propio interés de poder y del mero orden social escudándose en la certeza teórica de que la sociedad jurídica universal en el futuro será el efecto causal necesario (el único posible, ineluctable) del antagonismo de los intereses egoístas, tal como sostiene la interpretación naturalista de corte librecambista o hegeliano-marxista de la «insociable sociabilidad»? Pero incluso si eventualmente se dieran las circunstancias empíricas adecuadas para que la propia necesidad natural precipitase la instauración del estado civil de derecho (pues a esta sola posibilidad fáctica se limita la «garantía de la naturaleza» apetitiva del hombre en cuanto mera presunción a posteriori, fundada en la experiencia histórica, de una concordancia del curso fenoménico de las cosas humanas con las ideas de la razón), ¿cómo podría surgir en ese caso únicamente de la causalidad mecánica de los acontecimientos una constitución propiamente jurídica (incluso defectuosa) sin que los hombres que la promulgaran pusiesen en juego sus ideas de justicia y de derecho y sin que, por tanto, interviniera en su fundación una capacidad suprasensible de autolegislación pura, con independencia de toda determinación empírica, que les llevara a valorar y ordenar los asuntos mundanos conforme a principios racionales de una «causalidad —————————————— 68 Aunque la «insociable sociabilidad» parece ser el mecanismo de la naturaleza humana que impulsa y despliega en concreto la «facultad apetitiva» y el ámbito práctico en general (incluido aquí lo que en buena parte corresponde a la «disposición técnica»), en Idea de una historia universal en clave cosmopolita, el único texto publicado en el que Kant introduce esa noción, aparece asociada, sin embargo, de manera restrictiva a la forma degenerada o viciosa de desarrollo de la disposición pragmática, esto es, se dice en particular de las «pasiones» derivadas de la inclinación al dominio sobre otros: el «afán de honor» (Ehrsucht), el «afán de poder» o «dominación» (Herrschsucht) y el «afán de posesión» (Habsucht) (cf. Idee Prop. Cuarta, A 393-394); pasiones que – como hemos indicado más arriba – no potencian, por su carácter imprudente, la realización positiva y feliz del individuo sino su debilitamiento y esclavización psíquica. Al poner, no obstante, el acento de la insociable sociabilidad en esas pasiones es obvio Kant no está concibiendo este mecanismo antagónico como un medio de perfeccionamiento y mejora de los individuos sino de la «especie» humana. Para subrayar ese contraste y destacar a la vez el carácter «estoico-providencial» de la naturaleza apetitiva del hombre el filósofo de Königsberg quiere poner de manifiesto que incluso el vicio, tan nocivo para el feliz desarrollo de los hombres (singulorum), es beneficioso, sin embargo, desde la perspectiva global del cumplimiento del destino de la especie (universorum), ya que contribuye al progreso en la sociabilidad. Desde este punto de vista histórico-sistemático lo malo para el individuo tiene un sentido para la humanidad en su conjunto. Política y Antropología en Kant 99 libre»? En el Apéndice de Hacia la paz perpetua Kant es suficientemente explícito acerca de la imposibilidad de explicar y, por ende, de derivar un estado jurídico (no meramente «político») de simples relaciones causales de los apetitos egoístas guiados por la «prudencia», sin apelar al mundo inteligible de la moralidad: «Ciertamente, si no hay libertad ni ley moral basada en ella, sino que todo lo que ocurre o puede ocurrir es simple mecanismo de la naturaleza, entonces la política (como arte de utilizar ese mecanismo para el gobierno de los hombres) es toda la sabiduría práctica, y el concepto de derecho un pensamiento vacío»69. Con independencia, pues, de lo que la naturaleza de las cosas humanas ayude o pueda hacer de cara al establecimiento de una sociedad civil justa; más aún, refrendado por la presunción empírica y la subsiguiente confianza práctica en que ella obra a favor del derecho, el político debe obrar también a favor de la naturaleza pero consumándola y trascendiéndola según el derecho, ya que sólo él (el ser humano en general) puede coronar el reino natural haciendo mediante su razón (pura) lo que la naturaleza ya no puede hacer de él ni por él: crear un reino moral en la Tierra. La tarea normativa de la política se explica, por consiguiente, a partir de este destino moral que se reconoce en el «carácter» de la especie humana. Para avalar, no obstante, la posibilidad y necesidad práctica de ese cometido jurídico Kant cierra la caracterización de la humanidad con una tercera disposición antropológica: la disposición moral o «disposición al bien». Este último concepto, incorporado al pensamiento kantiano en la época de la Anthropologie70, indica ciertamente que el hombre, en virtud de su racionalidad, cuenta con un germen o «carácter inteligible» que le orienta originariamente hacia el bien, y que esta tendencia suprasensible innata se acredita empíricamente a través de dos fenómenos psíquicos comunes: la «conciencia del deber» y el «senti—————————————— 69 70 ZEF A 70-71 / B 76. Aunque en La religión dentro de los límites de la mera razón (1793) se habla ya de una «disposición a la personalidad» (Die Religion A 17 / B 18-19) e incluso en Idea de una historia universal en clave cosmopolita (1784) se reconoce una «ruda disposición natural a la distinción moral» (Idee, Prop. Cuarta, A 393), Kant no llega a asumir plenamente y a defender con nitidez la idea de una «disposición moral» hasta la época de 1797-98, tal como puede comprobarse en los escritos de esos años: la Doctrina de la Virtud de la Metafísica de las costumbres, El conflicto de las Facultades y la Antropología en sentido pragmático. Parece que el acontecimiento decisivo para ello fue la experiencia de la “simpatía” e incluso “entusiasmo” generalizados del público por la causa revolucionaria del pueblo francés luchando por su derecho de soberanía y por una constitución republicana, en la medida en que la “universalidad” y el “desinterés” de semejante implicación afectiva de los espectadores sólo podía deberse a una causa moral y revelaba, por tanto, a la vez una «disposición moral del género humano» (cf. SF A 142 y ss.). En este fenómeno histórico colectivo y desinteresado de la receptividad del público a la idea del derecho encontraba Kant, pues, la certeza empírica externa acerca de la «disposición al bien» y de la tendencia hacia lo mejor de la especie humana que no le podía proporcionar la experiencia psíquica, borrosa y privada, de la «conciencia del deber» y del «sentimiento moral». Sobre este punto también v. R. Brandt, Kommentar…, p. 481 y ss. 100 Maximiliano Hernandéz Marcos miento moral» de lo justo e injusto de las acciones humanas71. Pero al mismo tiempo Kant subraya que esta disposición al bien propia del carácter inteligible tiene su base en una estructura antropológica de por sí favorable a la moralidad, a saber, es indisociable del «carácter» mismo de la especie, de su «libre arbitrio» como capacidad de perfeccionarse según fines propios, en la medida en que con ello se abre necesariamente para el hombre la posibilidad de un mundo no natural y una «tendencia» irreversible a avanzar continuamente «hacia lo mejor» y a «elevarse del mal al bien en un progreso constante entre obstáculos»72. En este aspecto el hombre es bueno por naturaleza, ya que la «perfectibilidad» como «carácter» del género humano «presupone ya una disposición natural favorable y una propensión al bien en él», excluye su maldad innata (supondría negarle ese carácter o capacidad de mejora inherente a su libre arbitrio)73 y permite considerar las demás disposiciones naturales (la técnica y la pragmática), que no implican de por sí un uso moral de la razón, como «disposiciones para el bien», en la medida en que su desarrollo y mejora culturales «fomentan el seguimiento» de la ley moral74. En suma: la disposición a la moralidad, aunque ciertamente supone descartar que el hombre tenga una «naturaleza buena», indica, sin embargo, que la naturaleza humana está orientada o «destinada» al bien. Con semejante constatación antropológica el político puede cerciorarse entonces de que el idealismo de su praxis jurídica es también la forma realista de atenerse al carácter y tendencia natural de la especie humana. —————————————— 71 Anthropologie A 320 / B 318. También en la Introducción de la Doctrina de la Virtud la «conciencia moral» [Gewissen] y el «sentimiento moral» [moralisches Gefühl] son las dos formas originarias (no adquiridas) de receptividad de la naturaleza sensible a la moralidad con las que se acredita empíricamente la «disposición moral» (cf. TL, §XII, A 36 y ss.). Recuérdese asimismo que la conciencia del deber y la correspondiente capacidad de juicio moral del hombre común son el punto de partida empírico de la Fundamentación de la metafísica de las costumbres. Para el tema de la relación entre «disposición moral» y sus formas de «receptividad» sensible v. M. Hernández Marcos, «Sentirse obligado. Reflexiones a partir de Kant», en: A. Andaluz Romanillos (ed.), Kant. Razón y experiencia, Salamanca: Ed. Universidad Pontificia, 2005, espec. pp. 230 y ss. 72 Anthropologie, A 320 / 318; A 334 / B 332; cf. A 319 / B 317. 73 Ibidem A 328 / B 326; cf. A 320 / 317-18; A 334 / B 332. 74 Die Religion, A 17 / B 19. Kant e James Madison: Da Tolerância à Liberdade de Consciência José Gomes André CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA Prólogo: onde se dá conta de um novo paradigma A discussão em torno da liberdade religiosa, um tema dominante nos debates teológicos, filosóficos e políticos da modernidade, dificilmente se pode subsumir num enunciado homogéneo, capaz de dar conta da sua complexidade. Trata-se de um processo de avanços e recuos, envolto numa dinâmica histórica onde convivem a intolerância civil, a institucionalização do fundamentalismo religioso, o clima de permanente conflito, e, ao mesmo tempo, os esforços humanistas de Thomas More ou de Erasmo, a apologia da liberdade humana avançada por Espinosa e Pierre Bayle, e as propostas revolucionárias de Henri de Beauval e de John Locke. Pese embora a natural dificuldade em apresentar uma recapitulação integralmente explicativa do problema, é possível, contudo, identificar uma série de tendências fundamentais dessa discussão, que ajudam inequivocamente à compreensão deste debate. Gostaria de destacar uma dessas tendências, directamente relacionada com o título desta comunicação, que servirá de ponto de partida para o nosso estudo. Refiro-me a uma curiosa e relevante alteração conceptual, verificável principalmente na segunda metade do século XVIII, que consiste, grosso modo, num progressivo abandono do paradigma da “tolerância civil”, então predominante, substituído por um outro modelo reflexivo, que assenta no conceito fundamental de “liberdade de consciência”. O ideal da “tolerância civil” – que surgira como uma resposta aos desafios colocados pela situação religiosa que a Europa vivia, especialmente depois da Reforma – baseava-se no pressuposto de que, mesmo existindo uma Igreja Oficial num determinado território, os simpatizantes de outros credos não-dominantes FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 101-128 102 José Gomes André deveriam usufruir de alguns privilégios concedidos pelos governantes, relacionados sobretudo com a prática do culto e a ocupação de cargos públicos. Esta tentativa de compromisso entre as minorias religiosas e o Estado encontra expressão legal em documentos como o Édito de Nantes, de 1598, que garantia liberdade religiosa aos huguenotes franceses, e a Lei da Tolerância [Toleration Act], de 1689 (aprovado em Inglaterra na sequência da Glorious Revolution), que permitia a livre prática de culto a um conjunto diversificado de credos – conhecendo o seu expoente máximo, de um ponto de vista doutrinal, na Carta sobre a Tolerância, de Locke. O modelo da “tolerância civil”, não obstante o significativo alcance destes contributos, possuía todavia algumas insuficiências: colocava uma grande ênfase nas regalias a atribuir, perspectivando-as como cedências dos governantes, e não como direitos plenos dos cidadãos; subalternizava o indivíduo perante a indulgência do soberano, a quem cabia decidir em que circunstâncias aquele poderia ou não beneficiar dessas permissões; e condicionava estas prerrogativas a relevantes excepções (recordemos como Locke considerava serem indignos de tolerância os ateus e os católicos, ou o facto de a referida Lei da Tolerância inglesa impor uma série de restrições aos benefícios concedidos a católicos e não-cristãos1). Essencialmente na segunda metade do séc. XVIII, por via do amadurecimento do jusnaturalismo e da divulgação de um ideal secularista, vários autores criticam os limites deste paradigma, insistindo na necessidade de remover do conceito de liberdade religiosa esta dimensão excepcional, que a fazia depender de um consentimento do governante, e não de uma categórica afirmação de um direito integral do indivíduo, direito esse que se deveria designar “liberdade de consciência” – noção capaz de exprimir de uma forma mais ampla o verdadeiro significado do que estava em causa. Permitam-me referir três exemplos. Podemos começar por mencionar Thomas Paine, esse aventureiro de duas revoluções, e um dos mais notáveis panfletistas ingleses. Na célebre obra Direitos do Homem [Rights of Man], de 1791-92 – resposta corrosiva às não menos famosas Reflexões sobre a Revolução em França, de Edmund Burke – elogia Paine as diligências tomadas pelos revolucionários franceses a fim de protegerem os direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente através da criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, incorporada na Constituição de 1791. A este propósito escreve Paine: «A Constituição Francesa aboliu ou renunciou [à] Tolerância ou [à] Intolerância, e estabeleceu o DIREITO UNIVERSAL DA CONSCIÊNCIA. A Tolerância não é o oposto da Intolerância, mas sim a sua imitação [counterfeit]. —————————————— 1 Cf. John Locke, A Letter Concerning Toleration. New Haven/London, Yale University Press, 2003, pp. 244-246; Toleration Act [1689],arts. XIII e XVII (disponível em http://www.agh-attorneys.com/4_act_of_toleration_1689.htm). Kant e James Madison 103 Ambas são despotismos. Uma assume para si própria o direito de recusar a Liberdade de Consciência, e a outra de a conceder.»2. Segundo Paine, o conceito de “tolerância”, entendido como uma disposição que para si advoga a verdadeira prerrogativa – conceder o direito fundamental da liberdade de consciência – reveste-se de uma autoridade ilegítima e arrogante. Nesta medida, o acto de tolerar subordina o indivíduo a uma posição meramente passiva, dependente da indulgência daquele que o tolera. O tolerado é afinal o sujeito que simplesmente aguarda um benefício, e não aquele que usufrui de um direito que lhe assiste. Alguns anos antes, em 1785, Richard Price – pastor presbiteriano, filósofo moral e ensaísta – havia esboçado uma tese semelhante, na obra Observações sobre a importância da Revolução Americana [Observations on the Importance of the American Revolution]. Price considerava que o conceito de “liberdade de consciência” era mais nobre e extensivo que o de “tolerância”, na medida em que a “tolerância” consignava uma relação hierárquica entre o sujeito que tolera e aquele que é tolerado, remetendo este último para uma posição diminuída, puramente expectante perante a eventual benevolência daqueloutro: «Na liberdade de consciência eu incluo muito mais do que na tolerância. Jesus Cristo estabeleceu uma perfeita igualdade entre os seus seguidores. O seu mandamento é que eles não devem assumir nenhuma jurisdição uns sobre os outros, nem reconhecer um outro senhor além d’Ele. É, portanto, uma presunção de qualquer um deles reivindicar o direito a uma superioridade ou preeminência sobre os seus irmãos. Tal reivindicação está implicada sempre que um deles pretende tolerar o resto.»3. No entender de Price, apenas o termo “liberdade de consciência” designava de forma adequada esse direito imprescritível do indivíduo a aceitar livremente uma doutrina religiosa, e a expressar integralmente as suas convicções4. —————————————— 2 «The French Constitution hath abolished or renounced Toleration and Intoleration, and hath established UNIVERSAL RIGHT OF CONSCIENCE. Toleration is not the opposite of Intolerance, but it is the counterfeit of it. Both are despotisms. The one assumes to itself the right of withholding Liberty of Conscience, and the other of granting it.», Thomas Paine, Rights of Man, in Collected Writings, New York, The Library of America, 1995, p. 482. 3 «In liberty of conscience I include much more than toleration. Jesus Christ has established a perfect equality among his followers. His command is, that they shall assume no jurisdiction over one another and acknowledge no master besides himself. It is, therefore, presumption in any of them to claim a right to any superiority or preeminence over their brethren. Such a claim is implied whenever any of them pretend to tolerate the rest.», Richard Price, Observations on the Importance of the American Revolution, in Political Writings, Cambridge University Press, 1991, pp. 130-131. 4 Cf. idem, ibidem, p. 131 et passim. 104 José Gomes André Um terceiro exemplo encontra-se num célebre discurso de Rabaut de Saint-Étienne, efectuado em 23 de Agosto de 1789 na Assembleia Nacional, em pleno processo revolucionário francês. Estando em discussão a inclusão do conceito de tolerância na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Rabaut de Saint-Étienne, pastor de Nîmes, e grande defensor das liberdades dos protestantes, pede a palavra e afirma: «Senhores, não é a tolerância que reclamo, é a liberdade. […] A tolerância! Exijo que seja proscrita por sua vez, e sê-lo-á, esta palavra injusta que nos apresenta unicamente como Cidadãos dignos de piedade, como culpados aos quais se perdoa, àqueles que, muitas vezes, o acaso e a educação levaram a pensar de um outro modo que nós.»5. A insurgência de Saint-Étienne contra os limites da noção de tolerância destaca precisamente o facto de esta atentar contra a dignidade do indivíduo sobre o qual recai. Se a tolerância é, na realidade, simplesmente fruto de um acto condescendente, não é o direito do sujeito que se honra e se protege, mas o poder de quem o concede que se sublinha e salvaguarda. No entender de Saint-Étienne, urge abolir este conceito de tolerância, que torna o indivíduo alvo de piedade, e substituí-lo por uma afirmação positiva de um direito originário, que absolutamente respeite as diferenças de opinião religiosa dos cidadãos, assim integradas num plano de reciprocidade e plena igualdade. I. EM TORNO DE KANT §1. O «arrogante nome de tolerância» e a reavaliação da liberdade religiosa. Esta crítica generalizada à doutrina da “tolerância civil”, preterida a favor de um inequívoco elogio à liberdade de consciência, encontra um espaço relevante na produção kantiana. Atesta-o em particular uma passagem do opúsculo de 1784, Resposta à Pergunta: o que são as Luzes? [Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?]: —————————————— 5 «Messieurs, ce n’est pas même la Tólerance que je réclame; c’est la liberté. […] La Tólerance! Je demande qu’il soit proscrit à son tour, et il le sera, ce mot injuste qui ne nous présente que comme des Citoyens dignes de pitié, comme des coupables auxquels on pardonne, ceux que le hasard souvent et l’éducation ont amenés à penser d’une autre manière que nous.», Rabaut de Saint-Étienne, Discours à l’Assemblée nationale, 23 Août 1789, in Julie Saada-Gendron, La Tolérance, Paris, Flammarion, 1999, pp. 163-164. Kant e James Madison 105 «Um príncipe que não acha indigno de si dizer que tem por dever nada prescrever aos homens em matéria de religião, mas deixar-lhes aí a plena liberdade, que, por conseguinte, recusa o arrogante nome de tolerância, é efectivamente esclarecido e merece ser elogiado […] como aquele que, pela primeira vez, libertou o género humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada qual a liberdade de se servir da própria razão em tudo o que é assunto da consciência.»6. Inscrito numa apologia de Frederico II, cujo reinado havia coincidido com um período de significativa liberdade religiosa na Prússia, este trecho alude, nas suas linhas fundamentais, à problemática por nós previamente introduzida: também para Kant, o que está em causa é a rejeição de um paradigma conceptual que perspectiva a liberdade religiosa nos termos de uma simples concessão, submetendo o indivíduo a um arbítrio do governante. A tolerância, «arrogante nome» [hochmütigen Namen], é própria de um regime paternalista, no qual o Estado reclama para si mesmo o dever de decidir acerca da extensão da liberdade dos seus súbditos; ou seja, que toma a liberdade de consciência como um privilégio dos mesmos, susceptível de uma prescrição e delimitação7. Neste quadro, o indivíduo encontra-se numa posição de absoluta subordinação, diante de uma autoridade de quem espera uma atitude benevolente; a liberdade torna-se um dado circunstancial, e o sujeito mero objecto de complacência. Na tentativa de defesa da humanidade, a dinâmica da tolerância resulta, afinal, num pernicioso atentado à dignidade do indivíduo. O excerto supracitado mostra como Kant procura resgatar a liberdade de consciência deste espaço confinado, afirmando-a como direito inalienável, transcendental, originário. Trata-se de propor a libertação do indivíduo deste modelo tutelar, reivindicando a liberdade do pensar, a autonomia da razão, e o direito do cidadão a expressar livremente as suas convicções – condições necessárias para a «saída da menoridade» [der Ausgang aus der Unmündigkeit] e para a progressiva ilustração da humanidade. No entender de Kant, esse lento processo de amadurecimento deve inevitavelmente assentar na recusa da tutela religiosa, «a mais deson—————————————— 6 «Ein Fürst, der es seiner nicht unwürdig findet, zu sagen: daß er es für Pflicht halte, in Religionsdingen den Menschen nichts vorzuschreiben, sondern ihnen darin volle Freiheit zu lassen, der also selbst den hochmütigen Namen der Toleranz von sich ablehnt: ist selbst aufgeklärt, und verdient […] als derjenige gepriesen zu werden, der zuerst das menschliche Geschlecht der Unmündigkeit, wenigstens von Seiten der Regierung, entschlug, und jedem frei ließ, sich in allem, was Gewissensangelegenheit ist, seiner eigenen Vernunft zu bedienen.», I. Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, in Gesammelte Schriften, ed. Königliche Preussische Akademie der Wissenschaften (doravante Ak.), vol. 8, p. 40. 7 Para a crítica kantiana do “governo paternal” [väterliche Regierung], que reduz os cidadãos à condição de meros súbditos, vide I. Kant, Metaphysik der Sitten, Ak., vol. 8, §49, pp. 316-318; também Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, II, Ak., vol. 8, pp. 290-291. 106 José Gomes André rosa de todas»8, nas suas palavras, pela forma como pretende diminuir o indivíduo na esfera da sua própria consciência, e pelo modo como intenta condicionar a sua vivência moral e as suas mais elevadas aspirações aos desígnios de uma coacção exterior, violando os seus direitos inamíssiveis e subjugando-o aos imperativos de uma autoridade heterónoma. A liberdade religiosa reclama, por conseguinte, uma edificação em novos alicerces, que poderíamos sumariar do seguinte modo: a defesa de uma não-intervenção do Estado nos assuntos da consciência; a promoção da liberdade de pensamento (inextricável da liberdade de expressão); a progressiva libertação dos condicionamentos impostos pelo poder espiritual; e a efectivação destes direitos sob a forma de dispositivos legais. Debrucemo-nos, com mais pormenor, na análise destes elementos do programa kantiano. §2. Propondo um Estado não-interventivo. Um primeiro requisito fundamental para a existência de um regime social e político, no qual vingue uma plena liberdade religiosa, consiste na instituição de um Estado não confessional. No entender de Kant, importa relevar, por um lado, a manifesta incompetência do Estado para intervir em disputas teológicas, por outro, a necessidade de manter afastada a autoridade pública do poder espiritual. Dito de outro modo, urge impedir a existência de um Estado prescritivo em assuntos de religião, que, ora impondo o estabelecimento de uma Igreja Oficial, ora manifestando apreço por um determinado credo em particular, condicionaria à partida as crenças dos cidadãos, desde logo restringindo a sua liberdade em matéria de consciência. Este apelo à secularização do Estado está presente em diversas passagens da obra kantiana. Em A Religião nos Limites da Simples Razão [Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft], Kant recomenda, por exemplo, que o Estado não se imiscua nas controvérsias religiosas9, referindo-se, por outro lado, à necessidade de se estabelecer com clareza os limites do poder político face às Igrejas, as quais «[…] não devem ser estorvadas pelo braço secular, nem por ele ser vinculadas a certas proposições de fé […]»10. Já em O que são as Luzes?, afirmava o nosso autor constituir dano para o governo interferir em assuntos relacionados —————————————— 8 Cf. I. Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak., vol. 8, p. 41. 9 Cf. idem, Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 113. 10 «[…] vom weltlichen Arm schlechterdings nicht können gehindert und an gewisse Glaubenssätze gebunden werden […]», idem, ibidem, p. 113. Kant e James Madison 107 com «a salvação das almas» dos súbditos11. Este tema será retomado na primeira parte da Metafísica dos Costumes (Doutrina do Direito) [Metaphysik der Sitten/Rechtslehre], onde Kant enuncia: «[…] o Estado não tem o direito de ajustar a Igreja à legislação constitucional interna, segundo a acepção do que se lhe afigura vantajoso, nem de prescrever ou decretar ao povo a fé e as formas de culto (ritus), […] mas apenas o direito negativo de prevenir a influência dos doutrinadores [Lehrer] na comunidade política visível, quando ela causar dano à tranquilidade pública […]»12. Um eventual acordo entre as esferas do poder secular e das organizações religiosas, ao ponto de se identificar Estado e Igreja, preconiza um retorno ao modelo conceptual da “tolerância civil” e aos seus limites: institucionaliza-se a discriminação das minorias e condiciona-se a liberdade do indivíduo à indulgência do soberano. A separação entre Igreja e Estado, ao invés, permite a instituição de uma sociedade aberta à livre expressão e à salutar convivência entre múltiplos credos, condicionando-se essa coexistência e a prática do culto somente à necessidade de se respeitar a «concórdia civil» [die bürgerliche Eintracht]13 – última instância validadora, i.e., condição de possibilidade do usufruto dessas liberdades. No entender de Kant, a conservação do Estado e a manutenção da ordem pública constituem um derradeiro predicado, cuja violação tornaria inválida e objectivamente ineficazes as manifestações e os valores que se pretendem salvaguardar. Não se trata, pois, de impor coercivamente uma fronteira à liberdade, tão-só de apelar a um compromisso que a torna efectiva para os cidadãos. Surpreendemos na defesa deste ideal secularizante a apologia de uma visão porventura mais funda relativamente ao estatuto do próprio Estado, para o qual Kant reclama uma existência tão ausente quanto possível – consideração que leva, aliás, alguns autores a incluírem-no na galeria dos pensadores liberais14. Na perspectiva de Kant, a fim de garantir a protecção dos direitos dos cidadãos – —————————————— 11 Cf. idem, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak., vol. 8, pp. 39-40. 12 «[…] so hat der Staat das Recht, nicht etwa der inneren Konstitutionalgesetzgebung, das Kirchenwesen nach seinem Sinne, wie es ihm vorteilhaft dünkt, einzurichten, den Glauben und gottesdienstliche Formen (ritus) dem Volk vorzuschreiben, oder zu befehlen, […] sondern nur das negative Recht, den Einfluß der öffentlichen Lehrer auf das sichtbare, politische gemeine Wesen, der der öffentlichen Ruhe nachteilig sein möchte, abzuhalten […]», idem, Metaphysik der Sitten, Ak., vol. 6, p. 327. 13 Cf. idem, ibidem, §49, p. 327; vide também Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak., vol. 8, p. 40, referindo-se Kant, nesse caso, à preservação da «ordem civil» [bürgerlichen Ordnung]. 14 Cf., a título de exemplo, Reinhold Aris, History of Political Thought in Germany (1789-1815). London, Frank Cass, 1965, p. 104; Leonard Krieger, The German Idea of Freedom. The University of Chicago Press, 1957, p. 86; D. J. Manning, Liberalism (Modern ideologies). London, Dent, 1976, pp. 75-78; Howard Williams, Kant’s Political Philosophy. Oxford, Blackwell, 1985, pp. 126 e ss.; Allen Wood, Kant’s Ethical Thought. Cambridge University Press, 1999, p. 306. 108 José Gomes André nomeadamente no que se refere às questões de liberdade religiosa – cumpre ao Estado abster-se, enquanto poder, de interferir no pleno usufruto individual da mesma. O Estado existe para tornar possível a liberdade, i.e., para regular a sua manifestação em condições isentas de coacção externa, mas não só não estabelece o conteúdo da mesma, como, em nenhuma ocasião – salvo a excepção anteriormente aludida – deve determinar a sua espontaneidade. Por outras palavras, a presença do Estado assume uma dimensão essencialmente negativa, como compromisso de não-intervenção. É através deste retiro do Estado, deste reconhecimento da ilegitimidade e improficiência da tutela governamental sobre as livres manifestações do indivíduo, que verdadeiramente se enaltece a autonomia dos cidadãos e se salvaguarda a liberdade de consciência. §3. Da autonomia do pensar à liberdade de expressão. Esta insistência na limitação do poder da autoridade, constitui, afinal, um evidente desafio ao indivíduo para que assuma totalmente a responsabilidade de um juízo próprio, que recusa a tentação fácil de ceder às opiniões alheias e aos ditames externos. Neste sentido, o projecto kantiano representa um verdadeiro panegírico à autonomia da razão, e a um pensamento capaz de reclamar para si mesmo a condição de uma actividade independente. A definição das «máximas do entendimento humano» [Maximen des gemeinen Menschenverstandes], levada a cabo no §40 da Crítica da Faculdade do Juízo [Kritik der Urteilskraft] principia justamente com a referência à ideia de um «pensar por si» [Selbstdenken], «livre de preconceito» [vorurteilsfreien], ou seja, à capacidade de a razão renunciar a uma condição passiva, subordinada à imposição de ideias pré-concebidas, e a determinações heterónomas, que restringem o livre exercício da mesma15. No entender de Kant, a razão deve, ao invés, submeter-se a uma única lei – aquela que ela confere a si própria – livre de arbítrios constritivos e de formas de pensamento coercivos, assumindo desse modo um posicionamento crítico e emancipado. A defesa kantiana do papel preponderante a desempenhar por uma razão activa conhece no escrito de 1786, O que significa orientar-se no pensar? [Was heisst: Sich im Denken orientiren?], um dos seus momentos mais significativos. Opondo-se a Mendelssohn, o qual atribuía à fé uma função mais extensiva que a razão (entendendo-a como a capacidade de estabelecer um contacto directo com uma realidade suprema), Kant adverte, primeiramente, para a impossibilidade de circunscrever a ideia de um ser supra-sensível, Deus, a um conhecimento fenoménico, reclamando, em seguida, para a razão – e somente para a razão – a tarefa —————————————— 15 Cf. I. Kant, Kritik der Urteilskraft, Ak., vol. 5, §40, p. 294. Kant e James Madison 109 dessa aproximação impossível à ideia de um objecto supra-sensível. Atente-se como Kant sublinha a insubstituibilidade da razão: «Se, pois, se negar à razão o direito que lhe compete de falar em primeiro lugar nas coisas que concernem aos objectos supra-sensíveis, como a existência de Deus e o mundo futuro, fica assim aberta uma ampla porta a todo o devaneio [Schwärmerei], superstição [Aberglauben], e até mesmo ao ateísmo [Atheisterei].»16. A subtracção da razão resulta na cedência a um pensar acrítico, dominado pelo preconceito, pelas fantasias de uma especulação sem limites, ou pela aceitação inquestionada de crenças infundadas – traduzindo-se, em suma, num triunfo absoluto de uma heteronomia que emudece o livre pensar, no êxito de um fanatismo que nega a liberdade17. Diminuída na sua autonomia, a razão cede de novo à autoridade, à imposição de um poder alheio, impulsivamente coercivo, que se alimenta da sistemática prescrição a um pensar tolhido na sua espontaneidade, dando lugar ao progressivo êxito de formas alienantes, como a superstição e o «devaneio» [Schwärmerei]. No âmbito do nosso estudo, a liberdade de pensar constitui, portanto, a verdadeira pedra de toque: ela é, por um lado, a condição para o estabelecimento e afirmação da autonomia da razão, sem a qual a liberdade de consciência cede a uma qualquer tutela externa, por outro, o conceito operativo que introduz a exigência de uma razão publicamente expressa. Sublinhemos este último aspecto: o pensar por si próprio não desagua numa prática puramente solipsista; pelo contrário, a liberdade de pensar revela-se plenamente apenas como exercício dialógico e comunitário. Só existe verdadeiramente um pensar livre se este estiver em condições de ser apresentado a um outro, com o qual entra em debate. As opiniões procedentes de uma reflexão autónoma devem, pois, ser submetidas a uma discussão pública e ao confronto de ideias. Neste sentido, escreve Kant: —————————————— 16 «Wenn also der Vernunft in Sachen, welche übersinnliche Gegenstände betreffen, als das Dasein Gottes und die künftige Welt, das ihr zustehende Recht zuerst zu sprechen bestritten wird: so ist aller Schwärmerei, Aberglauben, ja selbst der Atheisterei eine weite pforte geöffnet.», idem, Was heisst: Sich im Denken orientieren?, Ak., vol. 8, p. 143. 17 Vide o seguinte excerto: «Also ist die unvermeidliche Folge der erklärten Gesetzlosigkeit im Denken (einer Befreiung von den Einschränkungen durch die Vernunft) diese: daß Freiheit zu denken zuletzt dadurch eingebützt und, weil nicht etwa Unglück, sondern wahrer Übermuth daran schuld ist, im eigentlich Sinne Worts verschertz wird.»; «[…] a consequência inevitável da declarada inexistência de lei no pensamento (a libertação das restrições impostas pela razão) é esta: a liberdade de pensar acaba por perder-se e, porque a culpa não é de alguma infelicidade, mas de uma verdadeira arrogância, a liberdade, no sentido genuíno da palavra, é confiscada.», idem, ibidem, p. 145. 110 José Gomes André «Sem dúvida, há quem diga: a liberdade de falar ou de escrever pode-nos ser tirada por um poder superior, mas não a liberdade de pensar. Mas quanto e com que correcção pensaríamos nós se, por assim dizer, não pensássemos em comunhão com os outros, a quem comunicamos os nossos pensamentos e eles nos comunicam os seus! Por conseguinte, pode então perfeitamente dizer-se que aquela autoridade exterior que retira aos homens a liberdade de comunicar publicamente os seus pensamentos, retira-lhes também a liberdade de pensar […]»18. Em certa medida, retornamos a uma questão previamente aludida: se efectiva quando apenas comunicável, i.e., se verificável somente quando publicamente exposta, a liberdade de pensar subtrai-se ao condicionamento do poder político, que apenas de um modo ilegítimo poderia reclamar para si mesmo o direito de cercear o conteúdo e as condições dessa manifestação. Estamos perante um evidente elogio à liberdade de expressão, reivindicada por Kant com o intuito de edificar um espaço público de livre discussão, no qual a razão exerce a sua capacidade crítica, e onde se entrelaçam diversos modos de activa participação cívica. Se quisermos, Kant reclama aqui a instituição de uma verdadeira “sociedade aberta”, na qual os indivíduos confrontam opiniões e manifestam os seus juízos, exercendo livre e emancipadamente a sua cidadania. Um efectivo usufruto da liberdade do pensar e da liberdade de consciência não se circunscreve, por conseguinte, à esfera de uma dinâmica interna isenta de coacções externas; ele adquire um pleno significado apenas quando projectado comunitariamente. Deste modo, a liberdade de consciência desvenda-se como atributo de uma acção pública e não simplesmente como um foro interno intangível, emergindo como um inalienável direito do indivíduo a expressar publicamente as suas convicções e opiniões. No entender de Kant, a liberdade de expressão deve configurar um espírito crítico em relação aos mais variados elementos da vida pública, incluindo as questões relacionadas com a dinâmica governativa propriamente dita. Neste contexto, enuncia o nosso autor: «[…] é preciso conceder ao cidadão […], com a autorização do próprio soberano, a faculdade de fazer conhecer publicamente a sua opinião sobre o que, —————————————— 18 «Zwar sagt man: die Freiheit zu sprechen oder zu schreiben könne uns zwar durch obere Gewalt, aber die Freiheit zu denken durch sie gar nicht genommen werden. Allein wie viel und mit welcher Richtigkeit würden wir wohl denken, wenn wir nicht gleichsam in Gemeinschaft mit andern, denen wir unsere und die uns ihre Gedanken mittheilen, dächten! Also kann man wohl sagen, dass diejenige äussere Gewalt welche die Freiheit, seine Gedanken öffentlich mitzutheilen, den Menschen entreisst, ihnen auch die Freiheit zu denken nehme.», idem, ibidem, p. 144. Kant e James Madison 111 nos decretos do mesmo soberano, lhe parece ser uma injustiça a respeito da comunidade.»19. Na perspectiva de Kant, a liberdade de expressão consigna um dever de cidadania: alertar para a necessidade de se corrigirem injustiças e superarem deficiências da acção do governo. O direito de emitir livremente as suas opiniões constitui para o cidadão uma arma crítica insubstituível, dotando-o de capacidade para denunciar publicamente eventuais erros das autoridades, que de outro modo passariam impunes. Neste sentido, elogia Kant a liberdade da pena [die Freiheit der Feder], descrevendo-a como «o único paládio dos direitos do povo»20. Na verdade, a alternativa a uma sociedade aberta, na qual o cidadão exprime livremente o seu desacordo em relação aos assuntos da vida pública, é um regime despótico, que amordaça as opiniões dos indivíduos e censura a liberdade de pensar, pondo em risco uma dinâmica de auto-correcção, sem a qual um progressivo aperfeiçoamento social e político se tornam irrealizáveis. Importa, todavia, ressalvar que a liberdade de expressão não se define como um predicado incondicional, como pura irrestrição. Tal como a livre prática do culto e a manifestação das convicções religiosas dos indivíduos seriam aceitáveis somente se inscritas num quadro de respeito pela «concórdia civil», também a liberdade de expressão não pode subverter a autoridade e o direito, atentando portanto de uma forma sediciosa contra a ordem civil, sob pena de provocar uma ruptura insanável na constituição legal em vigor – o que colocaria em risco o instrumento que salvaguarda a possibilidade de usufruto dessa liberdade de expressão21. De igual modo, a liberdade de pensar deve atender ao lugar específico em que se inscreve. Exercendo-se como «uso público» [öffentlich Gebrauch], a razão pode exprimir-se livremente, contribuindo para a instituição de um debate alargado, promotor da emancipação intelectual da humanidade, e do triunfo das Luzes22. Um «uso privado» [Privatgebrauch] da mesma pressupõe, contudo, uma moderação e uma restrição que o seu autor deverá impor a si próprio. A ocupação —————————————— 19 «[…] so muß dem Staatsbürger, […] mit Vergünstigung des Oberherrn selbst, die Befugnis zustehen, seine Meinung über das, was von der Verfügungen desselben ihm ein Unrecht gegen das gemeine Wesen zu sein scheint, öffentlich bekannt zu machen.», idem, Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, Ak., vol. 8, p. 304. 20 «Also ist die Freiheit der Feder […] das einzige Palladium der Volksrechte.», idem, ibidem, p. 304. 21 Cf. o seguinte excerto: «A proposição – salus publica suprema civitatis lex est – conserva intacto o seu valor e autoridade, mas a salvação pública, que antes de mais importa ter em conta, é justamente a constituição legal que garante a cada um a sua liberdade mediante leis […]»; «Der Satz: Salus publica suprema civitatis lex est, bleibt in seinem unverminderten Wert und Ansehen; aber das öffentliche Heil, welches zuerst in Betrachtung zu ziehen steht, ist gerade diejenige gesetzliche Verfassung, die jedem seine Freiheit durch Gesetze sichert […]», idem, ibidem, p. 298. 22 Cf. idem, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak., vol. 8, pp. 36-37. 112 José Gomes André de certos cargos públicos (um oficial de justiça, um soldado, um colector de impostos, etc.) requer a sobreposição do princípio da obediência a estoutro da liberdade de expressão, embora, como refere Kant, na condição de «eruditos» [Gelehrteren], i.e., fora do compromisso específico que esses lugares encerram, os cidadãos possam desfrutar plenamente da liberdade de pensar – visto que seriam novamente remetidos para o espaço próprio de um «uso público da razão»23. §4. A libertação do poder espiritual e a crítica às religiões estatutárias. A existência de uma cidadania publicamente empenhada (capaz de se fazer ouvir através deste espírito crítico responsável), bem como a libertação da tutela governamental (possível pela existência de um Estado não-interventivo em assuntos de religião), lançam as bases para a ocorrência de um terceiro momento determinante na plena afirmação da liberdade de consciência e da autonomia do pensar, a saber, a emancipação do indivíduo relativamente aos condicionalismos impostos pelo poder espiritual. Trata-se de um tema central da obra kantiana, desenvolvido particularmente em A Religião nos Limites da Simples Razão, texto no qual o nosso autor defende a existência de um pensar autónomo em matéria religiosa, capaz de rejeitar corajosamente as orientações externas que conduzem a um «[…] modo de pensar preguiçoso, pusilânime, que desconfia inteiramente de si mesmo […]»24. Este repto lançado por Kant inscreve-se numa acérrima crítica às religiões estatutárias, historicamente estabelecidas através de um conjunto de crenças supersticiosas, dogmas revelados, e mandamentos que constituem um cânone de verdade – embora os seus princípios careçam de verificação racional e universalidade – sistema tutelar que submete o indivíduo à condição de uma absoluta, incondicional e silenciosa obediência. Kant é especialmente corrosivo ao analisar o modo como as “religiões históricas” urdiram esta estrutura na qual só existe espaço para a ortodoxia e a subordinação. Ortodoxia que se traduz na alienação litúrgica, na imposição de uma interpretação oficial das verdades reveladas, inacessíveis à compreensão do crente25. —————————————— 23 Cf. idem, ibidem, pp. 37-38. 24 «[…] die faule sich selbst gänzlich mißtrauende und […] kleinmütige Denkungsart […]», idem, Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 57. 25 Embora esta situação seja particularmente visível no que respeita à Igreja católica, Kant considera que ela não deixa de se aplicar – em certa medida com alguma ironia – aos credos protestantes; atente-se no seguinte excerto: «A Igreja católico-romana proíbe a leitura da Bíblia ao homem comum e também, portanto, a sua tradução na língua nacional. Os protestantes dizem: procurai na própria Escritura mas vós tendes de não encontrar nela nada para além do que nós lá encontramos.»; «Die Römisch Catholische Kirche verbietet das Bibellesen dem gemeinen Mann also auch die Übersetzung in die Landessprache. Die Kant e James Madison 113 Subordinação que decorre desta coacção espiritual, instituída mediante a prescrição de um sistema de mandamentos impingidos, que inculcam um permanente temor aos indivíduos, fazendo-lhes crer que só através deste pseudo-culto, obediente e submisso, pode a salvação ser alcançada. Ao indivíduo, forçado a aceitar pressupostos que não compreende e não conhece, resta, por conseguinte, anuir, i.e., crer. Para Kant, estamos perante uma inaceitável coerção do poder espiritual sobre o indivíduo, «violenta intromissão» [gewalttätigen Eingriffen] que consigna uma «verdadeira coacção de consciência» [eigentlich Gewissenszwang]26. Em última análise, assiste-se deste modo ao triunfo de uma razão heterónoma que reclama um controlo sobre a liberdade de pensar: «Quando um governo não quer que se considere como coacção de consciência o facto de proibir dizer publicamente a minha própria opinião religiosa, embora não impeça ninguém de pensar para consigo o que achar bem, costuma gracejar-se a esse respeito e dizer que isso não é nenhuma liberdade por ele concedida, pois é algo que, de qualquer modo, não pode impedir. Mas o que não consegue o poder supremo mundano realiza-o, no entanto, o poder espiritual, a saber, proibir inclusive o pensar […]»27. Subtraída ao indivíduo a liberdade para questionar a validade dos princípios basilares das religiões estatutárias – encontrando-se o seu pensar crítico submetido ao jugo do poder espiritual – está aberto o caminho para a cimentação de formas religiosas alienantes – o clericalismo, o feiticismo, a superstição e o fanatismo – que o condenam a uma cega obediência, a uma simples observância de preceitos casuais. Formas espiritualmente despóticas, submetem o indivíduo a mandamentos, estatutos e regras de fé, por via das quais supostamente aquele presta um serviço a Deus – embora, na verdade, elas sirvam apenas para alimentar um afastamento da “verdadeira religião”, que certamente não se encontra nesta negação da liberdade humana. Bem pelo contrário, a emergência do clericalismo [Pfaffentum] assinala o estabelecimento de uma «[…] submissão obediente de um estatuto, como serviço —————————————— Protestanten sagen forschet in der Schrift selbst aber ihr müsst nichts anderes darin finden als was wir darin finden.», idem, Vorarbeiten zum Streit der Fakultäten, Ak., vol. 23, p. 447. 26 27 Cf. idem, Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 134. «Wenn eine Regierung es nicht für Gewissenszwang gehalten wissen will, daß sie nur verbietet, öffentlich seine Religionsmeinung zu sagen, indessen sie doch keinen hinderte, bei sich im Geheim zu denken, was er gut finden, so spaßt man gemeiniglich darüber, und sagt: daß dieses gar keine von ihr vergönnete Freiheit sei; weil sie es ohnedem nicht verhindern kann. Allein, was die weltliche oberste Macht nicht kann, das kann doch die geistliche […]», idem, ibidem, p. 133. 114 José Gomes André forçado […]», e não «[…] a homenagem livre que deve ser rendida supremamente à lei moral […]»28. Ainda nas palavras de Kant, «[…] trata-se sempre de uma fé feiticista pela qual a multidão é regida e privada da sua liberdade moral mediante a obediência a uma Igreja […]. Onde os estatutos da fé se registam como lei constitucional, aí domina um clero que julga poder prescindir da razão […], porque, como único e autorizado guardião e intérprete da vontade do legislador invisível, tem a autoridade de administrar exclusivamente a prescrição da fé e, por isso, munido deste poder, é-lhe permitido não convencer, mas apenas ordenar.»29. Este atentado à liberdade de consciência só poderá ser invertido por meio de um acento na autonomia da razão, sujeitando as doutrinas e os estatutos das religiões históricas a um espírito crítico, para o que é necessário restaurar plenamente a liberdade de pensamento, o único instrumento que permite discutir essas “verdades reveladas” e eventualmente pôr a nu a sua inconsistência. Nesta libertação das constrições impostas pelo poder espiritual e pelas religiões estatutárias, abre-se ao indivíduo um novo horizonte – a possibilidade de um espontâneo vínculo a uma fé racional [Vernunftglaube], que não carece de autenticação ou demonstração empírica e «que não se funda em nenhuns outros dados excepto os que estão contidos na razão pura»30, segundo Kant. Através da fé racional, o homem descobre-se como um indivíduo potencialmente pertencente a uma «comunidade ética» [ethisches gemeines Wesen], onde cada um se rege segundo «leis de virtude» [Tugendgesetzen], submetendo-se apenas à lei que a razão a si mesmo lhe impõe, livre de coacções externas31. Na imediata adesão a esta fé racional vislumbra-se, pois, a edificação de uma igreja moral, fraterna e solidária, que honra verdadeiramente a dignidade do ser humano. E assim retornamos à pedra de toque do projecto kantiano: uma apologia da autonomia da razão, do livre pensar, da emancipação do ser humano, da responsa—————————————— 28 «[…] die gehorsame Unterwerfung unter eine Satzung, als Frondienst, nicht aber die freie Huldigung auferlegt, die dem moralischen Gesetze zuoberst geleistet werden soll […]», idem, ibidem, p. 180. 29 «[…] so ist immer ein Fetischglauben, durch den die Menge regiert, und durch den Gehorsam unter eine Kirche […] ihrer moralischen Freheit beraubt wird. […] Wo Statute des Glaubens zum Konstitutionalgesetz gezählt werden, da herrscht ein Klerus, der der Vernunft […] entbehren zu können glaubt, weil er als einzig autorisierter Bewahrer und Ausleger des Willens des unsichtbaren Gesetzgebers die Glaubensvorschrift ausschließlich zu verwalten die Autorität hat, und also, mit dieser Gewalt versehen, nicht überzeugen, sondern nur befehlen darf.», idem, ibidem, p. 180. 30 Cf. «[…] ein Vernunftglaube ist der, welcher sich auf keine andere Data gründet als die, so in der reinen Vernunft enthalten find.», idem, Was heisst: Sich im Denken orientieren?, Ak., vol. 8, p. 141; cf. também Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 102 e ss.. 31 Cf. idem, ibidem, p. 95 e ss.. Kant e James Madison 115 bilidade pessoal e comunitária – apologia essa indiscernível de uma afirmação integral da liberdade de consciência. §5. Para uma liberdade constitucional. A realização deste programa pressupõe, contudo, uma derradeira e decisiva salvaguarda – a necessidade de proteger a liberdade de consciência e os direitos a ela adstritos (liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de imprensa) através de um conjunto de dispositivos legais. Só uma garantia jurídica confere efectividade a estes direitos, os quais, na sua ausência, se vêem permanentemente expostos a todo o tipo de abusos. O ideal constitucional32 devém pressuposto de uma sociedade baseada no primado do direito, e organizada segundo o princípio da justiça – o qual, no entender de Kant, reivindica precisamente a enunciação dos direitos fundamentais dos indivíduos na evidência de leis explícitas33. Comentando em Para a Paz Perpétua [Zum ewigen Frieden] a máxima fiat justitia, pereat mundus, esclarece Kant que este princípio «[…] deve entender-se como a obrigação dos detentores do poder de não recusar a ninguém o seu direito, nem de o restringir por antipatia ou compaixão por outra pessoa […]», acrescentando em seguida que «[…] para isso requer-se sobretudo uma constituição interna do Estado em conformidade com os puros princípios do direito […]»34. O que está aqui em causa é, por um lado, a defesa da existência de uma série de direitos humanos imprescritíveis e inamissíveis, que o soberano, em circunstância alguma, pode cercear35; por outro, a insistência no facto de que um pleno usufruto dos mesmos só poderá verificar-se mediante a sua constitucionalização. É essa efectivação legal que, em última instância, os transforma em garantias políticas, de que os indivíduos poderão objectivamente desfrutar. —————————————— 32 Utilizamos aqui o conceito cunhado na investigação de Viriato Soromenho-Marques, Razão e Progresso na filosofia de Kant, Lisboa, Edições Colibri, 1998, p. 413 e ss.. 33 Cf. I. Kant, Zum ewigen Frieden, Ak., vol. 8, p. 349 e ss.. 34 «[…] als Verbindlichkeit der Machthabenden, niemanden sein Recht aus Ungunst oder Mitleiden gegen andere zu weigern oder zu schmälern, verstanden wird; wozu vorzüglich eine nach reinen Rechtsprinzipien eingerichtete innere Verfassung des Staats […] erfordert wird.», idem, ibidem, p. 379. 35 Cf. idem, Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, II, Ak., vol. 8, pp. 303-304; vide também Zum ewigen Frieden, Ak., vol. 8, p. 380. 116 José Gomes André Uma sociedade que é capaz de administrar o direito em geral36, assegurando a existência das liberdades essenciais através de dispositivos legais, é aquela em que se impõe, por conseguinte, a «forma da publicidade» [Form der Publizität], axioma primeiro de toda a norma jurídica. Recordemos como Kant designa essa «fórmula transcendental do direito público»37: «Todas as acções relativas ao direito de outros homens, cuja máxima é incompatível com a publicidade são injustas.»38. O princípio da publicidade revela-se, deste modo, como a chave para a compreensão do que verdadeiramente importa quando falamos do ideal constitucional kantiano: o facto de que existem direitos apenas quando eles se podem manifestar, de que somente mediante uma inscrição pública os direitos dos indivíduos adquirem inequívoca validade. Sob pena de se converter num mero conceito vazio e inefectivo, a liberdade de consciência deverá sustentar-se, por conseguinte, no sólido alicerce que apenas a transparência dos dispositivos legais consagra. Em última instância, é como liberdade constitucional que aquela plenamente se afirma. II. EM REDOR DE JAMES MADISON Até aqui, procurámos mostrar como o pensamento de Kant representa um dos expoentes máximos de uma fundamental reavaliação do problema da liberdade religiosa, ocorrida na segunda metade do séc. XVIII, a qual definimos como uma alteração paradigmática em que progressivamente o conceito de “liberdade de consciência” substitui o de “tolerância”. Como sublinhámos, essa modificação transporta consigo algo mais que uma simples mudança conceptual, configurando, pelo contrário, uma nova, complexa e mais extensiva abordagem dessa questão fulcral da filosofia política e do direito. Como referimos, tratou-se de uma tendência global, oriunda de várias culturas e expressa em diversas línguas. Falámos inicialmente de Thomas Paine, Richard Price e Rabaut de Saint-Étienne, mas poderíamos ainda aludir a outros pensadores que, directa ou indirectamente, participaram na reequação deste problema, como Joseph Priestley, Wilhelm von Humboldt e o jovem Fichte39. —————————————— 36 Cf. idem, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, Ak., vol. 8, p. 22. 37 «[…] die transzendentale Formel des öffentlichen Rechts […]», idem, Zum ewigen Frieden, Ak., vol. 8, p. 381. 38 «Alle auf das Recht anderer Menschen bezogene Handlungen, deren Maxime sich nicht mit der Publizität verträgt, sind unrecht.», idem, ibidem, p. 381. 39 Cf., entre outras, as seguintes obras: Johann G. Fichte, Zurückforderung der Denkfreiheit [1793], in Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, ed. R. Lauth e H. Jacob, Stuttgart – Bad Kant e James Madison 117 Um dos mais relevantes contributos neste domínio surgirá, no entanto, do outro lado do Atlântico: falamos de James Madison – autor de uma vasta obra no domínio da filosofia política, co-autor do clássico O Federalista [The Federalist Papers], directo interveniente na criação da Constituição federal de 1787 e quarto Presidente dos EUA. Proponho que nos detenhamos na apreciação dos elementos fundamentais da sua concepção relativamente à questão que nos ocupa. §6. Uma experiência legislativa: a substituição da tolerância pela liberdade de consciência. O tema da liberdade religiosa ocupa Madison desde os tempos da sua juventude, quando, ainda estudante em Princeton (então College of New Jersey), se familiariza com a obra de Montaigne, Locke e Voltaire, encontrando este interesse um primeiro eco na correspondência trocada com William Bradford entre 1772 e 1775, na qual Madison descreve com especial virulência o estado decadente da Igreja Anglicana na Virgínia e os problemas relacionados com o facto de ela ser a Igreja Oficial da colónia40. Esta atenção à questão da liberdade religiosa, que o acompanhará até ao final da sua vida41, manifesta-se essencialmente em dois momentos, nos quais surpreendemos uma abordagem que conduz directamente ao percurso enunciado no título da nossa comunicação: “da tolerância à liberdade de consciência”. Uma primeira ocasião surge na sequência da independência das colónias, em 1776, pela necessidade que às mesmas se colocou de formarem novas constituições que as sustentassem. Madison participará na criação de uma nova lei fundamental do Estado a que pertencia – a Virgínia – imiscuindo-se especialmente na elaboração de uma Declaração de Direitos, e na discussão da cláusula que dizia respeito à liberdade religiosa. A posição de Madison, expressa então num contexto teórico-político, será posteriormente complementada com a redacção, em 1785, de um panfleto intitulado Exposição e Reclamação contra Impostos Religiosos [Memorial —————————————— Cannstatt, Frommann (G. Holzboog); Wilhelm von Humboldt, Ideen zu einem Versuch, die Grenzen der Wirksamkeit des Staates zu begrenzen [1792]. Wuppertal, Marées-Verlag, 1947; Joseph, Priestley, Essay on the First Principles of Government [1768], in Political Writings. Cambridge University Press, 1993. 40 Esta correspondência pode ser encontrada em The Papers of James Madison [doravante PJM], vol. 1, The University of Chicago Press, 1962, pp. 71-180; cf. especialmente as cartas de 1 de Dezembro de 1773 (pp. 100-102), de 24 de Janeiro de 1774 (pp. 104-108) e de 1 de Abril de 1774 (pp. 111-114). 41 Cf., entre outros documentos, as cartas de Madison a Edward Everett (19 de Março de 1823), The Writings of James Madison (ed. Gaillard Hunt), vol. IX, New York, G.P. Putnam’s Sons, 1910, pp. 124-130; a Frederick Beasley (20 de Novembro de 1825), ibidem, pp. 229-231 e ao Reverendo Adams (?, 1832), ibidem, pp. 484-488. 118 José Gomes André and Remonstrance against Religious Assessments], no qual apresentava uma tentativa de fundamentação do conceito de liberdade de consciência. Procedamos em seguida a uma leitura mais cuidada destas duas abordagens, começando com a participação de Madison na Convenção Constitucional da Virgínia, em 1776. Como dissemos, a sua intervenção principal nessa Convenção surge aquando da discussão em torno do artigo concernente à protecção da liberdade religiosa. O projecto inicial, da autoria de George Mason, referia-se à tolerância religiosa no quadro institucional da Virgínia, mantendo por isso o respeito pela Igreja Anglicana como Igreja Oficial e prevendo um regime geral de tolerância para todos os credos, à excepção dos que pusessem em causa «a paz, a felicidade, a segurança da sociedade ou dos indivíduos», acrescentando restrições implícitas às confissões não-cristãs42. Madison não ficou satisfeito com estas determinações e adiantou uma nova proposta, na qual podemos ler: «Dado que a Religião […] e o modo de a exercer, se encontram unicamente sob a direcção da razão e da convicção, e não da violência ou da compulsão, todos os homens estão igualmente habilitados a usufruir de um pleno e livre exercício da mesma [Religião], de acordo com os ditames da Consciência […]»43. O ponto de partida era o mesmo de Mason: considerava-se que, sendo o culto religioso uma matéria relativa à consciência de cada indivíduo, a existência de coacções externas sobre o mesmo era ilegítima. A conclusão é todavia distinta: enquanto Mason se posicionava no contexto histórico da Virgínia e no seio da corrente especulativa que perspectivava a liberdade religiosa sob o olhar da tolerância, Madison opera uma mudança conceptual significativa, e substitui esse termo pelo de liberdade de consciência. Esta alteração, mais do que simples modificação estilística, introduz, como sabemos, uma nova tomada de posição. O termo tolerância era habitualmente usado num contexto estatutário caracterizado, como vimos, pela existência de «religiões estabelecidas» [religious establishments], protegidas por lei, significando pois “tolerância religiosa” uma forma de concessão do poder político aos —————————————— 42 A proposta de Mason consistia na seguinte enunciação: «That as Religion, or the Duty which we owe to our divine and omnipotent Creator, and the Manner of discharging it, can be governed only by Reason and Conviction, not by Force or Violence; and therefore that all Men shou’d enjoy the fullest Toleration in the Exercise of Religion, according to the Dictates of Conscience, unpunished and unrestrained by the Magistrate, unless, under Colour or Religion, any Man disturb the Peace, the Happiness, or Safety of Society, or of Individuals. And that it is the mutual Duty of all, to practice Christian Forbearance, Love and Charity towards Each Other.», George Mason’s Proposed Declaration of Rights, PJM, vol. 1, p. 172. 43 «That Religion (…) and the manner of discharging it, being under the direction of reason and conviction only, not of violence or compulsion, all men are equally entitled to the full and free exercise of it [Religion] according to the dictates of Conscience […]», James Madison, Amendments to the Virginia Declaration of Rights, PJM, vol. 1, p. 174. Kant e James Madison 119 restantes credos, que os autorizava a praticarem o seu culto religioso mediante certas restrições – pensadas justamente em relação à matriz doutrinária da Igreja Oficial. Esta configuração de liberdade religiosa assumia deste modo um carácter limitado, como se decorresse de um privilégio, de uma aceitação passiva do poder político, e não de um reconhecimento positivo de um direito inalienável do indivíduo. A tolerância representaria neste quadro um misto de indiferença e discriminação, sendo característica de regimes que, beneficiando um determinado credo, implicitamente tendiam a impedir a profusão dos demais. A raiz etimológica do próprio conceito de “tolerância” – tollerare (“sofrer”, “suportar”) – consigna desde logo essa acepção primordialmente negativa do termo, como algo que tende a consentir, mas não a aceitar, que se dispõe a conceder, mas não a reconhecer. Além do mais, a tolerância religiosa implica uma forma de desaprovação do outro, porque reclama para si o direito de não proibir ou interferir com os restantes credos e práticas religiosas, e nunca de positivamente autorizar a plena legitimidade desses credos e práticas. Madison estava ciente das limitações de um regime político assente na simples ideia de tolerância religiosa: «[…] uma oficialização legal da religião sem tolerância é algo que não pode ser pensado, e, com tolerância, não é uma segurança para a harmonia e tranquilidade públicas, mas antes nela própria uma fonte de discórdia e animosidade […]»44. A sua proposta assenta por isso na defesa da liberdade de consciência, termo que designa o reconhecimento de um direito substantivo, que proclama a existência de uma garantia individual inalienável, racionalmente válida, e cuja legitimidade deriva, não de uma concessão política, mas do direito natural. É o próprio Madison quem o afirma, anos mais tarde, nas suas Notas Autobiográficas [Autobiographical Notes]: «Este importante e meritório documento [a Declaração de Direitos da Virgínia] foi redigido por George Mason, o qual adoptou inadvertidamente a palavra ‘tolerância” no artigo relativo a esse assunto [a liberdade de Consciência]. A mudança sugerida e aceite […] declarava ser a liberdade de consciência um direito natural e absoluto.» 45. —————————————— 44 «[…] a legal establishment of religion without a toleration could not be thought of, and with a toleration, is no security for public quiet and harmony, but rather a source itself of discord and animosity […]», Carta de James Madison a Edward Everett, 19 de Março de 1823, in The Writings of James Madison (ed. Gaillard Hunt), vol. IX, New York, G.P. Putnam’s Sons, 1910, p. 127. 45 «This important and meritorious instrument [the Virginia Declaration of Rights] was drawn by George Mason, who had inadvertently adopted the word ‘toleration’ in the article on that subject [freedom of Conscience]. The change suggested and accepted […] declared the freedom of conscience to be a natural 120 José Gomes André Esta leitura afirmativa da liberdade de consciência, entendida como o reconhecimento efectivo de um direito de cada indivíduo a expressar publicamente as suas convicções religiosas, destaca-a como condição fundamental de uma sociedade plural e de um regime que aceita a existência de uma diversidade de credos e práticas religiosas, e que limita a sua intervenção à preservação da própria liberdade de consciência contra potenciais ofensas ou violações. A passagem lógica da “tolerância” para a “liberdade de consciência” oculta, por conseguinte, um segundo intento: proceder à destituição das Igrejas Oficiais e de qualquer forma de relação institucionalmente dependente entre Igreja e Estado. Nesse sentido, o artigo revisto por Madison afirmava que «[…] nenhum homem ou classe de homens deverão, por motivos religiosos, ser investidos com emolumentos ou privilégios peculiares; nem deverão ser sujeitos a quaisquer punições ou impedimentos […]»46. Esta determinação abria caminho na prática para o fim do regime proteccionista de que a Igreja Anglicana beneficiava na Virgínia, instituindo um Estado secular, no qual não se reconhecia legitimidade ao poder político para impor restrições legais ao funcionamento das Igrejas. Para Madison, tratava-se da única forma de promover a existência de um pluralismo religioso efectivamente respeitador da liberdade de consciência e da livre prática do culto. O dado mais relevante, e em certa medida, mais original, da proposta madisoniana reside, porém, no modo como esta aborda os regimes de excepção consignados na própria ideia de liberdade religiosa. Vimos que um dos matizes comuns à especulação anterior sobre o tema residia precisamente na forma como essa liberdade era pensada como uma concessão, ou seja, como se a liberdade outorgada aos indivíduos derivasse de uma definição dos seus próprios limites. Dito de outro modo, a liberdade religiosa de que os cidadãos gozavam dependia da forma mais ou menos abrangente com que se definiam as condições nas quais ela não podia ser usufruída. Todo o peso conceptual desta reflexão recaía sobre as excepções à regra, promovendo-as ao estatuto de proposição fundamental. Madison compreendeu que esta determinação negativa conduzia a um esvaziamento do problema, tendendo a colocar cada vez mais enfoque nas punições a imprimir às circunstâncias em que se verificava uma violação das restrições previstas pelo próprio conceito de liberdade religiosa, quando o que se pretendia era garantir o respeito afirmativo pelos casos em que a liberdade religiosa se aplicava. A sua proposta visava assim dois objectivos essenciais. Em primeiro lugar, acentuar a dimensão positiva da liberdade religiosa, pelo que era necessário conferir-lhe o máximo grau de universalidade – conduta contrastante com os habituais —————————————— and absolute right.», James Madison, Autobiographical Notes, cit. por Robert Alley, «The Despotism of Toleration», in Robert Alley (ed.), James Madison on Religious Liberty, p. 147. 46 «[…] no man or class of men ought, on account of religion to be invested with peculiar emoluments or privileges; nor subjected to any penalties or disabilities […]», James Madison, Amendments to the Virginia Declaration of Rights, PJM, vol. 1, p. 174. Kant e James Madison 121 procedimentos, concentrados na proibição da liberdade religiosa a pequenos credos minoritários, confissões não-cristãs ou correntes ateístas. Em segundo lugar, era indispensável optar por um minimalismo conceptual quanto às excepções a definir. A proposta de George Mason, como vimos, referia-se aos casos em que a prática do culto religioso perturbasse «a paz, a felicidade ou a segurança da sociedade». Locke, uma importante referência para Madison, referia-se mais genericamente à necessidade das acções decorrentes da liberdade religiosa não ameaçarem as fundações morais da sociedade política47. Madison, ao invés, opta por uma definição operativa tão sintética e irrestrita quanto possível: «[…] todos os homens estão igualmente habilitados ao livre exercício da religião, de acordo com os ditames da consciência, sem punição e restrição do magistrado, A menos que a preservação da igual liberdade e a existência do Estado sejam manifestamente colocadas em perigo» (sublinhado meu)48. Apenas numa situação em que a prática do culto religioso pusesse absolutamente em causa a existência da própria sociedade, o Estado poderia agir de modo legítimo. Para Madison, como também para Kant, a máxima latina salus populi suprema civitatis lex est possuía, por conseguinte, integral validade, constituindo-se como axioma primordial que importava antes de mais ter em conta. Esta determinação, que teria garantido a existência de uma plena liberdade religiosa na Virgínia – ou, pelo menos, tão ampla quanto uma sociedade organizada de seres humanos poderia aceitar – seria, contudo, rejeitada (como também a sua proposta que visava destituir a Igreja Anglicana como Igreja Oficial do Estado). De algum modo, a Virgínia não estava preparada para uma mudança tão radical. A declaração final, embora preferindo o termo madisoniano de “liberdade de consciência” à fraseologia de Mason, mantinha uma referência à importância do Cristianismo para o Estado e não criava nenhum procedimento legal respeitante à extinção da Igreja Oficial na Virgínia49. —————————————— 47 Vide: «No opinions contrary to human society, or to those moral rules which are necessary to the preservation of civil society, are to be tolerated.», John Locke, A Letter Concerning Toleration. New Haven/London, Yale University Press, 2003, p. 244. 48 «[…] all men are equally entitled to enjoy the free exercise of religion, according to the dictates of conscience, unpunished and unrestrained by the magistrate, Unless the preservation of equal liberty and the existence of the State are manifestly endangered» (sublinhado meu), James Madison, Amendments to the Virginia Declaration of Rights, PJM, vol. 1, pp. 174-175. 49 Sobre este assunto cf. “Editorial Notes”, PJM, vol. 1, pp. 170-175. 122 José Gomes André §7. Memorial and Remonstrance: definindo a liberdade de consciência como direito inalienável. Pese embora este parcial fracasso, Madison regressará alguns anos mais tarde ao tema da liberdade religiosa, desta vez num âmbito propriamente especulativo, compondo em 1785 Exposição e Reclamação contra Impostos Religiosos [Memorial and Remonstrance against Religious Assessments], texto no qual reinvoca as principais ideias traçadas na sua juventude, às quais acrescenta alguns desenvolvimentos que ajudam a esclarecer a sua concepção. A obra inicia-se com uma tentativa de fundamentação do conceito de liberdade de consciência. Também aqui Madison procura furtar-se a uma tendência comum no seu tempo, que consistia na utilização de uma lógica argumentativa dependente do comentário bíblico e do exemplo estatutário. A grande maioria dos autores que na América discorreram sobre o tema da liberdade religiosa, sobretudo no contexto do processo revolucionário, recorreu especialmente à análise de passagens bíblicas, em busca de evidências da ilegitimidade das perseguições religiosas e de justificações para a tolerância dos restantes credos. Também frequentes eram as argumentações que apelavam aos precedentes legais, baseadas na tradição das “liberdades inglesas” e na herança estatutária colonial, para justificarem as suas posições favoráveis à liberdade religiosa. Embora respeitando estas duas linhas argumentativas, Madison procura um outro tipo de resposta, independente das ambíguas interpretações bíblicas e dos precedentes legais. Madison recorre assim à filosofia do direito natural, assentando a liberdade de consciência numa justificação puramente racional, que a evidencia como direito primitivo e inalienável, cuja validade e legitimidade se demonstram per si. Observemos o seguinte excerto: «A Religião de cada homem tem de ser deixada à convicção e consciência de cada homem; e é um direito de cada homem exercê-la tal como estas eventualmente o ditarem. Este direito é na sua natureza um direito inalienável.»50. Adiante, acrescenta Madison: «[…] “o igual direito de cada cidadão ao livre exercício da sua Religião de acordo com os ditames da consciência” é retido pela mesma propriedade com —————————————— 50 «The Religion of every man must be left to the conviction and conscience of every man; and it is the right of every man to exercise it as these may dictate. This right is in its nature an inalienable right. […]», James Madison, Memorial and Remonstrance against Religious Assessments [em diante, Mem. Rem. ], PJM, vol. 8, The University of Chicago Press, 1973, p. 299. Kant e James Madison 123 todos os nossos outros direitos. Se recorrermos à sua origem, é igualmente uma dádiva da natureza.»51. A inalienabilidade da liberdade de consciência deriva de duas premissas. Em primeiro lugar, o facto de a liberdade de consciência se referir, pela sua própria natureza, à intimidade de cada indivíduo, onde se verifica uma inexorável isenção de coacções externas – o foro da consciência no seio da qual se forma o juízo relativo às opiniões religiosas (portanto necessariamente independente das concepções ou pressões dos demais indivíduos). Por outras palavras, a liberdade de consciência remete, nesta primeira acepção, para uma individualidade originária e incoercível52. Em segundo lugar, Madison refere-se à liberdade de consciência como estando revestida de uma anterioridade, mesmo do ponto de vista do contrato social, que a sublinha como pressuposto do mesmo: «Defendemos portanto que, em matérias de Religião, nenhum direito do homem se encontra limitado pela instituição da Sociedade Civil, e que a Religião está totalmente isenta da sua jurisdição [cognizance].»53. Numa outra ocasião, encontramos uma referência à liberdade de consciência como fazendo parte dos «direitos naturais do Homem excluídos da concessão na qual toda a autoridade política está fundada.»54. Madison posiciona-se aqui no território do contratualismo (essencialmente de matriz anglo-saxónica e sobretudo por via de Locke), considerando que a passagem do estado de natureza para a sociedade civil, que permite aos indivíduos uma melhor protecção da sua propriedade e direitos, não consigna uma absoluta renúncia aos seus direitos naturais. Existem direitos fundamentais – entre os quais a liberdade de consciência – que, pela sua própria natureza, são intransferíveis, e cuja violação representaria uma ruptura no seio da própria lógica inerente ao con—————————————— 51 «“the equal right of every citizen to the free exercise of his Religion according to the dictates of conscience” is held by the same tenure with all our other rights. If we recur to its origin, it is equally the gift of nature.», idem, ibidem, p. 304. Num texto mais tardio, escreve Madison que «Conscience is the most sacred of all property; other property depending in part on positive law, the exercise of that, being a natural and inalienable right.», James Madison, «Property», National Gazette, 27 de Março de 1792, PJM, vol. 14, Charlottesville, University Press of Virginia, 1983, p. 267. 52 Cf.: «This right [freedom of Conscience] […] is unalienable, because the opinions of men, depending only on the evidente contemplated by their own minds cannot follow the dictates of other men […]», idem, Mem. Rem., PJM, vol. 8, p. 299. 53 «We maintain therefore that in matters of Religion, no mans right is abridged by the institution of Civil Society and that Religion is wholly exempt from its cognizance.», idem, ibidem,p. 299. 54 «[…] the natural rights of Man excepted from the grant on which all political authority is founded», idem, Detached Memoranda [1819?], Writings (ed. Jack Rakove), New York, Library of America, 1999, p. 759. 124 José Gomes André trato social (a ideia de que a sociedade civil existe para proteger esses direitos)55. Nesse sentido, as leis produzidas no âmbito do pacto social não podem cercear o pleno usufruto destes direitos inalienáveis, predicados do sujeito anteriores à sua condição de cidadão e, desse modo, requisitos para a existência e manutenção daquele pacto. O desenvolvimento subsequente de Memorial and Remonstrance decorre dos princípios anteriormente expostos. Se a liberdade de consciência deve ser reconhecida como um direito inalienável, individualmente exercido, e se a própria natureza desse exercício é incongruente com a existência de coacções externas potencialmente violadoras dessa reflexão pessoal, é ilegítimo que um corpo exterior ao indivíduo – seja ele individual ou colectivo, social ou político – interfira na liberdade de consciência do sujeito. Assim sendo, escreve Madison: «[…] se a religião estiver isenta da autoridade da sociedade em geral, menos ainda pode estar sujeita ao corpo legislativo. […] A preservação de um governo livre requer, não apenas que sejam invariavelmente mantidos os limites e fronteiras que separam cada departamento de poder; mas, mais especialmente, que a nenhum deles seja possível ultrapassar a grande barreira que defende os direitos do povo.» 56. Para Madison, a Igreja e o Estado são instituições que se devem manter separadas: na medida em que os sentimentos religiosos se baseiam em disposições da mente humana, não deve ser permitido ao governo interferir com esses desígnios – suportando ou incitando grupos que defendem ou convidam a diferentes credos e práticas religiosas. Essa ingerência constituiria um evidente abuso de poder, porquanto o governo exerceria a sua capacidade de influenciar os cidadãos numa matéria que se encontra fora da sua esfera de acção legítima. Particularmente interessado em fomentar um contexto social livre de conflitos religiosos, de perseguições ou comportamentos intolerantes, bem como de relações suspeitas entre o poder político e as autoridades eclesiásticas, Madison insiste, por conseguinte, na necessidade em extinguir as Igrejas Oficiais. —————————————— 55 Num texto de 1792, sobre o conceito de propriedade, escreve Madison: «To guard a man’s house as his castle […] can give no title to invade a man’s conscience which is more sacred than his castle, or to withhold from it that debt of protection, for which the public faith is pledged, by the very nature and original conditions of the social pact.», idem, «Property», National Gazette, 27 de Março de 1792, PJM, vol. 14, p. 267. 56 «[…] if religion be exempt from the authority of the Society at large, still less can it be subject to that of the Legislative Body. […] The preservation of a free government requires not merely, that the metes and bounds which separate each department of power may be invariably maintained; but more especially, that neither of them be suffered to overleap the great Barrier which defends the rights of the people.», idem, Mem. Rem., PJM, vol. 8, p. 299. Kant e James Madison 125 Madison refere-se a esta necessidade recorrendo aos exemplos da História: as Igrejas (embora esse facto contradiga o seu propósito), quando “oficiais” (i.e., quando associadas a um regime proteccionista do Estado), não constituem instâncias pacificadoras da vivência social, instigando, pelo contrário, à perseguição e discriminação dos restantes credos: pense-se no exemplo das lutas religiosas que na Europa ceifaram milhares de vidas humanas. Além disso, se “institucionalizadas”, as Igrejas tendem a abandonar a sua pureza original (os valores da simplicidade, da discrição, da humildade) e o seu objectivo primordial (a divulgação das suas doutrinas), cedendo antes à tentação da corrupção, da ambição e do fanatismo. O nosso autor opõe-se a uma tese comum na sua época, que considerava que os diversos credos religiosos necessitavam da protecção do Estado para sobreviverem e que entendia ser a sua proximidade – ou melhor, a sua dependência institucional – (para) com o governo uma importante contribuição para a ordem pública, para o bem-estar social e para uma evolução moral da sociedade. A sua posição vai no sentido contrário: a de propor que se atribua às Igrejas uma máxima autonomia, definitivamente separando-as do Estado. Este facto beneficia a cultura das próprias Igrejas, conferindo-lhes a liberdade necessária para desempenhar o seu papel missionário sem constrangimentos políticos. Ao remover «todos os obstáculos ao vitorioso progresso da Verdade»57, essa emancipação favorece também um clima de alargada e pacífica discussão doutrinária entre os diversos credos, diálogo que tenderá a aprofundar as suas concepções bem como a promover um espírito de aberta e livre investigação. Madison é um dos primeiros pensadores a afirmar na América – numa cultura onde a religião desempenhava um papel preponderante – que o secularismo era, não apenas o melhor como o único desígnio lógico para a subsistência do Estado, aquele que o reconduzia à sua tarefa própria: a protecção das leis e o zelo pelo bem-estar social dos cidadãos. Como já afirmara Locke, e na esteira do que defendia Kant, o propósito do Estado é salvaguardar os interesses civis dos indivíduos e punir quem contra eles atentar, e não legislar, proteger ou de qualquer forma intervir em matéria de religião, a qual respeita exclusivamente à consciência dos indivíduos58. Neste sentido, o bom exercício do governo não necessita de uma associação a uma religião, qualquer que ela seja, como suporte para a justeza da sua acção. Na concepção madisoniana, a única relação legítima entre governo e religião deve cingir-se ao esforço de vigilância daquele para que os indivíduos possam aceitar ou rejeitar livremente diferentes dogmas religiosos, criando idênticas condi—————————————— 57 «[…] every obstacle to the victorious progress of Truth […]», idem, Mem. Rem., PJM, vol. 8, p. 303. 58 Cf. LOCKE, John, A Letter Concerning Toleration. New Haven/London, Yale University Press, 2003, p. 218 e ss.. 126 José Gomes André ções para os cidadãos que praticam credos distintos ou mesmo para aqueles que não professam nenhum deles. Em última instância, essa atitude do Estado – que se pauta por um compromisso global de não-intervenção (ideia na qual ecoa novamente o pensamento kantiano) – beneficiará a sociedade considerada no seu todo e as próprias seitas, porque a posição neutra do governo em relação ao incentivo ou auxílio de instituições religiosas contribui para uma convivência sadia entre os diferentes credos, ao mesmo tempo que zela pelo respeito integral dos direitos individuais. §8. A derradeira garantia: a fixação dos direitos em dispositivos legais. A reflexão levada a cabo em Exposição e Reclamação contra os Impostos Religiosos sugere implicitamente a necessidade de se proteger a liberdade religiosa mediante uma última e decisiva salvaguarda – a sua inscrição num documento legal com poder coercivo. Esta ideia – que nos recorda o itinerário kantiano – será posta à prova nos anos subsequentes à redacção daquele panfleto, na sequência dos desafios colocados pela criação da Constituição federal, em 1787, e do novo edifício político americano por ela suportado. Uma das primeiras e mais complexas questões então surgidas referia-se precisamente à protecção dos direitos individuais, em relação aos quais a Constituição era omissa. Esta disputa, que suscitou um demorado debate público, conheceria uma solução sobretudo por intermédio de Madison, que, em Junho de 1789, propõe ao Congresso a aprovação de vários Aditamentos à Constituição, garantindo a salvaguarda de uma série de direitos pessoais – entre os quais se contava, sem surpresas, o direito à liberdade de consciência e à livre prática do culto. A sugestão madisoniana rezava assim: «Nenhuns direitos civis deverão ser limitados tendo em conta as crenças ou as práticas religiosas, nem uma religião nacional deverá ser estabelecida, nem os absolutos e iguais direitos da consciência deverão, em qualquer modo, ou sob qualquer pretexto, ser infringidos.» 59. Posteriormente aprovadas pelo Senado e ratificadas pelos Estados, estas propostas, com pequenas correcções, formariam os primeiros dez Aditamentos à Constituição, ainda hoje conhecidos como Carta de Direitos [Bill of Rights]. —————————————— 59 «The civil rights of none shall be abridged on account of religious belief or worship, nor shall any national religion be established, nor shall the full and equal rights of conscience be in any manner, or on any pretext infringed.», idem, Speech in Congress Proposing Constitutional Amendments (8/06/1789), in Writings (ed. Rakove), p. 442. Kant e James Madison 127 O modo como Madison se empenhou na elaboração deste projecto confirma-nos, se dúvidas houvesse, de que a sua reflexão em torno do problema dos direitos individuais (e nomeadamente da liberdade de consciência) consigna uma significativa preocupação com a efectivação das mesmas, possível apenas pela sua incorporação em documentos legais. Na realidade, discursando no Congresso em defesa das suas propostas, afirmara Madison ser vital «declarar expressamente os grandes direitos da humanidade» no texto fundamental da nação, de modo a transformá-los em algo mais que nobres conceitos60. Só a fixação destas liberdades essenciais em documentos escritos com efeito legal garantia a plena eficácia das mesmas, validando-as como direitos políticos de que os cidadãos poderiam livremente beneficiar. Definindo objectivamente os direitos individuais, estes dispositivos legais delimitavam com rigor a extensão dos poderes da intervenção governativa, instituindo um espaço estritamente reservado aos cidadãos, no qual as suas liberdades definitivamente se cumpriam. Recordando o que Kant escrevera sobre a edificação de uma liberdade constitucional, poderíamos então, referindo-nos ao pensamento madisoniano, concluir que, também neste caso, a realização da liberdade de consciência só é exequível quando sustentada num sólido alicerce legal; que, por conseguinte, a definitiva superação do modelo conceptual da “tolerância” se concretiza apenas mediante a transformação da liberdade de consciência num direito constitucionalmente protegido. Bibliografia selecionada (além da referida no texto) ALLEY, Robert (ed.), James Madison on Religious Liberty. Buffalo-New York, Prometheus Books, 1985 ANDRÉ, José Gomes, «James Madison e a protecção dos direitos individuais. Em torno da criação da Carta de Direitos federal norte-americana.», in Philosophica, nº22, Novembro 2003. Lisboa, Edições Colibri, pp. 147-171 ARENDT, Hannah, Lectures on Kant’s Political Philosophy. The Chicago University Press, 1982 BANNING, Lance, The Sacred Fire of Liberty. James Madison and the Founding of the Federal Republic. Ithaca/London, Cornell University Press, 1995 BARATA-MOURA, José, «O Tratado Teológico-Político de Kant. No segundo centenário de Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft», in Religião, História e Razão: da Aufklärung ao Romantismo (coord. Manuel J. Carmo Ferreira e Leonel Ribeiro dos Santos), Lisboa, Edições Colibri, 1994, pp. 65-96 BOOTH, William J., Interpreting the World: Kant’s philosophy of history and politics. University of Toronto Press, 1986 —————————————— 60 Cf. IDEM, ibidem, p. 439. 128 José Gomes André BOURGEOIS, Bernard, Philosophie et Droits de l’Homme. De Kant à Marx. Paris, P.U.F., 1990 CATROGA, Fernando, «Secularização e laicidade: uma perspectiva história e conceptual», in Revista de História das Ideias, vol. 25 (2004), Coimbra, pp. 51-127 GOYARD-FABRE, Simone, La philosophie du droit de Kant. Paris, Vrin, 1996 LAMEGO, José, “Sociedade Aberta” e Liberdade de Consciência: o direito fundamental de liberdade de consciência. Lisboa, Edição AAFDL, 1985 McCOY, Drew R., The Last of the Fathers. James Madison and the Republican Legacy. Cambridge/New York, Cambridge University Press, 1989 PONTON, Lionel, Philosophie et Droits de l’Homme de Kant a Lévinas. Paris, Vrin, 1990 SHELDON, Garrett W., The Political Philosophy of James Madison. Baltimore/London, The Johns Hopkins University Press, 2001 SHELL, Susan, The rights of reason: a study of Kant's philosophy and politics. University of Toronto Press, 1980 SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Revolução Federal. Filosofia Política e debate constitucional na fundação dos E.U.A.. Lisboa, Edições Colibri, 2002 SOROMENHO-MARQUES, Viriato, História e Política no pensamento de Kant. Mem-Martins, Europa-América, 1994 SOROMENHO-MARQUES, Viriato, Razão e Progresso na filosofia de Kant. Lisboa, Edições Colibri, 1998 VLACHOS, Georges, La Pensée Politique de Kant. Métaphysique de l’ordre et dialectique du progrès. Paris, P.U.F., 1962 WHITE, Morton, The Philosophy of the American Revolution. New York, Oxford University Press, 1978 WILLIAMS, Howard, Kant’s Political Philosophy. Oxford, Blackwell, 1985 WILLS, Gary, Explaining America: The Federalist [1981]. New York, Penguin Books, 2001 WOOD, Allen, Kant’s Ethical Thought. Cambridge University Press, 1999 Propriedade e Trabalho em Kant António Manuel Martins UNIVERSIDADE DE COIMBRA A doutrina kantiana sobre a propriedade foi durante muito tempo ignorada por se pensar que representava um retrocesso inqualificável relativamente ao novo modelo de justificação introduzido por Locke em que o trabalho desempenhava um papel fulcral. Só nas últimas décadas se começou a olhar de modo mais positivo para esta doutrina kantiana fazendo jus à sua complexidade1. Aliás não foi apenas esta doutrina a ser negligenciada pelos estudiosos da obra de Kant mas toda a reflexão desenvolvida na Metafísica dos Costumes. Tanto para os contemporâneos de Kant como para as gerações seguintes, esta era uma obra menor. As grandes construções filosóficas do Idealismo Alemão, aparentemente pelo menos e aos olhos de muitos, tinham ultrapassado definitivamente Kant designadamente no âmbito da filosofia do direito. Fichte e Hegel tinham obra seminal neste domínio com influência preponderante nas discussões em torno do direito e da filosofia política. Um certo regresso a Kant a partir de meados do século XIX não alterou significativamente este estado de coisas. O próprio Cassirer, num livro sobre a vida e obra de Kant, publicado em 1918, considerava a doutrina kantiana do direito privado excessivamente esquemática. Só depois da II Guerra Mundial começou a desenvolver-se investigação em torno da Metafísica dos Costumes e da sua dou—————————————— 1 O leitor pode encontrar no final da tradução da Metafísica dos Costumes, tradução, apresentação e notas de José Lamego (Lisboa: F. C. Gulbenkian, 2005) uma boa bibliografia (ver, em especial, pp. 474-6; 482-4). Gostaríamos apenas de acrescentar: R. R Terra, «A doutrina kantiana da propriedade» in: Discurso, São Paulo, 14 (1983), pp. 113-143; José N. Heck, «Estado e propriedade na doutrina do direito de Kant», Veritas, Porto Alegre, v. 42 (1998), pp. 169-179; M. Brocker, Arbeit und Eigentum (Darmstadt: WbG, 1992); Rainer Friedrich, Eigentum und Staatsbegründung in Kants 'Metaphysik der Sitten'. (Berlim:W. De Gruyter, 2004); Andreas Heckl & B. Ludwig (Hrsg), Was ist Eigentum? (München, Beck, 2005); Susann Held, Eigentum und Herrschaft bei John Locke und Immanuel Kant: ein ideengeschichtlicher Vergleich. (Münster: LIT, 2006). Aproveitamos para salientar que usaremos esta tradução nas citações incluídas no nosso texto; quanto ao modo de citação seguiremos as siglas convencionais usadas entre os estudiosos de Kant. FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 129-139 130 António Manuel Martins trina do direito privado em particular. Uma reabilitação da filosofia do direito de Kant dá-se, de modo mais claro, a partir de 1970, num processo em que as obras de Reinhard Brandt e Wolfgang Kersting, entre outros, desempenharam papel importante2. As questões ligadas à legitimação do Estado desempenham papel fulcral na filosofia política moderna. Também em Kant se encontram elementos teóricos importantes que exigiriam um desenvolvimento das teses centrais da sua doutrina do direito. Não vamos sequer apresentar todos os aspectos da doutrina kantiana da propriedade. Focaremos apenas alguns dados do contexto histórico que nos permitam situar a reflexão de Kant face à doutrina de Locke (I) e, num segundo tempo, perceber o sentido mais exacto da doutrina kantiana da primeira aquisição que não é, contra todas as aparências, um regresso aos modelos explicativos da prima occupatio (II). I A questão central que aqui pretendemos contextualizar tem que ver a justificação da primeira aquisição. Problema importante mas não o único que uma genuína e exigente doutrina da propriedade tem de enfrentar. Quem rejeita qualquer tipo de jusnaturalismo, como é o caso de Hobbes ou Hume, o problema tem uma solução positiva. Mas Kant insere-se numa linhagem de pensamento contratualista que ainda incorpora alguns elementos do direito natural. Apesar de só ter publicado as suas doutrinas sobre o direito privado em 1797, na primeira parte da Metafísica dos Costumes, Kant já se ocupava de questões de filosofia do direito desde os anos sessenta tendo dado o primeiro curso de filosofia do direito em 1767. A principal fonte de informação sobre o tipo de reflexão que Kant desenvolvia nesta fase relativamente à questão que nos ocupa é um conjunto de notas manuscritas, de 1765, sobre o seu livro Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, publicado no ano anterior3. Para além de documentar a evolução do pensamento de Kant sobre o direito de propriedade, estas notas manuscritas são o documento mais antigo relativo à recepção da doutrina Lockeana da apropriação pelo trabalho na cultura alemã. Nestas reflexões, Kant, tal como Locke, parte da noção de uma posse natural de si mesmo que caracteriza a pessoa humana: «o corpo é meu pois é uma parte do meu eu e é movido pelo meu arbítrio. Todo o mundo animado e inanimado, que não tem arbítrio próprio, é meu na medida em que eu o posso obrigar e mover de —————————————— 2 Reinhard Brandt, Eigentumstheorien von Grotius bis Kant (Stuttgart: Frommann, 1974); Wolfgang Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts- und Staatsphilosophie (Frankfurt: Suhrkamp, 1993; 1ª edição 1984); Id., Kant über Recht (Paderborn: Mentis-Verlag, 2004). 3 Estas notas encontram-se publicadas no volume XX da edição da Academia (pp. 1-192). Propriedade e Trabalho em Kant 131 acordo com o meu arbítrio […]»4. Esta afirmação de Kant não deve ser entendida num sentido corrente mas antes como expressão da sua reflexão sobre o direito. Neste sentido, afirma-se, aqui, a posse jurídica do meu próprio corpo com base na ideia de uma articulação entre esse corpo e o meu arbítrio. Através dele, eu posso, conscientemente, movimentá-lo e influenciá-lo. A vontade consciente de si mesma torna-se, assim, não só a capacidade de mover o corpo como o fundamento da posse, jurídica, de si mesmo. Posse esta que se pode estender a tudo quanto há na natureza que esteja ao seu alcance. Por isso, observa Kant, nunca poderei dizer que o sol é meu. Daqui decorre também a necessidade da liberdade que deve contar sempre com a liberdade dos outros. Assim como é inadmissível, e contraditório, sujeitar outra pessoa a um arbítrio estranho, também seria contraditório tomar posse daquilo que outro trabalhou. Pois se alguém se apoderasse daquilo que eu trabalhei isso significaria que «[…] ele pressuporia que a sua vontade movia o meu corpo»5. A doutrina aceite por Kant em meados de 1760 é uma nova versão da doutrina da apropriação pelo trabalho defendida por Locke. A novidade de Kant, relativamente a Locke, consistia na fundamentação explícita num acto de vontade livre e não apenas na simples incorporação pelo trabalho. De igual modo, estão já aqui presentes elementos importantes como a sua justificação puramente imanente, sem recurso a qualquer tipo de argumentação teológica como acontecia em Locke6. Tanto quanto se sabe, Kant não conhecia o Segundo Tratado sobre o Governo Civil. As teses de Locke sobre a propriedade chegaram ao seu conhecimento por via indirecta: através do Émile e do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de Rousseau. Nas Notas de 1765 Kant segue uma linha de interpretação crítica muito próxima de Rousseau sublinhando o contraste entre o direito natural e prática corrente ganhando assim uma dimensão de instân—————————————— 4 XX, 66: «Der Leib ist mein denn er ist ein Theil meines Ichs und wird durch meine Willkühr bewegt. Die gantze belebte oder unbelebte Welt die nicht eigene Willkühr hat ist mein in so fern ich sie zwingen u. sie nach meiner Willkühr bewegen kann. Die Sonne ist nicht Mein. Bey einem andern Menschen gilt dasselbe, also ist keines Eigenthum eine proprietat oder ein ausschliessendes Eigenthum. In so fern ich aber ausschließungsweise mir etwas zueignen will so werde ich des andern Willen wenigstens nicht gegen den meinigen oder nicht seine That wieder die Meinige voraussetzen». 5 XX, 67, 5-8: «Welcher Wille Gut seyn soll muß wenn er allgemein u. gegenseitig genommen wird sich nicht selbst aufheben um des willen wird der andre nicht dasjenige sein nennen was ich gearbeitet habe denn sonst würde er voraus setzen daß sein Wille meinen Korper bewegte». 6 Este é um aspecto importante que não poderemos desenvolver aqui. Ver, sob este ponto de vista, a obra de Jeremy Waldron, God, Locke and Equality: Christian Foundations of Locke's Political Thought (Cambridge University Press, 2002). Locke começou por defender a teoria da occupatio como era corrente na tradição jusnaturalista moderna. Foi a crítica implacável de R. Filmer a Grócio que levou Locke a abandonar a doutrina da prima occupatio. Como não podia nem queria aceitar a doutrina de Filmer não lhe restavam outra alternativa senão procurar outra solução. Foi a própria narrativa bíblica que lhe deu a sugestão do trabalho como categoria chave para explicar a situação do homem relapso no estado de natureza correspondente. 132 António Manuel Martins cia crítica que a doutrina de Locke não possuía7. Nunca chegou a publicar estas reflexões sobre o direito de propriedade talvez por ter tido consciência de que a sua teoria do direito ainda era demasiado incipiente e, por outro, porque os seus interesses especulativos estavam voltados para o grande programa crítico que ainda tinha para realizar. Na Crítica da Razão Pura (1781) assinala um papel de relevo ao conceito de trabalho num quadro completamente diferente do que se encontrava em Locke. É certo que, neste aspecto, Kant segue uma tendência da sua época. Contudo, não deixa de ser significativo o papel que atribui a este conceito na própria definição do estatuto das suas investigações críticas. Basta mencionar a observação feita no prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura a propósito daqueles que desvalorizavam a importância do trabalho crítico e do método: «Os que rejeitam o seu método e ao mesmo tempo o procedimento da crítica da razão pura não podem ter em mente outra coisa que não seja desembaraçar-se dos vínculos da ciência e transformar o trabalho em jogo, a certeza em opinião e a filosofia em filodoxia». (CRP, B XXXVII) Não vamos explorar aqui este aspecto da discursividade kantiana nas suas obras maiores, com reflexos importantes na própria noção do que é o “trabalho” da filosofia e a sua especificidade face a outros tipos de discurso embora a mensagem continue actual. Regressando à contextualização mais imediata dos trabalhos preparatórios da Metafísica dos Costumes indicaremos alguns factores que poderiam explicar a evolução do seu pensamento sobre esta matéria. Para quem esteja interessado em aprofundar esta matéria, importa consultar, como já indicou R. Brandt no seu trabalho pioneiro, os apontamentos de Kant sobre a obra de Gottfried Achenwall, Ius Naturae (1763), publicadas no volume XIX da edição da Academia e sobretudo os trabalhos preparatórios, não datados, publicados no volume XXIII (211-359) da mesma edição. Reiner Brandt sublinha o facto de o manuscrito das suas lições sobre Metafísica dos Costumes, do semestre de Inverno de 1793/4, publicado no volume XXVII da Academia, mostrar claramente que nessa data Kant ainda não defender intuições fundamentais que caracterizam a sua Doutrina do Direito, publicada em 1797. A aceitarmos esta interpretação teríamos que procurar nos trabalhos preparatórios a via para a explicação da mudança de opinião de Kant. Um dos problemas mais sérios para uma explicação genética com base nesses manuscritos reside no facto de não estarem datadas essas notas dispersas. Sem —————————————— 7 XX, 40: «Die Begriffe der bürgerlichen Gerechtigkeit u. der Natürlichen u. die daraus entspringende Empfindung von schuldigkeit sind sich fast gerade entgegengesetzt. Wenn ich von einem reichen erbete der sein Vermögen durch Erpressung von seinen Bauren gewonnen hat u. ich schenke dieses an die nämlichen arme so thue ich im bürgerlichen Verstande eine sehr grosmüthige Handlung, im natürlichen aber nur eine gemeine Schuldigkeit». Propriedade e Trabalho em Kant 133 entrarmos sequer numa formulação, ainda que provisória, de uma conjectura a este respeito, diríamos que nelas poderemos encontrar reflexos de insatisfação relativamente à doutrina da justificação da primeira aquisição pelo trabalho. Outro factor que poderá ter contribuído também para a alteração da posição de Kant foi a publicação dos textos de alguns autores que se reclamavam de uma proximidade teórica relativamente a Kant e que adoptaram incondicionalmente a tese da justificação da propriedade pela incorporação pelo trabalho8. Pensamos que o facto de terem surgido várias publicações imediatamente antes e depois da publicação da Metafísica dos Costumes explica porque é que a doutrina de Kant foi mal recebida e votada ao esquecimento. De todos os lados se levantavam os defensores da nova teoria que justificava a (primeira) aquisição da propriedade pelo trabalho tal como Locke defendera no Segundo Tratado do Governo Civil. Papel fulcral terá desempenhado, neste processo, a formulação mais amadurecida da posição de Fichte na sua obra Grundlage des Naturrechts (1796, 1ª parte; 1797, 2ª parte) onde se pretendia mostrar como deduzir transcendentalmente o conceito de direito e em perfeita consonância com a doutrina da ciência. Como nos lembrará Eduard Zeller, Fichte será sempre reconhecido, pela posteridade, em primeiro lugar como um grande filósofo mas para os seus contemporâneos ele foi igualmente e talvez, acima de tudo, um político9. Incontestável é o facto de, à data —————————————— 8 Estamos a pensar, principalmente, em Theodor Schmalz e Carl Christian Erhard Schmid que publicaram, precisamente neste intervalo entre as lições de Kant sobre a Metafísica dos costumes (1793/4) e a publicação da primeira edição da Metafísica dos Costumes, textos sobre o direito natural. O texto de Schmalz apresenta-se mesmo como uma doutrina pura do direito como convinha a quem pretendia seguir o paradigma kantiano. Em rigor, a primeira edição é de 1792 mas a mais conhecida é a edição de 1795 (Theodor Schmalz, Das reine Naturrecht. Königsberg: Nicolovius, 1792, 1795). Kant conheceu com certeza uma e outra. As melhorias e explicações introduzidas na segunda edição não o devem ter convencido. Esta obra e a de C.C.E. Schmid (Grundriß des Naturrechts. Iena und Leipzig: Gabler, 1795) permitiram-lhe ver o que tinha de inaceitável uma doutrina do direito inspirada na sua metafísica da razão prática. Até que ponto os escritos de Johann Benjamin Erhard sobre o direito do povo à revolução (1795) e de J. G. Fichte (Considerações sobre a Revolução Francesa, 1793), onde também se incluía uma reflexão sobre as questões do direito de propriedade e sua fundamentação, tiveram impacto em Kant é difícil de avaliar com exactidão mas pensamos que podem ter funcionado de forma negativa tornando mais claro o caminho por onde Kant não queria ir. 9 Falando de Fichte como político escreve Zeller: «Er hat selbst seinem Namen zunächst in die Geschichte der Philosophie mit unvertilgbaren Zügen eingeschrieben; und der Gelehrte wird immer zuerst an dieser Seite seiner Leistungen denken wenn von Fichte die Rede ist. Aber für seine Zeit noch viel wichtiger und an unmittelbarer Wirkung auf das Ganze noch weit ergiebiger war die Thätigkeit, durch welche er sich an dem sittlichen und politischen Leben unseres Volkes, an der Kräftigung des Nationalgeistes, an der Erhebung Deutschlands aus tiefem Falle betheiligt hat und vielleicht noch anziehender als für den Philosophen der Denker, ist für den Menschenkenner der Mann, für welchen seine Wissenschaft selbst nur der Ausdruck und der geistige Rückhalt eines Charakters war, den wir den besten aller Zeiten unbedenklich an die Seite setzen dürfen». «Johann Gottlieb Fichte als Politiker», in E. Zeller, Vorträge u. Abhandlungen (Leipzig: Fues Verlag, 1865), p. 142. Este testemunho ainda é mais significativo se nos lembrarmos que foi Zeller quem cunhou a expressão teoria do conhecimento e está ligado, entre outras coisas, a um certo regresso a Kant em meados do séc. XIX. 134 António Manuel Martins da publicação da Metafísica dos Costumes, Fichte se apresentar como uma estrela no auge da fama ao passo que Kant se encontrava já afastado da cátedra. Em 1799 ainda faz uma declaração pública criticando e demarcando-se de Fichte mas sem resultados positivos. Em boa verdade poderíamos mesmo dizer que tudo isto constituiu um obstáculo sério à leitura da Metafísica dos Costumes. A distância histórica que nos separa destes obstáculos deve permitir-nos ler, com outros olhos este texto de Kant. O que se segue não passa de um convite à leitura do texto de Kant no sentido de nos libertarmos de certos preconceitos de modo a podermos surpreender o novo no texto da Metafísica dos Costumes sem nos deixarmos enredar por fórmulas carregadas de história. II Para compreendermos como é que Kant compreende a propriedade, no quadro da sua doutrina do Direito, importa reter a sua definição do que é meu, juridicamente: «meum juris é aquilo a que estou tão ligado que qualquer uso que alguém dele pudesse fazer sem o meu consentimento ser-me-ia lesivo» (MdS § 1; VI, 245). Kant segue a concepção tradicional na medida em que vincula a noção de propriedade à de posse: «Tenho de estar de algum modo na posse do objecto exterior se esse objecto houver de se chamar meu; porque, caso contrário, quem agisse sobre esse objecto, contra a minha vontade, não me afectaria com isso e, portanto, não me lesaria». (MdS, RL § 5; VI, 249) O problema da teoria kantiana consiste, em grande medida, em explicar como é que algo pode ser, juridicamente, meu ainda que eu não tenha a sua posse física. «Mas algo exterior só seria meu se eu pudesse admitir que me poderia causar dano o uso que outrem pudesse fazer de uma coisa em cuja posse ainda não estou investido». (MdS, RL § 1; VI, 245s) É o próprio Kant quem reconhece que o conceito parece ser problemático e levar mesmo a afirmações contraditórias. De facto, algo exterior é, por definição, algo que eu não possuo necessariamente apesar de o modo como se fala de propriedade de objectos (externos) pressupor a posse. A solução de Kant passa pela distinção entre posse sensível e posse inteligível entendida esta última como «posse sem detenção». Embora tenha introduzido a ressalva «se um tal género de posse é Propriedade e Trabalho em Kant 135 possível», a verdade é que Kant vai transformar esta noção numa condição de possibilidade da propriedade em geral. Sendo assim, importa clarificar a noção mesma de posse inteligível para podermos compreender a reflexão de Kant sobre o direito de propriedade. Toda a dificuldade reside no facto de Kant não dar uma resposta simples nem directa a esta questão. Não só a terminologia mas também a própria estrutura argumentativa do texto kantiano afastam-se muito do modo como tradicionalmente se colocam estas questões. Nos vários contextos teóricos da tradição o que era preciso justificar era precisamente a propriedade privada. Para Kant é também esta a questão fulcral na medida em que da sua resposta depende o onus probandi de todo o direito privado. Como se articula a necessidade de um instituto como o da propriedade privada com a possibilidade da posse inteligível é algo que julgamos ser central na concepção de Kant mas que só poderemos compreender melhor depois de considerarmos, ainda que sumariamente, os passos da argumentação kantiana. Vamos distinguir, ainda que provisoriamente, três pressupostos da argumentação de Kant acerca da justificação do direito de propriedade. 1) Em primeiro lugar, Kant nega qualquer relevância ao simples facto de alguém ter na sua posse física determinados objectos. Ao dizer que admiti-lo seria defraudar a própria possibilidade de um uso livre e justo dos bens exteriores Kant está, de facto, já a operar com a sua compreensão da propriedade como uma relação jurídica em sentido forte, algo que, no quadro do seu pensamento, só pode dar-se entre pessoas. É este entendimento da propriedade que o leva a negar que exista qualquer direito imediato sobre uma coisa (ius in re) e a afirmar que se houvesse apenas um homem à face da terra ele não poderia ter qualquer propriedade (MdS, RL § 11; VI, 260 s). 2) A necessária forma das leis práticas da razão implica que o uso dos objectos/coisas em geral só possa estar sujeito a uma lei formal. Esta deverá abstrair das características particulares dos objectos e muito particularmente da circunstância de estarem ou não na posse física de alguém. Se o primeiro pressuposto jogava com um direito da liberdade parece, agora, que o carácter formal das leis da razão prática dificilmente poderá ser assegurado sem admitirmos a possibilidade de uma autorização geral que abra caminho para a possível propriedade de objectos externos. 3) Admitida a possibilidade da posse inteligível (posse sem detenção ou uso da força física), Kant pensa poder concluir que a razão prática pura nos permite considerar todo e qualquer objecto externo como potencial propriedade. Tudo isto permite a Kant estabelecer um postulado jurídico da razão prática: «É possível ter como meu um qualquer objecto do meu arbítrio; quer dizer, é contrário ao Direito uma máxima segundo a qual, se esta se convertesse 136 António Manuel Martins em lei, um objecto do arbítrio devesse tornar-se em si (objectivamente) sem possuidor (res nullius)» (MdS, RL, § 2; VI 246) A este postulado chama Kant, no final deste mesmo parágrafo, uma lei permissiva da razão prática. Postulado que se tornou necessário pois, no entender de Kant, não seria possível inferir uma justificação da propriedade a partir de um mero conceito do “Direito em geral” tal como a simples distinção nocional entre o meu e o teu não bastariam. Daí a necessidade de recurso à razão prática pura para que fosse possível «impor a todos os demais uma obrigação que, de outro modo não teriam, a obrigação de se absterem de usar certos objectos do nosso arbítrio, pois que os tomamos com anterioridade na nossa posse» (MdS, RL, § 2; VI 247). Este postulado da razão prática pura é, além disso, uma proposição jurídica sintética a priori (MdS, RL, § 6; VI 250). Por outras palavras, é válida independentemente de qualquer experiência empírica. Com este postulado da razão prática pura Kant pensa ter encontrado a resposta à questão nuclear da justificação do direito de propriedade. A segunda parte do direito privado trata do modo de adquirir algo exterior. Sendo certo que nada exterior é originariamente meu, tenho que o adquirir para lhe poder chamar, juridicamente, meu. Deixando para o §18 e seguintes a problemática da aquisição derivada, no âmbito do direito pessoal, Kant concentra-se, em primeiro lugar, numa análise das questões ligadas à aquisição originária. De acordo com o «princípio universal da aquisição exterior» (§10), uma aquisição originária envolve três aspectos principais: 1) a «tomada de posse do objecto do arbítrio no espaço e no tempo» (apreensão); 2) a declaração pública da posse do referido objecto; 3) a «apropriação como acto de uma vontade universal» (MdS, RL, § 10; VI, 259). Um dos grandes equívocos na interpretação da posição de Kant é criado em grande parte por ele mesmo quando designa esta aquisição originária por ocupação (occupatio) sublinhando que ela só pode dar-se relativamente a coisas corpóreas. Contudo, uma simples consideração atenta dos três aspectos envolvidos na aquisição originária mostra claramente que não se trata de um regresso acrítico a uma posição teórica mais tradicional. Não nos podemos deixar iludir pelo uso de uma terminologia tradicional mais directamente associada a determinados esquemas de pensamento com origens remotas no pensamento antigo. No §12 Kant sublinha o facto de esta primeira aquisição de uma coisa não poder ser senão a da terra. É precisamente porque a questão de Kant é a de saber como é que os homens que habitam o planeta terra adquirem um direito de propriedade sobre determinada parcela deste planeta. Por isso, toma como ponto de partida a posse física de uma parte concreta da superfície terrestre. É por esta via que surge no texto kantiano a contaminação da linguagem da occupatio. Porém, Kant caracteriza também a primeira aquisição como uma autorização; isto poderia evitar Propriedade e Trabalho em Kant 137 algumas dificuldades de interpretação. Sendo, contudo, insistente a referência à ocupação não podemos fazer outra coisa que não seja tentar interpretar com o maior rigor possível o texto de Kant. Parece claro que ele rejeita uma justificação que se baseie unicamente no facto bruto da ocupação unilateral por parte de alguém que toma posse física de uma parcela de terreno. No estado de natureza, nada pode ser adquirido que não seja provisoriamente. Para compreendermos melhor a posição de Kant neste ponto, importa ter em conta dois elementos que ele introduz na sua análise. Em primeiro lugar, «a posse em comum originária (communio possessionis originaria)» de todos os homens sobre a terra (MdS, RL § 13;VI, 262; cf § 16). Em segundo lugar, «a ideia de uma vontade de todos unificada a priori (que há que necessariamente unificar)» (MdS, RL § 15; VI, 264). A posse em comum originária de que fala Kant não se deve confundir com conceitos aparentemente próximos de certo jusnaturalismo, mais antigo ou mais moderno. Trata-se, em Kant, de um conceito transcendental, da razão prática pura, que «contém a priori o princípio segundo o qual somente os homens podem fazer uso em conformidade com leis jurídicas do lugar que ocupam sobre a terra» (MdS, RL § 13; VI, 262). Não está em causa qualquer especulação sobre os primórdios da espécie humana na sua luta por um espaço vital nas condições de vida que outrora se viviam na terra mas antes de reflectir sobre as condições de possibilidade de uma aquisição originária da propriedade. É neste sentido que devem ser lidas as afirmações de Kant de acordo com as quais «todos os homens estão originariamente (isto é, antes de qualquer acto jurídico do arbítrio) investidos na posse legítima da terra, quer dizer, têm o direito de estar onde os colocou a natureza ou o acaso» (MdS, RL § 13; VI, 262). Uma vez que a terra é esférica e espacialmente finita, os homens não poderiam nunca disseminar-se de tal modo que nunca se encontrassem. Desta constatação da necessidade de os homens partilharem um espaço finito retira Kant a conclusão que qualquer um pode, legitimamente, ocupar qualquer lugar reivindicando essa posse face a qualquer potencial concorrente. Mas o texto de Kant não parece deixar margem para dúvidas neste aspecto: tudo isto é possível porque se parte da convicção de que toda a terra está na posse em comum originária de todos. Este pressuposto de Kant é, efectivamente, diferente daqueles que encontramos nas teorias que admitem uma forma qualquer de contratualismo. De um lado temos aqueles para quem, como é o caso de Hobbes e de Hume, não fazia sentido falar de um “meu” e um “teu” natural sendo a propriedade, por definição, algo instituído pelo estado soberano. Do outro temos todos os que admitem a apropriação como alguma forma de direito natural, independentemente da forma como o interpretam. Para Locke, por exemplo, o instituto da propriedade é viável num estado de natureza, ainda antes de os homens se constituírem em “corpo político”. Porém, em Locke, a apropriação faz-se, no estado de natureza, a partir de uma 138 António Manuel Martins situação em que todos os bens da terra estão destinados pelo seu original criador e proprietário ao uso de todos os homens. Em Kant, na aquisição originária, não está em causa adquirir uma parcela de terra sem dono mas antes de adquirir algo que já estava na posse comum originária de todos os co-proprietários unidos. Esta transformação kantiana do ponto de partida do jusnaturalismo e do contratualismo de inspiração Lockeana não era suficiente para justificar, à luz do direito, essa primeira aquisição que, por isso mesmo, era considerada como sendo necessariamente provisória. A posição que Kant defende, na Metafísica dos Costumes, é que a primeira aquisição não pode adquirir legitimidade apenas através da intervenção de uma vontade unilateral. Para que a vontade de um sujeito possa impor aos demais uma obrigação jurídica será preciso fazer intervir «a vontade de todos unificada a priori» (MdS, RL § 15). Esta é que constitui o “título racional” da aquisição. O facto de Kant se servir da terminologia mais corrente e de ele próprio ter aderido, antes, a outra concepção, torna mais difícil, para muitos intérpretes, compreender a posição de Kant. Importa, por isso, sublinhar a diferença relativamente ao quadro teórico em que se desenvolviam as várias posições sobre a primeira aquisição. Os vários passos da argumentação de Kant só podem ser correctamente entendidos se tivermos em conta todos os passos e o facto de se tratar de uma argumentação de tipo transcendental. É também a esta luz que se deve ponderar a questão da função distributiva da propriedade. O tema é demasiado complexo para poder ser abordado aqui em toda a sua extensão. Relativamente à questão das condições adicionais a serem preenchidas pela aquisição originária, Kant não hesita, na Metafísica dos Costumes, em afirmar que a única condição a ter igualmente em conta para que a aquisição esteja «em conformidade com a lei de liberdade exterior de cada um» é a da prioridade temporal (MdS, RL §14; VI, 263). Também esta afirmação tem sido mal interpretada por muitos dos críticos de Kant que a leram num sentido puramente descritivo. Uma das questões fulcrais que se colocam no contexto da (primeira) aquisição é a dos seus limites. Há ou não limites e de que tipo? Que critérios usar e qual a instância última de validação desses critérios? Sobre esta matéria Kant parece ter mudado de opinião como já referimos atrás. Os critérios para que apontavam alguns textos dos Vorarbeiten não foram incorporados no texto final da Metafísica dos Costumes. Aqui encontramos, no §15 da Doutrina do Direito, a seguinte resposta à pergunta pela extensão da faculdade de entrar na posse de uma porção de terra: «Até onde chegue a capacidade de a ter sob o seu senhorio, quer dizer, até onde aquele que dela se queira apropriar a possa defender; é como se a porção de terra dissesse: se não me podeis proteger, então, também não podeis dar-me ordens» (MdS, RL §15; VI, 265). Propriedade e Trabalho em Kant 139 Kant sugere no mesmo texto que este critério deveria ser igualmente aplicado na resolução da célebre controvérsia sobre o mar livre desencadeada por Hugo Grócio. Neste caso, a medida da capacidade defensiva era dada pelo alcance do tiro de um canhão. Este passo é conhecido como um dos mais controversos da abordagem de Kant e provocou grande escândalo mesmo entre os admiradores da sua doutrina. De facto, esta interpretação dos limites da aquisição em termos de capacidade de defesa coloca alguns problemas complexos. Porém, a crítica sumária que desde a publicação da Metafísica dos Costumes se faz a este aspecto da teoria da propriedade peca por isolar os factores da força e da violência imputando a Kant uma posição que ele não defendeu. Estaria, nesse caso, ainda que a contra gosto, Kant a defender o direito do mais forte ou pelo menos a capacidade de usar a força e a violência como critério para justificar se não o direito em geral pelo menos este direito. O simples facto de, no final deste mesmo parágrafo, Kant condenar, sem margem para dúvidas, a colonização pela força ou pelo suborno deveria levar-nos a pensar que as afirmações de Kant que citámos são expressão de uma posição mais complexa e diferenciada. Pode-se entender facilmente o choque de muitos leitores de Kant sobretudo porque, no mesmo parágrafo, rejeita, liminarmente, a tese da apropriação pela incorporação do trabalho: «Quando se trata de primeira aquisição, a laboração não é mais do que um sinal exterior de entrada na posse que pode ser substituída por muitos outros sinais que requerem menos esforço». (MdS, RL §15; VI, 265) Neste contexto, a crítica fica-se por este sublinhar o carácter extrínseco do trabalho no processo de aquisição originária. Seria preciso completar esta exposição com a articulação entre esta primeira aquisição, provisória por definição, e a sua ratificação jurídica plena depois de formado o Estado de Direito. Na impossibilidade de completarmos esta análise remetemos para uma leitura atenta do texto kantiano chamando a atenção para a dimensão intersubjectiva e social do direito na sua obra. Nela poderemos encontrar virtualidades interessantes para a resolução de alguns problemas políticos no âmbito da justiça distributiva e mesmo do direito internacional e direito das gentes10. Pontes a construir para uma paz perpétua. —————————————— 10 Veja-se, sob este ponto de vista, e a título meramente exemplificativo, o estudo de Michael Köhler «Freiheitliches Rechtsprinzip und Teilhabegerechtigkeit in der modernen Gesellschaft» in G. Landwehr (Hrsg.), Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit. Zur Aktualität der Rechtsphilosophie Kants für die Gerechtigkeit in der modernen Gesellschaft. (Hamburg: Junius, 1999), pp. 103-128. Devo a Maximiliano Marcos a chamada de atenção para este trabalho em que se actualiza a reflexão kantiana sobre o conceito de primeira apropriação e seus limites. Discutir aqui as interessantes propostas de reorientação de perspectivas teóricas contidas neste artigo exigiria outro ensaio. Hermann Heller y el Argumento kantiano. La Evolución de un Pensador y su Relación con el Idealismo alemán José Luis Villacañas Berlanga UNIVERSIDAD DE MURCIA 1. Una atmósfera espiritual. Aunque se conoce la influencia de Kant sobre la teoría del derecho del siglo XIX , todavía no hay una visión panorámica de ese mismo asunto en el ámbito del siglo XX2. Desde luego, ha existido un neokantismo jurídico, y como es natural, ese rótulo se dividió entre las escuelas de Marburgo y de Heidelberg. Hoy se puede identificar la influencia de las ideas neokantianas en Kelsen, que hasta cierto punto derivó su metodología – la que le llevó a definir el derecho como ciencia pura – de 1 —————————————— 1 Podemos ir todavía a los trabajos de Hans Kiefner, «Der Einfluss Kants auf Theorie und Praxis des Zivilrechts im 19. Jahrhundert», o el de Wolfgang Naucke, «über den Einfluss Kants auf Theorie und Praxis des Strafrechts im 19, Jahrhundert», y Herbert Krüger, «Kant und die Staatslehre des 19. Jahrhundert. Ein Arbeitsprogramm», sobre todo dirigido al análisis de la observación de J. C. Bluntschli, según la cual «Incontables derechos naturales han surgido después de los fundamentos del sistema kantiano». Muy interesante es su opinión de que «Si la teoría orgánica del Estado ha conformado la teoría alemana del Estado del siglo XIX, entonces tiene que ser valorado el influjo y la significación de Schelling para la doctrina de Estado como mucho más altos que el de Kant.». A pesar de todo, «el sincretismo debe señalarse como el carácter fundamental de la teoría alemana del Estado en el siglo XIX». Todos los trabajos se pueden ver en Philosophie und Rechtwissenchaft, Zum Problem ihrer Beziehung im 19. Jahrhundert, Neunzehntes Jahrhundert Forschungsunternehmen der Fritz Thyssen Stiftung, Hrgs. J. Blühdorn und J. Ritter. Vittorio Klostermann, Frankfurt, 1969. 2 Se sabe la profunda influencia del neokantismo en la filosofía del derecho de Kelsen. En 1912 Kelsen había leído en los “Kant Studien” una reseña en la que los Hauptprobleme der Staatsrechtslehre se entendían como fuertemente influenciados por el neokantismo de Hermann Cohen. Sólo en 1923, Kelsen precisaría la dimensión “real” de su relación con el neokantismo de Cohen. M. G. Losano, Introduzione a H. Kelsen, La dottrina pura del diritto, Torino, Einaudi, 1990, p. 14. FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 141-171 142 José Luis Villacañas Berlanga la radical dualidad entre razón teórica y razón práctica, entre leyes naturales y normas, por entonces vigente en Marburgo. La escuela de Heidelberg, organizada alrededor de la figura de Rickert, tuvo un destacado pensador, en el que la escuela confiaba para su renovación, que fue Emil Lask. Como tantos otros talentos, el joven pensador judío murió en la guerra de 1914, pero dejó una Filosofía del derecho que tuvo cierta repercusión. Para este ensayo, sin embargo, es más relevante recordar que, para los pensadores que fueron conscientes de la dimensión histórica de las ideas políticas, Kant fue sobre todo el inspirador del liberalismo clásico alemán. Para el nuevo tiempo, organizado sobre percepciones intensas de cambio, con exigencias cargadas de compromiso personal y de patetismo expresivo, el viejo sabio de Königsberg parecía un pensador demasiado burgués y limitado. Todos los espíritus buscaron otras influencias que consideraban más apropiadas. El propio Emil Lask escribió una monografía importante sobre Fichte, que puso de manifiesto la nueva idea de un moral concreta, de una ética capaz de ofrecer deberes materiales vinculantes para la conciencia personal con exigencias sacrificiales. Esto no significa que el liberalismo no se renovara en el mismo sentido, ante el reto de dotar a los seres humanos con energías morales a la altura de los tiempos. Tal fue el caso de Leonard Nelson, un hombre que se vinculaba a la renovación kantiana que había impulsado Fries a primeros del siglo XIX, y que mantenía viva la perenne hostilidad a Hegel. Este enfrentamiento surgía desde la evidencia, incluso excesiva, de que el Estado prusiano salido de la guerra de 1870, impulsado por Bismarck y luego entregado a una política imperialista, tenía en la filosofía del derecho de Hegel, sobre todo desde el punto de vista de las relaciones internacionales, su mejor expresión. El comentario es apropiado porque uno de estos pensadores inspirados por Hegel fue, sin la menor duda, Hermann Heller. Si trazamos la evolución de sus ideas, entonces tenemos que partir de aquí. Si alguna vez Heller habría de ser sensible a argumentos de cierta inspiración kantiana, tendría que ser a costa de superar la influencia hegeliana, decisiva, determinante en sus inicios. Quizá por eso debamos referirnos ante todo a este primer momento. 2. El dilema central del pensamiento del primer Heller. Como hijo de la conciencia social e histórica de la ilustración hegeliana, Heller ha percibido con agudeza las contradicciones y dilemas en las que se ha mecido la realidad política alemana en la época del II Imperio. Incluso antes de la precisa descripción de aquel laberinto histórico de ideas y de tendencias de la Alemania del siglo XIX, que Heller nos lo legó en su El Círculo de las Ideas políticas contemporáneas, nuestro autor ya se había enfrentado a la sistematización de las Hermann Heller y el argumento kantiano 143 posiciones más encontradas con la voluntad hegeliana de síntesis. De hecho, esa potencia de reconciliar – habría que añadir, de forma aparente – los fenómenos extremos de la vida social, configura el aspecto de Hegel que siempre acaba seduciendo el talento de Heller. Sin embargo, aquella atención a las contradicciones, aquella voluntad de no ser unilateral – como lo era la teoría pura del derecho, o el existencialismo político schmittiano – era fruto de una voluntad más bien weberiana de atenerse a una “ciencia de realidad”. Que Hegel ocupe el lugar central en las referencias del joven Heller implica muchas cosas, pero ante todo impone que todas las síntesis acaben canalizándose a través de la nación como potencia ética. Una de esas síntesis aspiraba a realizar un pensamiento capaz de unir el siglo XVIII y el siglo XIX. En efecto, la contraposición entre estos dos siglos centra la atención de Heller, tal y como se puede leer en su Hegel und Der nationale Machtstaatsgedanke in Deutschland: «En el camino del espíritu alemán de Kant y Humboldt hasta Bismarck y Treitschke, desde la filosofía idealista, del clasicismo y del romanticismo por una parte, hasta el tiempo de la doctrina darwinista de la lucha por la existencia, de la lucha de clases del marxismo y de la teoría de las razas y el evangelio nietzscheano del poder, por otro […] ningún puente perceptible parece conducir desde el pueblo de poetas y pensadores hasta el pueblo de “sangre y hierro”. Y sin embargo, ¡este puente existe! Sí. La ideología del Estado–poder nacional es él mismo el hijo de la filosofía idealista y no tiene otro padre que Hegel. El desarrollo del pueblo alemán desde la nación cultural a la nación del Estado–poder ha sido a menudo caracterizado. Pero Hegel como el fundador del pensamiento político moderno no ha sido todavía suficientemente pensado.»3 Hegel sería así el pensador verdaderamente puente entre el siglo XVIII y el siglo XIX: su pensamiento de la dialéctica anticipaba los fenómenos de la lucha vital y social tal y como los pensarían posteriormente Marx y Darwin, pero su comprensión de la Historia universal, encontraría la manera de confirmar ontológicamente el pensamiento de la nación cultural, tal y como lo habían defendido los románticos. De hecho, este pensamiento de la nación, que ya alentaba en el pensamiento de Leibniz, y que reclamaba, de la mano de Herder4, la com–posibilidad de las mónadas nacionales en el mejor de los mundos posibles, fluía de la mano de Hegel hacia una comprensión ontológica diferente. Ya no se inspirada en la simultaneidad de los órdenes espaciales, sino en la sucesión violenta de los órdenes temporales propios de —————————————— 3 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke in Deutschland, Ein Beitrag zur politischen Geistersgeschichte, 1ª Edición en Verlag B. G. Teubner, Leipzig und Berlin, 1921, y ahora en Hermann Heller, Gesammelte Schriften, Aalen, 1963, vol. I. pág. 23. 4 Cf.mis trabajos, «Los orígenes del nacionalismo alemán moderno» en Ilustración y Revolución francesa en el país Vasco. Ed. Xavier Palacios, Instituto de Estudios sobre nacionalismos comparados. Vitoria, 1991. págs. 237-283, y «Fichte y los orígenes del nacionalismo alemán moderno», en Revista de Estudios Políticos, Abril, Junio 1991. págs. 129-173. 144 José Luis Villacañas Berlanga la filosofía de la historia, mediante la forma de imperios. A través de esta centralidad de la filosofía de la historia, organizada sobre una representación del pasado como estómago de Saturno que devora a sus hijos, se teje la representación de la lucha por un futuro que justifica la violencia endémica de la vida5. Así, la filosofía de la nación pierde el cosmopolitismo de la com-posibilidad cultural ilustrada para entregarse a los fenómenos de la lucha política por el futuro. Para ello, la cultura nacional tuvo que fundar una potencia ética capaz de inspirar la profunda solidaridad que permite entregarse a la lucha con unidad y espíritu de sacrificio6. Desde esta perspectiva, es verdad: Hegel toma un elemento del siglo XVIII, la nación, y lo proyecta sobre el siglo XIX. Pero, a decir de Heller, también toma un elemento del siglo XIX y lo proyecta sobre el siglo XVIII: «Completamente desconocido ha permanecido el Hegel ante todo como el primer y más amplio anunciador del pensamiento del Estado–poder moderno. Y sin embargo, Hegel ha pensado el Estado medio siglo antes de Treitschke y de su tiempo, pero de una forma más penetrante y profunda que este, no sólo como Poder, Poder y más Poder, sino que ha establecido el poder político también como una exigencia nacional, incluso como el primer y más elevado imperativo de la razón y la eticidad, del derecho y de la política práctica, de tal manera que la voluntad hegeliana de un poder nacional–estatal puede caracterizarse en general precisamente como la fuente y el punto constructivo de su filosofía social»7. Heller, como se ve, descubre en el sentido cultural y ético de la nación la línea de continuidad entre el siglo XVIII y el XIX. Este último sería el siglo del poder, pero el Estado conformado en las duras realidades del siglo ahora debía recibir el aporte normativo de la idea de nación. Aunque Heller no lo sabía todavía, un oscuro discípulo de Herman Cohen también estaba trabajando en lo mismo, sólo que desde otro punto de vista. Franz Rosenzweig, en su Hegel und der Staat8, también sabía que Hegel no era el inspirador del liberalismo que de él se había propuesto hacer Rudolf Haym9, sino el defensor del Estado prusiano, el dios mortal —————————————— 5 «De Hegel a Schmitt: el sentido de la neutralización moral de la guerra», en Incontro Internazionale di Studio Filosofía e guerra nell’Età dell’idealismo tedesco, en Universitá degli Studi di Padova, 26-27-28 settembre 2002. 6 M. Weber, «Los fundamentos económicos del Imperialismo». En el capítulo VIII de Economía y sociedad. FCE. México. 1969, págs. 671-678. 7 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 24. 8 La edición primera Hegel und der Staat: Gedruckt mit Untersturzung der Heidelberger Akademie der Wissenschaften, München: R. Oldenboirg, 1920. Una edición italiana de la misma se puede encontrar en Il Mulino, Bologna, 1968. En mi Historia de la filosofía del idealismo alemán. 2 vols. Editorial Sinthesis. Madrid. 2001 se puede ver un análisis de esta obra. 9 Rudolf Haym, Hegel und seine Zeit: Vorlesungen: Entstehung und Entwicklung, Wesen und Wert der Hegel'schen Philosophie, 2. um unnbekannte Dokumente verm. Aufl/herausgegeben von Hans Rosenberg, Leipzig: Wilhelm Heims, 1927. Hermann Heller y el argumento kantiano 145 por el cual tantos millones de alemanes habían dado su vida pensando realizar con ello un acto ético, y al que el espíritu judío de Rosenzweig debía denunciar como un usurpador. Cuando nos preguntamos por la estructura de este pensamiento hegeliano del Estado, que conduce desde el idealismo a los tiempos de Bismarck, encontramos los siguiente elementos, según Heller: 1. – el Estado es una personalidad y un organismo; 2. – el concepto de Nación es la base ética común a todos sus miembros; 3. – el principio monárquico constitucional es la cima de esta construcción y se sostiene por las dimensiones simbólicas que despliega; 4. – el moderno derecho internacional, basado en la soberanía absoluta del Estado y en la inexistencia de un juez tercero a los Estado, está plenamente vigente; 5. – el concepto de derecho corresponde al Estado–poder nacional en exclusiva. Cuando nos damos cuenta de este conjunto de elementos, estamos en condiciones de mostrar lo que Hegel deja fuera del sistema del pensamiento del siglo XVIII. Entonces su capacidad de síntesis no parece tan afinada. Pues el cosmos de la nación, por sí mismo, no representaba el elemento del siglo XVIII. Este cosmos nacional no permanece intacto cuando cesa de jugar en el ámbito de la cultura, para jugar en el ámbito de la política de poder. Entonces nos damos cuenta de que, en este cambio de la representación de la nación, se ha entregado algo que ni siquiera Weber había entregado: las premisas jusnaturalistas del derecho racional moderno y la presentación de la nación como res publica. Lo que se abandona en este paso de la nación cultural a la nación-Poder es la interpretación jusnaturalista de la nación, que en el siglo XVIII siempre estuvo asistida de premisas morales y culturales que tenían como centro la dignidad personal y la noción de res publica. Algo semejante nos sugiere Habermas cuando, en Teoría y Praxis, afirma que Hegel nos introduce en un mundo donde se aseguran los efectos de la Revolución francesa, pero sin revolución. Interpreto que esta tesis quiere decir: olvidando los supuestos del republicanismo10. Todavía no podemos examinar el juego de estas dos nociones, desde luego. Ahora sólo nos interesa saber que Hegel era consciente de esta oposición entre el estado–Poder y el derecho natural del siglo XVIII11. Y sin embargo no manifiesta nostalgia alguna por la ruina del derecho natural. Para él, aquel derecho racional no implicaba potencia ética alguna. Su hostilidad al republicanismo y a su idea de contrato en este sentido es radical12. —————————————— 10 J. Habermas, Teoría y Praxis, Estudios de Filosofía Social. edit. Tecnos, Madrid, 1987, «La crítica de Hegel a la revolución francesa», págs. 123-141. 11 12 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 26. Para Hegel y la idea de contrato social, debe verse el capítulo dedicado a Hegel, cf. Duso, G. (editor) La filosofía moderna del contrato social, Res Publica, Murcia, 2000. 146 José Luis Villacañas Berlanga 3. Los límites de la síntesis hegeliana. Heller, sin mantener distancias algunas, había caracterizado el pensamiento político de Hegel de esta forma: «El pensamiento del Estado–poder es la expresión abreviada de una cosmovisión cerrada.»13 Su capacidad de recibir la herencia del siglo XVIII es desde este punto de vista muy limitada. Sin embargo, Heller, olvidándose de su voluntad de síntesis, ahora se siente mucho más inclinado a entender la contraposición como la cerrada hostilidad de dos “concepciones del mundo”: la personalista y la trans-personalista. En esta contraposición de cosmos cerrados se juega el destino del derecho natural y del republicanismo. Las ideas que definen el siglo XVIII y el siglo XIX no permiten una síntesis, sino una exclusión. Se trata de movimientos de pensamiento hostiles entre sí. Sin preguntarnos por la reducción de esta recepción del siglo XVIII, cuando la miramos desde la forma kantiana, podemos exponer este Personalismo bajo las siguientes características: 1.– Prioridad del individuo sobre la comunidad estatal. 2.– Prioridad de la libertad individual sobre poder del Estado. 3.– Movimiento del pensamiento desde abajo: Estado sirve al particular. 4.– Posición central de los dominados. 5.– El Estado no es necesario para la vida humana. 6.– La individualidad desarrollada vive fuera de la Política. 7.– El individuo es absoluto, el Estado tiene un valor relativo. 8.– Individuo, como persona, es homo noumenon y totalidad. 9.– Este es el portador de igual dignidad. 10. – Estas abstracciones fundan la igualdad cosmopolita y democrática. 11.– «Aquí se vinculan totalidades indeterminadas en un Estado, valioso para sus fines en exclusiva. El Estado no sino una relación de derecho entre los particulares racionales. Su idea es un contrato.»14 12.– «Sólo el individuo particular es fin en sí y sólo él posee un derecho absoluto a la autoafirmación y al perfeccionamiento, a la libertad.» 13.– Conclusión: «El Pensamiento del Estado–poder resulta para el personalismo extraño como conocimiento, hostil como deber.» 14.– Por eso se alaba la Kleinstaaterei como condición de la libertad alemana15 y de la libertad europea. La nacionalidad es una dimensión puramente espiritual, de naturaleza ético–estético. La diferencia radical se visualiza así en la contraposición entre la nación alemana y el Reich alemán. El nacionalismo cultural limita por tanto la Machtspolitik. —————————————— 13 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 24. 14 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 28. 15 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 32. Hermann Heller y el argumento kantiano 147 15.– El Estado es un mal necesario, para estas intuiciones «anarquistas.»16 16.– Así que Heller acaba por aceptar la tesis de Meinecke: «Ilustrados y Románticos han proyectado una oposición común al Estado del antiguo régimen, en su opinión inmoral, como si fuera propiamente el Estado-poder general». En toda esta serie de puntos, la reconstrucción de los argumentos filosóficos desaparece ante la historia, preparada para que la emergencia de Hegel aparezca como única salida. La posición de Kant, de la que Heller acaba por reconocer que sólo con ciertos matices cabe dentro de este esquema, desaparece bajo algunos comentarios que resultan dudosos. De hecho, este largo listado se aplica mucho mejor a ciertos románticos y al culturalismo liberal de Humboldt, ya a la defensiva de jacobinismo patriótico, que al republicano Kant, todavía implicado en una fase constituyente del Estado de derecho. Lo que se capta mediante esta serie es más bien un ambiente, en modo alguno una teoría filosófica. Se trata de historia de las ideas, no de filosofía. En este listado de tesis se mezclan, por tanto, puntos comunes a Kant y al siglo XVIII clásico y romántico, pero se introducen matices e interpretaciones que son ajenas a una filosofía del derecho y del Estado como la kantiana. Cuando comparamos la filosofía kantiana, con la comprensión de Kant que se trasluce en estas páginas de Heller, comprendemos que se ha forzado el trazo para que coincidan los principios en un grupo que resulta caracterizado como el de los anti-hegelianos. En el fondo, Heller lo sabe. De Kant se tiene que reconocer que ya supera el individualismo ilustrado, pero que desprecia todo poder expansivo17. Lo cual es plenamente cierto. Pero no se repara en que, con ello, Kant se sitúa justo en el medio entre el individualismo cultural alemán y el Estado–poder. En la teoría del derecho de Kant se nos ofrece un jusnaturalismo político republicano, que funda Macht, pero que mantiene este Macht distribuido entre la ciudadanía y entre los plurales poderes que la representan18. Se reconoce que esta visión del Estado no es ideológica o «ajena al mundo», como diría un weberiano. Pero no se profundiza en la idea de que, desde el punto de vista del Estado kantiano, el planteamiento hegeliano bien podría aparecer tal. Por ejemplo, su tesis del jefe del Estado como mera tilde de la ley, oculta el poder intenso que la burocracia imperial ejerce sin responsabilidad alguna. Así las cosas, Heller tiene que aparecer claramente insensible a la filosofía de Kant en el punto decisivo. Heller dice: «Kant en modo alguno ha pasado por alto la significación del momento del poder del Estado, pero nunca ni en modo —————————————— 16 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 35. 17 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 33. 18 Para esta teoría de la representación Cf. mi Res Publica, Los Fundamentos normativos de la política. Akal, Madrid, 1997. Y para un ensayo general, Cf. G. Duso, Die moderne politische Repräsentation: Entstehung und Krise des Begriffs, Duncker& Humblodt, Berlin, 2006. Sobre todo el cap. II, págs. 57-124. 148 José Luis Villacañas Berlanga alguno le ha concedido valor positivo en sí.»19 Esta tesis olvida hasta qué punto Kant ha hablado del deber de fundar un Estado, de que esta fundación se trata de un acto de virtud, de que sólo entonces tienen sentido los derechos fundamentales, de que el Estado se desprende de la estructura racional del derecho, y este de la estructura misma de la razón práctica, y de que el poder exterior es necesario al derecho. Por lo tanto, el Estado tiene un valor tan central como la propia libertad que lo funda y lo garantiza. Y por eso, porque el poder externo se deriva del propio concepto del derecho, jamás puede escapar a su límite. En suma, para Kant, el individualismo moral no puede separarse del republicanismo político. El uno sin el otro es inviable. Sin ambas virtudes, morales y políticas, no es posible ninguna de ellas. El hombre como fin en sí no es separable de la idea de un reino de los fines cuya única traducción inmanente posible es el reino del derecho. Por otro lado, aunque Hermann Heller reconoce el papel de la discordia en Kant, y asume que la formación del Estado es para él la meta de la teleología de la naturaleza y forma parte de la estructura histórica del bien supremo y de la providencia, interpreta de forma reductiva esta teoría. Por ello no está en condiciones de recordar que la paz perpetua reclama el estatuto de bien político supremo. Así que nada de alabanza de los pequeños Estados, sino alabanza de la potencia expansiva de la constitución republicana mediante federación de Estados libres. Jamás recuerda Heller que la noción de Friede implica a nivel interno la justicia distributiva y a nivel externo la justicia internacional y que, sin una, no puede existir la otra. La síntesis entre republicanismo y federación de Estados no le parece a Herman Heller una alternativa radical al Estado-poder y al imperialismo como camino necesario de la expansión del Estado-nación. Por lo tanto, debemos concluir que la paz, para Kant, es la consecuencia inevitable de la propia perfección jurídica del Estado libre. Para Hegel es la hegemonía de un Estado cultural imperial de poder. Finalmente, reconociendo que el interés en el Estado es ético, Heller se esfuerza por una interpretación reductiva de Kant, que hace del individuo autónomo lo único valioso en el mundo, olvidando de una manera radical que este individuo, como tal, no puede ser autónomo si no entra en la trama cooperativo–competitiva de la acción social. La clave parece ser que «el poder nunca aparece como una meta ética», sino meramente como medio. Heller cita aquí a Cassirer, no a Kant, para afirmar la »heteronomía del poder del Estado mismo». Una comprensión genuinamente republicana, como es propia de Kant, y por cierto de Cassirer20, no permitiría afirmar esta heteronomía misma del Estado. Pues el momento constituyente del pueblo genera una ley constitiución de naturaleza plenamente autónoma. Sólo en el momento del poder constituido se mantiene la exterioridad entre los ciudadanos y el poder. Mas desde luego, distancia no es heteronomía. Es la conse—————————————— 19 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 33. 20 Cassirer fue muy leído por Heller, sobre todo su Freiheit und Form, Berlin, Bruno Cassirer, 1916. Hermann Heller y el argumento kantiano 149 cuencia de la autonomía del juicio político que el ciudadano ha de mantener para ordenar la representación, para cumplir la ley, para verificar su obediencia. De hecho este es el punto. Representación, el vínculo entre ciudadanos y el poder constituido, no es heteronomía para el republicanismo, sino confianza, actuación propia a través de la actuación de otro delegado y autorizado por todos. En el texto de Heller, por tanto, Kant desaparece como un mero paso intermedio entre el jusnaturalismo cultural de la ilustración y del romanticismo, y el estatalismo de Hegel, pero se hace a costa de abandonar toda la tradición republicana moderna. Este abandono vino impuesto por las fuerzas hiper-conservadoras del Reich que se negaron a someterse jamás a un poder constituyente. Al asumirlo, Heller aceptó la victoria de la facticidad existencial de Reich como si implicara un triunfo filosófico. La posición de Kant, la única que genera una normatividad capaz de fundar un Estado como fin ético que no entre en contradicción con la existencia de la persona como fin en sí, a través de un pleno sometimiento al derecho establecido de forma republicana, queda obviada. Una vez Kant resulta eliminado de su punto de vista, Heller puede decir: «Para el pensamiento del derecho natural, los pares de contraposiciones entre poder y derecho, poder y libertad, poder y eticidad, categorías estancas, entre las cuales no existe ninguna mediación.»21 La nación sin poder constituyente propio entonces apareció como la única salida cuando el republicanismo había desaparecido. Así, Heller puede ya introducir el elemento que realmente le interesa: la nación como fundamento existencial del Estado. Pero también con ello, la nación recibe los atributos absolutos de la persona noumenon, y los proyecta sobre su manifestación sensible que es el Estado. Desde este supuesto, cae por la borda la voluntad de limitar el poder de la nación–Estado desde las exigencias del hombre como persona phaenomenon. La cosmovisión del nacionalismo político, y sus herederos y subrogados de la nación, no es una síntesis del siglo XVIII y XIX, sino la sublimación de una idea de personalidad individualista, ahora proyectada sobre un colectivo nacional que antes no tenía operatividad política per se. La nación para Kant, lo sabemos, es la ficción por la que los hombres de un pueblo jurídicamente unidos y conscientes de su poder constituyente de derecho, se representan como hijos comunes de una única patria22. La filosofía de Kant, siempre atenta a reducir mediante la norma las proyecciones narcisistas del sujeto, fue la única en concebir un sujeto humano limitado, pero capaz de generar, a través de esa misma limitación, un Estado igualmente limitado en su poder y en su norma. Frente a esta teoría del sujeto constituido por la norma, la teoría ontológica de la personalidad nacional, cuyo sujeto se eleva en ambos casos como valor absoluto, carece de toda norma. Su única norma es la autoafirmación que brota de su —————————————— 21 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 89. 22 Cf. mi ensayo La Nación y la Guerra, Res Publica, Murcia, 1999. 150 José Luis Villacañas Berlanga existencia incuestionable, supuesta, material, vinculada a valores que ha de expresar. En este caso, la obra de Hegel en el siglo XIX no habría significado síntesis alguna, sino la identificación de otro sujeto capaz de sufrir las mismas patologías del sujeto sublimado del siglo XVIII, de naturaleza monadológica y auto-referencial. Hegel no sería sino la metamorfosis de una enfermedad, ni la superación saludable y anti-narcisista del sujeto, empresa reservada a la filosofía de Kant. Cuando con estos comentarios avanzamos en la exposición del Transpersonalismo, encontramos los caminos de esta transferencia de semantemas propios de una subjetividad narcisista, incapaz de verse a sí mismo como una complexio–oppositorum y de reconocer en sí la centralidad de la ambivalencia. La nación es un sujeto que no desconfía jamás de sí mismo, que tiene como vocación una expresión absoluta de sí. Las patologías se trasladan, pero se mantienen. De la misma manera que el Estado era visto por el individuo ilustrado como una abstracción, ahora es el Estado el que ve al individuo como una abstracción, cuya dimensión normativa no reconoce. De la misma manera que el individuo narcisista burgués se comprende en lucha contra los demás, ahora el Estado se ve a sí mismo bajo este prisma. La representación profunda, la herramienta conceptual, la noción de Sujeto auto-referencial, exclusivamente narcisista, que ve el mundo a través de sí mismo, y porque se ve a sí mismo, no se ha cambiado. A través de la voluntad de pensar al «individuo sin abstraer de las determinaciones de carácter, tiempo y nación», de facto se introduce la estrategia de no pensar sino la pertenencia misma a la nación, y con esto no se hace otra cosa que pensar la nación misma. En todo caso, no tenemos que hacer una contraposición entre los detalles que caracterizaron el Personalismo y los que van a caracterizar el Trans-personalismo del estado–Nación. Sólo debemos demostrar que, en el fondo, se trata del mismo sujeto. Por lo tanto, sólo tendremos que hacer un mínimo ejercicio de sustitución. Pero demostrar que la representación de base es la misma es muy fácil. «Para el Trans-personalismo todo Yo es sólo un Yo-parte y depende en su completa existencia de un Yo-Todo mayor. Este Yo mayor puede ser Dios, Iglesia, Clase o cualquier otra forma de sociedad; pero sólo puede ser la humanidad en tanto que alcanza una objetividad intuitivamente limitada por un principio de individuación cualquiera concreto. […] Sólo como conexión empírica, no como representación abstracta es posible un universalismo. […] El Estado nacional se convierte así en el Yo–Todo presupuesto sin el que ni se puede vivir ni pensar.»23 Estamos por tanto ante una tesis que hace del Estado-nación un trascendental de la vida humana. De esta forma, no sólo se confiesa la identidad estructural entre el Yo–individuo del siglo XVIII y el Yo-Estado-Nación del siglo XIX. Ambas formas de subjetividad proceden de un mundo en el que dominaban formas no desencantadas del sujeto. En esta serie, el hombre se calza las sandalias de Dios o de la —————————————— 23 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 27-28. Hermann Heller y el argumento kantiano 151 Iglesia, y sólo por los fracasos obvios de esta idea, la nación acaba heredando la posición de Dios en el mundo. En todo caso, lo que más nos interesa, es que un sujeto absoluto genera el derecho. La sensibilidad de Heller para apreciar la monstruosidad de esta deducción es mínima por el momento. De hecho sólo al final de su carrera lo hará. Por ahora olvida hasta qué punto en una genuina consideración intra-mundana no cabe apelar a derecho absoluto alguno, sin proponer el momento en que este derecho alcanza su límite; olvida en suma que la única consideración intra-mundana impone trazar el límite de validez de toda instancia de sentido. Por ello, Heller da el paso desde la subjetividad nacional al derecho absoluto, sin medir las consecuencias. «El Estado prescinde de la cualidad-Yo objetiva de los individuales determinados por él y se intuye en la imagen de un organismo tras-personal. […] Aquí se atribuye el derecho absoluto sólo al Estado, sólo él es el fin final y sólo el Yo–total debe ser libre, absolutamente soberano, capaz de afirmarse a sí mismo y de expandirse: en una palabra, debe ser un Poder.»24 El individuo con derecho limitado por el derecho del otro, el hombre que posee derecho en sí, no existe. Tiene derecho sólo si lo canaliza a través del derecho del Estado y en la medida en que este se lo reconozca. El Estado que dispone de un derecho sólo si lo funda a través del derecho de los ciudadanos, y sólo si mantiene relaciones de derecho con los otros Estados, este tejido de referencias complejas y en tensión, que constituía el edificio kantiano, queda aquí simplificado por una visión metafísica del mundo que acaba encontrando un sujeto ideal que sólo parece real porque reclama Poder absoluto. Pero la idealidad de este sujeto, su naturaleza extraña al mundo real, reside en el monopolio final del sentido, en su reclamación de ser la clave de interpretación de la historia. Pensar el tiempo como el juego plural de las interpretaciones, tan plural que ningún sujeto puede reclamar el monopolio final del sentido, ni ganarlo mediante una estricta auto-referencialidad, esta previsión estaba excluida desde la voluntad de sistema de Hegel. 4. ¿Por qué Hegel? Cuando nos preguntamos por aquella visión que deforma la mirada de Heller, y que le permite conceder a un pensamiento tan claramente monstruoso desde el punto de vista del derecho racional como el de Hegel una hegemonía sobre todo el pensamiento político moderno, entonces tenemos que acudir a las decisiones de valor, plenamente asentadas en su ideario político socialista. Lo que significa Hegel para Hermann Heller es lo siguiente: «El pensamiento del Estado nacional alemán y el socialismo alemán nos conducen los dos de regreso a Hegel. Nin—————————————— 24 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 28. 152 José Luis Villacañas Berlanga gún monumento más digno pueden elevar a sus ancestros que el de encontrar el camino común a la realización del pensamiento profundizado por Marx y Lasalle de un pueblo alemán completo organizado en un nuevo poder nacional.». La centralidad de Hegel finalmente no es propia, sino consecuencia de la centralidad del proyecto socialista y, para ser más precisos, de uno de sus déficit más rigurosos: el de no ser capaz de unificar el pensamiento de Marx con el pensamiento de Lasalle, reunir el pensamiento de la clase con el de la nación, el de la ordenación completa del orden productivo a partir del sujeto nacional. En suma, Hegel era necesario porque atribuía a la nación la potencia ética necesaria para llegar al socialismo. Este déficit del marxismo nos lleva de nuevo al problema Hegel como el pensador de la síntesis. Y hemos de reconocer que aquí adquiere una mayor verisimilitud. Pues Marx se había especializado en una comprensión de la Modernidad desde el punto de vista del espíritu universal, aunque ahora portase el nombre de desarrollo de las fuerzas productivas. Desde esta perspectiva, Marx penetraba la historia, le concedía una teleología inmanente y descubría el juego de la necesidad y la objetividad científica. De una manera clara, fortalecía los procesos a escala mundial y estaba poco preocupado por los Estados individuales o por las culturas nacionales, que acabarían disueltas en el maremoto de las imposiciones de los modos de producción capitalista. Cuando miramos esta terrible y acertada profecía desde Hegel, quizás se pueda echar de menos en Marx una apreciación de las pasiones naturales de naturaleza ética que se ponen en juego para desplegar la maquinaria del espíritu del mundo, sobre todo si despreciamos la conciencia subjetiva de la clase, que a Heller le parecía una abstracción universalista. Tener en cuenta esta mediación fue lo que permitió a Lukács forzar una traducción sin fisuras entre Hegel y Marx, sin necesidad de mediaciones por la ideología nacional de Lasalle. Heller no va por este camino de Lukács. Él ve necesaria esta síntesis de clase y nación, por razones complejas, pero formales. Ante todo porque la dimensión materialista de Marx debe ser compensada con la visión cultural de la nación, y porque la visión crudamente belicista de la nación debe ser compensada por las fuerzas de la solidaridad marxista. Desde este punto de vista, la compensación permite claramente la crítica de los extremos. Pero en esta crítica de los extremos, lo que realmente se produce es un movimiento de autocrítica que torna al principio, al origen. Pues Hegel vio claro que sólo una nación elevada a Estado conforma una clase nacional capaz de controlar el proceso de la sociedad civil desintegrada y rota, determinada por el mercado. Pero ya igualmente Marx había previsto en el Manifiesto Comunista que la lucha del proletariado «se eleva a clase nacional y se constituye a sí mismo como nación.»25 La necesidad de esta síntesis, sin embargo, sólo puede apreciarse si reparemos en los caminos divergentes que llevaban el pensamiento de la nación y de la clase obrera. La primera, por obra de Bismarck, se —————————————— 25 Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit.,pág. 255. Hermann Heller y el argumento kantiano 153 había organizado para la prepotencia imperialista en una guerra externa, y por tanto sólo pensada desde la política exterior; por su parte, el pensamiento de clase se había dirigido exclusivamente a la política universalista, pero sin pasar por el esquema intermedio de la construcción de un genuino Estado nacional. Hegel era en el fondo un pensador equilibrado entre la política interior y la política exterior, y de esta forma, servía de modelo tanto para una genuina política socialista, como para una genuina política exterior universalista. Nunca previó este pensamiento la forma concreta en que este esfuerzo de nación y socialismo se iba a encarnar en la historia. En cierto modo no la necesitaba. Para un pensamiento inspirado en Hegel, este curso de las cosas quedaba avalado por el espíritu del mundo y estaba a salvo de toda contingencia. En sí mismo conformaba una especie de dispositivo cuyos diagnósticos parecían infalibles. La larga evolución del siglo XIX parecía asegurarlo. La percepción de lo nuevo no ha sido nunca especialidad de los sistemas filosóficos. La revolución, la irrupción de lo nuevo, no era para ellos sino el fracaso, lo más viejo. 5. El Personalismo modificado y la interpretación jusnaturalista de la nación. Desde luego, Heller no ataja el pensamiento hegeliano por el cual las relaciones entre los Estados resultan entregadas a la guerra indefinida de autoafirmación. Como afirma Schluchter26, Heller no es hegeliano porque no acepta la filosofía de la guerra de Hegel. Mas la filosofía de la guerra era solidaria del Trans-personalismo del Estado como organismo. Por lo tanto, este rechazo del derecho absoluto del Estado a la autoafirmación incondicional mediante la guerra, con el sacrificio de su ciudadanía, implica una revalorización de los supuestos del jusnaturalismo. Schluchter ha hablado en consecuencia de la necesidad de un “personalismo modificado”. Así se ponía en el camino de una interpretación jusnaturalista de la nación, en el sentido de inyectar en la base misma de la formación del Estado principios que garanticen el límite del poder del Estado. Pero de esta forma, Heller reinterpretaba la nación como comunidad de valores culturales y éticos, en la línea del difamado siglo XVIII. En una página de Las ideas políticas contemporáneas se puede leer, de una manera muy clara, lo que puede significar el fondo cultural de la nación: «Por eso el desarrollo de toda cultura es necesariamente siempre, dentro de una determinada dirección, racionalización progresiva de todas las relaciones de la vida, un “proceso de transformación de lo racial en reflejo” (Jac. Burckhardt). La racionalización, —————————————— 26 W. Schluchter, Entscheidung für sozialen Rechtstaat, Hermann Heller und die staatstheoretische Diskussion in der Weimarer Republik. 2 ed. Nomos Verlag, 1983, Baden-Baden, pág. 111. 154 José Luis Villacañas Berlanga frente a la autoridad sacerdotal o la fundada en el nacimiento, significa siempre la vuelta al individuo como último elemento de la vida social. En este aspecto, como en muchos otros, un estado de creciente cultura significa un estado de creciente independencia del individuo, una formación de personalidad, un predominio más amplio, aunque no siempre más hondo, de una actuación humana consciente frente a las relaciones sociales irracionales.»27 La base de este movimiento de regreso hacia el personalismo no era otra que la comprensión de la corriente central de la modernidad, esa atenencia al mundo que no permite apelar a entidades metafísicas transcendentes, como de hecho era esa super-subjetividad de la Nación–Estado, entendida como valor absoluto. Este refuerzo y aceptación de la apuesta por la inmanencia, propia todo el proceso de modernidad, genera una nueva corriente de ideas en el pensamiento de Heller que busca su centro en la idea de la Democracia. Sin embargo, como había dejado claro Carl Schmitt, la idea de democracia no era unívoca28. Muy de señalar es esa sutil indicación de que la base de toda racionalización no procede del nacimiento o de la autoridad, sino del individuo, que ahora no se comprende como ser aislado y atómico, sino como elemento de la vida social, tal y como quedaba claro en el individualismo metodológico de un Weber. Con ello, Heller veía el peligro allí donde Weber lo había puesto en las páginas finales de Wirtschaft und Gesellschaft: en la tendencia a convertir la política en una dimensión meramente emocional, el camino preferido por la activación de la idea de nación. Como ya sabemos, en Weber, sólo una política que apela a la persona puede generar las virtudes de la responsabilidad y de la acción consciente. Parece como si, por fin, Heller saliera de una referencia erudita a ideas literarias y se enfrentara a la realidad de su época, en las que aquellas ideas ya aparecían ampliamente deformadas. Pero igualmente, al levantar la mirada por encima de la más reciente historia, al contemplar los procesos históricos en la amplitud del arco de la modernidad, Heller vislumbra que ese proceso histórico nos ha legado una normatividad implícita, la única electivamente afín con la apelación a la inmanencia. «La nueva metafísica panteísta tenía su exacto paralelo en la inmanencia del Poder político, en la metafísica de la soberanía del pueblo […] como un ius divinum et naturalem.»29 La democracia juega ahora como la idea matriz de todas las ideas políticas. Pues sólo ella se enfrenta al reto de producir un orden en una realidad social desacralizada, carente de parámetros transcendentes, condenada a apostar por las fuerzas encontradas en la inmanencia. Esta es la fe heroica de la razón, —————————————— 27 Hermann Heller, Las ideas políticas contemporáneas, Labor, Barcelona, 1933, pág. 23. 28 C. Schmitt, Sobre el Parlamentarismo. 2ª ed. Ed. Tecnos, Madrid, 2002. También su noción de Dictadura como compatible con la democracia. Cf. La Dictadura:desde los comienzos del pensamiento moderno de la soberanía hasta la lucha de la clase proletaria. Alianza Editorial, Madrid. 2003. 29 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 25. Hermann Heller y el argumento kantiano 155 la dimensión carismática de la razón. Las ideas políticas serán así variaciones de la idea democrática y sobre ella deberá interpretarse tanto el nacionalismo, el liberalismo como el socialismo. Sorprende de nuevo que el republicanismo no aparezca como idea política. Una vez más, la democracia caracteriza a la nación. A esta comprensión de la democracia como base de la nación le he llamado interpretación iusnaturalista de la nación. Con ello no hemos dicho nada acerca de qué puede añadir la nación al pensamiento de la democracia. De entrada podemos captar lo que la sobredeterminación democrática entrega a la nación: a saber, el pensamiento de que la nación no puede generar un poder que atente al derecho racional de los individuos ni exigir el sacrificio de sus miembros. La falsa oposición entre el individuo y la nación quedaba así superada. La nación es un reconocimiento social del derecho racional, y por tanto, de la democracia30, que conviene definir posteriormente, pero que no se considera desde la categoría asfixiante de organismo total. Antes bien, el mayor intento del pensamiento posterior de Heller apuntará a definir en qué sentido la nación puede ser definida en el orden de las ideas democráticas. Por el contrario, el anti–individualismo, y la hostilidad al derecho natural, quedaba ahora reconocido como una de las herramientas ideológicas del romanticismo reaccionario31. La nación como una comunidad total, como una inmanencia anti–individualista, es ahora degradada como instrumento propagandístico utilizada en apoyo de la monarquía alemana. Aun reconociendo que la idea de nación, tal y como se conoce en su interpretación jusnaturalista, puede integrar potenciales revolucionarios, Heller insiste ahora en que ésta no ha sido la forma en la que se ha interpretado la idea de nación en la Alemania contemporánea. «En el romanticismo – dice Heller – la nación se transforma en “quietista” de la continuidad “orgánica” de la vida, a través de las categorías de la historia.»32 Las viejas categorías se critican ahora justo a partir de las ideas ilustradas. Pues esta interpretación quietista entregaba a la nación un estatuto trascendente que la hacía «independiente de la crítica racional y revolucionaria de los individuos». Ahora se reconocía que esta potencia crítica, procedente del derecho natural, era una instancia normativa. Ignoro si esta comprensión se alcanza por la iluminación que Carl Schmitt proyectó sobre el Romanticismo Político33. En todo caso, Heller estaba ahora en condición de discriminar en el conglomerado de la historia ale—————————————— 30 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 27. 31 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 35. 32 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 36. 33 Cf. mi trabajo «Romanticismo Político. Sobre el estatuto del libro de Carl Schmitt, o un capitulo de Ontología Política»; en Ángel Prior, editor, Estado, Hombre y gusto estético en la crisis de la Ilustración, Biblioteca Valenciana, Valencia, 2003, págs. 31-51. 156 José Luis Villacañas Berlanga mana, los elementos normativos filosóficos. Hegel pasaba a ser sospechoso de defender la idea de Estado monárquico–feudal. «Hegel – que pasa a ser colocado junto con Stahl – se convierte en el teórico político del constitucionalismo monárquico, acuñado por Bismarck, y mantenido por la burocracia y la burguesía nacional liberal.»34. En todo caso, la proximidad de los análisis de Heller y los de Weber resulta ahora muy marcada35. La mirada de Heller pudo comprobar entonces cómo la metafísica hegeliana del Estado era electivamente afín con el positivismo jurídico. Laband no era en modo alguno contradictorio con Stahl, sino su expresión jurídica. La idea democrática moderna, que desde Spinoza hasta Weber insiste en la comprensión de la legitimidad desde la obediencia que voluntariamente prestan los dominados – obedientia facit imperantem, decía Spinoza –, es la única que resulta coherente con el cosmos de representaciones modernas, sean epistemológicas, metafísicas, éticas, políticas o jurídicas36. Ahora, la posición de Kant no es la de un mero individualismo. Ahora se dice de él: «La idea kantiana de una legislación general, la exigencia de una autonomía universal, su ética jurídica de la ley, todo apunta hacia el democratismo político»37. Sin embargo, las reservas no desaparecen. Aunque Kant acogió el contrato social, la soberanía del pueblo, las exigencias de libertad y de igualdad, «las convirtió en una forma inoperante, inofensiva». Ahora se reconoce la visión republicana de Kant, tan diferente del individualismo, y su hostilidad a todo representante soberano. El primado de la ley impersonal, «característica de toda democracia», es afirmado como la única instancia trascendente que conoce el ser humano. Heller reconoce, en un pasaje sutil, que este reconocimiento del derecho impersonal tiene que producirse desde el movimiento de la propia autonomía de la conciencia moral38. En realidad, se dice que Kant opuso al absolutismo policial y mercantilista «el ideal del Estado de Derecho en su forma más absoluta, abrupta y estricta». Decisiva es la idea de virtud republicana, el hecho de que por su contenido la ley jurídica no se puede oponer ni distinguir del imperativo categórico. Además, Heller reconoció que Kant mostró la vinculación entre la ley jurídica y la idea de una paz general y perpetua a través del principio de libre federación. Las reservas tienen que ver con el hecho de que Kant retiró «del pensamiento democrático toda la ponzoña revolucionaria.»39 Jamás analiza Heller seria—————————————— 34 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 38. 35 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 44, 54. 36 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 64. 37 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 66. 38 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 67. 39 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 68. Hermann Heller y el argumento kantiano 157 mente si este resultado es fruto de una comprensión roma de la teoría o bien si se debe a una superior comprensión de la misma. En realidad, Heller supone que Kant confiaba en la teleología interna de la naturaleza, en la «ley causal que rige el proceso social». Las instituciones republicanas sería fruto de una maduración social, no de una revolución que suponía una diferencia entre los sujetos activos y el pueblo. Se pasa por alto la tesis de Kant que sugiere que, si el pueblo organiza sus poderes en una constitución, no puede hablarse de una revolución y, por el contrario, si se habla de una revolución en una situación constitucional, entonces no se trata del pueblo. Sin embargo, a pesar de reconocer elementos de su republicanismo, Heller sigue haciendo de Kant un liberal. «La idea del Estado liberal racional tuvo en Kant al más grande de sus representantes. Su doctrina construía al Estado como si estuviese basado en el contrato celebrado por individuos autónomos, con el exclusivo fin de asegurar su situación jurídica. El derecho y la propiedad individuales son anteriores al Estado»40. De esta manera, Kant sería el representante de las ideas jusnaturalistas burguesas de corte individualistas y liberales, ejerciendo su principal influencia sobre Humboldt41, quien habría heredado su actitud anti-revolucionaria. El conjunto de ideas del liberalismo sería así el núcleo dominante de su inspiración que, aunque propone el «heroico ideal de la felicidad digna» contra el sentido de la felicidad utilitaria, no es menos individualista que el hedonismo. El núcleo básico y fundamento de la idea liberal derivaría del concepto de dignidad humana en general y, con ella, los ideales de tolerancia, Estado laico, ciudadanía universal y pacifismo serían inevitables42. El resultado se exponía en la última página del capítulo entregado a las ideas liberales: «El núcleo de ideas liberales ha implantado, por sus reivindicaciones de respeto a la libre actividad del individuo, un gran número de instituciones político-jurídicas y sociales que, sin duda, están tan arraigadas en el complejo de nuestra cultura, que sólo con ella podrán desaparecer. Aún una comunidad socialista habrá de edificarse sobre esas bases, y reconocer los derechos humanos del individuo.»43 Incluso llegaba a decir: «No hay que despreciar la función que un vigoroso neoliberalismo podría desempeñar contra los métodos de violencia fascista y bolchevista, especialmente en el terreno político cultural». A pesar de lo cual, dijo que «el núcleo de ideas liberales, como tal, es políticamente extemporáneo». Como vemos, entre el liberalismo y la democracia seguía abierta una brecha, que sólo podía cubrirla una interpretación de la nación como encarnación concreta de los valores jusnaturalistas. Entre el liberalismo y la democracia no se divisaba el republicanismo. —————————————— 40 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 99. 41 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 100. 42 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 106. 43 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 117. 158 José Luis Villacañas Berlanga 6. Fichte en las Ideas Políticas contemporáneas. El nuevo héroe del pensamiento de Heller, como ha puesto de manifiesto Schluchter44, es ahora Fichte. Su mérito consiste justamente en pasar desde las puras ideas democráticas – por tanto personalistas y jusnaturalistas – a la efectividad de la praxis histórica. «La idea de comunidad de Fichte, aunque pensada con pocas raíces, daba a su libertad, fundada en la igualdad democrática, una aproximación social desconocida para el pensamiento kantiano.»45 Si nos preguntamos para qué era necesaria esta idea de comunidad, más allá de la acción consciente de lo individuos, la respuesta que obtenemos es que «la idea jurídico natural del contrato social nada decía acerca de las fuerzas reales que socializan al individuo.»46 Sin ninguna duda, se trata de una concesión al elemento romántico, cuyas consecuencias Heller apenas logra medir. El hombre, parece derivarse de esta nueva apuesta, no puede considerarse a sí mismo como ser vivo y social sin dar entrada a elementos sentimentales de co-pertenencia. Para ello no bastan los conceptos, las dimensiones críticas individualistas, sino que éstas trabajan sobre contextos de pertenencia que no pueden ser puestos en duda. ¿Acaso no introducimos todo el tras-personalismo con esta apelación a la comunidad de Fichte? Ciertamente debemos hacer distinciones. La subjetividad absoluta en el primer libro era la nación-Estado y su atributo era el Poder. La noción de comunidad en Fichte no tenía que ver con la estructura de poder, y en este sentido, no podía ser interpretada desde el imperialismo aguerrido. Al contrario, para Fichte, la comunidad es una dimensión de interacción plenamente significativa, atravesada por la voluntad de perfección recíproca de los individuos. En efecto, esta comunidad identifica la plenitud de la acción social, con toda la carga de las dimensiones humanas. No sólo no destruye las dimensiones democráticas, sino que las refuerza. El Todo ahora no es un organismo estatal, sino el resultado de la acción social dirigida a hacerse cargo del ser humano también en su totalidad. Desde esta noción moral de nación, en tanto comunidad de acción recíproca, se desprendía para Heller una segura respuesta a la exigencia socialista de la política democrática. La perfección de la comunidad, en este sentido, es el fin moral de la acción social. De esta forma, sin renunciar al individuo, Fichte señaló en la dimensión comunitaria el elemento que, alojado en el cuerpo mismo del hombre individual, podía inclinar a los hombres a una ordenación social democrática. En suma, y como veremos, esta comunidad de Fichte era la plenitud de la fuerza normativa de la sociedad civil, sin la contradictoria encarnación de la sociedad burguesa basada —————————————— 44 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 111-115. 45 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 69. 46 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 70. Hermann Heller y el argumento kantiano 159 en el mercado. La nación en el pensamiento de Fichte era una sociedad civil igualitaria y post-burguesa. Es muy curioso, sin embargo, cómo los peligros del absolutismo moral de la comunidad son tan profundos como los que ya comprendimos en el absolutismo político de la nación. Aquí, el paso de Heller desde Hegel a Fichte no es sino un regreso hacia un laberinto que no tiene otra salida que la de Kant, con su rigurosa identificación de la ambigüedad moral y la clara distinción entre moral y derecho. En efecto, el problema básico de toda configuración inmanente del orden social, por muy penetrado que esté por la moralidad, como libre contribución a la igualdad, la justicia y la libertad, no es otro que el de la configuración de una autoridad. Con el pensamiento de la comunidad moral-nacional como todo moral se corre el riesgo de proponer una autoridad moral normativa, representante verdadero de los valores morales comunitarios. Con ello, por tanto, estamos a más de un paso de abandonar el profundo pensamiento kantiano de la autoridad del magistrado, que no tiene por qué implicar una autoridad moral. Frente a esta compleja mirada, Fichte, en su afán de promover la moral por encima de todo, tiene un concepto instrumental de la autoridad y del poder político. Esta concepción instrumental falsea lo que el poder realmente es: representación. Ahora el pensamiento de la comunidad moral manifiesta sus peligros. Si la dimensión que hay que promover es la moral, el poder debe medirse por los efectos de promoverla. La eficacia moral del poder – para Kant una contradicción en sí misma, pues el poder ha de suponerla – debe ahora servir de criterio para la autoridad política. «La legitimación racional es el valor de los servicios que pueda prestar.»47 Heller está ciego ante este sencillo hecho: la perfección moral jamás se identifica de una manera objetiva. Jamás puede ser, por tanto, un punto de partida de legitimación política. Por el contrario, el poder debe levantarse sobre la consideración de que todo ciudadano es digno de ser representado por igual. Sea moralmente digno o indigno, pues nadie sabe nada de nadie en este sentido. Fichte parece conceder valor al pensamiento de la democracia no por sí mismo, sino en la medida en que los hombres que lo componen, tomados de uno en uno, han de ser moralmente buenos. Este pensamiento es en sí mismo monstruoso. De la nación– poder de Hegel pasamos a la nación moral de Robespierre, no menos carente de toda idea de ambivalencia moral ni menos expuesto al sujeto narcisista. La consecuencia más precisa de esta confusión se nos muestra en todo su esplendor cuando Heller, en la línea de Carl Schmitt, considera perfectamente compatibles la democracia con la dictadura. Poco consuelo obtenemos de este hecho, cuando se nos añade que en el fondo se trata de una dictadura moral o meramente pedagógica. Cualquiera puede ver que esta dictadura pedagógica se opone a la democracia en sí. Al menos, cualquiera que hubiera leído a Kelsen, que en 1920 ya —————————————— 47 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 72. 160 José Luis Villacañas Berlanga había publicado la primera edición de Esencia y valor de la democracia. La dictadura pedagógica no recoge la fuerza normativa de la sociedad civil, sino que la destruye. La confusión final por fin se revela: democracia es una forma de la política, una forma de ordenar la sociedad en la objetividad del poder, es el vínculo entre la sociedad civil y la república, el único que permite hablar de representación y de libertad. La igualdad, la libertad, la autonomía, incluso la expectativa de una justicia distributiva como meta final de la idea del Estado, no implica la afirmación de la necesidad de una homogeneidad moral, la existencia de un ser humano sin ambivalencias morales. La democracia no es el gobierno de todos los buenos, sino de todos, los moralmente buenos y los que ejercer su libertad para convertirse en moralmente malos. De otra manera, el filósofo tiene que convertirse en el juez moral que penetra los corazones. Con ello, el argumento de que la moral es un asunto de juicio personal, dada su insuperable ambigüedad, se quiebra. Un elemento pleno de equívocos se introduce ahora. El paso desde la democracia política de Kant a la democracia comunitaria–moral de Fichte se interpreta como paso desde «la igualdad jurídica formal, de Kant, a la igualdad jurídica material, de Fichte.»48 He defendido en otro sitio que, en Kant, todo Estado incluye en su idea de contrato, y desde motivos jusracionalistas imperativos, una exigencia de igualdad material, consecuencia de la estructura provisional de todo derecho positivo49. Más aún, la vida histórica, dominada por la política, apunta finalmente a ese progreso material del derecho. Pero por mucho que progrese la igualdad material, por mucho que cada hombre goce de la independencia civil y de los medios materiales necesarios para su personalidad, su acción social no irá dirigida a garantizar la perfección moral de alter – esto resulta imposible si se comprende realmente el estatuto de la moral –, sino a garantizar proyectos de felicidad cooperativos, que de acuerdo con el segundo imperativo de la Metafísica de la Virtud, deben proliferar mediante la ayuda a los proyectos de felicidad de los demás. Al separarse de este cosmos kantiano de problemas, Heller se dejó llevar de su inclinación a confundir la democracia formal con la democracia política, y a entender su superación material como una sobredeterminación moral de los principios políticos. De esta forma ignoró la dimensión normativa de una política pragmática en la que se había esforzado Kant. De esta forma, orientado desde su credo político, Heller pudo ver el socialismo como la herencia moral de Fichte. Como recordará en Teoría del Estado, aunque ahora ya con un punto crítico, en el fondo Fichte estaba de acuerdo con Marx al reconocer que el hombre sólo se emanciparía —————————————— 48 49 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 73. J. L. Villacañas, Res Publica, Fundamentos normativos de la política. Akal, Madrid, págs. 71-85, donde expongo las tesis de Kaulbach sobre el derecho. Hermann Heller y el argumento kantiano 161 cuando «el individuo se convierta en ente genérico», y esto significaba cuando «el individuo humano» aparezca como «encarnación de la socialidad»50. La comprensión moral de la democracia de Fichte no sólo era compatible con las ideas voluntaristas del socialismo. En cierto modo, Fichte siempre fue para Heller el primer teórico alemán del socialismo51. Tenía alguna otra ventaja teórica, además de conceder a la idea de Dictadura el dulce adjetivo de pedagógica. Se trataba de mediar en la crisis del Parlamentarismo con la tesis de que el Parlamento no es necesario a la democracia, sino que se trata de una mera técnica, tesis estrictamente schmittiana. El equívoco acerca del kantismo resultaba aquí escandaloso, como Kelsen sabía. Pues el Parlamento era la clave jurídica de la democracia política, la idea misma de la representación. Sólo por el abandono de toda idea política se puede rebajar su papel de una mera técnica democrática. Ni siquiera Weber había dicho esto, sino que sólo hay representación sí hay políticos auténticos y se forman en el parlamento52. En todo caso, Heller puede decir con todas sus letras que «lo que se halla en crisis es la técnica parlamentaria de la democracia». Sin embargo, la clave no estaba aquí. Lo decisivo residía en que esta crisis respondía a la transformación misma de la idea democrática. No tiene su origen en el abuso de la burocracia, en la destrucción de un genuino sentido político por parte de los partidos o en los sistemas electorales que acaban destruyendo la lucha política. Si así fuera, la crisis técnica tendría soluciones técnicas. Aquí se dice otra cosa, si bien muy abstracta. La crisis apunta a que el parlamento será superado en tanto idea consustancial de la democracia. Si avistamos la idea utópica de una democracia basada en la homogeneidad moral, podemos prescindir ya de toda necesidad de representación53. El Estado es una expresión de la humanidad pecaminosa y desaparecerá ante la huma—————————————— 50 Entonces dijo, de manera coherente, como veremos, que «Hay que ver en ello el síntoma de una posible enfermedad mortal, tan peligrosa para la existencia del alma individual como para la sociedad entera.». Entonces pudo referirse a Max Scheler para distinguir entre persona social y persona íntima, viendo en el hombre social un momento del hombre total. Ahora, el hombre moral, interno, irreductible, no era el que le interesa a la Teoría del Estado, sino el que «se manifiesta en su vida como objetivamente efectivo en lo social, y no como a sí mismo o a otros aparece». Hermann Heller, Teoría del Estado, FCE, México, 1985, págs. 87-88. Aquí hay por tanto una adecuada atención a la ambivalencia moral y la imposibilidad de dirigir la política por la moral. 51 De nuevo, Teoría del Estado, ob. cit., pág. 184. 52 Cf. Max Weber, «Parlamento y Gobierno en el nuevo ordenamiento alemán», en Escritos Políticos, Ediciones Folio, México, 1982, vol. I. 149-159. 53 En el fondo, esta dimensión utópica de la moral sólo era viable por una insensibilidad para las peligrosas dimensiones narcisistas del sujeto moral tan pronto eliminara de sí la ambivalencia. La exposición de Fichte en la Teoría del Estado, que resume la que mantiene Ideenkreise, reposa sobre esta idea: que la «institución coactiva del Estado» desaparecerá y se hará innecesaria en una ordenación socialista de la realidad. Con ello, «desaparece toda coacción externa del derecho». Cf. Teoría del Estado, ob. cit., pág. 184. 162 José Luis Villacañas Berlanga nidad transformada y buena, una vez pasada por la dictadura pedagógica de la filosofía54. Lo que se ofrece a cambio parece insistir en la dimensión moral de la democracia. Parece, porque no resulta claro ni comprensible. El texto dice literalmente: «Nos hallamos en un periodo de transición, de paso de una democracia racional individualista a una democracia social indeterminada. A la democracia atomística se opone la idea nacional, es decir, la existencia de una democracia cultural y colectivamente individualizada. A la democracia liberal se opone […] el socialismo, es decir, la democracia de la economía social. Las hondad causas de la crisis de la democracia obedecen a la tendencia intensificadora e individualizada de la misma, que no puede conseguirse con los medios democráticos al uso, y mucho menos con el parlamentarismo.»55 El texto defiende algo preciso: la crisis de la democracia procede de su intensificación. Y esta reside en la aceptación material de las exigencias normativas de la vieja teoría democrática, que ahora se traducen en exigencias de justicia económica. Este proceso de profundización no es un proceso homogéneo, universal, abstracto o global; se refracta en cada comunidad nacional según las ideas culturales y colectivas propias. Cuál será la democracia social que corresponda a la idea de nación alemana, o a las naciones europeas, queda sin decir. Qué sea una democracia material en el sentido socialista queda claro, pero no se dice si esto se consigue mediante una política de justicia distributiva o mediante una propiedad socialista de los medios de producción. En todo caso, se asegura que esto no puede llevarse a cabo por la democracia representativa y parlamentaria, aunque no se dice que se produzca por la auto-determinación democrática del pueblo o por la democracia de los consejos. Todo queda en el vacío, excepto algo concreto. La influencia de Carl Schmitt sobre Heller sustituye una pertinente lectura de Weber. Quien antes había iniciado su argumento para complementar la idea de razón mediante el aporte de sentimentalidad brindado por la comunidad moral, ahora avanza no a la idea de compensación, sino a la de crisis. Así, no es que el hombre deba ser socializado mediante sentimientos que permitan dotar de eficacia a la razón, sino que es la propia estructura de la razón la que entra en crisis56. Mas no sólo esto: con ella se introduce el final de una comprensión del ser humano como capaz de dominar sus pasiones por medio de la reflexión, y de encauzar sus luchas políticas mediante la palabra. Hermann Heller parece apelar ahora a un espíritu del presente, que subraya el papel del mito de la violencia, la apuesta por un claro irracionalismo, como causas, no se sabe si aceptables o inaceptables, combatibles o defendibles, de la crisis de la democracia parlamentaria. —————————————— 54 Teoría del Estado, ob. cit., pág. 185. 55 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 91. 56 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 93. Hermann Heller y el argumento kantiano 163 En todo caso, no sólo se ataca al parlamento, en sentido weberiano, como instrumento de selección de líderes, sino que se entra en una contraposición muy dudosa. «Fundándose en razones, tanto nacionales como socialistas, se pretende reemplazar el parlamentarismo deliberante por la dictadura actuante.»57. No me interesa tanto la primera parte de la frase, sino la segunda. Se trata de reparar en la contraposición entre parlamento deliberante y dictadura operante. En realidad, no es necesario que el parlamento sea políticamente pasivo. Weber había mostrado las condiciones de un parlamento políticamente activo, dotado de poder político. ¿Por qué entonces se da por sentado que el parlamento es deliberante? ¿Qué razones nacionales y socialistas determinan que el Parlamento sea meramente deliberante? ¿Y qué razones nacionales y socialistas imponen la dictadura operante? La autoridad, ya lo podemos suponer, es Carl Schmitt y se acepta sin ningún tapujo. Porque, inmediatamente, Heller aprovechará no sólo la parte crítica de La Dictadura, sino la parte positiva. Con ello, no sólo se inicia la línea de una recepción schmittiana de izquierdas58, sino que se nos aclara qué encierra esa democracia social indeterminada. La muy indeterminada propuesta queda concretada, perfectamente concretada, con la idea de dictadura. Esto sí, ya desde Fichte, sabemos que la idea de la dictadura no era incompatible con la democracia. También ahora se insiste en la misma idea. La coincidencia no es causal. Junto a ella, también descubrimos otras viejas ideas, como la legitimación del poder en razón de los servicios que presta, destruyendo su dimensión política estrictamente representativa por una visión instrumental que parece ennoblecerse porque el fin del instrumento ahora se auto-califica como moral. Así, Heller puede escribir esta conclusión que, a pesar de todo, no es lo más problemático de este libro, por lo demás bien intencionado. «El sentido de la Dictadura soberana consiste en «hacer posible una constitución que parezca una verdadera constitución». El dictador se legitima, también en este caso, por la soberanía del pueblo […] La dictadura es, por tanto, un medio democráticamente sancionado, y lo que importa es qué fin sirve, qué verdadera constitución ha de instaurar. No puede dudarse de que la dictadura bolchevique trata de instaurar la democracia social.»59 La frase entre comillas, citada en el texto, es de Schmitt, naturalmente. Pero la frase completa nos descubre que la constitución no se mide en sí misma desde valores políticos, por la capacidad que tenga de cumplir con el encargo político de la representación, del gobierno del pueblo, de la división de poder que impida los abusos contra los derechos racionales, no individuales, sino públicos. Al —————————————— 57 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 91. 58 Cf. J. L. Villacañas, «Les limites de l’influence de Carl Schmitt sur les juristes de gauche dans la république de Weimar». En Carlos Miguel Herrera (editor), Les Juristes de Gauche sous la République de Weimar, Editions Kimé, Paris, 2002, págs. 103-127. 59 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 91. 164 José Luis Villacañas Berlanga contrario, la verdadera constitución sirve a motivos morales–materiales socialistas que se suponen superiores a los motivos jurídicos del derecho racional, y a los motivos morales que pueda tener un hombre para defender su libertad y su dignidad. Cuanto menos, así expresado, el razonamiento es unilateral. Pero no se detiene ahí. Mediante los valores socialistas, la constitución bolchevique es legítima. Mediante los valores materiales nacionales, se puede legitimar la constitución fascista; mediante valores materiales raciales, las ideas constitucionales de los nazis alemanes puede ser legítima. Ante la índole inevitable de las consecuencias, Heller concluye: «Es muy difícil organizar estos factores». Y de hecho así es. Pero él mismo apuntó a motivos nacionales y socialistas para criticar el parlamentarismo. Ahora vemos dónde llevan estos motivos. Es fácil suponer que Alemania no tenía otro camino que el que Weber había señalado: tornar complejo y plural el orden político mediante una genuina parlamentarización democrática con líderes representativos de la vida política y gobiernos responsables ante el Parlamento. Los otros caminos llevaban a la brutalidad. En cierta forma, esa brutalidad ya está encerrada en esta frase de Heller: «Prescindiendo de este aspecto, la cuestión decisiva no es quién deba ser excluido, sino cómo han de designar a su jefe los que siguen excluidos.»60 Ahora ya vemos que los motivos democrático–nacionales o democrático–socialistas son no sólo compatibles con la dictadura, sino con la exclusión. En el fondo, con esta indicación se introducía el constructivismo político schmittiano, basado en la identificación del amigo y del enemigo, en la diferencia entre “dentro” y “fuera”, entre ellos y nosotros. Heller quizás no tuvo la suficientemente imaginación como para suponer qué se encerraba en esa tremenda palabra ni los métodos sobre los que se iba a producir la individualización de la idea nacional. 7. Kant en la Teoría del Estado. En la última obra de Heller se dejan sentir todavía los supuestos de su horizonte mental con eficacia y claridad. Sin embargo, las ideas de Heller son ahora matizadas de nuevo, más allá de los avances de Las ideas políticas contemporáneas. Enfrentado al jusnaturalismo de la Ilustración, Heller recuerda las tesis acerca de los procesos histórico-causales propios y autónomos del Estado como poder. Así, desvela el error ilustrado de considerar a los individuos aislados pactando la existencia del Estado, al margen de las condiciones históricas concretas. Kant, sin embargo, habría aceptado este punto, ya que él diseña un procedimiento para trans—————————————— 60 Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 93. Hermann Heller y el argumento kantiano 165 formar los Estados patrimoniales existentes en Estados republicanos61. Al margen de ello, Heller sigue considerando las ideas ilustradas las propias del racionalismo abstracto o del individualismo unilateral62. Desde el punto de vista histórico-causal, la Ilustración concede demasiado a la trasparencia y a la intencionalidad del Estado, olvidando las realidades históricas opacas a la norma. El punto de opacidad normativa del Estado, verdaderamente existencial, reacio en su origen a procesos intencionales de la razón, es reconocida por Heller, en la vieja línea de la teoría alemana desde Jellinek. Sin embargo, algo ha cambiado. Ahora la Ilustración tiene el mérito de haber subrayado la dimensión racional-normativa y, por tanto, de haber desplegado «una crítica racional de los poderes políticos existentes.»63 El cambio de época, el siglo XIX, visto desde el siglo de las Luces, aparece ahora en toda su unilateralidad. Con tono de profunda denuncia, Heller expone ahora su significado. El siglo XIX implica un desmantelamiento de la creencia en la razón y, por ende, una entrega a los poderes absolutos de la sociedad y de la historia, a la facticidad existencial. Contra este proceso, la ciencia política del presente debía reconquistar aquella posición normativa, y debe atender sobre todo a la manera en que el derecho pude legitimar, fundamentar o limitar el poder político existente. La doctrina político-sociológica del derecho, que ahora Heller defiende, reclama esta síntesis de normatividad y facticidad. En cierto modo, para esta síntesis, Heller invocó a Kant de un modo que venía a deslegitimar la apuesta metodológica de Kelsen, en sí misma unilateralmente normativa64: la razón pura, el derecho puro, la norma pura no podía ser el ideal de ciencia, sino la formación de juicios sintéticos que permitan relacionar los conceptos con la experiencia, lo normativo con lo existencial, ese elemento real histórico cuyo origen no puede «derivarse de principio de la formación racional» y que, en este sentido, es ampliamente —————————————— 61 Cf. mi «Kant: entre el republicanismo y liberalismo». En G. Duso, Contrato social en la filosofía moderna, Res Publica, Murcia, 2000. 62 Hermann Heller, Teoría del Estado, FCE, México, 1985, p. 34. Staatslehre, Leiden, Tübingen, 63 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 36. 1983. 64 Heller reconoce, desde luego, que haber destacado la problemática del método es un método fundamental de Hans Kelsen, pero que su solución es especialmente detestable. El Estado es un «contenido parcial de la compleja realidad de la vida, de la cual lo aisla la teoría del Estado». Por tanto, se debe tener siempre en cuenta una «constante referencia a la realidad total». Con ello, el método no podía legitimar la aspiración pura de la teoría normativa kelseniana [Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 47] Heller podía protestar en este sentido de que Kelsen había desconocido la dimensión sintética de la reflexión racional kantiana. «Los neokantianos de la Escuela de Marburgo rechazaban la vida histórico social», asegura Heller. [Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 48]. Sin embargo, añadía que esta necesidad de vincular lo normativo y lo histórico, se había dado sobre todo en Hegel, de quien decía: «Los más importantes estímulos para la Teoría del Estado vienen hoy de Hegel y su método». [Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 48. 166 José Luis Villacañas Berlanga irracional65. La Teoría del Estado, como disciplina normativa y existencial a la vez, sintética, no podía ser una teoría racional pura, sino que debía tener en cuenta el “objeto”, los “hechos concretos”. Las objeciones insuperables de Heller contra el derecho natural, por tanto, se centraban más bien en su abstracción, en su creencia en una naturaleza humana anclada en una misma legalidad universal66. Frente a esta dimensión abstracta, Heller siguió hablando de relación dialéctica entre norma y facticidad, una «unidad en un objeto real en el que, junto a la una, se halla siempre la otra», aún sabiendo que no se puede producir una reducción de la una a la otra67. Fruto de esta nueva noción de síntesis, ya más bien kantiana, Heller deseaba mirar el Estado como forma abierta, esto es, como una conexión real normativa e ideal que actuara en el mundo histórico-social real68. Una norma operando en contextos concretos: eso era el Estado y la política. Jamás podía aceptarse un poder que no estuviera conectado a la norma. Y más aún, jamás la norma era derivada de la sustancia existencial de un pueblo, nación, clase o grupo real. Al contrario, el sujeto era sujeto político porque se vinculaba a una norma. Esto era lo decisivo: la norma no era expresión de la sustancia ontológica del sujeto político, sino aquello que lo constituía. El siglo XIX había perdido de vista esta idea. «La exigencia de una consagración del Estado por una determinación humana general y, en consecuencia, por una idea jurídica universal, comienza a desvanecerse en el siglo XIX». Ahora Hegel aparecía a otra luz desde esta tesis, de innegable inspiración kantiana. Fue Hegel, junto con el historicismo, quienes impusieron la idea de que «el espíritu del pueblo es la única fuente del derecho y no están limitados por norma alguna. […] Esto significa que todo aquel que logre hacerse dueño del poder en el Estado, encuentra éticamente justificado su derecho a darle leyes sin sumisión a ninguna clase de principios jurídicos.»69 En este sentido, el legislador no podía estar equivocado, ni hacer nada injusto. Por encima por tanto de cualquier derecho positivo, y por encima de cualquier derecho nacional y democrático, existían ahora normas universales que no eran meramente morales, sino principios jurídicos fundamentales – Rechtsgrundsätze70. El supuesto individualista ya no era relevante, pues el fundamento último del Estado es una norma jurídica fundamental que es de naturaleza universal y genera —————————————— 65 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 45. 66 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 51. 67 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 81. 68 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 82. 69 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 237. 70 Aquí Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 237, Staatslehre, 248-9. Desplegados en Staatslehre, 101, 217, 252-256, 289-291, 299, 315. De ellos se hace depender ahora la teoría de la legitimidad, p. 199, 249, 253, 275, 200. Hermann Heller y el argumento kantiano 167 el ámbito de lo público. En este ámbito nunca se es individuo aislado. Nunca se tienen derechos individuales puramente. Aquí Heller seguía dejando claras sus inclinaciones fichteanas, derivadas de una teoría del yo que también llamó dialéctica. Quien negase la realidad de los grupos, debía negar la realidad del individuo. Pero la realidad social de los grupos estaba radicada en su cualidad de ser «estructuras capaces de decisión y de acción»71, no en estructuras de participación que reservaba a los individuos la pasividad sacrificial. El abordaje ya podía ser claramente republicano. En efecto, cuando tuvo que reconocer la estructura del grupo central para comprender el futuro del Estado, Heller invocó la cuestión de la sociedad civil. De hecho dijo: «En lo sucesivo, la relación entre el Estado y la sociedad civil constituirá el más importante problema, tanto en lo teórico, como en lo práctico, de la política de Occidente»72. Que esta estructura tenía una raíz kantiana se había establecido antes, al reconocer que «la palabra sociedad aparece por primera vez para designar la conexión de los problemas de la libertad, la igualdad y personalidad, y cómo a partir de entonces, determina el carácter propio de la sociología»73. Sociedad civil era así la realidad social determinada por la puesta en marcha y la tensión de los tres derechos racionales de Kant. El escenario de lo público es necesario porque sólo es viable la realización común de esos derechos mediante un poder público. Desde luego, como norma ideal esta noción de sociedad civil va más allá de sus encarnaciones concretas históricas. Su primer supuesto era la libertad y la igualdad jurídica de las personas, y su exigencia de igualdad en autonomía, pero su primera facticidad, su terreno de juego histórico real era el mercado. Este juego de mercado es el que entra en tensión con el alcance completo de la norma, criticando esa misma sociedad civil en los ámbitos que no cumplen aquellas exigencias de libertad, igualdad, autodeterminación y autorrespondabilidad. Entonces la tensión entre la normatividad anclada en la noción de sociedad civil y la facticidad de la misma sociedad aparece como estructura de dominación. La sociedad civil es así la «fuente verdadera de toda libertad y de toda opresión.»74 Esta es la aguda verdad de Hegel y de Marx: «que la verdadera anatomía de la sociedad civil hay que buscarla en la economía política». Esa diferencia entre una clase dominada y otras dominante, hace de la sociedad civil un “concepto político” que implica denunciar la traición que realiza la burguesía respecto a sus propios elementos normativos si se queda anclada en la forma concreta de la sociedad burguesa basada en el mer—————————————— 71 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 115. 72 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 125. 73 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 125. 74 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 137. 168 José Luis Villacañas Berlanga cado. Pues de hecho, para Heller, «el criterio que informa de la conciencia de clase es la libertad e igualdad, o sea la primitiva base de legitimación de la sociedad civil, cuya realidad ha ido a encontrarse en insoluble contradicción con aquél criterio»75. Así, la emancipación política aplicará los criterios normativos, derivados de esos principios jurídicos fundamentales, «elaborados por la conexión total de la historia del espíritu, a una nueva situación social». Y lo hará contra las limitaciones que el mercado introduce en tanto versión intolerablemente restrictiva de la norma profunda de sociedad civil. La libertad y la igualdad, burguesa o de los seres humanos trabajadores, se comprenden como etapas de la evolución del espíritu occidental, que define elites portadoras de la conciencia normativa universal en continuidad espiritual. Y así, el derecho natural estoico, el derecho natural cristiano, el derecho natural absoluto, el derecho racional de Kant, y el derecho a una nueva sociedad civil son otros tantos jalones del mismo núcleo normativo, aplicado a diferentes síntesis de contenidos históricos-factuales76. Se trata de una milenaria tradición del derecho natural que compone una norma que no nos está permitido no cumplir. Ningún sujeto queda constituido y autorizado a actuar en el espacio público si la pone en cuestión. Porque entonces lo que actúa, bajo una forma u otra, es la fuerza desnuda. Si se perdía esta tradición, se era incapaz de justificar y legitimar el Estado salvo como el derecho del más fuerte77. De esta manera, la relación entre Estado – en tanto principio jurídico fundamental – y sociedad civil no era sino la relación compleja entre normatividad y facticidad. Se trataba de una doble tensión. Primero, la marcada por la estructura normativa de la sociedad civil con su facticidad social reducida a mercado. La segunda, la de esta facticidad estatal-positiva con la normatividad misma del Estado en tanto Ideal jurídico, lo que Kant llamaba contrato ideal. Para mediar esta dialéctica, Heller creía que era preciso atravesar que otros grupos ajenos hasta ahora a la sociedad civil burguesa debían activar el sentido normativo implícito en la misma y así actuar públicamente de tal manera que el Estado pudiera contar con fuerzas para impulsar un Estado de derecho capaz de garantizar sus derechos originarios. Esos otros grupos debían, por sus mismos contenidos espirituales y culturales, reforzar las exigencias normativas defraudadas por la propia sociedad civil reducida al mercado. —————————————— 75 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 132. 76 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 135. 77 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 238. Ahora la Ilustración de Leibniz mostraba que, tras su aparente descripción de este mundo como el mejor de los posibles, se escondía un potencia anti-utópico desolador, pues eliminaba toda «conciencia jurídica ante el éxito político momentáneo». «Olvídase que sólo existe una historia específica del hombre o de la cultura debido a que el hombre es esencialmente utópico, es decir, porque es capaz de contraponer al ser un deber ser y valorar el poder actual según la idea de derecho». Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág, 239. Hermann Heller y el argumento kantiano 169 Heller, pensó, dominado por el espíritu de una tradición, que ahí se abría de nuevo el horizonte de la nación. Sin embargo, ahora ya hablaba de la nación republicana, reducida al pueblo, al colectivo que activa sus derechos comunes mediante acciones públicas. Así que el concepto de nación/pueblo sirvió como mediador para reactivar la dimensión normativa de la sociedad civil. Si era verdad que «el objeto específico de la política consiste siempre en la organización de oposiciones de voluntad sobre la base de una comunidad de voluntad»78, entonces, Hegel era había tenido razón: la nación era la base de comunidad de voluntad sobre la que se podían unificar las tensiones de la sociedad civil. Sin embargo, esa nación no era una sustancia capaz de expresar su propios espíritu en una eticidad específica, sino un colectivo de seres humanos dotados de la misma conciencia de sus derechos, dispuestos a hacerla operativa mediante la formación de una Constitución política. La pretensión a la libertad y la igualdad, entendidas en sentido político-social, se convierten en el derecho innato del hombre. Todos los poderes, incluso el autocrítico, se legitiman ahora inmanentemente mediante el pueblo y el contrato político se convierte en «piedra de toque de la adecuación a derecho de toda Constitución política.». Entonces citó a Kant y precisamente al de Teoría y Praxis, el alegato de que a norma jamás deja de ser verdadera en la práctica79. Sería así la nación/pueblo, a través de una opinión pública éticamente caracterizada, la forma histórica en la que se cumpliría el núcleo normativo de la sociedad civil, la estructura en la que se encarnaría el proyecto milenario del derecho natural, con sus exigencias plenas y concretas de libertad, igualdad y autonomía, y la que impulsaría la norma Estado, con garantías vinculadas a los principios jurídicos fundamentales. Estos a su vez «reciben toda su fuerza de obligación ética sólo desde el principio jurídico ético supra-ordinario»80. Como en el caso de los principios establecidos en la Metafísica del Derecho, de Kant, estos principios de naturaleza ético-jurídica no tienen desde luego “Rechtssichercheit oder Rechtsgewissheit” y por eso reclamaban un poder público estatal que le ofrezca ambas cosas. Pero en sí mismos tenían una plena Sinngewissheit, tanto por lo que hace a su contenido normativo – Norminhaltes – como a la certeza de su alcance y realización81. Desde luego, estos principios ofrecen las líneas directrices que debían ser realizadas y concretadas en cada caso, pero en la medida en que constituían un cuerpo público y unitario de ciudadanos con derecho a decidir esa concreción. En este sentido, no genera meros individuos con derechos, sino conciudadanos vincu—————————————— 78 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 182. 79 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág., 135, Staatslehre, n. Pág. 212. 80 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 240, Staatslehre, pág. 252, «Alle sittliche Verpflichtungskraft empfängt der Rechtssatz nur aus dem übergeordneten ethischen Rechtsgrundsatz». 81 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 252, y 240. 170 José Luis Villacañas Berlanga lados en su conjunto a una norma que los hace sujetos juntos y a la vez. Los principios jurídicos fundamentales así producen «el status jurídico entre los compañeros de derecho [Rechtgenossen]»82. El derecho sería la expresión de esta voluntad unitaria normativamente vinculada y para concretarla y asegurarla – pero no para conculcarla ni ignorarla – sería necesaria la existencia del poder externo del Estado, frente a todo marxismo y frente toda dictadura del proletariado. Esto significa que el Estado no es mera actividad organizadora y legisladora de la sociedad, como quería el Carl Schmitt de los años 30, sino que sólo se justifica plenamente por la necesidad del ius certum, como organización destinada a lograr seguridad jurídica cumpliendo y concretando los principios jurídicos superiores, en tanto que sirve a la «aplicación y la ejecución de principios etico-jurídicos»83. Este era el primer argumento kantiano en la Staatslehre. Heller sólo tuvo que llamar la atención para que no se interpretara a la manera liberal. Esta idea generaba un cuerpo político de naturaleza pública. La opinión pública, por tanto, no tiene como lugar la sociedad civil dominada por el mercado, sino la esfera de la res publica, que como pueblo se atiene a sus bases normativas y es la fuente de poder legítimo84. Ahora bien, para no caer en la dualidad limitada de la sociedad civil, debemos garantizar una opinión pública firme y unitaria, capaz de dar al Estado una base firme de su poder. Y esto no puede sino significar una cosa: insistir en la tradición universalista de la que formamos parte desde milenios, al margen de todo específico espíritu de pueblos y de tradiciones entendidas como destino, a lo Heidegger. Y este era el nuevo sentido de la filosofía, que de ese modo no podía dejar de estar presente en esta sociedad civil entendida como pueblo. Ella tenía la competencia de activar la conciencia normativa de la Humanidad. «La teoría del Estado tiene que confiar a la filosofía del derecho la cuestión de si los principios éticos del derecho se refieren únicamente a un sentimiento jurídico inmediato o si pueden derivarse, con certeza epistemológica objetiva de una ley jurídica suprema racionalmente formulable; y así mismo le dejará las cuestiones difíciles de si y en qué sentido existen principios jurídicos a priori, cuales son los principios jurídicos universalmente válidos y cuáles están vinculados a ámbitos culturales. Pero para una teoría del Estado con pretensiones de ser ciencia de la realidad, tiene que valer por admitido que existen tales principios jurídicos universales que forman los fundamentos [Grundlage] de justificación del Estado y de su derecho positivo»85. En todo caso, Hermann Heller desplazaba ahora el problema de la legalidad a problema de la legitimidad. La ley positiva no tenía en sí misma, ni en la referen—————————————— 82 «Auf Grund deren der Rechtszustand unter den Rechtgenossen hersgestellt werden soll». 83 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág., 241-2, Staatslehre, pág. 253. 84 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 197. 85 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 242, Staatslehre, pág. 254. Hermann Heller y el argumento kantiano 171 cia al soberano legislador, la prueba interna de su legitimidad. La afirmación de Weber de que en la actualidad era legítimo lo que era legal, mostraba una «degeneración de la conciencia jurídica». Ni siquiera la dependencia de la legalidad del cumplimiento de la forma de la democracia podía ser motivo a fortiori de legitimidad. La democracia no podía legislar contra sus propias bases normativas y ella no dejaba de ser una organización del Estado vinculada a principios jurídicos fundamentales superiores, de los que deriva el propio sujeto democrático. Ni siquiera aquí se podía invocar que, en la medida en que cumpliese la división de poderes, nada tendrá consecuencias perniciosas para una conciencia jurídica anclada en principios. Heller tenía razón al sugerir que la división de poder intenta garantizar la seguridad jurídica, pero que aquello que se debía garantizar estaba por encima de la división de poderes y no se podía entregar a la mecánica de los poderes constituidos su defensa. Esta debía hacerse con medios políticos y definía el espacio de lo público dominado por su idea constitutiva, en términos de Kant, un contrato ideal que en cada partida o ocurrencia histórica ponía en tensión sus exigencias normativas renovadas86. Mas el problema de la legitimidad ya nos llevaría a comprender las diferencias finales entre Heller y Carl Schmitt, cuestión demasiado compleja para esta ocasión. Sin embargo, sólo añadiré otro pequeño texto, sin voluntad de cerrar el tema, que demuestra el aspecto kantiano del argumento de Hermann Heller. Pues los principios éticos-jurídicos «se diferencian claramente de os principios de las ideologías sociales de legitimación, siempre muy numerosas, por su pretensión de validez general para todos los miembros del Estado, y esa pretensión de validez además, si no es una absolutamente universal, siempre intenta ir continuamente más allá de las fronteras del Estado»87. —————————————— 86 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 239. 87 Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 242-3, Staatslehre, pág. 254. Moral e Política em Kant Pedro M. S. Alves UNIVERSIDADE DE LISBOA I Wilde, tolle Freiheit; Gewalttätigkeit; Krieg – estas três categorias aparecem como plano de fundo das reflexões políticas de Kant: «os homens têm como máxima a violência e, pela sua maldade, combatem-se entre si»1. Tomadas isoladamente, estas categorias traçariam um retrato do Homem que seria, por si só, a antecâmara e a justificação do Despotismo. Este institui a Paz na ordem interna do Estado, mas ao preço de levantar sobre os homens uma força formidável, que é sempre maior que toda outra força que se lhe possa opor. Assim, o «princípio mau» (das böses Prinzip) no Homem não é remido, mas esmagado pelas suas próprias armas. Kant está bem ciente que, no plano da história factual, todas as comunidades políticas começaram por esta intensificação da força, que se alça acima dos homens e em conjunto os domina: «não se deve contar […] com nenhum outro começo do estado jurídico a não ser o começo pela força»2. No seu acontecer empírico, a passagem do estado de natureza para o estado civil não é jamais visível sob a forma de um pacto, em que todos compareçam como livres e iguais, mas de um acto de violência em que a vontade de um ou de alguns se sobrepôs à vontade de todos os outros pela instituição de mecanismos externos de coerção. O governo despótico encontraria, assim, na «debilidade da natureza humana» (die Schwäche der menschlichen Natur) a sua justificação. E, de seguida, encontrá-la-ia, mais expressivamente, naquela tranquilidade que resulta, para os seus súbditos, da boa ordem da coisa pública, do recalcamento da violência, da —————————————— 1 «Es ist nicht etwa die Erfahrung, durch die wir von der Maxime der Gewalttätigkeit der Menschen belehrt werden, und ihrer Bösartigkeit, sich, ehe eine äussere machthabende Gesetzgebung erscheint, einander zu befehden.», Kant, Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, §44. 2 «So ist in der Ausführung jener Idee (in der Praxis) auf keinen andern Anfang des rechtlichen Zustandes zu rechnen, als den durch Gewalt», Kant, Zum ewigen Frieden. Anhang, B 75. FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 173-182 174 Pedro M. S. Alves certeza de punição dos actos ilícitos, e, mais eficazmente ainda, no modo como o governo despótico se quer ainda insinuar até o íntimo dos homens e determinar tanto o seu modo de pensar como a sua concepção do Bem. Se o Despotismo fosse apenas o único paliativo para a maldade dos homens, então brilharia de uma luz negra, tão negra quanto a maldade a que viria obstar. Mas ele parece, de seguida, tornar-se em si mesmo desejável, e não apenas inevitável, pela promessa de Felicidade que acarreta. Pois trata-se não só de tolher a eficácia do “princípio mau” pelos seus próprios argumentos, mas também de penetrar até o mais íntimo dos homens e de se apoderar também do seu modo de pensar. Essa é, por exemplo, a lição de Hobbes: «a medida das boas e más acções é a lei civil, e o juiz, o legislador», de modo que é uma doença do Estado pensar que «o homem é o juiz do bem e do mal» e que há uma consciência privada, diferente da consciência pública e podendo opor-se a esta, acerca do que seja bom e mau, justo e injusto3. Mas o século XX tem outras lições mais impressionantes para nos dar, dos fascismos aos comunismos, com a substituição da liberdade de pensar pela propaganda e a doutrinação, da cidadania pela massificação, e tudo isso cínica ou perversamente envolvido num projecto de humana redenção. Trata-se de uma segunda supressão da Liberdade, em suma, uma segunda supressão tanto mais perigosa quanto deleitoso será, para os homens, esse aturdimento que resulta de serem dispensados da árdua tarefa da responsabilidade e da autonomia, tanto no pensamento como na acção. Assim, o Despotismo não apenas se justifica por uma suposta maldade humana, mas mais ainda se recomenda por um propósito benevolente e paternalista. Como Kant bem viu, porém, um “governo paternal”, em que «os súbditos, como crianças, […] são obrigados a comportar-se apenas de modo passivo, a fim de esperarem somente do juízo do chefe do Estado a maneira como devem ser felizes, e apenas da sua bondade que também o queira – um tal governo é a pior forma de Despotismo que pensar se pode»4. E como Kant também confessa em Para a Paz Perpétua, a propósito de um suposto conflito entre Política e Moral, se as categorias da liberdade natural e sem freio, da violência e da guerra fossem a última palavra sobre o Homem, a Política seria não mais que uma técnica, a astúcia seria a virtude suprema de toda a governação, e o Direito, um «conceito vazio»5. —————————————— 3 «The measure of Good and Evill actions, is the Civil Law; and the Judge the Legislator». Thomas Hobbes, Leviathan. Cap. XXIX. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 223. 4 «Eine Regierung, die auf dem Prinzip des Wohlwollens gegen das Volk als eines Vaters gegen seine Kinder errichtet wäre, d. I. Eine väterliche Regierung (imperium paternale), wo also die Untertanen als unmündige Kinder, die nicht unterscheiden können, was ihnen wahrhaftig nützlich oder schädlich ist, sich bloß passiv zu verhalten genötig sind, um, wie sie glücklich sein sollen, bloß von der Urteile des Staatsoberhaupts, und, dass dieser es auch wolle, bloß von seiner Gütigkeit zu erwarten: ist der größte denkbare Despotismus», Kant, Über den Gemeinspruch…, A 237. 5 Ver Kant, Zum ewigen Frieden. Anhang, B 71 e sgs. Moral e Política em Kant 175 II É contra esta constelação que Kant opõe três teses, de força e alcance crescentes. A primeira reza assim: «Por mais áspero que isso soe, o problema do estabelecimento do Estado é solucionável mesmo para um povo de demónios (desde que tenham entendimento)»6. A primeira decisão de Kant consiste em cortar cerce o ponto forte de todos os despotismos: a solução do problema político não depende da resolução prévia do problema ético. Uma constituição política perfeitamente justa não está, por isso, dependente de, nem fica condicionada por qualquer disposição ético-moral da humanidade. Problema político e problema ético são independentes. Contra o argumento reaccionário de todos os tempos, segundo o qual uma outra forma de governo que não o despótico só seria possível para um «Estado de anjos» (Staat von Engeln)7, ou seja, sem qualquer inclinação para o mal, Kant, com audácia, estatui que ele é, no limite, solucionável mesmo para um «povo de demónios» (Volk von Teufeln), isto é, para seres que, contanto que tivessem entendimento (Verstand) para avaliar o seu interesse egoísta imediato e discernir a relação do interesse imediato com o seu melhor interesse, não possuíssem, contudo, qualquer disposição moral para o bem. A mesma tese se encontra em A Religião nos Limites da Simples Razão. Depois de ter distinguido o estado civil político do estado civil ético, que se contrapõem, respectivamente, ao estado de natureza civil e ao estado de natureza ético, Kant afirma peremptoriamente que, «numa comunidade política já existente, todos os cidadãos políticos como tais se encontram, no entanto, no estado de natureza ético e estão, também, no direito de nele permanecer, pois seria uma contradição (in adiecto) que a comunidade política tivesse de coagir os seus cidadãos a entrar numa comunidade ética»8, dado que a obrigação ética é toda ela interior, sem coacção externa possível, e dependerá apenas do respeito pelo princípio do dever. Mas a solução do problema político não é apenas independente de qualquer conversão ético-moral da Humanidade. Para Kant, mais fundo do que isso, em vez de atenuar a eficácia do “princípio mau” da natureza humana por uma força incoer—————————————— 6 «Das Problem der Staatserrichtung ist, so hart wie es auch klingt, selbst für ein Volk von Teufeln (wenn sie nur Verstand haben), auflösbar», Kant, Zum ewigen Frieden. Erster Zusatz, B 61. 7 «[…] viele behaupten, es müsse ein Staat von Engeln sein, weil Menschen mit ihren selbstsüchtigen Neigungen einer Verfassung von so sublimer Form nicht fähig wären», Kant, Zum ewigen Frieden. Erster Zusatz, B 60. 8 «In einem schon bestehenden politischen gemeinen Wesen befinden sich alle politische Bürger, als solche doch im ethischen Naturzustande, und sind berechtig, auch darin zu bleib; denn dass jener seine Bürger zwingen sollte, in ein ethisches gemeines Wesen zu treten, wäre ein Widerspruch», Kant, Die Religion. Drittes Stück, B 133. 176 Pedro M. S. Alves cível, irresistível e inapelável, que é a pseudo-solução do Despotismo, a solução do problema político está em que ela neutraliza e reverte esse mesmo princípio mau pela invenção de uma ordem em que as tendências egoístas umas às outras se anulam e em conjunto se superam. O passo do texto kantiano sobre o “povo de demónios” continua: o problema político «formula-se assim: “Ordenar uma multidão de seres racionais que, para a sua conservação, exigem conjuntamente leis universais, às quais, porém, cada um é inclinado no seu interior a eximir-se, e estabelecer a sua constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas disposições privadas, se contêm, no entanto, reciprocamente, de modo que o resultado da sua conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições más”. Um problema assim deve ter solução. Pois não se trata do melhoramento moral do Homem, mas apenas do mecanismo da natureza»9. III Segunda tese de Kant: a solução do problema político consiste na invenção de um dispositivo em que a wilde Freiheit – a liberdade selvagem – não se suprima enquanto liberdade, mas se reconfigure e se transmute em bürgerliche Freiheit, em liberdade civil. O que faz da questão política um problema de difícil solução não é a Liberdade, mas um regime de liberdade irrestrita, de confronto entre liberdades, sem plataforma de coexistência, de que resulta, inevitavelmente, a colisão das vontades, a sua anulação recíproca ou a instauração de uma lógica de dominação e servidão. A ideia do Despotismo é que a instauração do Estado deve tornar a liberdade dos súbditos apenas residual. Mais uma vez, Thomas Hobbes é, aqui, a referência incontornável, para Kant e não só. A tese de Kant é, ao contrário, a de que a sociedade civil não se institui pela supressão da Liberdade e, sim, pela supressão do seu carácter irrestrito, que Kant adjectiva precisamente como Wilde, “selvagem”, ou seja, pela supressão de um regime da Liberdade fautor de uma insociabilidade que obsta à instauração do próprio estado civil. Mas isto não é, ainda, o pensamento mais profundo de Kant. Pois não se trata, simplesmente, de restringir a liberdade pela sua confrontação com uma lei que, provinda do exterior (ou melhor: da vontade discricionária do chefe do —————————————— 9 «Das Problem […] lautet so: “Eine Menge von vernünftigen Wesen, die insgesamt allgemeine Gesetze für ihre Erhaltung verlangen, deren jedes aber in Geheim sich davon auszunehmen geneigt ist, so zu ordnen und ihre Verfassung einzurichten, dass, obgleich sie in ihren Privatgesinnungen einander entgegen streben, diese einander doch so aufhalten, dass ihrem öffentlichen Verhalten der Erfolg eben derselbe ist, als ob sie keine solche böse Gesinnungen hätten”. Ein solches Problem muss auflöslich sein. Denn es ist nicht die moralisches Besserung der Menschen, sondern nur der Mechanism der Natur […]», Kant, Zum ewigen Frieden. Erster Zusatz. B 61. Moral e Política em Kant 177 Estado), a limitasse, como se, para garantir a coexistência dos homens numa ordem civil, todos tivessem de abdicar um pouco da sua liberdade própria, antes irrestrita, para deixar ainda um lugar para a liberdade de todos os outros. Não é esta visão de uma Liberdade diminuída, “acanhada”, no espaço exíguo de uma sociedade, que encontramos em Kant. Pelo contrário, trata-se, antes, para Kant, de duas coisas que vão exactamente no sentido contrário. Primeiro, é a liberdade irrestrita que é verdadeiramente uma liberdade não plena, mas só residual, pois a sua lógica é a da contraposição a outra liberdade, portanto, o conflito, e o desenlace do conflito numa relação de domínio e servidão, em que a liberdade em si mesma se suprime. Segundo, trata-se de fazer da Liberdade não o sujeito passivo de uma limitação externa, mas a autora da própria Lei que a limita, e isto não na medida em que a restringe, mas na medida em que a determina. A legislação do soberano não é, assim, contra a Liberdade, mas lugar de objectivação de uma Liberdade que abandonou a sua expressão individualista, egoísta e “selvagem”, e se elevou até o conceito de um sistema de liberdades, segundo leis universais de coexistência que dela própria provêm. A Liberdade não é “minha” nem “tua”, nem é a minha contra a tua. Ela é a Liberdade de uma comunidade de agentes racionais ou não é sequer Liberdade. De facto, só na forma do todo é que ela não encontrará mais em outra liberdade um princípio limitador. Esta «coexistência das liberdades», que é a fórmula que Kant sempre utiliza para caracterizar a liberdade civil, não será, pois, pensável como diminuição ou retraimento da Liberdade, mas antes como a única forma da sua efectiva realização. Assim, a liberdade civil objectiva-se na Lei, e à Lei está associada uma coerção externa (Zwang) que obsta às acções, no caso das leis proibitivas, ou que obsta ao que obsta às acções, no caso das leis prescritivas. Esta força coerciva ligada à Lei é o conceito do Direito associado a uma legislação jurídica10. Só ele permite outorgar a cada um o que lhe pertence e protegê-lo contra um uso irrestrito da liberdade de todos os outros. O conceito de uma legislação jurídica subsume-se, assim, no conceito de Justiça. A ordem civil instaura entre os homens não a bondade das intenções virtuosas, mas a justiça das acções exteriores na sua relação recíproca. O desígnio último, o fim final da ordem civil, e também o único que ela pode assegurar, será, pois, o da Justiça. O advento do Direito Público, como fundamento do Direito Privado, institui um mecanismo de regulação jurídico-legal dos conflitos e instaura a Paz, na ordem interna, de um modo que nenhum despotismo seria capaz de realizar. Para isso, ele não precisa de convocar nada mais que o simples entendimento, independentemente de qualquer disposição moral boa dos —————————————— 10 Sobre a diferença entre legislação ética e legislação jurídica, ver Kant, Metaphysik der Sitten. Rechtslehre. Einleitung, III, AB 13 e sgs. Sobre o direito e a coerção, veja-se, idem, Einleitung in die Rechstlehre, §D, B 35. 178 Pedro M. S. Alves homens – a invenção da legislação jurídica é, ao nível da simples natureza, aquela condição pela qual os agentes inteligentes consentem uma acção apenas na condição de ela ser também consentida para todos. Uma constituição civil perfeitamente justa é, pois, não o Despotismo, que é justamente o seu contrário, mas aquilo que Kant designa como a Constituição Republicana. Tecnicamente, o conceito de uma constituição republicana determina-se pelo duplo princípio da representatividade e da divisão dos poderes: «Qualquer Estado contém em si três poderes, ou seja, a vontade geral unificada que se ramifica em três pessoas: o poder soberano na pessoa do legislador, o poder executivo na pessoa do governante (em observância à lei) e o judicial (que atribui a cada um o que é seu de acordo com a lei) na pessoa do juiz»11. O ponto importante, para lá desta fixação estática das três pessoas do Estado, é, porém, a inserção dinâmica da vida individual na comunidade política e o modo como ela fica determinada a partir desta. Num opúsculo famoso, até pelo seu longo título, que desafia qualquer princípio de economia e contenção, Kant estabelece claramente o modo dessa inserção: «O estado civil, considerado simplesmente como situação jurídica, funda-se nos seguintes princípios a priori: 1. Liberdade de cada membro da sociedade, como homem; 2. Igualdade deste com todos os outros, como súbdito; 3. Independência de cada membro de uma comunidade, como cidadão»12. Cada indivíduo, como membro de uma comunidade política, permanece livre para a prossecução da sua felicidade, segundo as suas concepções do Bem e do Mal, é igual a todos os outros perante a Lei, ou seja, fora de qualquer privilégio, e, mais importante que tudo o resto, é, enquanto cidadão, co-autor dessa mesma Lei a que, como súbdito, se obriga e que, como homem, lhe assegura a liberdade na sua vida privada. O círculo fecha-se, ou pelo menos Kant acreditava-o. Ao contrário da subordinação despótica de todos à vontade discricionária de um só (que até pode ser clarividente e almejar o bem comum), a tripla diferenciação da vida no interior de uma comunidade política assegura que a Lei a que todos se submetem, e que os deixa livres enquanto homens, é a lei que, como legisladores, a si próprios se deram, e, acima de tudo, assegura que a justiça das leis que os regulam está na proporção da sabedoria com que as saibam escolher. A vida individual fica cindida numa esfera pública e numa esfera privada. Poderá parecer que o homem, e os seus —————————————— 11 «Ein jeder Staat enthält drei Gewalten in sich, d. i. Den allgemein vereinigten Willen in dreifacher Person: die Herrschergewalt (Souveränität), in der des Gesetzgebers, die vollziehende Gewalt, in der des Regierers (zu Folge dem Gesetz) und die rechtsprechende Gewalt (als Zuerkennung des Seinen eines jeden nach dem Gesetz), in der Person des Richters», Kant, Metaphysik der Sitten. Das Staatrecht. A 165. 12 «Der bürgerliche Zustand also, bloss als rechtlicher Zustand betrachtet, ist auf folgende Prinzipien a priori gegründet: 1. Die Freiheit jedes Gliedes der Sozietät, als Menschen. 2. Die Gleichheit desselben mit jedem anderen, als Untertan. 3. Die Selbständigkeit jedes Gliedes eines gemeinen Weses, als Bürgers», Kant, Über den Gemeinspruch. Im Staatsrecht, A 235. Moral e Política em Kant 179 interesses na esfera privada, não coincidem com o cidadão, e os interesses que, como membro da vontade geral, deveriam ser os seus. O círculo, afinal, parece não ter um fecho perfeito, porque os seus extremos não coincidem. Mas esta cisão não é dilacerante, porque não é fonte de uma colisão de interesses inconciliáveis. Pelo contrário, ela é a garantia da boa ordem da legislação: a pertença de cada indivíduo às duas esferas impede as tendências de absorção socializante da sociedade pelo Estado ou de redução anarquizante do Estado à sociedade, em prol da lógica liberal de uma reconfiguração permanente dos interesses individuais que os torne conciliáveis com o interesse de todos13. Se o Despotismo culmina num Estado paternalista que trata, no dizer de Kant, os súbditos como «crianças menores», a exigência permanente da República será, ao invés, a educação do Homem e a liberdade de pensamento na deliberação sobre a coisa pública: «admitir que o soberano não pode errar ou ignorar alguma coisa seria representá-lo como agraciado de inspirações celestes e como superior à humanidade. Por isso, a liberdade da pena – contida nos limites do respeito e do amor pela constituição […], mediante o modo liberal de pensar dos súbditos, que aquela mesma constituição ainda inspira […] – é o único paládio dos direitos do povo»14. Esta tese de Kant acerca do mecanismo da Constituição Republicana não é apenas uma transposição, para o terreno da Política, do princípio moral da autonomia da vontade. Esse princípio, antes de ser a ideia-chave da ética kantiana, fora já o núcleo das ideias políticas de Rousseau no Contrato Social: «a obediência à lei que a nós próprios prescrevemos é liberdade»15. IV Terceira tese de Kant: o que a simples natureza no Homem propicia já pelo seu próprio mecanismo – o advento do Direito Público e de uma Constituição Republicana – subsume-se na ideia de uma legislação pura e a priori da Razão Prática. Desse modo, o Homem, na sua existência histórica, como ser natural em sociedade, é pensável como fenómeno da Liberdade e lugar de realização da Razão, por sobre o arranjo puramente mecânico das coisas no reino da natureza. —————————————— 13 Sobre este ponto, ver Alain Renaud – Kant aujourd’hui. Paris: Aubier, 1997, p. 321. 14 «Denn, das Oberhaupt auch nicht einmal irren, oder einer Sache unkundig sein könne, anzunehmen, würde ihn als mit himmlischen Eingebungen begnadigt und über die Menschheit erhaben vorstellen. Also ist die Freiheit der Feder – in den Schranken der Hochachtung und Liebe für die Verfassung worin man lebt, durch die liberale Denkungsart der Untertanen, die jene noch dazu selbst einflößt […] – das einzige Palladium der Volksrechte», Kant, Über den Gemeinspruch… Im Staatrecht, A 265. 15 «l’obéissance à la loi qu’on s’est prescritte est liberté», Rousseau, Du contrat social. Chap. VIII. Œuvres complètes. III. Paris: Gallimard, 1964, p. 365. 180 Pedro M. S. Alves Há que atentar bem nos matizes da tese kantiana. Por um lado, o advento do Direito Público e da Constituição Republicana pode ser pensado como resultado do simples jogo natural das disposições egoístas do Homem. A insociabilidade dessas disposições combina-se com uma tendência irrecusável, também ela natural, para a sociedade. Esta última tendência não é, por si mesma, expressão de qualquer “bom princípio” da natureza humana, mas pode ser entendida, ainda, no prolongamento das disposições egoístas, na medida em que estas buscam na comparação com os outros, na emulação e nas honras a sua satisfação. Esta «sociabilidade insociável», como disposição natural, conduz o homem à solução «do maior problema do género humano», ou seja «à consecução de uma sociedade civil que administre o direito em geral»16. De facto, não há, para o Homem, sociedade natural, como o há para as formigas ou para as abelhas. A insociabilidade das tendências egoístas impede uma ordem harmoniosa e natural. A sociabilidade impele, porém, para a união do homem com o homem. A edificação da sociedade é, assim, um problema que o Homem tem de resolver. Por isso, tal é a tese de Kant, na reflexão retrospectiva sobre a história da Humanidade no seu conjunto, tudo se passa como se houvesse um Plano da Natureza que, através do jogo de disposições em si mesmas más, propiciasse o advento do Direito e da Constituição Civil, como a única forma da sociabilidade humana em que essas disposições, em vez de dissolverem o todo social, contribuem, antes, para o seu constante progresso e para o refinamento da cultura. O Direito deixa-se, assim, pensar como o resultado final de um Plano da Natureza, que se “serve” do egoísmo do homem para a consecução de uma sociedade civil, ou melhor, que pôs no homem uma tal organização egoísta para que ele tirasse tudo de si próprio, pelo árduo trabalho da cultura e da civilização. Mas o Direito é, também, a expressão de uma legislação pura prática, segundo a ideia de Liberdade, de tal modo que o que a Natureza propicia no Homem vem coincidir com os interesses últimos da Razão: a edificação de um «sistema da Liberdade» por sobre o «sistema da Natureza», no qual o Homem pode efectivar a sua destinação supra-sensível. De facto, a ideia de uma legislação segundo a Liberdade conduz aos conceitos de uma legislação ética e de uma legislação jurídica. Esta última é o fundamento da ideia pura do Direito, e deste resulta o conceito de um Estado (civitas), enquanto «união de um conjunto de pessoas sob leis jurídicas»17. A forma pura, a priori, sob a qual esta união é pensável é a do contrato originário, em que uma multiplicidade de pessoas (de agentes racionais) fica unida num —————————————— 16 «Das größte Problem für die Menschengattung, zu dessen Auflösung die Natur ihn zwingt, ist die Erreichung einer allgemein das Recht verwaltenden bürgerlichen Gesellschaft». Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, A 394. 17 «Ein Staat (civitas) ist die Vereinigung einer Menge Von Menschen unter Rechtsgesetzen», Kant, Metaphysik der Sitten. Das Staatsrecht. §45, B 194. Moral e Política em Kant 181 Estado sob leis coercivas, que, como leis da Liberdade, as envolvem simultaneamente enquanto súbditos e cidadãos. Assim, o Direito é o lugar de mediação entre Natureza e Liberdade. Ele opera a coincidência entre a realização das disposições naturais, por um lado, e a moralização do Homem, por outro, ou seja, a sua submissão a uma legislação da Razão pura prática. Aquilo que se realiza pelo jogo exclusivo das disposições naturais pode ser lido como se tivesse promanado de uma conversão do Homem aos interesses últimos da razão e como se tudo tivesse acontecido por força de um imperativo incondicionado. Eis como a “liberdade selvagem, estulta”, a “violência” e a “guerra” não podem ser as últimas palavras sobre o Homem, como o sugere o Despotismo; eis como elas, em conjunto, despoletam todo o trabalho da cultura e da civilização, de tal modo que, no juízo de uma reflexão retrospectiva, a história do Homem se deixa globalmente pensar como História da Liberdade. V Tal é a terceira tese de Kant. Mas ela não resolve ainda o problema momentoso da deliberação e da acção política no presente histórico de cada comunidade. A ideia de um contrato originário é, como Kant o afirma, apenas uma ideia reguladora18. Isso significa que ela é um princípio de unificação das leis particulares, mas não um princípio de determinação dessas mesmas leis. Por outro lado, o Plano da Natureza é um simples produto de um juízo reflexionante retrospectivo. Seria estulto confiar a ele a deliberação sobre o que em cada momento deve ser decidido na vida concreta de uma República – ele opera sobre factos acontecidos e não é, em si mesmo, um princípio de ponderação sobre o que deve acontecer. Desse modo, a Política recupera os seus direitos – ela opera no intervalo entre a ideia reguladora de um Contrato Originário e o juízo reflexionante sobre um Plano da Natureza, de um lado, e as exigências de deliberação em conjunto no presente vivo de cada comunidade republicana – para essa deliberação, uma simples ideia reguladora ou um juízo reflexionante não podem oferecer qualquer princípio seguro de determinação, que faria da deliberação política uma questão simplesmente técnica. É que o contrato originário e o plano da natureza projectam-nos sobre um horizonte de passado, seja ele um passado ideal ou um passado histórico. Mas a deliberação política, apela ao confronto das opiniões dentro de uma comunidade republicana, e é abertura sobre o horizonte do futuro – ela ordena-se ao que há-de ser. A Política só pode tomar esses princípios como um fio-condutor da deliberação, sem que eles possam conduzir a qualquer ciência sobre o que, em cada caso, deve acontecer. —————————————— 18 Ver Kant, Über den Gemeinspruch…, A 249. 182 Pedro M. S. Alves Eis como a Política deixa de ser uma técnica, para se volver numa sabedoria. E eis como a sua virtude fundamental deixa de ser a astúcia, para se volver na prudência. E toda a sabedoria prática, toda a prudência do Político consiste justamente em oferecer ao sufrágio colectivo as máximas das suas acções segundo o princípio da publicidade19. Mais que uma prudência que faz segredo sobre as suas razões e torna os desígnios da governação imperscrutáveis, a virtude política fundamental consiste em entregar à comunidade republicana a tarefa de uma deliberação conjunta sobre as leis do seu governo. Do «político moral» (der moralische Politiker), ou seja, do político que se deixa guiar pela ideia racional de um sistema da Liberdade, e da Política como actividade submetida ao princípio da publicidade vale, portanto, dizer o que Kant afirma, num outro contexto, nas páginas iniciais da Metafísica dos Costumes: a Política «não pode […] compreender nenhuma doutrina técnico-prática, mas somente moral-prática, e se a habilidade do arbítrio segundo leis da liberdade – em contraposição à natureza – devesse chamar-se aqui também arte, teria por tal de se entender uma arte que tornasse possível um sistema da liberdade, semelhante a um sistema da natureza; uma arte certamente divina, na verdade, se estivesse em condições de realizar plenamente […] aquilo que a razão nos prescreve e pôr em obra a sua ideia»20. Esta arte “divina” do Político não pertence a nenhum Deus ou aos seus sacerdotes, nem tão-pouco a um homem entre todos esclarecido – ela é a deliberação permanente no espaço público, ela é, por isso, a arte que faz de nós um corpo político ou um todo, ela é, pois, a arte de todos nós. —————————————— 19 Ver Kant, Zum ewigen Frieden. Anhang II – Von der Einhelligkeit der Politik mit der Moral nach dem transzendentalen Begriffe des öffentlichen Rechts, B 98. 20 O texto completo é o seguinte: «Also kann die Philosophie unter dem praktischen Teile (neben ihrem theoretischen) keine technisch, sondern bloß moralisch-praktisch Lehre verstehen, und, wenn die Fertigkeit der Willkür nach Freiheitsgesetzen, im Gegensatz der Natur, hier auch Kunst genannt werden sollte, so würde darunter eine solche Kunst verstanden werden müssen, welche ein System der Freiheit gleich einem System der Natur möglich macht; fürwahr eine göttliche Kunst, wenn wir im Stande wären, das, was uns die Vernunft vorschreibt, vermittelst ihrer auch völlig auszuführen, und die Idee davon ins Werke zu richten», Kant, Metaphysik der Sitten. Rechtslehre, AB 13-14. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro António Braz Teixeira UNIVERSIDADE AUTÓNOMA DE LISBOA 1. Se bem que, em ambos os países de língua portuguesa, o conhecimento do pensamento kantiano tenha sido relativamente tardio, a exemplo do que, aliás, aconteceu em diversas outras partes da Europa, a começar pela França1, havendo-se iniciado, de modo muito imperfeito, apenas nos primeiros anos do séc. XIX, já após a morte do filósofo, no entanto, foi significativamente diverso o destino da reflexão do mestre de Königsberg em Portugal e no Brasil, sendo, inegavelmente, este um dos aspectos que individualizam a actividade especulativa brasileira relativamente à comum matriz portuguesa, com a qual não deixou de manter assinaláveis convergências. Assim, enquanto, nas duas primeiras décadas de oitocentos, Joaquim José Rodrigues de Brito (1753-1831)2 e Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846)3, ambos no âmbito do sensismo utilitarista, demasiado depressa recusaram a filosofia kantiana, confundindo o seu criticismo com a doutrina das ideias inatas, no Brasil, pela mesma época, Martim Francisco Ribeiro de Andrade (1775-1844), nos cursos de filosofia que professava em São Paulo, expunha já os princípios fundamentais da filosofia transcendental e, alguns anos depois, Diogo António Feijó (1784-1843), no curso de filosofia racional e moral que ministrava na vila de Itu, revelava clara consciência do que distinguia a filosofia crítica do dogmatismo e do cepticismo, bem como do significado e importância da noção de a priori e da diversa natureza das categorias aristotélicas e das kantianas, fazendo ainda suas as três perguntas —————————————— 1 Cfr. André Stanguennec, La pensée de Kant et la France, Editions Cécile Defaut, 2005, pp. 55 e segts. 2 J. J. Rodrigues de Brito, Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza das nações, e principalmente de Portugal, Lisboa, 1803-1805. 3 Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas, Rio de Janeiro, 1813. FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 183-203 184 António Braz Teixeira fundamentais que o mestre germânico considerava a raiz de toda a actividade especulativa4. Acontece, porém, que nenhum dos dois últimos se deteve a considerar a problemática filosófico-jurídica e que os dois primeiros, que a ela dedicaram demorada atenção reflexiva, o fizeram em quadros especulativos muito diversos da perspectiva adoptada na doutrina kantiana do direito, embora Rodrigues de Brito não tenha deixado de se referir, criticamente, aos “kancianistas”, a propósito da distinção ou separação entre o direito e a moral, a que contrapunha o sentimento interno que conduz à felicidade, hedonisticamente entendida, o qual seria o fundamento comum da moral e do direito e a fonte de todas as regras éticas. Deste modo, seria apenas em meados de oitocentos, na obra do lente conimbricense Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886), que a Metafísica dos Costumes viria a encontrar os seus primeiros ecos no pensamento filosófico-jurídico luso-brasileiro. 2. Depois de, durante os primeiros dez anos do seu magistério da cadeira de Direito Natural se ter visto obrigado a seguir o velho compêndio de Martini, procurando, contudo, «aditar-lhe as novas teorias dos escritores modernos»5, em 1844 Ferrer decidiu, finalmente, romper com tal orientação e renovar o seu ensino, tendo em conta as mais recentes doutrinas do direito natural e da filosofia do direito, «principalmente em Alemanha»6, procurando fundir a expressão krausista do idealismo alemão, na versão dos seus discípulos belgas Heinrich Ahrens e Guillaume Tiberghien com aspectos essenciais da doutrina kantiana do direito e, mais tarde, já no fim da vida, com algumas teses do darwinismo7. Confessamente ecléctico, Ferrer afirmava haver escolhido «de todos os escritores antigos e modernos» o que lhe parecia melhor, a que acrescentara o «produto das suas lucubrações», pelo que o que denominava o «seu sistema», não sendo «inteiramente novo», não seria também «uma reprodução exacta dos sistemas anteriores»8. Do sistema kantiano, três aspectos essenciais acolhia o lente de Coimbra na sua doutrina filosófica do direito: a existência, no espírito humano, de ideias ante- —————————————— 4 Diogo António Feijó, Cadernos de Filosofia, São Paulo, 1967. Cfr. A. Braz Teixeira, «Kant e a reflexão filosófica luso-brasileira do séc. XIX», Cultura-Revista de História e Teoria das Ideias, vol. XX (2ª série), Lisboa, 2005, pp. 25-47. 5 Curso de Direito Natural, segundo o estado actual da ciência, principalmente em Alemanha, Coimbra, 1843. 6 Elementos de Direito Natural ou de Filosofia do Direito, Coimbra, 1844, prólogo. 7 Filosofia do Direito, 6ª ed., Coimbra, vol. I, 1883. 8 Princípios gerais de Filosofia do Direito, Coimbra, 1850, pp. 101. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 185 riores à experiência e que dela seriam condições de possibilidade, a ideia de condicionalidade e a separação entre o direito e a moral. Em matéria gnosiológica, Ferrer vinha, porém, a encontrar-se mais próximo do inatismo leibniziano do que do criticismo kantiano, cujo exacto alcance é duvidoso que haja apreendido, pois afirmava a existência, não, propriamente, de categorias a priori do entendimento mas de ideias gerais e eternas, que se achariam gravadas na consciência de todos os homens e que constituiriam os primeiros elementos do pensamento, anteriores a qualquer experiência e condicionantes dessa mesma experiência e de todo o conhecimento humano. Seriam tais ideias que, segundo o lente de Direito, garantiriam o conhecimento e lhe forneceriam um princípio de unidade, do mesmo modo que sustentariam a crença na unidade do mundo e na existência de um Ente Absoluto e Infinito de que essas mesmas ideias promanariam9. Por seu turno, a ideia de condicionalidade no modo de conceber e definir o direito vinha a ter, em Ferrer, um sentido mais próximo do de Krause10 ou de Ahrens11 do que do kantiano12, já que entendia o direito como «o complexo de condições, tanto internas como externas, dependentes da liberdade e da vontade do homem, que concorrem para a realização do fim racional, individual e racional do homem»13. Deste modo, para ele, a ideia de direito viria a fundar-se em dois princípios diferentes e, até certo ponto, antagónicos, a razão prática e a natureza humana, nela marcando, simultaneamente, presença o ser e o dever-ser, o momento empírico e o elemento racional, o que era a fonte das maiores dificuldades com que o seu pensamento veio a defrontar-se e o sentido contrapolar em que se vieram a orientar as críticas dos seus discípulos e imediatos sucessores e os diversos e divergentes rumos que cada um deles acabou por seguir na sua reflexão filosófico-jurídica. Quanto ao modo de entender a distinção entre o direito e a moral, o nosso jusfilósofo acolhia a ideia, vinda de Ch. Thomasius e que Kant fizera sua, de que a moral se circunscreve ao domínio interno da consciência, curando apenas de intenções e impondo deveres, de natureza afirmativa, ao passo que os deveres jurídicos têm conteúdo negativo, pois consistem numa mera abstenção, a de não invadir a —————————————— 9 Ob. cit., pp. 17-19 e 41. 10 «O direito é o conjunto de condições externas, dependentes da liberdade, para a realização do fim racional da Humanidade e de todos e cada um dos indivíduos». 11 «O direito é o conjunto das condições, dependentes da acção voluntária do homem e necessárias para a realização do bem e de todos os bens individuais e sociais que constituem o fim racional do homem e da sociedade». Cours de Droit Naturel, 4ª ed., Bruxelas, 1853, p. 154. 12 «O direito é o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem, segundo uma lei universal da liberdade». A Metafísica dos Costumes, trad. port. José Lamego, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 43. 13 Elementos de Dir. Nat. §§ 15 e 16 e Princípios gerais, pp. 97 e segts. 186 António Braz Teixeira esfera jurídica alheia, já que o seu princípio fundamental seria o do neminem laedere. Assim, para Ferrer, o direito era, essencialmente, uma faculdade ou coisa permitida, pelo que não poderia nunca conceber-se como dever ou obrigação de alguém, visto depender, exclusivamente, do seu titular o exercê-lo ou renunciar a ele, tal como, porque o direito de cada pessoa vai até onde chega o direito dos outros, quando dois ou mais sujeitos jurídicos pretendam a mesma coisa, o direito de cada um deles deve limitar-se pelo dos restantes, a fim de que as pretensões de todos possam ser igualmente satisfeitas14. 3. O compêndio de Ferrer gozou de invulgar sucesso e duradoura presença no mundo académico luso-brasileiro, pois não só foi a base da sua regência da cadeira de Direito Natural até 1858, sendo ainda por referência ao seu magistério que se situaram os seus imediatos sucessores Joaquim Maria Rodrigues de Brito (1858-1861 e 1866-1873) e José Dias Ferreira (1862-1866 e 1873-1881), como foi adoptado nas Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda-Recife logo na segunda metade do séc. XIX, naquela por Amaral Gurgel (1797-1864) e, na pernambucana, por iniciativa da respectiva congregação, prolongando a sua vigência, no Largo de S. Francisco, até meados da década de 70, quando João Teodoro Xavier de Matos (1828-1878)15 e Carlos Mariano Galvão Bueno (1834-1883)16, seguindo o exemplo dos seus colegas de Coimbra, contrapuseram ao seu individualismo jurídico uma concepção eminentemente social do direito, e, no nordeste, até 1862, ano em que foi decidido voltar a adoptar o velho compêndio de Pedro Autran de Albuquerque, que, em 1832, substituíra o manual do conimbricense José Fernandes Álvares Fortuna, seguido no ensino de Direito Natural nos primeiros anos da escola de Olinda17. Refira-se, contudo, que na obra dos discípulos e continuadores de Ferrer, a escassa presença que Kant encontrara no pensamento do mestre praticamente desapareceu, tanto no plano gnosiológico e metafísico como no estrito domínio filosó—————————————— 14 Elementos de Dir. Nat., §§ 27 e segts. e Princípios gerais Fil. Dir., pp. 168 e segts. Sobre o pensamento filosófico-jurídico de Ferrer, ver L. Cabral de Moncada, Subsídios para a História da Filosofia do Direito em Portugal, Lisboa, INCM, 2003, pp. 62-72 e 211-279, Mário Reis Marques, «O krausismo de Vicente Ferrer Neto Paiva». Boletim da Fac. Dir. Coimbra, vol. XVI, 1990, A. Castanheira Neves, Digesta, vol. I, Coimbra, 1995, pp. 337-342, A. Simões Dias, A filosofia do direito de Vicente Ferrer Neto Paiva, Lousã, 1999, Maria Clara Calheiros de Carvalho, A filosofia jurídico-política do krausismo português, Lisboa, INCM, 2006 e A. Braz Teixeira, Caminhos e figuras da filosofia do direito luso-brasileira, 2ª ed., Lisboa, Novo Imbondeiro, 2002, pp. 67-101. 15 Teoria transcendental do direito, São Paulo, 1876. 16 Noções de filosofia acomodadas ao sistema de Krause e extraídas das obras filosóficas de G. Tiberghien e Ahrens, São Paulo, 1877. 17 Cfr. Clóvis Bevilaqua, História da Faculdade de Direito do Recife, 2ª ed., Brasília, 1977, p. 103, António Paim, «O krausismo brasileiro», Nomos. Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado, nº 5-6, 1988 e A. Braz Teixeira, ob. cit., pp. 102-133. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 187 fico-jurídico, em que a ideia de condicionalidade ou é substituída pela de sistema de princípios (Dias Ferreira) ou passa a referir-se ao «complexo de condições que os homens mutuamente devem prestar-se, necessárias ao desenvolvimento da personalidade de cada um, em harmonia com o bem geral da humanidade» (Rodrigues de Brito), ao mesmo tempo que a separação radical que Ferrer estabelecera entre o direito e a moral cede o lugar à doutrina do mínimo ético (Dias Ferreira) ou a uma concepção decididamente ética e social do direito, que conferia o primeiro lugar à igualdade e submetia a liberdade ao imperativo do dever de cada um perante os outros e perante si próprio18. 4. O segundo momento da recepção da doutrina kantiana do direito no mundo jurídico luso-brasileiro é protagonizado pela chamada “Escola do Recife” e em especial pelo seu incontestado iniciador e chefe, o sergipano Tobias Barreto (1839-1889). A interpretação tobiática do pensamento “kantesco”, como o denominava, vinha a reduzi-lo a uma teoria do conhecimento, segundo a qual os objectos cognoscíveis são determinados ou condicionados pela natureza do sujeito cognoscente, não logrando os conhecimentos assim obtidos representar a verdadeira e absoluta realidade. No pensamento de Tobias Barreto, esta doutrina gnosiológica estava associada a uma concepção metafísica e ontológica de declarada feição monista e evolucionista, dinâmica e teleológica, que, se, por um lado, recusava um acanhado e limitado naturalismo, por outro, se apresentava como um insuperável dualismo, ao admitir dois princípios antagónicos e entre si inconvertíveis, a causalidade e a finalidade, e ao conter em si duas realidades substantivamente diferentes, a natureza, domínio do mecanismo e a cultura, reino da liberdade. É, precisamente, a noção de cultura como criação espiritual do homem, contraposta à natureza, com o intuito de a tornar cada vez melhor e mais bela, que constitui o aspecto mais pessoal e inovador do pensamento do mestre pernambucano, cuja reflexão vem, assim, a convergir com a que, pela mesma época, estavam fazendo os neo-kantianos de Baden, e aquele que mais duradouro e fecundo se veio a revelar, como o demonstra a corrente culturalista, iniciada por Miguel Reale na década de 40 do século passado e ainda hoje com destacada presença na especulação brasileira. —————————————— 18 José Dias Ferreira, Noções fundamentais de Filosofia do Direito, Coimbra, 1864, Joaquim Maria Rodrigues de Brito, Filosofia do Direito, Coimbra, 1869. Cfr. L. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 80-85 e 119-131, Mário Reis Marques, «Do “Direito Natural” à “Filosofia do Direito”: José Dias Ferreira», Nomos. Rev. Port. Fil. Dir. e do Est., nº 3-4, 1987, pp. 38-55, Maria Clara Calheiros de Carvalho, ob. cit., VVAA, Vicente Ferrer Neto Paiva. No segundo centenário do seu nascimento a convocação do krausismo, Coimbra, 1999 e A. Braz Teixeira, ob e ed. cits., pp. 76 e segts. e História da Filosofia do Direito Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2005, pp. 124-131. 188 António Braz Teixeira Note-se, contudo, que a noção de cultura de Tobias Barreto, devido ao insuperável naturalismo que definia o seu pensamento, não só não lhe permitiu atender, como convinha, ao seu elemento essencial, o elemento axiológico e apreender a essencial distinção epistemológica entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, como era a fonte de duas outras dificuldades com que aquela se defrontava, as relativas ao problema da liberdade e à ideia de desenvolvimento. Com efeito, para o iniciador da Escola do Recife, a liberdade seria um facto de ordem natural, a mera liberdade empírica, que, no seu pensamento, se identificava ou confundia com a vontade, entendida esta como a capacidade que o homem tem de realizar um plano por si próprio delineado e de atingir um objectivo que a si mesmo se propõe. Quanto à ideia de desenvolvimento, base da sua concepção da historicidade da cultura, era, para ele, também uma noção naturalista, pois seria o produto de duas propriedades fundamentais dos átomos, uma interna, o sentimento e outra externa, o movimento. Daí que, para Tobias Barreto, todo e qualquer desenvolvimento fosse sempre redutível a uma modificação do sentimento e a uma modificação do movimento, embora entendesse que era diversa a parte de uma e de outra dessas duas propriedades dos átomos nos vários níveis da realidade, cujo caminho ascendente, do mundo inorgânico aos organismos sociais, seria definido pela crescente importância e decisivo papel desempenhado pelo sentimento em detrimento do movimento. Se bem que tenha sido, precisamente, a propósito do conceito do direito que o filósofo sergipano chegou à sua noção de cultura, sustentando, contra as pretensões do jusnaturalismo, que aquele era obra do homem e produto da cultura humana e não uma entidade metafísica, no entanto, não soube ou não teve tempo ou oportunidade para desta intuição deduzir uma completa e adequada concepção cultural ou culturalista do direito. Na verdade, no pensamento que o malogrado filósofo deixou expresso nos seus ensaios de filosofia jurídica19, a sua visão do direito como criação cultural serviu-lhe mais para recusar qualquer elemento a priori no direito ou qualquer fundamento meta-empírico da realidade jurídica e para afirmar a sua essencial positividade do que para nela basear um entendimento do mundo jurídico diverso do sustentado pelo positivismo ou para chegar a uma compreensão da especificidade epistemológica da ciência do direito, incompatível com a unidade metodológica propugnada pelo naturalismo. Definindo o direito como «conjunto das condições existenciais e evolucionais da sociedade coactivamente asseguradas ou complexo de princípios reguladores da vida social, coactivamente assegurados, ou estabelecidos ou assegurados —————————————— 19 «Algumas ideias sobre o fundamento do direito de punir» (1881), «Sobre uma nova intuição do direito» (1881), «Dissertação de concurso» (1882) e «Introdução ao estudo do direito» (1887-1888). Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 189 pelo Estado»20, o jusfilósofo brasileiro advertia que, na base do direito, como de tudo, se encontra a luta natural pela existência, pois no «princípio era a força e a força estava no homem e o homem era a força», de cuja conservação e desenvolvimento tudo se tem produzido, incluindo o próprio direito, que mais não seria, então, do que transformação da própria sociedade, sendo, por isso, «a força que matou a própria força», «a pacificação dos antagonismos das forças sociais», «a vida pela coacção, até onde não é possível a vida pelo amor»21. Para o pensador, o direito viria, assim, a ser uma realidade social, visto a sociedade ser a condição formal, apriorística, de todos os fenómenos éticos e jurídicos, tal como seria também a categoria ou condição a priori do homem, o qual, por isso, só poderia ser pensado como membro de uma sociedade. Daqui a frontal oposição de Tobias Barreto à ideia de contrato social e à paralela noção de direitos naturais e originários, por entender que nenhum direito existe ou existiu fora da sociedade, dado ser ela que os instituiu e consagrou a todos. Para o jusfilósofo, a sociedade, porque é um sistema de forças em combate contra o próprio combate pela vida, vinha a consistir num sistema de regras, numa rede de normas que, do direito à moral, não se circunscrevem à acção e à conduta exterior mas alcançam também o foro íntimo e o próprio pensamento22. Aqui se fundava a ideia do jusfilósofo recifense de que a moral e o direito compreendiam três momentos, a regra, a luta e a paz. Enquanto, porém, na moral, que é o reino da autonomia, a regra é estabelecida pelo próprio sujeito, a luta é a que trava no seu íntimo e a paz é o acordo entre a regra que cada um a si mesmo se impõe e o seu agir de acordo com ela, no direito, a regra é heterónoma, porque imposta pelo Estado, a luta se processa no domínio social e a paz se alcança com a harmonia da vida em comum23. 5. Assim como, em Portugal, o mitigado e equívoco kantismo jurídico de Ferrer, nos seus discípulos e imediatos sucessores, veio a dar lugar a um krausismo mais puro e pouco ou nada kantiano, também, no Brasil, um quarto de século mais tarde, o neo-kantismo de Tobias Barreto, nos seus mais próximos discípulos, viria a ceder perante os elementos positivistas, monistas, evolucionistas e historicistas que o seu pensamento também acolhia, sendo esta ultima tendência que define o pensamento filosófico-juridico do cearense Clóvis Bevilaqua (1859-1944), que lhe sucedeu no ensino da cadeira de Filosofia do Direito (1888), e o do seu mais próximo e —————————————— 20 «Sobre uma nova intuição do direito», Estudos de Filosofia, ed. Paulo Mercadante e António Paim, São Paulo, Grijalbo, 1977, p. 259. 21 Idem, p. 258 e «Uns ligeiros traços sobre a vida religiosa no Brasil» (1881), ed. cit., p. 287. 22 «Dissertação de concurso», «Glosas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações anti-sociológicas» (1887) e «Introdução ao estudo do direito», ed. cit., pp. 286, 329, 331 e 425. 23 «Glosas heterodoxas», ed. cit., p. 334, Cfr. A. Braz Teixeira, Caminhos e figuras, ed. cit., pp. 143-153. 190 António Braz Teixeira fiel discípulo, o sergipano Sílvio Romero (1851-1914), acabando por vir a encontrar também significativo e prolongado eco na capital paulista, no magistério de Pedro Lessa (1859-1921) e João Arruda (1861-1943), nas primeiras décadas do séc. XX24. Pensando, como o mestre, que o direito é um produto cultural e um facto humano sujeito à lei da evolução, cujo factor principal é a luta, Clóvis Bevilaqua apresenta dele uma definição análoga à de Tobias Barreto, inspirada, como a deste, na de Jhering, entendendo-o como «o conjunto das condições existenciais da sociedade coactivamente asseguradas pelo poder político», aditando que o fenómeno jurídico se revela à consciência humana sob a tripla forma de emoção, ideia e volição25. O jusfilósofo cearense acolhia, igualmente, a concepção tobiática acerca dos três momentos da vida jurídica, se bem que nela introduzisse algumas significativas modificações. Assim, o primeiro momento seria, para ele, a norma, i. e., uma regra pela qual os homens devem pautar os seus actos na convivência humana, enquanto o segundo consistiria na acção dos indivíduos, pelo exercício das suas faculdades ou pela defesa dos seus direitos, e na acção do poder público, pela coacção, que impõe o respeito pela lei, assegurando a efectividade do direito, e o terceiro viria a ser a paz resultante do equilíbrio das forças e dos interesses26. Também no que se referia à distinção entre o direito e a moral Clóvis Bevilaqua se afastava de Tobias Barreto e do que nele havia de kantiano, ao afirmar ser a existência ou não de coacção que distinguiria o primeiro da segunda27. Afirmando-se seguidor da comtiana lei dos três estados, que Tobias sempre recusara28, o seu jovem sucessor declarar-se-á, como ele, evolucionista e monista, sustentando ser a teoria monista, apoiada nas conclusões do darwinismo e da filosofia spenceriana e segundo a qual tudo são modalidades do movimento, que deveria constituir a base para a adequada compreensão da evolução do direito, que, segundo ele, se haveria efectuado pelo reconhecimento de um número cada vez maior de direitos atribuídos a cada pessoa, pelo alargamento progressivo das garantias jurídicas concedidas a um maior número de pessoas e pela crescente segurança dos direitos reconhecidos29. —————————————— 24 Cfr. Miguel Reale, Filosofia em São Paulo, 2º ed., São Paulo, 1976, pp. 129-165 e Estudos de filosofia brasileira, Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, pp. 131-173. 25 «O direito» (1886) e «Da concepção do direito como reflectora da concepção do mundo» (1887), Obra filosófica, São Paulo, Edusp-Grijalbo, vol. II, 1975, pp. 43-52 e 68-71. 26 «O direito», ed. cit., pp. 52-54. 27 Idem, p. 55. 28 Cfr. «Sobre a religião natural de Jules Simon» (1869). 29 «A fórmula da evolução jurídica» (1894), ed. cit., p. 85. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 191 6. Por seu turno, Sílvio Romero, se, como Tobias Barreto, atribuía assinalável relevância à filosofia de Kant, que frequentemente é convocado na sua obra reflexiva, acabou, no entanto, por encaminhar o seu culturalismo do inicial plano filosófico para o domínio sociológico. Considerava Sílvio Romero que Kant influenciara a sua reflexão em dois pontos fundamentais, a crítica geral do conhecimento e a intuição peculiar da filosofia. Para o pensador sergipano, a filosofia vinha a identificar-se com a metafísica, enquanto «disposição natural do espírito humano a sondar razões últimas e a natureza intrínseca das coisas», pelo que teria por objecto das suas indagações aquele conjunto de «problemas reais, iniludíveis e inegáveis» que se acham na base de todas as ciências, por decorrerem da organização mental do homem e por se encontrarem no fundo do próprio conhecimento30. Declarando-se, como o seu mestre recifense, «um sequaz do monismo teleológico contra o monismo mecanicista», Sílvio Romero sustentava que ele, na sua versão spenceriana, constituía a actualização do pensamento de Kant, apresentando-se o Incognoscível do filósofo inglês como a expressão mais moderna do noumenon kantiano. Assim, para o pensador brasileiro, o naturalismo evolucionista, porque inteiramente conforme com os factos e a ciência do seu tempo, era «o kantismo rejuvenescido pelo órgão de Spencer», cujas ideias definidoras essenciais seriam a de submeter a inteligência a uma crítica e determinar as condições do conhecimento, a distinção entre elementos objectivos e subjectivos do pensamento e a consciência de que todos os juízos envolvem certos dados inerentes à constituição intelectual do homem e a distinção entre o rigorosamente cognoscível, que é objecto da ciência, e o problemático e indeterminado, que constitui a matéria da metafísica (que preferia designar por metaempiria) e das religiões31. Era esta sua convicção de que «o conceito de evolução spenceriana fecunda a doutrina kantesca» que levava o jusfilósofo sergipano a entender que a definição de direito contida na Metafísica dos Costumes era demasiado formal e assente, exclusivamente, na autonomia da vontade, carecendo, por isso, de ser corrigida ou completada. Assim, para Sílvio Romero, o direito deveria definir-se como «o complexo das condições, criadas pelo espírito das várias épocas, que servem para, limitando o conflito das liberdades, tornar possível a coexistência social»32. O direito apresentava-se-lhe, pois, como uma disciplina da liberdade, modelando-se no conflito com a liberdade dos outros, disciplina que visa a sociedade, cuja existência garante e regula pela pena e pela coacção, pelo que o seu princípio funda—————————————— 30 Prefácio à 2ª ed. do Ensaio de Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, 1907. 31 Doutrina contra doutrina, Rio de Janeiro, 1894, em Obra filosófica, ed. Luís Washington Vita, idem, 1969, pp. 477-478 e Ensaio de Filosofia do Direito, 2ª ed., idem, pp. 499 e 525-526. 32 Ensaio Fil. Dir., ed. cit., pp. 647-648. 192 António Braz Teixeira mental seria o seguinte: «põe em movimento a tua vontade até onde ela não impossibilite a acção dos outros». Deste modo, para o polígrafo brasileiro, o direito, como norma da vida dos homens entre si, é uma criação cultural resultante do trabalho espiritual, da produção consciente, do esforço voluntário do homem, por meio do qual a sua liberdade é limitada para assegurar e realizar a existência, a disciplina e a harmonia social, pelo que o direito, tendo a sua causa na necessidade de disciplinar a vontade e a liberdade de cada um em prol da vontade e da liberdade alheias, teria o seu fundamento na consciência da identidade dos destinos humanos33. Quanto à distinção entre o direito e a moral, Sílvio Romero entendia que, tratando-se embora de duas realidades normativas idênticas, por ambas regularem as acções dos homens na sociedade, não deixavam de possuir, cada uma delas, uma esfera própria: enquanto o direito compreenderia os actos da vida pública, visando a realização do justo e fundando-se na liberdade que se limita para alcançar a harmonia e a disciplina social, a moral referir-se-ia aos actos que constituem obrigações impostas ao homem por ele próprio, tendo em vista a prática do bem e encontram o seu fundamento na consciência da identidade dos destinos humanos e não no interesse, na utilidade, na simpatia ou no prazer e cujo cumprimento, por isso, não pode ser exigido por uma coacção exterior34. 7. Um outro discípulo de Tobias Barreto, Raimundo de Farias Brito (1862-1917), havendo começado por acolher as suas principais posições filosóficas, com especial destaque para o relativismo gnosiológico de matriz kantiana, o monismo, o naturalismo, o evolucionismo e o teleologismo, a breve trecho dele veio a afastar-se, não poupando a severas críticas a filosofia do mestre de Königsberg, que não hesitou em considerar, ao lado do positivismo, a expressão moderna do cepticismo. Concordando com Kant em que a teoria da intuição que fornece os dados naturais do conhecimento tem de ser completada por uma teoria da experiência que explique as condições de elaboração do mesmo conhecimento35, o pensador cearense considerava, porém, que o erro do grande especulativo germânico fora o de negar a possibilidade da metafísica como interpretação racional da natureza, erro que, segundo ele, proviria de aquele ter pretendido aplicar ao estudo da realidade objectiva o método dedutivo, o qual se lhe afigurava totalmente inadequado para esse efeito. Na verdade, porque tal método parte de definições e axiomas, de conceitos devidamente limitados, com vista a explicar os casos particulares, seria um método de verificação e de prova e não de descoberta e de busca inovadora. Deste —————————————— 33 Ob. e ed. cits., pp. 600-601, 633-634, 633-635, 638-640 e 647-648. 34 Doutrina contra doutrina, ed. cit., p. 340 e Ensaio, id., p. 637. Cfr. A. Braz Teixeira, ob. e ed. cits., pp. 154-171. 35 Finalidade do mundo, vol. III (1905), 2ª ed., Rio de Janeiro, 1957, p. 338. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 193 modo, o método dedutivo, se pode garantir a correcção do raciocínio, não assegura a sua validade objectiva, pois, para que as conclusões de um raciocínio sejam verdadeiras, é necessário que haja acordo do pensamento com o seu objecto, o que unicamente poderá ser assegurado pela observação e pela experiência. Ora, dado que a consciência era o verdadeiro órgão do conhecimento, o critério supremo da verdade só poderia ser o «testemunho normal e permanente da consciência», do que concluía Farias Brito que, não sendo possível conceber nenhum limite para o espaço e para o tempo, nem para a actividade que num e noutro se desenvolve, seria imperioso admitir que o mundo era infinito e constituía uma actividade intelectual36. O anti-kantismo do pensador cearense não se limitava ao domínio gnosiológico, alargando-se também ao campo da razão prática e à doutrina do direito do filósofo alemão. Pensando que a filosofia, que concebia como sendo o próprio espírito em sua actividade permanente, explorando e interrogando incessantemente a natureza, tinha uma dupla função, constituir a ciência e criar a moral, Farias Brito entendia que desta última decorriam normas éticas, que tinham por fim o domínio do homem sobre si próprio, pelo estabelecimento do conjunto de princípios pelos quais deve regular a sua conduta para realizar o bem. Mas esta função prática da filosofia só é possível por ser da essência da natureza humana o ter consciência de si, podendo formular normas da sua conduta, nisto consistindo a liberdade, que, para o especulativo nordestino, era a «consciência da acção e o império da razão». Duas decisivas conclusões retirava daqui o pensador brasileiro: a de que a inteligência era a actividade e a essência do espírito, só ela sendo livre e princípio criador, e a de que, para o espírito, todo o ser e toda a realidade é o conhecimento, obra da inteligência37. A norma de conduta moral, formulada pela razão e reconhecida pela consciência, impõe deveres, o primeiro dos quais é de o homem proceder sempre de acordo com a verdade, pelo que ser verdadeiro é a regra suprema das acções humanas. Dado que, na ordem moral, a verdade é o bem, aquele supremo princípio vem, então, a resolver-se em duas fundamentais fórmulas éticas: fazer o bem, não fazer o mal38. No entanto, porque os homens, em geral não são bons e bem intencionados mas têm uma tendência natural para o mal, o dever moral, para ter valor prático e ser eficaz, carece de uma sanção que não seja apenas a condenação da consciência —————————————— 36 Ob. e ed. cits., pp. 251-384. 37 Finalidade do mundo, vol. I, (1895), 2ª ed., Rio de Janeiro, 1957, pp. 42-43 e 76-78, vol. II (1899), idem pp. 12 e 155, A verdade como regra das acção (1905), 2ª ed., idem, 1953, pp. 17-20 e 74, A base física do espírito (1912), 2ª ed., idem, pp. 58 e segts. e O mundo interior, idem, 1914, pp. 29-30, 421-423, 441-453 e 464. 38 A verdade, ed. cit., pp. 23-24 e 37-38. 194 António Braz Teixeira individual pela consciência dos demais, i. e., de uma sanção material que, pelo emprego da força, garanta o cumprimento dos deveres morais cuja violação ou não acatamento espontâneo ponha em perigo a ordem social. Deste modo, para Farias Brito, a lei moral constituía a suprema lei, sendo o fim de toda a organização, moral ou jurídica, conseguir que a vida fosse regida pela razão, vindo o direito a constituir um complemento da lei moral, destinado a impedir, pelo emprego da força, que os homens façam o mal. O filósofo vinha, assim, a perfilhar a doutrina do mínimo ético, sustentando que a lei que o direito estabelece é a mesma lei moral, com duas particularidades: no direito, o cumprimento da lei moral é garantido, coactivamente, pelo uso da força e dele fazem parte unicamente as leis morais cuja violação põe em risco a ordem social, sendo as restantes desprovidas deste tipo de sanção. Para o lente da Faculdade de Direito do Pará, não seria, contudo, a coacção o elemento fundamental que permitiria distinguir o direito da moral, já que outras diferenças, de maior significado, separavam as duas ordens normativas. Assim, para Farias Brito, a moral tem por fim o bem absoluto, independentemente das circunstâncias, considera a acção no plano da consciência individual e estuda as leis da conduta quando deduzidas unicamente pela autoridade da razão e impostas pela consciência, ao passo que o direito tem por fim o bem relativo que consiste no respeito recíproco da liberdade de todos os que convivem na sociedade, considera a conduta no domínio da consciência colectiva e estuda as leis da conduta quando estabelecidas pela autoridade do poder político e asseguradas, coactivamente, por uma sanção material39. Aqui se fundava o conceito de direito do autor de A verdade como regra das acções, que o definia como «norma de conduta imposta por autoridade do poder político», advertindo, porém, que tal definição era apenas a descrição de um facto e não a determinação de um conceito, já que este, em sentido próprio, deveria compreender o direito em todas as suas formas possíveis, de qualquer povo e de qualquer época e a sua, como todas as outras, estava, inevitavelmente, condicionada pela sua pessoal concepção do mundo, nada lhe garantindo que, num longínquo porvir, o poder político não viesse a desaparecer e a cumprir-se o ideal anarquista40. Estas mesmas considerações levavam o jusfilósofo cearense a recusar a ideia de direito natural, por entender não ser dado à razão definir ou apreender uma lei imutável e eterna que fosse modelo invariável e permanente para todo e qualquer legislador, em qualquer tempo e lugar, sendo, por isso, todas as visões ou concepções jusnaturalistas, inevitável e insuperavelmente, condicionadas pelas concepções do mundo dos seus autores. Acresce que, para Farias Brito, a moral, como lei essencial, e o direito, como lei complementar, esgotariam o campo normativo, nenhum terceiro género nele sendo admissível. —————————————— 39 Ob. e ed. cits., pp. 24-26, 33 e 79-81. 40 Idem, pp. 60-79. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 195 Recusando, embora, a ideia de direito natural, o especulativo brasileiro não deixava de admitir um fundamento axiológico e um princípio superior para o direito, princípio que, no seu pensamento, seria a justiça, a qual fazia do direito «a síntese da vida espiritual» e da ciência jurídica uma «ciência sagrada», porque «ciência do amor e da justiça». Se não deixava de reconhecer que, para o homem, a justiça é sempre relativa, porque fundada necessariamente em variáveis, fragmentárias e imperfeitas convicções, o filósofo não se esquecia de advertir dever ser a justiça absoluta a suprema aspiração e o ideal permanente de toda a acção moral e jurídica, sustentando que a justiça plena é harmonia, amor e verdade, por representar «o acordo das vontades e a paz das consciências», por significar «a organização da sociedade pela confraternização dos interesses» e por ser «a legítima compreensão da organização social e a consagração dos direitos do homem»41. 8. Enquanto, no Brasil, o neo-kantismo jurídico de Tobias Barreto era frontalmente criticado e recusado (Farias Brito), sociologicamente deturpado (Sílvio Romero) ou pura e simplesmente ignorado (Clóvis Bevilaqua), para dar lugar a uma concepção positivisto-sociológica do direito (Alberto Sales, Pedro Lessa, João Arruda) ou a um novo espiritualismo ético (Farias Brito), em Portugal, um jovem diplomado pelo Curso Superior de Letras, Manuel António Ferreira-Deusdado (1858-1918), inspirando-se no neo-criticismo francês de Renouvier e Lachelier, enfrentava com denodo o positivismo jurídico-sociológico de Teófilo Braga (1843-1924), Manuel Emídio Garcia (1838-1904) e António Henriques da Silva (1850-1906) e do psiquiatra Miguel Bombarda (1851-1910) que dominava os estabelecimentos de ensino, modelava as elites e encontrava decisivo eco na mais activa propaganda republicana. Partindo, embora, de pressupostos filosóficos gerais significativamente distintos dos de Farias Brito, Ferreira-Deusdado aproximava-se dele no que toca ao modo de conceber o direito e a moral e as relações entre ambos. Admitia o moço pensador português que a filosofia tinha como núcleo essencial a metafísica e a ética, entendendo que o objecto da primeira era o absoluto, concebido como ideia simples da razão e lei objectiva do pensamento, compreendida esta última como conjunto dos princípios irredutíveis do espaço, tempo, número, substância e causalidade, os quais se impõem ao espírito como condição do pensamento e razão suficiente da existência das coisas. Quanto à ética, no pen- —————————————— 41 Idem, p. 82 e «Sobre o valor dos estudos jurídicos», Pará, 1904, Inéditos e dispersos, org. Carlos Lopes de Matos, São Paulo, 1966. Cfr. A. Braz Teixeira Caminhos e figuras, ed. cit., pp. 172-182, «Kant e a reflexão filosófica», loc. cit. e Ética, filosofia e religião, Évora, Pendor, 1997, pp. 137-151. 196 António Braz Teixeira samento de Ferreira-Deusdado, teria como ideias essenciais as de liberdade, dever e progresso. No pensamento neocriticista do reflexivo português, o direito e a moral tinham uma base ou origem comum e visavam o mesmo fim, o destino da humanidade, considerado no seu conjunto e em cada um dos seus membros, não devendo, porém, essa comunidade de origem e de fim das duas ordens normativas fazer esquecer que há entre elas uma hierarquia, pois não só a liberdade moral é condição essencial da existência do direito como acima da ordem jurídica, que o pensador, coincidindo aqui com Ferrer Neto Paiva, considerava puramente negativa, se encontra a ordem moral, o bem moral positivo. Assim, a distinção fundamental entre estes dois domínios normativos diria respeito ao sentido que a liberdade tinha em cada um deles, pois a liberdade moral seria o poder que o homem tem de se autodeterminar e a liberdade jurídica seria o direito de desenvolver as próprias faculdades numa medida que não exclua o desenvolvimento da liberdade ou do direito de outrem, constituindo os seus limites a base e o objecto do direito como regra das relações sociais. Por outro lado, a lei moral revela-se na consciência, assumindo, por isso, um essencial carácter autónomo, ao passo que o direito tem por objecto o homem exterior e social e por missão garantir a cada um o que lhe deve pertencer, criar e manter a ordem necessária ao seu desenvolvimento físico, intelectual e moral e prevenir e reparar o mal resultante de ataques ou de infracções contra essa mesma ordem, na medida em que isso seja possível. Esta natureza social e heterónoma do direito, contraposta ao carácter individual e autónomo da moral, explicaria, segundo o pensador português, que aquele tivesse de fundar-se em princípios abstractos que se projectavam em regras gerais, contrariamente à moral que, frequentemente, depende de «convicções individuais que transfiguram algumas vezes as regras sociais em fórmulas mais ou menos importunas, cuja conveniência se não justifica suficientemente, quer em si mesma e de um modo geral quer em atenção a circunstâncias particulares». Daqui decorria o conceito de direito acolhido por Ferreira-Deusdado, segundo o qual ele seria um princípio puramente humano, deduzido da liberdade e da sociabilidade, que garante o reconhecimento e a protecção da pessoa, pelo recurso ao constrangimento físico exercido por meios materiais. Advertia, contudo, o pensador que da supremacia axiológica da moral sobre o direito resultava que, para além do direito positivo, diverso e variável no tempo e no espaço, há um direito ideal, inviolável, absoluto e universal, cujo princípio fundamental é a liberdade moral, a autonomia da pessoa42. —————————————— 42 Ensaios de filosofia actual, Lisboa, 1888 e Estudos sobre criminalidade e educação. Filosofia e antropologia, idem, 1889, pp. 9 e 39-94. Cfr. A. Braz Teixeira, História cit., pp. 162-165 e «Ferreira-Deusdado: da psicologia à ética», História do pensamento filosófico português, vol. IV, tomo I, Lisboa, Ed. Caminho, 2004, pp. 187-193. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 197 9. Se o primeiro momento da recepção da doutrina jurídica de Kant no mundo de língua portuguesa teve a sua origem em Portugal, através da obra de Vicente Ferrer Neto Paiva, numa ecléctica e não inteiramente conseguida síntese de kantismo e krausismo e se o segundo foi, fundamentalmente, brasileiro e se ficou devendo, acima de tudo, a Tobias Barreto, integrada, agora, a lição do filósofo germânico numa síntese, igualmente ecléctica e não isenta também de contradições internas, de cariz dominantemente monista e evolucionista que, num caso e noutro, cedo cederia, aqui, ao krausismo organicista e, ali, ao sociologismo positivista, o terceiro ciclo dessa recepção, iniciado no final da década de 30 da passada centúria, foi, verdadeiramente, luso-brasileiro, tendo como decisivos e incontestados protagonistas Luís Cabral de Moncada (1888-1974) e Miguel Reale (1910). Havendo feito a sua formação jurídica num ambiente profundamente marcado pela noção positivista e sociológica do direito que imperava nas escolas jurídicas de Coimbra e de São Paulo, os dois jusfilósofos procuraram nas correntes doutrinárias mais divulgadas na década de 30 do século XX os fundamentos para um regresso à consideração filosófica do direito, tendo encontrado no neo-kantismo, na expressão que lhe haviam dado ou estavam dando Rudolf Stammler, Gustav Radbruch e Giorgio Del Vecchio a via que melhor correspondia aos seus anseios especulativos, vindo, contudo, a combinar o seu formalismo axiológico com aspectos essenciais da fenomenologia de Husserl e com a ontologia de N. Hartmann, bem como com a atenção ao concreto humano propugnado pelas filosofias de sinal vitalista e existencial. Esta comum inspiração no neo-kantismo jurídico alemão explica as profundas afinidades e convergências que é possível surpreender no pensamento dos dois jusfilósofos, desde o modo de entender a natureza e o âmbito da filosofia do direito, até à importância atribuída à experiência jurídica, ao conceito de direito e à visão, eminentemente formal, do direito natural e da justiça e da essencial historicidade do respectivo conteúdo material. Assim, coincidem ambos, desde logo, em atribuir natureza filosófica e não jurídica à filosofia do direito, divergindo, contudo, algum tanto no modo de concebê-la, pois, enquanto o mestre paulista, aqui mais fielmente kantiano, pensa dever ser ela compreendida como o estudo crítico-sistemático dos pressupostos axiológicos, factuais e lógico-normativos da experiência jurídica, tendo, por isso, como tarefa primeira a crítica dessa mesma experiência e a determinação das condições que a tornam possível e como problema fundamentais os relativos ao conceito de direito e ao modo da sua determinação, à ideia de justiça e à sua integração no plano social e histórico43, o jusfilósofo português, se concordava com o seu colega brasileiro em que há uma incindível relação entre gnosiologia e ontologia —————————————— 43 Filosofia do Direito, 18ª ed., São Paulo, 1998, pp. 285 e segts. e Introdução à filosofia, idem, 1988, p. 210. 198 António Braz Teixeira jurídicas, que mutuamente se pressupõem, considerava de forma parcialmente diversa os problemas fundamentais da reflexão filosófica sobre o direito, os quais, em seu entender, se reconduziriam aos do conhecimento jurídico (gnosiologia jurídica), do ser do direito (ontologia jurídica) e do seu valor (axiologia jurídica), excluindo do seu âmbito as reflexões atinentes à sua integração histórico-social44. Quanto ao modo de conceber o direito e de considerar os problemas essenciais da ontologia jurídica, os dois autores coincidem em compreender o direito como objecto ou criação cultural, recusando, por isso, qualquer concepção meramente normativista, legalista ou sociologista do mundo jurídico e afirmando o seu sentido ou conteúdo axiológico e a sua referência constitutiva e fundante a valores, princípios ou ideais e acolhendo um conceito de direito como algo que se insere ou se projecta em mais de uma região da realidade. Se, desde a sua tese Fundamentos do direito (1940), Miguel Reale perfilha uma concepção tridimensional do direito como facto, valor e norma, que desenvolverá, primeiro, a partir de 1955, nas sucessivas edições da sua Filosofia do direito e, depois, de forma acabadamente sistemática, na Teoria tridimensional do direito, cuja primeira versão data de 1968, já Cabral de Moncada, que, logo em 1933, afirmava ser o direito tridimensional, por ser, simultaneamente, uma realidade social, uma realidade objectiva e um valor ou um complexo de valores jurídicos45, irá tomando sobre este problema diferentes posições, seja admitindo quatro dimensões na realidade jurídica – a empírico-natural, a histórico-cultural, a lógico-construtiva e a ético-valorativa46 – seja afirmando a tridimensionalidade do direito positivo, quer, seguindo a lição de Carl Schmitt, entenda ser ele, simultaneamente, norma, ordenamento e decisão47, quer faça coincidir essas suas três dimensões com a lei, o costume e a jurisprudência48, para, na última reflexão filosófico-jurídica que nos deixou, acentuando a componente criticista neo-kantiana que sempre estivera presente no seu pensamento, vir a pôr sérias reservas à expressão “dimensões do direito” por pensar ser o termo dimensão inadequado para expressar o mundo da existência e a essência de uma realidade tão subtil e polivalente como a do direito positivo, afirmando, ao mesmo tempo, que a pretensa tridimensionalidade dos objectos do mundo do dever-ser é mais categoria do sujeito pensante do que do objecto pensado, possuindo, por isso, mais valor semântico do que ôntico—————————————— 44 Filosofia do Direito e do Estado, Coimbra, vol. I, 1947, pp. 4 e segts. e vol. II, 1966, pp. 1 e segts. 45 Prefácio à trad. port. da Filosofia do direito, de Gustav Radbruch, pp. 20 e segts., recolhido em Estudos de Filosofia do Direito e do Estado, Lisboa, INCM, vol. II, 2004, pp. 267-286. 46 «O ensino da Filosofia do Direito», Boletim da Fac. Dir. Coimbra, vol. XIV, 1937-1938, pp. 163 e segts., recolhido nos Est. cits. na nota anterior, vol. II, pp. 355-358. 47 «Direito positivo e ciência do direito» (1944), Estudos de Fil. Dir. e do Est., vol. II, pp. 11-43. 48 Filosofia do Direito e do Estado, vol. II, pp. 115 e segts. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 199 -objectivo49. Assim, ao remeter para o domínio gnosiológico uma noção a que, durante mais de três décadas, atribuíra sentido ontológico, o mestre conimbricense veio a fazer uma evidente opção final a favor do idealismo gnosiológico que, desde os anos 30, havia procurado conciliar com um certo realismo ontológico de inspiração hartmanniana. 10. Divergindo, inicialmente, nas soluções que davam ao problema axiológico do direito e no modo como entendiam o direito natural, Cabral de Moncada e Miguel Reale acabaram por adoptar posições relativamente próximas quer quanto ao direito natural quer relativamente à justiça. O mestre conimbricense, de início, parecia propender para uma solução que, partindo da moderna filosofia dos valores e da fenomenologia, possibilitasse superar o empirismo e o formalismo neo-kantiano e chegar a uma concepção segundo a qual os valores seriam algo de absoluto, que antecede o homem e é superior e anterior ao fluxo das contingências temporais, se bem que a historicidade do homem o impeça de apreender um tipo paradigmático único, de valor absoluto e eterno, para qualquer lei positiva em concreto, pelo que apenas nos seria dado afirmar como primeiro princípio do direito natural a personalidade humana individual e a sua liberdade50. A posterior evolução do pensamento jusfilosófico moncadiano, acentuando a crescente presença que nele veio assumindo a sua inultrapassada origem neo-kantiana, acabou por conduzi-lo a uma concepção meramente formal de um direito natural de conteúdo variável. Assim, no seu modo final de pensar o direito natural, este não seria nem poderia ser «um tipo único, natural e eterno de instituições jurídicas, de contornos definidos ou de conteúdo material preciso, perfeitamente deduzível da razão e que se imponha ao legislador como modelo ou paradigma das suas construções normativas, válidas para todos os tempos e lugares», porquanto nem a razão humana, abstraindo das suas leis lógicas mais gerais, é tão universal como se pensa, «nem a natureza das coisas, afora aquilo que o próprio espírito nestas imprime, condicionando a sua compreensão por parte dele, é tão constante e imutável como se tem dito», o que seria patente na infindável diversidade de formas como foi interpretada e compreendida ao longo dos tempos. Deste modo, para Moncada, o direito natural seria constituído por um reduzido número de ideais éticos, de princípios morais de valor universal existentes a priori na consciência, bem como pela ideia e sentimento inato de justiça existentes desde sempre no espírito humano e que se revelam todas as vezes que entre a reali—————————————— 49 «O direito como objecto do conhecimento» (1969), Est. Fil. Dir. e do Estado, vol. II, pp. 109- -123. 50 «A caminho de um novo direito natural» (1945) e «O problema do direito natural no pensamento contemporâneo» (1949), nos Estudos Fil. Dir. e do Estado, vol. II, pp. 125-166. 200 António Braz Teixeira dade e aqueles ideais se depara qualquer antagonismo. Notava, porém, o mestre conimbricense que esses ideais éticos, como o neminem laedere, o pacta sunt servanda e o summ cuique tribuere, porque são mais formais do que materiais, na sua projecção sobre a multíplice diversidade da vida, recebem conteúdos concretos diversos, dando, por isso, origem a “direitos naturais” diferentes, do que resultaria, então, que o direito natural se apresentava com um conteúdo material múltiplo e variável, de acordo com as diversas situações históricas. Era, assim, nesta essencial historicidade do direito natural que Cabral de Moncada encontrava a explicação para o relativismo do respectivo conteúdo, pois se a sua forma lhe é dada pelos valores espirituais formais – cujo conhecimento o homem alcança ao elaborar racionalmente os dados obtidos através da experiência axiológica – a sua matéria ou conteúdo é representado pelos valores vitais mais concretos, em especial pela ética e moral dominantes numa determinada sociedade em determinada época. Deste modo, no pensamento jusfilosófico moncadiano da maturidade, vinha a ser na moral que o direito encontrava o fundamento da sua obrigatoriedade, sendo, por isso, os valores que a ele presidem, por um lado, a ideia formal de Justiça, e, por outro, o respeito pela personalidade humana e a ideia, igualmente formal, de mínimo ético51. 11. A uma solução próxima desta chegou desde cedo Miguel Reale, no que denomina o seu historicismo axiológico, segundo o qual os valores não constituem objectos ideais e modelos estáticos, mas algo que se insere na nossa experiência histórica, através de um nexo de implicação e polaridade. Para o mestre paulista, os valores não têm uma realidade ontológica, não existem em si e por si, mas sempre com referência a um sujeito, sendo, por isso relativa a sua objectividade, pois são algo que o homem realiza na história. Por outro lado, porque o homem é o único ente cujo ser consiste no seu dever-ser, o valor é dimensão do espírito humano, assim como a pessoa, como auto-consciência do espírito como valor, é o valor primordial ou o valor-fonte de todos os valores52. Embora sejam constitutivamente históricos e resultem de opções individuais ou subjectivas, os valores, ao serem acolhidos ou reconhecidos pela consciência colectiva, convertem-se em entidades ontológicas, assumindo carácter permanente e definitivo, tornam-se o que o filósofo brasileiro denomina invariantes axiológicas que, referidas ao mundo jurídico, constituem o que poderá designar-se por direito natural, que, para Miguel Reale, constitui uma realidade axiológica dinâmica, de fundamental conteúdo valorativo. —————————————— 51 Filosofia do Direito e do Estado, vol. II, pp. 137 e 288-293 e Lições de Direito Civil, 2ª ed., vol. I, Coimbra, 1954, pp. 27 e segts. 52 Cfr. A. Braz Teixeira, Ética, filosofia e religião, 1997, pp. 219-224. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 201 Assim, para Miguel Reale, o direito natural apresenta um carácter problemático-conjectural, constitui uma objectividade de tipo histórico, fundada na historicidade radical do homem e formada por um conjunto de normas decorrentes daquelas constantes axiológicas, as quais, ao serem acolhidas como ideias directoras universais da conduta ética e jurídica, vêm a estabelecer os limites da acção legislativa e a contribuir, de modo decisivo, para a configuração do direito positivo de cada sociedade e de cada época53. 12. Idêntico formalismo historicista caracteriza a teoria da justiça dos nossos dois jusfilósofos. Assim, para Cabral de Moncada, na consideração filosófica da justiça e para uma adequada exegese fenomenológica da sua essência eidética, seria necessário distinguir entre a justiça como ideia e a justiça como valor, ou seja, entre uma vivência transcendental necessária e absoluta da justiça e uma sua vivência contingente e relativa. Segundo o mestre conimbricense, a justiça como ideia seria um dos pensamentos contidos no conceito de direito54, o de equilíbrio e perfectibilidade ideal, o de ordem ideal e perfeita, o mesmo é dizer proporção e igualdade, pelo que justa seria, por isso, «a ordem que consista na igual atribuição a cada um, no seu ser e no seu fazer, daquilo que especificamente lhe couber ter ou fazer, qualquer que seja o critério, em concreto, para tal atribuição ser feita». Deste modo, a justiça como ideia, abstraindo do seu conteúdo axiológico, seria aquela máxima ordem inspirada no respeito dos fins próprios de cada um e do fim universal de todos, de forma que cada um e todos, todos e cada um possam ser e permanecer «centros de actos livres, convivendo e colaborando na edificação duma superior unidade de sentido e harmonia»55. No que respeita à justiça como valor, pensava Moncada que, se era inegável que, abstractamente considerada, a personalidade constituía a condição e fonte de todos os valores e se a justiça era o valor formal mais alto ou mais valioso dos contidos na ideia de direito, excedia, no entanto, a capacidade da razão humana determinar a priori, de uma forma absoluta e válida para todos os tempos e lugares, o conteúdo material da justiça e dos demais valores jurídicos, sendo-lhe unicamente possível sugerir, ou adivinhar, esse mesmo conteúdo, tendo em conta as verdades e os valores jurídicos formais susceptíveis de orientar a vontade do homem, cabendo depois, em concreto, à moral reinante em cada época e em cada —————————————— 53 Fundamentos do direito, São Paulo, 1940, cap. VIII, Teoria tridimensional do direito, São Paulo, 1968, cap. 5 e Direito natural/Direito positivo, São Paulo, 1984. 54 Para Moncada, o conceito de direito seria o «dum dever-ser valioso, como apelo dirigido às personalidades livres, para a realização dos fins individuais e sociais destas, dentro duma ordem objectiva, justa, de relações de interdependência entre elas». Filosofia do Direito e do Estado, vol. II, p. 44. 55 Ob. e vol. cits., pp. 43-44. 202 António Braz Teixeira sociedade e «à vida nas diferentes situações históricas» preencher o efectivo conteúdo material do valor justiça, a qual, portanto, se apresentaria sempre, necessariamente, com um conteúdo variável no tempo e no espaço, tal como o direito natural56. 13. Partindo do historicismo axiológico que é um dos elementos caracterizadores do seu pensamento filosófico, Miguel Reale sustenta, como o seu colega de Coimbra, que não é possível alcançar uma ideia absoluta de justiça, independente das conjunturas históricas, relativamente às quais actua «como valor básico condicionante, em irrenunciável conversibilidade dialéctica». Para o filósofo brasileiro, a essência da justiça consiste em possibilitar que os outros valores valham, apresentando-se, por isso, como algo inseparável das diversas experiências axiológicas da sociedade humana ao longo do tempo. Porque tem em vista assegurar uma composição a um tempo isenta e harmónica de interesses, a justiça está na base da convivência entre os homens, como condição de reciprocidade, compreendida esta como a igualdade possível entre os indivíduos e os grupos sociais, em função das diversas conjunturas históricas. Deste modo, a justiça é sempre expressão de igualdade, não absoluta e abstracta, mas de uma igualdade que, para o mestre paulista, consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, procurando que as desigualdades vão progressivamente diminuindo, pois que, na sua antropologia filosófica, o «ser do homem consiste no seu “dever-ser”». Daqui decorreria, então, na teoria realeana da justiça, que esta teria uma tripla dimensão, dado que, além de ser uma ideia transcendental, que condiciona universalmente a experiência jurídica enquanto tentativa incessante de realizar fins individuais e colectivos, seria também uma ideia cultural ou histórico-axiológica e uma ideia existencial, pois se correlaciona, essencialmente, com a ideia de pessoa, entendida não como um valor absoluto e incondicionado, mas como o valor-fonte de todos os valores, cuja existência subjectiva pressupõe a subjectividade alheia, realizando-se como intersubjectividade de que a justiça constitui a medida social. Assim, para Miguel Reale, convergindo novamente aqui com Cabral de Moncada, é impossível encontrar uma ideia universal e absoluta de justiça ou tentar reduzi-la a um conjunto de perspectivas ou requisitos formais, visto ela ser sempre inseparável da sua concreta projecção existencial na experiência histórico-social, marcando, nessa medida, a perene correlação entre liberdade e igualdade no processo dialógico da história, «visando realizar a plenitude da pessoa humana em —————————————— 56 Idem, pp. 290-292. Cfr. A. Braz Teixeira, Caminhos, ed. cit., pp. 183-201 e 232-253 e História da Fil. Dir. Port., pp. 186-196. Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro 203 sincronia com uma comunidade cada vez mais formal e substancialmente democrática»57. 14. Tal como vimos ter acontecido com o incompleto kantismo de Ferrer e Tobias Barreto, também o neo-kantismo de Moncada e Reale não encontrou sucessores nem directos continuadores58, havendo os seus mais próximos e relevantes discípulos preferido prosseguir a sua reflexão filosófico-jurídica no âmbito do neo-idealismo, seja de directa inspiração neo-hegeliana (Afonso Queiró), seja em diálogo criador com o pensamento de Giovanni Gentile (Renato Cirell Czerna e António José de Brito), enquanto os sequazes do tridimensionalismo jurídico e do historicismo axiológico do mestre paulista têm acolhido ou desenvolvido, acima de tudo, os elementos culturalistas e historicistas do seu pensamento, deixando na sombra os aspectos mais reconhecivelmente neo-kantianos da sua filosofia, como a sua ontognosiologia, a teoria da experiência jurídica ou a concepção acerca da natureza conjectural da metafísica, assim como outros aspectos igualmente individualizadores da contribuição especulativa realeana, como a dialéctica de implicação-polaridade, a ideia de autonomia da axiologia, a noção de invariantes axiológicas ou a sua antropologia filosófica59. —————————————— 57 Nova fase do direito moderno, São Paulo, 1990, pp. 37-42 e Teoria tridimensional do direito. Teoria da justiça, Fontes e modelos do direito, Lisboa, INCM, 2003, pp. 157-206. Cfr. A. Braz Teixeira, Caminhos cits., p. 232-253 e Ética, filosofia e religião, pp. 219-224. 58 A única excepção é o modesto ensaio de A. Brito Lhamas, O problema da justiça, Coimbra, 1939, que é mera glosa do ensaio de Del Vecchio sobre o mesmo tema, publicado em 1923. 59 Miguel Reale, Experiência e cultura, São Paulo, 1977, O direito como experiência, idem, 1968 e Verdade e conjectura, São Paulo, 1983 e Lisboa, Fundação Lusíada, 1996. Cfr. A. Braz Teixeira, Caminhos, ed. cit., pp. 183-201 e 232-253 e História, pp. 186-198. Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica à Arqueologia da Razão Prática Leonel Ribeiro dos Santos UNIVERSIDADE DE LISBOA Numa obra publicada há já mais de um quarto de século, Susan Meld Shell formulava esta declaração: «Eu considero a teoria kantiana do direito enquanto ela informa tanto a sua política como a sua filosofia como um todo. Um estudo do direito kantiano no contexto mais amplo do seu pensamento é necessário para clarificar a conexão essencial que existe entre a sua filosofia política e a sua filosofia como um todo, uma conexão que os críticos sentiram mas nunca exploraram adequadamente.»1 Já anteriormente alguns raros intérpretes haviam chamado a atenção para a importância que a política e o direito têm no pensamento kantiano, independentemente das páginas que a esses domínios foram expressamente dedicadas pelo filósofo. Num ensaio publicado em 1921, Bruno Bauch, contrariando a geral tendência da hermenêutica neokantiana da época, fazia notar que o direito não é para Kant meramente um domínio regional de reflexão, mas está indissoluvelmente ligado ao conceito kantiano de razão e à problematização crítica2. Mais de três décadas depois, na monografia que dedicou a Kant na série dos “Grandes Filósofos”, Karl Jaspers escrevia: «Tem de ser política a essência de uma filosofia cuja primeira e —————————————— 1 The Rights of Reason. A Study of Kant’s Philosophy and Politics, Toronto, 1980, p. 9. Retomo neste ensaio e explicito, de forma mais documentada, um tópico que já abordei em forma condensada na minha dissertação de doutoramento, Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1989), F.C.Gulbenkian/JNICT, Lisboa, 1994, pp. 591-599. 2 Bruno Bauch, «Das Rechtsproblem in der Kantischen Philosophie», Zeitschrift für Rechtsphilosophie, 3 (1921), pp. 1-26. FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 205-223 206 Leonel Ribeiro dos Santos última questão é a questão do homem»3. E Jean Lacroix declarava, em 1973: «Kant, no mais íntimo do seu ser e do seu génio, é o homem do direito»4. Característico nestas apreciações é, por um lado, o facto de elas não virem imbuídas de uma carga negativa e, por outro, o facto de elas obrigarem a uma reapreciação da totalidade da obra kantiana a partir de uma nova perspectiva. De facto, no âmbito das interpretações dominantes da obra de Kant o pensamento político e jurídico fora geralmente tido por secundário, ou mesmo como algo exterior ao projecto e realização da filosofia transcendental, não faltando até quem considerasse isso um domínio em que o pensamento kantiano teria permanecido irremediavelmente preso na sua fase dogmática e que seria ferido de insuficiente fundação transcendental5. É bem conhecido o desprezo que Schopenhauer manifestava pela obra tardia em que Kant expôs a sua doutrina do direito, considerando-a uma espécie de «paródia satírica da maneira kantiana de pensar» (eine satyrische Parodie der Kantischen Manier), tão fraca que não valia o desperdício de uma refutação (obgleich ich sie gänzlich missbillige, ich eine Polemik gegen dieselbe für überflüssig halte)6. Na melhor das hipóteses, considerava-se a filosofia kantiana do direito e da política como um corolário ou como a aplicação da parte prática da filosofia crítica. Não se suspeitava que pudesse dar-se a situação inversa, isto é, que fosse antes o direito o —————————————— 3 Kant. Leben, Werk, Wirkung, Piper, Wien/München/Zürich, 1956, p. 146. 4 Kant et le Kantisme, PUF, Paris, 1973, p. 12. 5 Assim acontecia em geral entre os neokantianos, como mostrou Gerd-Walter Küsters, Kants Rechtsphilosophie, WBG, Darsmtadt, 1988, p. 19: «Im Neukantianismus kaum direkte Untersuchungen zur Rechtslehre [Kants] angestellt worden sind. Vielmehr hat der Neukantianismus die negative Einschätzung der Rechtslehre dadurch vollendet, dass er das Argument des unkritischen Charakters der Rechtslehre, der ungenügenden transzendentalen Fundierung u.s.w. entscheidend verschärft hat. Der Neukantianismus entwarf seine Rechtsphilosophie ohne den Rekurs auf die Rechtslehre [Kants].» Sobre este tópico, veja-se também: José Lamego, «’Facticidade’ e ‘validade’ do Direito: a matriz da filosofia do Direito crítico-transcendental», in Leonel Ribeiro dos Santos (coord.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 601-609. Ao debate em torno do carácter crítico ou dogmático da filosofia do direito de Kant andava associado o debate acerca da importância dessa parte da obra kantiana e do respectivo desenvolvimento. Veja-se: Hariolf Oberer, «Ist Kants Rechtslehre kritische Philosophie? Zu Werner Buschs Untersuchung der Kantischen Reschtsphilosophie», Kant-Studien, 74, 1983, pp. 217-224. Trata-se de uma recensão crítica da obra de Werner Busch, Die Entstehung der kritischen Rechtsphilosophie Kants 1762-1780 (Kant-Studien-Ergänzungsheft Nr. 110, Walter de Gruyter, Berlin/New York, 1979), mas faz referência também às obras de Christian Ritter, Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen (1971) e Josef Schmucker, Die Ursprünge der Ethik Kants in seinen vorkritischen Schriften und Reflexionen (Meisenheim am Glan, 1961) e ainda à obra de Friedrich Kaulbach, Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants und ihrer transzendentalen Methode (Würzburg, 1982) e, por fim, ao ensaio de K.-H. Ilting, «Gibt es eine kritische Ethik und Rechtsphilosophie Kants?», Archiv für Geschichte der Philosophie, 63, 1981, pp. 325-345. 6 A. Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, Anhang: Kritik der Kantischen Philosophie, ed. Ph. Reclam, Leipzig, 1892, vol. I, p. 669. Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 207 verdadeiro lugar de origem e a fonte de inspiração de todo o idealismo crítico e da filosofia transcendental e de algum modo o seu molde. Nas últimas quatro décadas a situação alterou-se completamente e a filosofia kantiana do direito viu por fim reconhecida a sua importância e pode mesmo dizer-se que se deu uma verdadeira redescoberta dessa área por parte dos intérpretes da obra kantiana. E esta redescoberta não conduziu apenas ao reconhecimento da inscrição desse domínio no programa global da revolução do modo de pensar proposto pela filosofia transcendental, como veio igualmente pôr em evidência a profunda e essencial determinação jurídica e até política do pensamento kantiano no seu conjunto. A filosofia kantiana do direito deixou de ser vista como um domínio secundário onde veio a ser tardiamente aplicado o método da filosofia crítica. Ela revela-se antes como o domínio onde a filosofia kantiana tem o seu ambiente natural e de onde colhe os princípios e pressupostos que desde o início dirigem o seu próprio trabalho de reflexão. Os que a partir dos anos 60 do século passado se aplicaram a estudar a filosofia política e jurídica de Kant libertos dos pressupostos do neokantismo foram os primeiros a dar-se conta da importância que esse domínio tinha para se aceder a uma compreensão de todo o programa da filosofia kantiana. Georges Vlachos, na sua obra sobre o pensamento político de Kant, punha em destaque o papel das ideias morais e políticas na elaboração da filosofia crítica, e escrevia: «Pensa-se geralmente que o idealismo kantiano assenta no seu conjunto sobre a distinção entre o entendimento e a razão, distinção anunciada na Dissertação e executada na Crítica da Razão Pura. O próprio Kant apresenta o seu idealismo político como um aspecto particular do seu idealismo noológico. Mas o percurso do pensamento kantiano parece-nos ser o inverso.»7 E o mesmo autor sugere que o pensamento político e jurídico de Kant se constituiu muito antes que estivessem apuradas as noções básicas da filosofia transcendental (nomeadamente a idealidade do espaço e do tempo) e cita Gerhard Lehmann, segundo o qual, «no domínio da filosofia do direito, Kant tinha já atingido entre 1760 e 1770 as concepções que viriam a ser incorporadas mais tarde no seu sistema sob a forma de consequências da sua crítica da razão teórica, mas que seria impossível deduzir partindo unicamente desta.»8. Por sua vez, Simone Goyard-Fabre, numa obra dedicada ao estudo da filosofia kantiana do direito, concluía que «o fim da metafísica ontológica e a formulação do problema crítico correspondem a uma inspiração profundamente jurídica.»9 —————————————— 7 Georges Vlachos, La Pensée Politique de Kant, Paris, 1962, pp. 19-20. 8 Ibidem. Segundo Werner Busch, por volta de 1772 dar-se-ia a fundação crítica da filosofia kantiana do direito sobre o conceito de liberdade, conceito sobre que assentam também as doutrinas centrais da Crítica da Razão Pura e também a Doutrina do Direito da tardia Metafísica dos Costumes. 9 Kant et le problème du droit, Paris, 1972, p. 9. 208 Leonel Ribeiro dos Santos Aquilo que nestes intérpretes era ainda uma vaga percepção torna-se cada vez mais uma evidência. E, assim, sobretudo a partir da década de 80, ao mesmo tempo que se ia descobrindo a filosofia kantiana do direito e do Estado10, advertia-se também a importância que têm os procedimentos jurídicos e a linguagem metafórica jurídica e jurídico-política em todo o âmbito do pensar kantiano, onde quer que este se exercesse: na filosofia teorética, na filosofia prática, na filosofia da religião, na filosofia estética. Depois dos escritos kantianos de Friedrich Kaulbach já quase não haveria necessidade de chamar a atenção para a importância da linguagem e metafórica jurídicas na filosofia kantiana11. Não seria mesmo necessário insistir no facto de que o conceito kantiano de razão e de filosofia está cunhado num molde jurídico. Resta, porém, ainda amplo campo de investigação, não só para determinar o contexto filosófico e o modo exacto como tal cunhagem se deu, mas também para tentar averiguar a eficácia desse molde noutros domínios do pensamento, nomeadamente na filosofia da religião. O paradigma jurídico (com tudo o que ele implica de conceitos, de linguagem, de procedimentos, de cenários) revelar-se-ia então melhor como um dos elementos estruturais e estruturantes que asseguram a unidade de inspiração e de expressão do pensamento kantiano e apareceria como a marca inconfundível do modo kantiano de pensar. Num outro momento tentei identificar o modelo político e jurídico que preside assim tão profusa e profundamente à construção e exposição do pensamento kantiano12. Tentei mostrar que não é o direito em geral, nem o sistema jurídico —————————————— 10 Veja-se: Wolfgang Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Recht- und Staatsphilosophie, Berlin, 1983; Georg Geismann, Freiheit und Herrschaft. Die Prinzipien des Vernunftrechts, Würzburg, 1983; Reinhard Brandt, «Das Erlaubnisgesetz, oder: Vernunft und Geschichte in Kants Rechtslehre», in Idem (ed.), Rechtsphilosophie der Aufklärung, Berlin, 1984. 11 Veja-se, nomeadamente: Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants (Das transzendental-juridische Grundverhältnis in Vernunftbegriff Kants», pp. 111 sgs: «Die von Kants praktizierte Vernunft wie auch sein Begriff von Vernunft in theorethischer und praktischer Gestalt von Grund aus einen Charakter tragen, der durch juridische Kategorien zu beschreiben ist. … Es ist bemerkenswert, dass an mehreren Knotenpunkten des Kantischen Gedankengeflechts Wendungen der Rechtssprache begegnen…. Das Auftreten juridischer Denk-und Sprechfiguren an den Punkten des praktischen Gedankenganges, an denen wesentliche Begriffe des transzendentalen Konzepts zur Sprache gebracht werden, legt die Vermutung nahe, dass diese für die Entwicklung und Darstellung der Transzendentalphilosophie nicht nur metaphorische Funktion haben, dass sich in ihnen vielmehr die Figuren gedanklichen Handelns darstellen, die den transzendental-philosophischen Ansatz von seinem Ursprung her eigentümlich sind (p. 112) … eine gemeinsame und identische Wurzel von Erkenntnisvernunft und Rechtvernunft (p. 113) nicht die Identität von theoretischer Vernunft und Rechtsvernunft behauptet wird: vielmehr hat die Behauptung den Inhalt, dass sich bei der transzendental-philosophischen Fundierung beider eine gemeinsame Wurzel zeigt.» (pp. 113-114) e Philosophie als Wissenschaft. Eine Einleitung zum Studium von Kants «Kritik der reinen Vernunf»t in Vorlesungen, Gerstenberg Verlag, Hildesheim, 1981, 10. Vorlesung: «Juridischer Vernunftbegriff». 12 Veja-se: Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, pp. 605-631: «A instauração republicana da razão»; e também o meu ensaio «A ‘Revolução da Razão’ ou o Paradigma Político do Pensamento Kantiano», in Leonel Ribeiro dos Santos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994, pp. 69-84. Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 209 prussiano, como por vezes o insinuaram alguns dos que foram sensíveis à recorrente linguagem jurídica de Kant, mas a liam apenas como sintoma de um vício. O paradigma jurídico que preside à filosofia kantiana, ao ponto de toda ela, mesmo a teorética, estar construída no ambiente de uma grande alegoria político-jurídica, é aquele mesmo que vem a ser exposto na tardia Doutrina do Direito (1797). Ou seja, antes de expor a sua concepção da vida política regida pelos princípios do republicanismo – por certo, os de uma respublica noumenon – Kant desenvolveu toda a sua filosofia teorética na Crítica da Razão Pura no elemento de uma complexa alegoria expondo a natureza e o funcionamento da razão como se efectivamente de um estado republicano ideal se tratasse. Os elementos dessa alegoria, dispersos por toda a obra, encontram-se organicamente expostos sobretudo no capítulo da Segunda Parte da obra intitulado «A disciplina da razão pura no que respeita ao seu uso polémico», o qual nos dá uma chave para a leitura da própria Crítica e de todo o empreendimento filosófico de Kant. Também a tardia Doutrina do Direito constitui uma espécie de chave de código de todo o seu pensamento que o filósofo só no fim do seu percurso filosófico nos entrega. É como se Kant não necessitasse realmente de escrever expressamente a sua filosofia do direito, nem de delinear em alguns pequenos ensaios os contornos da sua filosofia política e jurídica, pois tanto uma como a outra estavam já inscritas suficientemente na letra e no espírito da sua filosofia da razão pura. Tantas são na verdade as homologias existentes entre a filosofia kantiana do direito e da política e a filosofia transcendental que somos levados a concluir que uma e outra decorrem de uma mesma estrutura mental e exprimem um mesmo modo de pensar. Tal como não tem já cabimento considerar a filosofia do direito apenas como mera aplicação do método transcendental a um campo específico de problemas, assim também não tem sentido falar de uma transferência de modelos políticos ou jurídicos para o domínio da filosofia lógica transcendental. Uma e a mesma é a fonte da razão e do direito. Com mais razão do que de qualquer outra, se pode dizer da metafórica jurídico-política que, sendo metáfora, ela é simultaneamente muito mais do que metáfora. Pois em nenhum outro caso a metáfora diz tanto a coisa ou a causa mesma da razão como o faz aqui. Aqui verdadeiramente a forma é conteúdo e o conteúdo é forma. Com alguma frequência, mesmo os que advertem a presença da linguagem jurídica ou política na filosofia kantiana são levados a pensar que o que o filósofo faz é transferir para a sua filosofia um determinado modelo que se encontrava disponível no seu contexto histórico-filosófico de pensamento. Assim, a recorrência da linguagem política seria devida à importância que a política assumira nas últimas décadas do século XVIII, generalizando-se o uso de categorias tiradas do campo político para falar de qualquer assunto relevante e até mesmo de assuntos 210 Leonel Ribeiro dos Santos filosóficos, estéticos e literários13. O paradigma republicano seria, por sua vez, devido à decisiva influência que sobre Kant exerceram os escritos de Rousseau. A tão estrategicamente importante noção de autonomia, em torno da qual gira toda a filosofia moral kantiana, seria importada do contexto da concepção do estado autonómico moderno, embora recentemente Jerome Schneewind tenha contrariado um pouco esta interpretação na sua obra sobre a moral kantiana, declarando que se trata nisso de uma verdadeira «invenção» por parte de Kant: «a moral como autonomia é inteiramente nova na história da filosofia»14. A doutrina da tripartição dos poderes seria tomada de Montesquieu. E assim por diante. Não se trata, evidentemente, de negar essas dívidas, algumas delas bem documentáveis pelos próprios textos. Trata-se sim de tentar compreendê-las melhor. E parece-me que a hermenêutica da dívida ou da influência não explica suficientemente o que está realmente em causa. A via que quero aqui propor é diferente. Trata-se de tentar captar, por assim dizer, in nido o que poderia explicar o alcance e a amplitude da recorrência da metafórica e das categorias jurídicas e políticas na filosofia kantiana. Segundo me parece e tentarei mostrar, essa amplitude de uso não ocorre por mera transferência de um paradigma exterior à razão para expor o trabalho próprio desta, ou por um aproveitamento oportunista colhido na literatura filosófica de uma época em que os problemas políticos se impuseram poderosamente também à reflexão dos filósofos, mas deve-se antes a um aprofundamento da própria natureza da razão, a qual, escavando até às suas fontes e fundamentos, aí se surpreende configurada como tal. Para mostrar isso acompanharei Kant nalguns dos momentos da sua obra onde ele procede ao que se poderia chamar uma explanação fenomenológica da génese da razão prática, explanação essa mediante a qual se chega também à arqueologia da razão – ao seu ponto ou estrato mais fundo – e, ao fazê-lo, encontra-se aí o que se poderia considerar como o fundo arqueológico comum da racionalidade humana, pelo menos tal como ele se objectivou nas mais importantes instituições dos povos europeus ou indo-europeus15. Seguirei, em primeiro lugar, o fio condutor da etimologia. Em Leis IV, 714a (mas também em Leis XII, 957c e noutros lugares de outras suas obras), Platão sugere expressamente a comum origem e o parentesco dos vocábulos gregos nous ou noos (intelecto ou razão) e nomos (lei), de que a proximidade gráfica e fónica ainda guardaria o vestígio e a memória: uma razão, portanto, que se exprime quali—————————————— 13 Veja-se Hans-Wolf Jäger, Politische Kategorien in Poetik und Rhetorik der zweiten Hälfte des 18. Jahrhunderts, J.B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, Stuttgart, 1970. 14 Jerome B. Schneewind, The Invention of Autonomy. A History of Modern Moral Philosophy, Cambridge University Press, 1998; trad. franc.: L’invention de l’autonomie. Une histoire de la philosophie morale moderne, Gallimard, Paris, 2001, p. 543. 15 Das Ende aller Dinge, Ak VIII, 328-329; Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, Ak VI, 140-141; Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 359-360. Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 211 ficadamente como ordem política e jurídica. O mesmo se passa na língua latina, onde ratio (do verbo reor) diz a regra, a ordem, a justa proporção, e também o juízo e o bom senso. A língua alemã guarda igualmente memória desse originário parentesco entre a razão e a lei. Já advertido isto por Giambatista Vico16, foi Herder quem lhe deu voz e, significativamente, no contexto da sua agressiva meta-crítica da crítica kantiana da razão, discutindo precisamente a falta de pertinência da célebre metáfora kantiana do «tribunal da razão», que ocorre no Prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura. Segundo o meta-crítico, é a razão que é a instância crítica, e não a Crítica que se pode arvorar em instância crítica da razão! Só que Herder não se dá conta de que o verdadeiro autor da obra não é Kant mas a própria razão, e que nela se trata verdadeiramente de uma auto-crítica da razão em que esta é simultaneamente objecto e sujeito da crítica. Quanto à parte que nisso tem o filósofo enquanto tal, vale a epígrafe baconiana posta à cabeça da obra: «De nobis ipsis silemus…». No seguimento da sua crítica à Crítica, escreve Herder: «A língua alemã dispõe de pregnantes palavras tomadas do domínio forense, muitas das quais são pertinentemente aplicadas às nossas faculdades da alma.». E cita, designadamente, o termo Vernunft, que significaria, no alemão antigo, o «exame ou o interrogatório judicial» (in der alten Sprache hiess das gerichtliche Vornehmen und Verhor, Vornunft, Vernunft). E por isso se pode dizer que «a razão é o nosso tribunal supremo» (Vernunft ist unser höchstes Gericht). Da mesma forma, urtheilen (julgar) teria significado originariamente ertheilen: dar a cada um a sua parte, após ponderação justa (Urtheilen ist ertheilen, nach richtiger Abwägung jedem seinen Theil geben); por conseguinte, no mesmo sentido da ratio latina como proportio. O mesmo Herder refere ainda o originário significado forense de outras expressões de amplo uso em filosofia, como Sache (coisa/causa), Ding e seus derivados (bedingen, bedingt, unbedingt), e faz notar que da correcta compreensão jurídica destes termos depende a compreensão daquilo que no uso da razão se designa por «condicionado» (bedingt) ou «incondicionado» (unbedingt). Aparentemente sem conhecer estas observações de Herder, a mesma originária significação jurídica, não já da Vernunft, mas do Verstand, foi também mais recentemente apontada por Hans-Georg Gadamer17. Não sabemos se Kant teria tido de facto presente este sentido originário de termos dos quais fez amplo uso mesmo na sua filosofia teorética. A julgar, porém, pela consciência que revelou ter das potencialidades e particularidades da língua alemã, pela sensibilidade que em tantos outros casos demonstrou ter para apreender o sentido originário dos conceitos filosóficos e pelo consequente esforço por restaurá-los na sua primeira e genuína significação, podemos presumir que também —————————————— 16 17 La Scienza Nuova, Rizzoli, Milano, 1963, vol. I, p. 112. «Der juristische Sinn von Verstehen, d. h. das Vertreten einer causa vor Gericht, scheint die Urbedeutung zu sein.» Wahrheit und Methode, Tübingen, 1975, p. 246. 212 Leonel Ribeiro dos Santos não lhe terá passado despercebido o significado primeiro do próprio conceito de razão, do qual a sua filosofia pretende ser, ao fim de contas, a mais cabal explicitação18. Mas apreciada a partir deste ponto de vista, a linguagem e a metafórica jurídicas da filosofia kantiana ganhariam um alcance hermenêutico inesperado, na medida em que, pela identificação de alguns vestígios, poderíamos chegar a reconstruir o que se poderia chamar a arqueologia da razão. O fio condutor de algumas etimologias poderia assim conduzir-nos às primeiras sedimentações da razão em instituições e formas de representação, nas quais podemos, em particular, captar a génese, a estrutura e o funcionamento originariamente jurídicos da razão prática. De resto, o próprio Kant ensaiou esta estratégia de arqueologia linguística a propósito dos conceitos morais presentes nas mais antigas tradições sapienciais e religiosas conhecidas, interpretando essa comunidade como reveladora de uma comum origem da civilização humana e, em última instância, uma prova da unidade da razão humana naquele domínio que lhe é verdadeiramente essencial19. Giambatista Vico, para quem a língua dos povos antigos, nomeadamente dos itálicos, constituía o texto mais autêntico da sua sabedoria, o sedimento da sua experiência e o testemunho fiel dos seus costumes, reputava por muito sérias as provas filológicas extraídas da língua latina, designadamente as respeitantes aos conceitos jurídicos20. Era assim que lia, na identidade de raiz de ius (direito) e de Ious (Júpiter), a originária coalescência da justiça e da piedade, do direito e da religião, como base da concepção romana da existência21. Esta cumplicidade de origem entre o direito e a religião, também sugerida no final do século XIV pelo humanista florentino Coluccio Salutati22, e que viria a ser confirmada e reforçada, na segunda metade do século XX, pela etimologia comparada das línguas indo-europeias23, era bem presente aos antigos escritores latinos. Assim, Cícero, ao —————————————— 18 Sobre este ponto veja-se o meu ensaio: «Kant e a filosofia como análise e reinvenção da linguagem metafísica», in Nuno Nabais (org.), Vieira de Almeida (1888-1988). Colóquio do Centenário, Lisboa, 1991, pp. 199-223, retomado in Leonel Ribeiro dos Santos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994, pp. 39-67. 19 Veja-se o meu ensaio «O eurocentrismo crítico de Kant», in A Ideia Romântica de Europa – novos rumos, antigos caminhos, Colibri, Lisboa, 2002, pp. 168-170. 20 Giambatista Vico, Scienza nuova, vol. I, p. 112. 21 Ibidem, vol. I, p. 33: «Giove (dal quale, appo i latini chiamato Ious, ne fu anticamente detto ious il gius, che poi, contratto, si disse “ius”, onde la giustizia appo tutte le nazioni s’insegna naturalmente con la pietà». 22 Coluccio Salutati, De nobilitate legum et medicine, ed. bilingue Latim-Alemão, trad. de P.M.Schenkel, Wilhelm Fink, München, 1990, p. 160: «Ius igitur, quod a iuvando dicitur vel forsitan a Iove.» 23 Veja-se nomeadamente Émile Benveniste, Le Vocabulaire des Institutions Indo-européennes, Minuit, Paris, 1969, vol.2, p. 119. Depois de ter reconstituído a arqueologia comparativa dos termos ius e iurare, Benveniste conclui: «En restituant à ius sa valeur pleine telle que la précisent à la fois les correspondances étymologiques et la dérivation latine, nous remontons au-delà du “droit”. C’est d’un concept qui n’est plus seulement moral, mais d’abord religieux que le mot tire sa valeur: la notion indo-européenne de conformité à une règle, de conditions à remplir pour que l’objet (chose ou personne) soit agréé, qu’il rem- Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 213 esclarecer o que se entende por juramento (ius iurandum), diz: «O juramento é uma afirmação religiosa; o que prometeres afirmativamente como se Deus fosse testemunha, deve ser mantido…. Aquele que viola o juramento, esse viola a Fé, que e os nossos maiores quiseram que estivesse ao lado de Júpiter no Capitólio.»24 Também Kant está consciente desta comum origem do direito, da moral e da religião. E apoia a informação, colhida provavelmente na leitura directa da citada obra de Cícero, com sugestivas analogias linguísticas. Procedendo como um genuíno comparatista do século XX (um Émile Benveniste ou um Georges Dumézil), faz notar que a raiz da palavra mediante a qual se designa no latim o direito – ius – e o juramento – iurare – se encontra também nas palavras por meio das quais vários povos antigos nomearam Deus. Assim se lê numa passagem do Opus postumum: «Juro, i. é, afirmo tomando Deus por testemunha. Com isso eu não sei se Deus existe [;] pura e simplesmente: eu aceito na minha consciência que se falto à verdade sou um mentiroso. Jurare é Ju orare (Ju é Jehova, Jahi, Júpiter, perante o qual o íntimo é descoberto [,] o perscrutador do coração).»25 Como já noutra ocasião referi26, esta passagem permite-nos reconhecer o contexto de onde recebe o seu significado o tópico kantiano da veracidade, como condição sem a qual nem há contratos, nem direito, nem moralidade, nem religião, nem filosofia – numa palavra, sem a qual não há razão que subsista. Mas nesta passagem surpreende-se também a mais genuína noção kantiana de Deus: «Deus é o perscrutador universal do coração e, ao mesmo tempo, o todo-poderoso que, na cadeira de juiz, recompensa e castiga», como se lê num outro passo do Opus postumum 27. —————————————— plisse son office et qu’il ait toute son efficace: yoh en védique, yaožda – en avestique, sont imprégnés de cette valeur. D’autre part, nous avons constaté la liaison, dans le vocabulaire latin, par l’intermédiaire de iurare, entre ius et sacramentum. Ainsi, les origines religieuses et morales du droit se marquent clairement dans les termes fondamentaux.». Noutro passo da mesma obra (vol. 1, p. 121), a investigação conduzida a propósito da fides vem confirmar a indicação ciceroniana acima citada. «Dans ces deux termes (fides/credo) on rejoint des notions où le juridique ne diffère pas du réligieux: tout le vieux droit n’est qu’un domaine particulier régi par les pratiques et les règles qui baignent encore dans le mystique.» 24 «Est enim ius iurandum affirmatio religiosa; quod autem affirmate quasi Deo teste promiseris, id tenendum est… Qui ius igitur violat, is Fidem violat quam in Capitolio vicinam Iovis… maiores nostri esse voluerunt.» De Officiis, III, 28-29. 25 «Juro: i.e. per deum testem affirmo. Dadurch weiss ich nicht dass Gott sey schlechthin: Ich nehme es auf mein Gewissen, wenn ich unwahr spreche ein Lügner zu heissen…. Jurare ist Ju orare (Ju ist Jehova, Jahi Jupiter, vor dem das Innere aufgedeckt ist der Herzens Kündiger).» Opus postumum, Ak XXI, p. 148. Veja-se a confirmação desta intuição kantiana por Émile Benveniste, ob.cit,, vol. 2, p. 111. 26 Veja-se o meu ensaio «Kant e a ética da linguagem», in M. J. do Carmo Ferreira (coord.), A Génese do Idealismo Alemão, CFUL, Lisboa, 2000, p. 81. 27 «Gott ist der allgemeine Herzenskündiger und zugleich der allgewältig vor dem höchsten Richterstuhl belohnt u. bestraft.» Opus postumum, Ak XXI, p. 147. 214 Leonel Ribeiro dos Santos Compreenderemos melhor este ponto verdadeiramente nuclear do pensamento kantiano se atendermos ao desenvolvimento que o filósofo faz do tema da consciência moral (Gewissen) como sendo um «juiz inato» (angeborne Richter), «a consciência de um tribunal interior no homem» (das Bewusstsein eines inneren Gerichtsfoffes im Menschen… ist das Gewissen)28. Poderia tomar-se isso apenas como resíduo de um motivo tradicional da teologia e filosofia moral, sobretudo daquela que assenta na experiência da consciência da culpa e, por conseguinte, na consciência da lei e da sua transgressão, como é o caso na moral judaica e cristã, mas, para além da recorrência do tema, significativa é a explicitação a que Kant o submete. Trata-se verdadeiramente da experiência mais originária da razão, aquela onde ela precisamente se surpreende como prática, aquela de onde promana, depois, toda a arquitectura da filosofia crítica, se levarmos a sério a declaração do filósofo numa das suas reflexões segundo a qual «a origem da filosofia crítica é a moral» (Ursprung der critischen Philosophie ist moral)29. É a consciência do dever (ou do imperativo categórico) que constitui realmente o Faktum der Vernunft, o Faktum realmente originarium. E esse Faktum desencadeia um processo ou revela-se como um processo íntimo que tem a sua expressão externa no processo judicial. Se há na obra de Kant domínio onde a metáfora do tribunal seja abundante e pregnante de significado é sem dúvida este e sobretudo aqui vale dizer que a metáfora é muito mais do que metáfora, que não é o tribunal interior que é pensado por analogia com o exterior, mas que, ao contrário, é o tribunal exterior que é moldado à imagem do forum que é a consciência moral30. Podemos acompanhar o explícito desenvolvimento deste tema por parte de Kant pelo menos desde as Lições de Ética, proferidas entre os anos 1775 e 1785, até às páginas do Opus postumum, com ecos também em muitas páginas de A Religião nos limites da mera razão (1793). Mas há um lugar onde toda a substância do —————————————— 28 Metaphysik der Sitten, Tugendlehre, Ak VI, p. 438. 29 Lose Blätter zu den Fortschritten der Metaphysik, Ak XX, 335. 30 É a esta conclusão que chega também o único estudo que conheço directamente dedicado a este tópico, o ensaio de Fumiyasu Ishikawa, «Das Gerichtshof-Modell des Gewissens», Aufkärung 7 (1992), pp. 43-55: «…tritt das Gerichtshof-Modell des Gewissens in Wahrheit gar nicht als Gleichnis auf, wie man üblicherweise annimmt… Umgekehrt kann man sich hier gegen das übliche Verständnis des Gewissens als eines Gerichtshofes, das es als ein blosses Gleichnis ansieht, sogar auf ein Beispiel berufen, das dazu fähig ist, zu erweisen, dass gerade der innere Gerichtshof der Ursprung des äusseren sein kann… dies bekündet ausdrücklich, dass der Anhaltspunkt des äusseren, weltlichen Gerichtshofs letzten Endes nichts anderes als das Gewissen als innerer Gerichtshof ist. Insofern kann man mit Recht sagen, dass der äussere Gerichtshof, als Entäusserungsform des inneren analog zu diesem betrieben wird und zumindest nicht umgekehrt.» (p. 48). Veja-se também: Nestore Pirillo, «Il giuramento e il tribunale della coscienza», in Idem (ed.), Kant e la Filosofia della Religione, Istituto di Scienze Religiose in Trento, Trento, 1996, pp. 81-111; Johannes Strangas, «I rapporti tra fondamentalismo religioso ed esperienza giuridica in quanto modo di emergenza del problema dei rapporti tra morale e diritto», Rivista Internazionale della Filosofia del Diritto (Milano), 5, 1998, pp. 418-461. Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 215 tópico se explana e em toda a sua dimensão. Trata-se do parágrafo 13 da Doutrina da Virtude, a Segunda Parte da Metafísica dos Costumes, publicada em 1797. O contexto de inscrição e a linguagem variam nessas obras que correspondem a épocas e a programas diferentes, mas o problema é o mesmo. Nas Lições de Ética, ele surge sob a epígrafe do tópico da imputação das acções e da consciência moral e o contexto em que se expõe é o de um forum ou tribunal que tem competência para julgar as acções com força jurídica. Segundo o filósofo, para além do forum externum (o tribunal civil que julga as acções exteriores dos homens), há o forum internum ou forum conscientiae, ao qual está ligado o forum divinum, e a tal ponto que o forum divinum não é outra coisa senão o próprio forum conscientiae. O mote pode tê-lo colhido de Alexander Gottlieb Baumgarten, cuja obra Initia philosophiae practicae primae Kant usava como manual para os seus cursos universitários de filosofia moral31. Mas aquilo que no texto do professor de Halle era um breve parágrafo sofre no professor de Königsberg um desenvolvimento considerável32. A consciência moral é apresentada por Kant não apenas como uma faculdade que o homem pode usar ao sabor da sua vontade, mas é descrita como um instinto (Instinkt) ou impulso (Trieb), com o que se pretende sublinhar o seu carácter originário, imediato e absoluto. É aqui bem audível o eco das convicções que Rousseau coloca na boca do seu Vigário de Sabóia: «Conscience! Conscience! Instinct divin, immortelle et céleste voix; guide assuré d’un être ignorant et borné, mais intelligent et libre; juge infaillible du bien et du mal, qui rends l’homme semblable à Dieu, c’est toi qui fais l’excellence de sa nature et la moralité de ses actions; sans toi je —————————————— 31 Alexander Gottlieb Baumgarten, Initia philosophiae practicae primae, Halle 1760, § 182 (reimpressão in: Kant’s gesammelte Schriften, Ak XIX, p. 121 sgs.). Uma outra fonte do tema, porventura muito mais importante ainda do que Baumgarten, é Rousseau e o desenvolvimento que ao tópico da conscience ele dá, nomeadamente na Parte IV do Émile (Profession de Foi du Vicaire Savoyard) mas também noutras obras, contrapondo a conscience às lumières de la raison e interpretando-a como um «sentimento inato», um «instinto divino» (v. infra). 32 Há quem considere estranho que o tópico da consciência (Gewissen) não mereça especial desenvolvimento nos principais escritos kantianos de filosofia moral, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática. A razão dessa ausência explica-se, a meu ver, pelo facto de a consciência moral (Gewissen) ser para Kant um outro modo de dizer o «sentimento moral» e a «razão prática» no seu aspecto subjectivo, ou a consciência subjectiva da lei e do dever, como se pode ver nesta passagem da Introdução aos Fundamentos Metafísicos da Doutrina da Virtude: «A consciência moral é a razão prática mostrando ao homem o seu dever em cada caso concreto de uma lei, absolvendo-o ou condenando-o» (Gewissen ist die dem Menschen in jedem Fall eines Gesetzes seine Pflicht zum Lossprechen oder Verurtheilen vorhaltende praktische Vernunft.) (Ak VI, 400). No mesmo contexto se afirma o carácter «originário» (não «adquirido») da consciência moral: «A consciência moral não é algo que possa adquirir-se… mas todo o homem, como ser moral, tem-na originariamente em si.» (Eben so ist das Gewissen nicht etwas Erwerbliches…; sondern jeder Mensch, als sittliches Wesen, hat ein solches ursprünglich in sich). Esse carácter originário e não adquirido da consciência moral era sublinhado nas Lições de Ética chamando à consciência um «instinto» ou um «impulso». Da relativamente escassa literatura sobre o tema, veja-se: Rudolph Hofmann, Die Lehre von dem Gewissen, Leipzig, 1866; Wilhelm Wohlrabe, Kants Lehre vom Gewissen, Gotha, 1880. 216 Leonel Ribeiro dos Santos ne sens rien en moi qui m’élève au-dessus des bêtes, que le triste privilège de m’égarer d’erreurs en erreurs à l’aide d’un entendement sans règle et d’une raison sans principe.»33. Mas ao atribuir a consciência ao entendimento (prático), ao mesmo tempo que a considera um instinto ou um impulso – e mais tarde um «facto incontornável» que «originariamente» todo o homem tem em si –, Kant realiza a fusão (aparentemente impossível) da matriz racionalista da escola wolfiana com a matriz rousseauana, a qual, precisamente, contrapunha a imediatez e certeza da consciência (moral) à razão e às luzes incertas desta, concebendo aquela como um «instinto» ou um «sentimento inato», dotada de um «princípio imediato e independente da razão»34. Lê-se, com efeito, nas Lições de Ética: «Temos um poder de julgar se algo é correcto ou incorrecto, e isso refere-se tanto às nossas acções como às dos outros. Este poder reside no entendimento. Possuímos também um poder de prazer e desprazer, na medida em que julgamos acerca de nós ou dos outros sobre o que agrada ou desagrada, e isto é o sentimento moral. Se nós, porém, pressupusermos o juízo moral e a lei moral, então encontramos em nós ainda um terceiro instinto, um involuntário e irresistível impulso na nossa natureza, que nos obriga [zwingt] a julgar acerca das nossas acções com força jurídica [rechtkräftig]… A consciência é o instinto [Instinkt] que nos leva a apreciar e a julgar as nossas acções. Não é nenhum poder, mas instinto [Es ist kein Vermögen, sondern Instinkt]. Se ela fosse um poder voluntário, não seria nenhum tribunal, pois não nos poderia obrigar. Se tem de haver um tribunal íntimo então ele tem de ter poder para, independentemente da nossa vontade, nos obrigar a apreciar e a julgar [zu urteilen und zu richten] as nossas acções e para absolver-nos ou condenar-nos intimamente. Cada qual tem um poder de apreciar [urteilen] especulativamente, o qual está em poder da nossa vontade; mas há em nós algo que nos obriga a julgar as nossas acções, que nos coloca perante a lei e nos compele a comparecer perante o juiz, que nos julga contra a nossa vontade, e que por isso é um verdadeiro juiz. Este forum internum é um forum divinum, na medida em que ele mesmo nos julga segundo as nossas intenções; e não podemos fazer outro conceito do forum divinum a não ser este que nós mesmos nos julgamos segundo as nossas intenções. Por conseguinte, a consciência é o representante do forum divinum.»35 —————————————— 33 Veja-se a edição autónoma desta peça em: Jean-Jacques Rousseau, Profession de Foi du Vicaire Savoyard, Présentation, notes, bibliographie et chronologie par Bruno Bernardi, Garnier-Flammarion, Paris, 1996, p. 90. 34 «le principe immédiat de la conscience, indépendant de la raison même… le témoignage intérieur, et la voix de la conscience qui dépose pour elle-même». Ibidem. 35 I. Kant, Eine Vorlesung über Ethik, ed. de Gerd Gerhardt, Fischer, Frankfurt a. M., 1990, pp. 77-78. Numa outra formulação da tese, no mesmo contexto, lê-se: «Das Forum ist zweierlei: forum externum, welches das forum humanum ist, und forum internum, welches das forum conscientiae ist. Mit diesem foro interno verbinden wir zugleich das forum divinum; denn unsere Facta können nicht anders in diesem Leben Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 217 A versão do parágrafo 13 da Doutrina da Virtude traz explicitações muito significativas ao tema, o qual agora se inscreve sob a epígrafe «Do dever do homem para consigo próprio, enquanto juiz inato de si mesmo». Cai a referência à consciência moral como um «instinto» ou um «impulso», mas não ao seu carácter absoluto e incondicional, apontando-se o seu carácter «originário» – «disposição originária (ursprüngliche Anlage) – e a sua realidade de «facto incontornável» (unausbleibliche Thatsache)36. Cada homem, escreve Kant, se vê como sendo «observado por um juiz interior» (durch einen inneren Richter beobachtet), que por toda a parte o segue «como a sua sombra» (wie sein Schatten), e cuja «voz temível» (furchtbare Stimme) não pode impedir-se de ouvir (sie zu horen, kann er doch nicht vermeiden).» Prosseguindo a análise da consciência moral, que se diz sob estas imagens da sombra, da voz, do escrutinador e juiz íntimo, Kant chega ao que pode considerar-se uma descrição fenomenológica da génese da consciência moral e religiosa, expondo o processo de surgimento de Deus na consciência do homem como sendo o Outro do próprio homem na auto-consciência de si; por conseguinte, como sendo uma criação hipostasiada da razão moral em resposta a uma sua imanente necessidade. O homem põe fora de si o legislador e o juiz que, na verdade, residem apenas na sua própria consciência e são verdadeiramente uma criação desta37. Fá-lo não só para escapar a uma contradição interna da consciência consigo mesma, mas também para assegurar a eficácia da legislação moral e, no fundo, para garantir a eficá—————————————— vor dem göttlichen foro imputiert werden als per conscientiam, demnach ist das forum internum in diesem Leben ein forum divinum. Ein Forum soll Zwang ausüben, sein Urteil soll rechtskräftig sein, es soll die consectaria des Gesetzen auszuführen zwingen können.» (ib., p. 77). 36 37 Tugendlehre, Ak VI, 400, 438. Não posso deixar de estabelecer um confronto – por proximidade e também por diferença – com a explicação que o sofista Crítias (Diels-Kranz: Fragm. B 25) apresentava para a génese das leis e do seu carácter absoluto e dos deuses como garantia das mesmas – enfim, para a génese da consciência moral e religiosa –, por interiorização de uma necessidade da razão social. Transcrevo excertos dessa notável fábula da invenção das leis e dos deuses: «Outrora, houve um tempo em que o homem vivia sem leis como um fauno, respeitando apenas a força; em que os bons não obtinham qualquer recompensa e em que os maus também ficavam impunes. Só depois os homens estabeleceram leis de repressão – pelo menos essa é a minha opinião – para que a lei reinasse como senhora soberana, e desse modo dominasse a sua louca desmesura. A partir de então era possível castigar os faltosos. Seguidamente, como as leis reprimiam os delitos proibindo que se realizassem às claras os crimes, mas não em segredo, foi então, creio eu, que um sábio, que sabia por sabedoria profunda, forjou para os mortais os Deuses para inspirar o temor aos maus que se escondem para agir, ou falar, ou mesmo para pensar. Essa é a razão por que introduziu Deus dizendo-lhes que goza de uma vida eterna e que pelo entendimento entende e vê e julga todos os actos cometidos; que a sua natureza é divina, que ele perscruta todas as intenções dos mortais e que tem meios para ver tudo o que eles fazem. Mesmo quando calasses o golpe que preparas os Deuses dar-se-iam conta, pois neles existe o Pensamento. Proferindo tais palavras, o sábio envolveu a lição na agradável forma do mito, velando a verdade com um discurso de ficção. O brilho do seu discurso atribuiu morada condigna à divindade e mediante as leis ele pôs fim à desigualdade… Assim, creio eu, houve alguém que foi o primeiro a persuadir os mortais de que existem Deuses.». 218 Leonel Ribeiro dos Santos cia e a coerência da moralidade como um todo. Mas, ao fugir de uma contradição, incorre, senão noutra, pelo menos no paradoxo, que só não será contradição porque a consciência é capaz de se colocar ela própria, sendo a mesma, em diferentes pontos de vista. Dou a palavra ao velho filósofo: «Esta originária disposição [ursprüngliche Anlage] intelectual e moral chamada consciência [Gewissen], sendo embora a sua ocupação uma ocupação do homem consigo mesmo, tem em si a particularidade de este se ver todavia obrigado pela sua razão a executá-la como se fosse à ordem de uma outra pessoa. Pois o assunto é aqui a condução de uma causa (causa) perante o tribunal. Mas se se representasse numa e mesma pessoa aquele que é acusado pela sua consciência e o juiz, isso seria uma absurda maneira de representar um tribunal; pois, nesse caso, o acusador perderia sempre. – Por conseguinte, a consciência do homem tem de pensar para si um Outro diferente dela própria, como juiz das suas acções, se não quer estar em contradição consigo mesma. Este Outro pode ser uma pessoa real, ou uma meramente ideal, que a razão para si mesma cria. Uma tal pessoa ideal (o autorizado juiz da consciência) tem de ser um perscrutador do coração; pois o tribunal está instalado no interior do homem, mas ao mesmo tempo tem de impor-se universalmente, isto é, tem de ser uma pessoa (ou como tal pensada) em relação à qual todos os deveres em geral sejam considerados como mandamentos: pois a consciência é o juiz interior sobre todas as acções livres.»38 Ora, conclui Kant, um tal ser ideal é o que chamamos Deus. E, segundo o filósofo, o conceito deste, como supremo legislador e juiz, está sempre incluído na autoconsciência moral do homem, mesmo que por vezes de um modo confuso. Religião e Moral são assim as duas faces de uma mesma vivência, a imputabilidade moral é outro nome para aquilo a que se chama religião. Se «a religião consiste toda em considerar Deus como o legislador universal para todos os nossos deveres»39, de igual modo, a consciência moral, que é «a voz do juiz interior» (die Stimme des inneren Richters)40, «do incorruptível juiz que existe em nós» (dieser unbestechliche Richter in uns)41, deve considerar-se como sendo a representante na terra do juízo de Deus: «Deus julga-nos mediante a nossa consciência; esta é aqui na terra o seu representante.»42. As Lições sobre Filosofia da Religião secundam a tese que encontrámos nas Lições de Ética e que serão aprofundadas na Doutrina da Virtude, a Segunda Parte da tardia Metafísica dos Costumes. —————————————— 38 Tugendlehre, Ak VI, 438-439. Veja-se a tradução portuguesa por José Lamego, em I. Kant, A Metafísica dos Costumes, F.C.Gulbenkian, Lisboa, 2005, pp. 373-374. 39 Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, Ak VI, 103. 40 Tugendlehre, Ak VI,401; trad. port. citada, pp. 314-315. 41 Vorlesungen über philosophische Religionslehre, ed. de K.H.L.Pölitz, reimpr. WBG, Darmstadt, 1982, p. 167. 42 Ibidem, p. 170. Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 219 Mas voltemos ao parágrafo 13 da Doutrina da Virtude e vejamos como Kant explica aí o funcionamento desse tribunal íntimo e qual é, no juízo moral, a função respectiva de cada uma das faculdades práticas nele envolvidas. Prossegue o filósofo: «Todo o conceito do dever inclui coacção objectiva mediante a lei (enquanto imperativo moral que limita a nossa liberdade) e compete ao entendimento prático, o qual dá a regra; mas a íntima imputação de um acto, como de um caso que está sob a alçada da lei…. cabe ao juízo (iudicium), o qual, enquanto princípio subjectivo da imputação da acção, julga com força jurídica [rechtskräftig] se ela aconteceu ou não como acto (como acção submetida a uma lei); ao que segue então a conclusão da razão (a sentença), i. é, a ligação do efeito jurídico com a acção (a condenação ou absolvição): tudo isto acontece perante o juízo (coram iudicio), como perante uma pessoa moral que torna efectiva a lei, e a que se chama tribunal [Gerichtshof] (forum). A consciência de um tribunal interior no homem (perante o qual os seus pensamentos se acusam ou desculpam entre si) é a consciência moral [Gewissen].»43 Tanto se pode dizer que o genuíno processo judicial civil executa um raciocínio prático da consciência moral como dizer que o raciocínio prático da consciência moral funciona à semelhança de um tribunal civil. Numa versão mais sintética do tema, lê-se esta formulação: «A consciência é um tribunal, no qual o entendimento é o legislador, o juízo é o acusador e advogado, e a razão é o juiz.»44. E, numa nota ao parágrafo 13, Kant explicita este desdobramento da consciência do homem enquanto acusado, acusador e juiz, tentando mostrar que não se incorre aí numa contradição. Escreve Kant: «Esta dupla personalidade [zwiefache Persönlichkeit], na qual tem de se pensar o homem que se acusa e julga na consciência moral, este duplo eu [doppelte Selbst], que tem de, por um lado, comparecer tremendo perante a barra de um tribunal [vor den Schranken eines Gerichtshofes], que, todavia, lhe está a ele próprio confiado, e que, por outro lado, tem ele mesmo nas suas mãos o cargo de juiz por autoridade inata [Richteramt aus angeborener Autorität], necessita de um esclarecimento, para que a razão não caia em contradição consigo mesma. – Eu, o acusador, e, no entanto, também acusado, sou o mesmo homem (numero idem); mas, como sujeito da legislação moral procedente do conceito de liberdade, onde o homem está submetido a uma lei que ele a si próprio se dá (homo noumenon), há-de considerar-se como um outro (specie diversus) em relação ao homem sensível dotado de razão, mas apenas sob o ponto de vista prático. […] O primeiro é o acusador, frente ao qual se concede ao acusado uma defesa jurídica (o seu advogado). Depois de concluída a discussão, o juiz interior [der innere Richter], como pessoa com poder [als machthabende Person], profere o veredicto sobre a felicidade ou miséria como consequências morais da acção.»45 —————————————— 43 Tugendlehre, Ak VI,438; trad. port. citada, p. 372. 44 Reflexion 6815, Ak XIX, 170. 45 Tugendlehre, Ak VI, 439; trad. port. cit., p. 374. 220 Leonel Ribeiro dos Santos O que neste processo forense se surpreende é igualmente a génese moral da Religião. Direito, Moral e Religião têm, por conseguinte, a mesma génese no seio da consciência subjectiva, que é levada a objectivar, como se fosse diferente dela mesma, a fonte da lei a que se sente submetida e a instância que intimamente a julga segundo essa lei. Kant move-se aqui num equilíbrio perigoso, tentando evitar sair da imanência da consciência para a suposição da existência transcendente de um ser absolutamente santo, omnipotente e justo, que fosse exterior à consciência humana, a qual, por outro lado, se reconhece como subordinada à lei (ou mandamento) e sempre limitada no cumprimento dos seus deveres. Escreve Kant: «Dado que um tal ser moral – o legislador e o juiz – tem de ter simultaneamente todo o poder (no céu e na terra), pois que, caso contrário, não poderia proporcionar às suas leis a eficácia que lhe corresponde (o que compete, pois, necessariamente à judicatura), e, dado que se chama Deus a um ser moral omnipotente, a consciência moral terá, deste modo, de ser concebida como princípio subjectivo de uma responsabilidade dos próprios actos perante Deus; mais: este último conceito estará sempre contido (se bem que apenas de um modo obscuro) naquela consciência moral de si próprio. Ora, isto não equivale a dizer que o homem se encontra autorizado, nem, muito menos ainda, obrigado por esta ideia a que o conduz inevitavelmente a sua consciência moral a admitir um tal ser supremo como existência real fora de si; pois que esta ideia não lhe é dada objectivamente pela razão teórica, mas tão-somente subjectivamente pela razão prática, que se obriga a si mesma a agir em conformidade com ela; e, por intermédio desta ideia, unicamente por analogia com um legislador de todos os seres racionais do mundo, o homem recebe uma simples orientação, que consiste em se representar a imputabilidade moral (que também se chama religio) como responsabilidade perante um ser santo (a razão moralmente legisladora) distinto de nós próprios, mas, no entanto, intimamente presente em nós, e submeter a sua vontade às regras da justiça. O conceito de religião em geral é aqui para o homem unicamente “um princípio de apreciação de todos os seus deveres como mandados divinos”»46. Kant de modo algum concede que se saia da imanência da consciência ou da razão: o ser que é pensado como diferente de nós, está em nós, e é testemunhado apenas pela voz subjectiva da consciência moral e não por qualquer evidência objectiva exterior. Este é, pois, o estranho – e até aparentemente contraditório ou pelo menos paradoxal – paradigma processual que preside à representação kantiana da vivência moral: há na unidade orgânica da razão prática ou da consciência moral uma diferenciação tripartida de faculdades cujas funções são descritas como sendo de natureza forense. Antes de se compreender o alcance da filosofia crítica como tribunal da razão pura para julgar todas as suas causas acerca dos assuntos supremos de que a razão pode alguma vez ocupar-se, há que reconhecer a primazia e a pregnância —————————————— 46 Tugendlehre, Ak VI, 439; trad. port. cit., pp. 374-375. Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 221 que tem na filosofia de Kant este tribunal da razão prática, sobre que se funda também a genuína experiência religiosa: «a lei santa permanece sempre diante dos nossos olhos e representa-nos continuamente cada mais pequeno desvio em relação à vontade divina como condenado por um juiz severo e justo»47. Kant, de resto, poderia encontrar sobeja confirmação desta sua versão na mais genuína tradição do pensamento ocidental e na religião da maior parte dos povos que lhe eram conhecidos, merecendo realce, sob este aspecto, e antes de mais, a própria representação bíblica do carácter absoluto da Lei e de Deus como legislador e juiz, concepção que veio a ter, na neo-testamentária teologia paulina, decisivo aprofundamento num sentido imanente e subjectivo48, mas que se encontrava já admiravelmente compendiada e até filosoficamente problematizada sob a forma de uma teodiceia representada na consciência moral do homem, naquele que Kant considerava «o mais filosófico dos livros vetero-testamentários»49, o livro de Job50. Mais surpreendente ainda é que esse mesmo paradigma e processo se replique no modo como Kant concebe a economia trinitária da ideia moral de Deus51. Segundo o filósofo, a trindade divina é o «documento de uma antiga concepção moral» da razão humana (trinitas probat conceptum antiquum moralem)52, «o símbolo sagrado da teologia moral, o monograma da sua misteriosa essência»53, o qual constitui o substracto de todas as religiões e que corresponde igualmente às três funções políticas (trias politica) de um Estado bem organizado. A representação —————————————— 47 «…das heilige Gesetz uns jederzeit vor Augen liege und uns jede auch die kleinste Abweichung von dem göttlichen Willen als verurteilt von einem unnachsichtlichen und gerechten Richter unaufhörlich vor halte.», Carta a Lavater, 28.04.1775, Ak X, 179. 48 Rom 2,12-15: «Quando os que não são judeus, sem terem a lei de Moisés, cumprem naturalmente a lei, eles são a lei para si mesmos. Mostram pelo seu proceder que trazem escrito no coração aquilo que a lei ordena. A voz da sua consciência ensina-lhes o que devem fazer e acusa-os ou defende-os, conforme os casos.» 49 I. Kant, Danziger Rationaltheologie, Ak XXVIII, 1287: «Leibnitzens Theodizee ist in der Absicht geschrieben, um diese Einwürfe [wider die Eigenschaften Gottes: Heiligkeit, Gütigkeit, Gerechtigkeit] zu widerlegen. Das Buch Hiob im A.T. zwect dahin ab, und das ist das philosophischeste Buch im A.T.» 50 Job 23: «Quem me dera saber onde encontrá-lo e poder chegar até ao seu tribunal! Apresentaria diante dele a minha causa; eu mesmo discutiria as questões… Se eu pudesse discutir lealmente com ele, conseguiria fazer vencer a minha causa.». Todo este singular livro bíblico, como bem o advertiu Kant, está escrito como um processo judicial em que Job apresenta perante Deus a causa da sua justiça, uma causa que é também a causa de Deus (uma teodiceia), cuja justiça é posta em causa. Sobre a interpretação kantiana da personagem Job e do significado do drama exposto nesse livro bíblico, veja-se o meu ensaio «A teologia de Job, segundo Kant: ou a experiência ético-religiosa entre o discurso teodiceico e a estética do sublime», Convergências & Afinidades, Homenagem a António Braz Teixeira (no prelo). 51 Veja-se o desenvolvimento que fizemos deste tópico em Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, pp. 661-666. 52 Reflexion 5658, Ak XVIII, 318. 53 Reflexion 6093, Ak XVIII, 449. 222 Leonel Ribeiro dos Santos trinitária da divindade ou do Estado obedecem assim à mesma exigência de coerência que levou a consciência moral a hipostasiar-se em três instâncias diferentes na unidade orgânica de si mesma. Nas Lições sobre a filosofia da religião, lê-se: «A razão conduz-nos a Deus, como um legislador santo, a nossa inclinação para a felicidade deseja-se nele como um governador do mundo bondoso, e a nossa consciência moral representa-no-lo diante dos olhos como um juiz justo.»54 Noutros lugares são apresentadas como sendo homólogas a trindade prática da consciência moral, a trindade teológica (ou representação moral de Deus) e a trindade política, com a diferença de que em Deus ou na consciência moral as três funções são pensadas como reunidas num único ser (ideia) ou consciência, enquanto num Estado bem ordenado elas são cometidas a pessoas diferentes. E assim, a trias politica ou a divisão tripartida dos poderes (potestas legislatoria, rectoria et iudiciaria), característica de um estado republicano, é vista não só como um símbolo da trindade de funções e dos atributos divinos, mas igualmente comparada com um raciocínio prático (gleich den drei Sätzen in einem praktischen Vernunftschluss)55. Em A Religião nos limites da mera razão, Kant desenvolve a sua teologia trinitária, associando expressamente a consciência moral (Gewissen), enquanto função de julgar, à terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, ao mesmo tempo que mostra a possível coerência das aparentemente contraditórias fórmulas bíblicas neotestamentárias, as quais ora atribuem essa função de julgar ao Filho ora ao Espírito Santo. Escreve Kant: «Este Espírito – pelo qual o amor de Deus como beatificante (propriamente o nosso amor de resposta a Ele) se une ao temor como legislador, i. é, o condicionado à condição – pode representar-se «como procedente de ambos»; além de «conduzir a toda a verdade (observância do dever)», ele é ao mesmo tempo o genuíno juiz dos homens (perante a sua consciência). Com efeito, julgar pode tomar-se em dois sentidos: ou como julgar sobre o mérito e a falta de mérito, ou sobre a culpa e a inocência. Deus considerado como o amor (no seu Filho) julga os homens na medida em que, para além da sua obrigação, lhes pode ainda corresponder um mérito, e então a sua sentença é: digno ou indigno…. Separa como seus aqueles a quem tal mérito pode ser imputado. Os outros vão com as mãos vazias. Pelo contrário, a sentença do juiz de acordo com a justiça (do que em rigor se deve chamar juiz, sob o nome de Espírito Santo) sobre aqueles a quem nenhum mérito pode caber é: culpado ou inocente, i. é, condenação ou absolvição. Julgar significa, no primeiro caso, separar os merecedores dos não merecedores, que aspiram reciprocamente a um prémio (o da beatitude). Mas por mérito não se entende aqui uma vantagem da moralidade em relação à lei (a cujo respeito não —————————————— 54 «Die Vernunft leitet uns auf Got, als einen heiligen Gesetzgeber, unsere Neigung für Glückseligkeit wünscht sie in ihm einen gütigen Weltregierer, und unser Gewissen stellet uns ihm als ein gerechten Richter vor Augen.» (Vorlesungen über philosophische Religionslehre, ed. cit., p. 145). 55 Rechtslehre § 45 (Ak VI, 313-314). Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica 223 pode caber-nos nenhum excedente da observância do dever sobre a nossa obrigação), mas em comparação com outros homens, no tocante à sua disposição de ânimo moral. […] Portanto, quem julga na primeira qualidade (como brabeuta) pronuncia o juízo de eleição entre duas pessoas (ou partidos) que aspiram ao prémio (da beatitude); mas quem julga na segunda qualidade (o verdadeiro juiz) pronuncia a sentença sobre uma e a mesma pessoa perante um tribunal (a consciência moral) que decide entre o acusador e o advogado.»56 Estes testemunhos textuais revelam a que ponto não só a filosofia moral kantiana mas também a filosofia kantiana da religião e a filosofia kantiana da política estão determinadas no seu próprio cerne pelo paradigma forense. Julgo ter dado suficientes razões para apoiar a ideia de que isso não acontece propriamente por transferência do exterior para o interior da razão ou da consciência do procedimento que ocorre num tribunal civil, mas sim que é o esforço de fidelidade da razão às suas próprias fontes e o auto-conhecimento que alcança de si própria quando reflecte sobre o seu modo de proceder, seja na sua experiência moral e nos juízos morais ou na sua vivência religiosa, o que, em última instância, explica a omnienvolvência daquele paradigma. O que ocorre aí é o funcionamento sintético de uma razão finita, a qual não procede por um movimento analítico-dedutivo, mas só pode partir do condicionado para a sua condição e ligar um e outro pela mediação de um terceiro termo57. É nesse movimento imanente em que um mesmo espírito ou razão se desdobra em diferentes instâncias que se expõe a fenomenologia da razão humana. Uma derradeira tentativa de formulação desse processo, inexplicável e todavia incontornável, encontra-se numa página quase cifrada do Opus postumum, nestes termos: «Existe um ser em mim, distinto de mim, que tem poder sobre mim (agit, facit, operatur) na relação causal de eficácia (nexus effectivus), que, sendo ele mesmo livre, isto é sem ser dependente da lei da natureza no espaço e no tempo, me julga interiormente (justifica ou condena); e eu, o homem, eu sou eu próprio este ser, e aquele outro não é, por exemplo, uma substância fora de mim, e o que é mais estranho: a causalidade é todavia na determinação para a acção em liberdade (não como necessidade da natureza). – Esta disposição interior inexplicável descobre-se por um facto, o imperativo categórico do dever (nexus finalis), Deus; effectivus o mundo, seja ele afirmativo ou negativo (ordem ou interdito). O espírito do homem (mens) numa coacção que não é possível a não ser por meio da liberdade.»58 —————————————— 56 Die Religion, Ak VI, 145-146 (trad. port.: A Religião nos limites da simples razão, Edições 70, Lisboa, pp. 151-152). 57 KU, Einleitung, Ak V, 197. 58 Opus postumum Ak XXI, 25. O Postulado Jurídico da Razão Prática como Lei permissiva Aylton Barbieri Durão UNIVERSIDADE DE LONDRINA A relação entre direito privado e direito público representa um problema recorrente na filosofia do direito, como atesta a disputa entre direito natural e direito positivo na teoria do direito natural teológico, depois na teoria do direito natural racional e, por fim, entre direito subjetivo e direito objetivo, na história da dogmática do direito civil alemão. Kant começa a expor a sua solução para este problema no final da “Introdução à doutrina do direito”1, onde apresenta a divisão suprema do direito natural e afirma que este não pode ser dividido em direito natural e social, porque já existe sociedade no estado de natureza. O direito natural racional deve ser dividido em direito natural e civil, de maneira que o direito natural corresponde ao direito privado, enquanto o direito civil representa o direito público. Isso significa que, para Kant, há um direito privado que vale no estado de natureza, mas que todo direito positivo existente do estado civil, é direito público, dado que necessita da sanção da justiça distributiva. A teoria do direito privado, que investiga o direito ao meu e ao teu exteriores ou o direito à propriedade privada, é uma novidade de A metafísica dos costumes, porque a doutrina do direito público já havia sido antecipada em Teoria e práxis e em Sobre a paz perpétua, embora Kant tivesse ensaiado fundamentar o direito à propriedade nos escritos pré-críticos. Baynes analisa os textos pré-críticos de Kant e assinala que a fundamentação kantiana do direito de propriedade na “Doutrina do direito“, nega que a posse externa seja analiticamente contida no conceito de liberdade externa e representa uma mudança com relação a suas considerações anteriores nas quais extraia o direito de propriedade diretamente da liberdade externa2. Em —————————————— 1 I. Kant, Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. p. 242. 2 K. Baynes, The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls, and Habermas. p. 32. FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 225-242 226 Aylton Barbieri Durão Considerações acerca das observações sobre o sentimento do belo e do sublime, escrito em 1765, Kant considera que o direito de propriedade provém da liberdade em seu uso externo na medida em que o sujeito pode estender seu suum interno (ou a propriedade inata da vida, do corpo e dos braços, inclusive de sua reputação e ação pessoal) para tornar-se dono dos objetos externos e modificá-los através de sua liberdade3, uma vez que ninguém pode chamar seu o que eu fiz, pois, do contrário, teria que dizer que sua vontade pode mover meu corpo. «O corpo é meu porque é uma parte do meu eu e é movido por minha vontade. Todo o mundo animado e inanimado que não tem vontade própria é meu na medida em que eu posso dominá-lo e influenciá-lo por minha vontade… Supõe-se que uma boa vontade não pode invalidar a si própria por ser universal e atual; por esta razão, alguém não chamaria de seu o que eu fiz, pois, de outro modo, ele pressuporia que sua vontade moveu meu corpo»4. Contudo, a leitura do parágrafo acima citado parece demonstrar que Kant, longe de deduzir analiticamente o direito de propriedade privada da liberdade em seu uso externo, como interpreta Baynes, considera que a vontade enquanto princípio da ação é o fundamento da propriedade privada, pois o corpo é meu na medida que é uma parte do meu eu que pode ser movida por minha vontade, assim como os objetos externos podem ser meus porque minha vontade pode dominá-los e influir sobre eles, por isso, eu posso impedir todos os demais de usar tanto o meu corpo como os objetos externos submetidos à minha vontade, pois se outro usasse estes objetos, isso seria equivalente a que a sua vontade estaria movendo meu corpo. Posteriormente, nas notas recolhidas por Feyerabend das lições de Kant sobre direito natural, tomadas nas aulas do curso de 1784-85, já no período crítico, Baynes afirma que Kant aceitou a teoria de Locke e fundamentou a propriedade privada no trabalho. Locke considera que o corpo do sujeito é sua propriedade e, ao trabalhar sobre algum objeto da natureza que se possui inicialmente em comum com os demais, o indivíduo acrescenta algo que é exclusivamente seu, o trabalho, razão pela qual o objeto deixa de pertencer ao domínio comum, pois passa a ter a marca de seu dono. Alguém que se apodere do objeto estará se apropriando do trabalho do primeiro trabalhador e, portanto, usurpando algo que não pertence em comum a todos: «Um produto da liberdade é um produto da natureza que é modificada através de minha liberdade com respeito a sua forma, por exemplo, uma árvore que eu tenha podado… Apreensão não é todo uso de uma coisa, mas somente —————————————— 3 Ibid., p. 32. 4 Ibid., p. 190. O Postulado Jurídico da Razão Prática 227 aquele no qual a forma da coisa tenha sido modificada pela liberdade. Se alguém é o primeiro descobridor de uma terra, finca sua bandeira e toma posse, ainda não tem direito a ela. Mas, se trabalha a terra e aplica sua energia a ela, então, a apreende»5. Uma vez mais, contra a interpretação de Baynes, que considera que Kant adotou a teoria do trabalho de Locke como fundamento do direito de propriedade privada, o texto citado de Kant justifica o direito de propriedade no uso exterior da liberdade do sujeito. A liberdade é capaz de modificar a forma dos objetos da natureza mediante o trabalho; somente o trabalho, enquanto manifestação da liberdade, e não a simples delimitação do terreno pelo primeiro ocupante que o descobre e finca sua bandeira, pode produzir a verdadeira apreensão. Pois, como se sabe, Locke começa o seu argumento para justificar a teoria do trabalho ridicularizando a teoria do consentimento de Grócio e Pufendorf, já que considera impossível o homem esperar até ao contrato social para possuir o direito à propriedade. Locke observa que é inadmissível que o homem, no estado de natureza, tenha todas as coisas da natureza a sua disposição, mas esteja impossibilitado de usá-las, porque tem que esperar o fato do contrato social6. Poder-se-ia contestar-lhe simplesmente dizendo que o homem se apoderava das coisas e as usava no estado de natureza sem nenhum direito a elas e que o direito surge posteriormente com o contrato social. Mas, isso seria romper o nó górdio a golpes de espada, pois os pensadores dos séculos XVII e XVIII, em geral, consideram que o estado de natureza é um estado jurídico, o que implica que não é possível usar as coisas da natureza sem um direito. O uso das coisas no estado de natureza já tem que pressupor o direito de propriedade. Portanto, segundo a lógica do período histórico, a crítica de Locke à teoria do consentimento é demolidora. Contudo, somente em A metafísica dos costumes, de 1797, Kant chega à versão definitiva sobre o direito de propriedade precisamente retomando a teoria do consentimento de Grócio e Pufendorf. Para tanto, ele demonstra, em primeiro lugar, nos §11 e §17, dois argumentos que comprovam o erro da fundamentação da propriedade privada no trabalho como pretenderam Locke e também, parcialmente, Rousseau. O §11, intitulado “O Que é um direito real?”, tem como finalidade explicar que o direito real não é o direito com relação a uma coisa, mas um direito com relação à outras pessoas na medida que se pode obrigar os outros a se abster do uso de uma coisa externa do meu arbítrio. Kant entende que a teoria do trabalho cai em uma espécie de fetichismo, pois termina por dizer que o direito concerne a uma relação entre pessoas e coisas, o que é um absurdo porque gera uma lógica —————————————— 5 6 Ibid., p. 38. «Se tal consentimento fosse necessário, o homem teria morrido de fome, apesar da abundância que Deus lhe deu», J. Locke, Two treatises of government. § 28. p. 330. 228 Aylton Barbieri Durão estanha, pensável somente de modo confuso como conseqüência da própria teoria do trabalho. Dado que a todo direito corresponde um dever, então, se o possuidor tem um direito com relação a um objeto exterior do arbítrio, o objeto teria um dever com relação ao possuidor. A teoria do trabalho sustenta que o direito à propriedade implica que o objeto exterior sobre o que se trabalha, deixa de fazer parte do que é inicialmente possuído em comum por todos, porque uma maçã que se colhe da árvore, ou um peixe pescado no rio têm, além do que a natureza oferece a todos, uma parte que é propriedade exclusiva do que a colheu ou pescou, o trabalho que ele executou. O objeto tem em si uma parte que lhe agregou o trabalhador com seu trabalho; Locke afirma que o trabalho é responsável por 99% do valor da terra7, antecipando as teorias do valor-trabalho de Adam Smith; por isso, se alguém lhe tira o objeto, estará levando não somente o que se possui em comum, mas algo que é exclusivo do possuidor. Contudo, Kant questiona esta teoria com base na observação de que se o objeto possui algo que pertence exclusivamente ao primeiro possuidor, ou seja, o trabalho realizado, então, tem uma obrigação para com o primeiro possuidor, sua marca indica que o objeto tem que resistir a qualquer outro e, por isso, não pode ser alienado por seu possuidor, o que torna impossível o intercâmbio de mercadorias. A teoria do trabalho conduz a uma concepção muito antiga que consiste em pessoalizar ou animar à natureza dotando-a de vida própria. Portanto, o direito do possuidor parece constituir um gênio que acompanha os objetos externos e lhes preserva de qualquer ataque estranho, obrigando a qualquer outro que o restitua ao seu dono original8. No §17, Kant repete este argumento essencial e introduz outro menos importante. Afirma que a aquisição originária somente pode surgir da posse da substância, ou seja, do solo, e nunca da posse do acidente, ou seja, dos objetos do trabalho, pois se alguém trabalha sobre um terreno que não é seu, perde seu tempo e não garante nenhum direito9. Poder-se-ia considerar, por outro lado, que embora Kant tenha rechaçado a tese da ocupação nas notas de Feyerabend, entendida como detenção física, ou seja, o descobrimento de uma terra ou a simples colocação de uma bandeira não podem gerar o direito à propriedade, pois é necessário o trabalho como manifestação da liberdade, sua negação da teoria moderna do trabalho de Locke e, parcialmente, de Rousseau, representa um retorno à teoria da ocupação, originária do direito romano, como fonte do direito de propriedade, o que poderia ser confirmado em A metafísica dos costumes, quando afirma que a ocupação é o ato jurídico da aquisição (§14). —————————————— 7 J. Locke, Two treatises of government. § 40. p. 338. 8 I. Kant, Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. § 11. p. 64. 9 Ibid., § 17. p. 74. O Postulado Jurídico da Razão Prática 229 Contudo, isto ocorre por um erro de interpretação do sentido da palavra “ocupação” (Bemächtigung ou occupatio). Kant usa o termo “detenção” (Inhabung ou detentio) para se referir ao simples domínio físico de um objeto externo do arbítrio, como, por exemplo, a mera presença física do primeiro ocupante em um terreno e, em múltiplas ocasiões, afirma que a detenção física, como posse empírica, não pode gerar direito algum e, em uma citação essencial do §17, que recorda as notas de Feyerabend, nega explicitamente que a mera detenção seja fundamento do direito de propriedade, utilizando a palavra “delimitação” (Begrenzung). «É tão evidente por si mesmo que o primeiro trabalho, a delimitação ou a conformação em geral de um terreno não pode proporcionar nenhum título de aquisição do mesmo…»10. O termo “ocupação”, que normalmente é acompanhado da tradução ao latim occupatio, corresponde somente ao primeiro passo de um ato jurídico que ocorre em três etapas. Em primeiro lugar, a ocupação é a aquisição de um objeto exterior do arbítrio sob a condição da prioridade temporal do primeiro ocupante de um solo facultado pela liberdade externa expressa em uma vontade unilateral. Mas a possibilidade desta aquisição originária depende do postulado jurídico da razão prática, que garante provisoriamente a ocupação no estado de natureza. Contudo, a vontade unilateral não pode gerar nenhuma obrigação por parte dos outros, a qual somente pode ser obtida pela vontade unida de todos como vontade “omnilateral”11. Portanto, os críticos, que consideram que a doutrina kantiana do direito de propriedade retorna à teoria da ocupação do direito romano, confundem o significado do termo ocupação com o que ele denomina detenção ou delimitação. A compreensão correta do conceito de ocupação mostra que este não se resume simplesmente à primeira detenção física de um terreno. Posteriormente, para tornar a teoria do consentimento aceitável contra a teoria dominante do trabalho, Kant lhe introduz uma série de modificações e começa precisamente discordando dos demais autores contratualistas12, uma vez que entende o estado de natureza como um estado não-jurídico13, no qual existe apenas um único direito inato do homem a sua própria liberdade que permite uma posse empírica do objeto externo de seu arbítrio, a qual vale provisoriamente como um —————————————— 10 Ibid., § 17. p. 72. 11 Ibid., § 14. p. 66. 12 Embora existam inequívocos elementos contratualistas na filosofia política e jurídica de Kant, existem suspeitas sobre a natureza do seu contratualismo em virtude de sua insistência em considerar o estado de natureza como um estado não-jurídico e de fundamentar o estado civil no postulado do direito público e não no contrato social. 13 Ibid., § 41. p. 112-3. 230 Aylton Barbieri Durão direito na esperança de sua confirmação pela entrada de todos os demais com os quais se mantém relação no estado civil. Kant fundamenta todos os deveres, sejam de virtude ou jurídicos, na liberdade, a qual consiste na determinação do arbítrio pela vontade, contudo, a vontade pode determinar a matéria do arbítrio, dando origem à liberdade interna, que define como ser dono de si mesmo ou dominar-se a si mesmo e que engendra os deveres da doutrina da virtude, ou a vontade pode determinar a forma do arbítrio, ou seja, o modo como os arbítrios se relacionam entre si, constituindo a liberdade externa, de tal modo que o arbítrio de um possa concordar com o arbítrio de todos os demais através de uma lei universal da liberdade, o que produz todos os deveres jurídicos. A liberdade externa, por sua vez, se divide em duas, a liberdade externa inata consiste no único direito inato que o homem possui tão só em virtude de sua humanidade e é definida como a independência em relação ao arbítrio constritivo dos demais, o que garante a proteção do meu interior, pois qualquer um que afete a minha liberdade externa inata por meio de uma coação ou retirando um objeto que eu detenho fisicamente afeta o meu interior, ou seja, minha própria liberdade. Por conseguinte, a liberdade externa inata me permite a posse empírica dos objetos externos do meu arbítrio que eu detenho fisicamente em meu poder, pois qualquer ato para me excluir desta posse empírica viola o meu interior, a minha própria liberdade. Contudo, Kant afirma que, no contrato originário, devemos renunciar a esta liberdade externa inata, selvagem e sem lei, para recuperá-la integralmente mediante a dependência legal como a liberdade legal ou civil, definida como a submissão à lei a qual se pode dar o consentimento, na medida em que esta dependência resulta de nossa própria vontade legisladora14. O ato pelo qual o indivíduo se apropria fisicamente de um objeto externo de seu arbítrio é um ato da vontade unilateral, o que explica a posse empírica do objeto enquanto ele o detém, mas este ato não pode gerar a obrigação dos demais de se abster de usar um objeto externo do meu arbítrio, pois somente a vontade unida do povo pode gerar obrigações recíprocas e impedir o uso de um objeto de meu arbítrio por outro, na medida que seu uso me lesa, por isso, a posse meramente inteligível ou jurídica, que ocorre inclusive quando o indivíduo não detém fisicamente o objeto e que constitui o meu e o teu exteriores, somente é possível a partir do consentimento de todos de permitir o uso privado de um objeto externo do arbítrio de alguém. Por conseguinte, no estado de natureza apenas pode existir a posse empírica porque o direito à propriedade privada ou a posse meramente inteligível ou jurídica unicamente pode surgir no estado civil. Contudo, esta posse empírica no estado de natureza possui uma presunção de se tornar jurídica, definida por Kant como um direito provisório, na espera da realização do estado civil e unicamente —————————————— 14 Ibid., § 47. p. 122. O Postulado Jurídico da Razão Prática 231 por comparação com este15 de que possa se tornar um direito peremptório fundamentado pela vontade unida do povo. Com outras palavras: o modo de ter algo exterior como seu no estado de natureza é a posse física, que tem a presunção jurídica de poder ser convertida em jurídica ao ser unida com a vontade de todos em uma legislação, a qual vale durante a espera como jurídica por comparação16. Isso fica comprovado na resposta que Kant apresenta às três perguntas sobre a dedução do conceito de posse meramente jurídica de um objeto exterior: como é possível um meu e teu exteriores?; como é possível uma posse meramente jurídica?; como é possível uma proposição jurídica sintética a priori? Todos os juízos jurídicos são a priori porque são leis racionais, mas os juízos referentes à posse empírica são analíticos, enquanto os juízos relativos à posse meramente jurídica são sintéticos. Uma posse empírica só indica que o que eu tenho em meu poder é meu. Se tenho uma maçã em minhas mãos, ela é fisicamente minha; então, um juízo ligado à posse empírica afirma simplesmente que “o meu é meu” e não cabe dúvida de que este é um juízo analítico, cujo predicado está contido no sujeito e pode ser extraído através do princípio de contradição. Eu estou na posse empírica de um objeto de meu arbítrio exclusivamente por causa de minha liberdade exterior e, se tenho fisicamente o objeto, enquanto o possua, ele não pode ser tirado de minhas mãos, assim como eu não posso ser expulso do solo que ocupo, porque isso seria uma violência contra minha liberdade exterior de ter um objeto exterior como objeto de meu arbítrio, pois a máxima de ação do transgressor estaria em contradição com o princípio do direito; por conseguinte, se alguém me impede o uso de objetos externos me lesa em minha liberdade externa. De minha liberdade externa só se pode concluir a posse empírica, que resulta em um juízo analítico e na definição nominal de posse: o meu exterior é algo fora de mim que não posso ser impedido de usar sem ser lesado, pois, caso contrário, eles me prejudicariam em minha liberdade exterior que pode se conciliar com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal17. Contudo, o juízo relativo à posse meramente jurídica não pode ser analítico, porque afirma que um objeto exterior do meu arbítrio é meu, inclusive se não tenho nenhuma posse física dele, quer dizer, se prescindo das condições espaciais e temporais, por exemplo, se não ocupo o terreno ou somente tenho a promessa de outro de que me entregará o objeto. Disto surge a definição real de posse: o meu exterior —————————————— 15 Na verdade, Kant afirma que o direito de propriedade só pode se tornar definitivo quando se realizar a constituição republicana, a federação de estados e o direito cosmopolita. 16 Ibid., § 9. p. 60. 17 Ibid., §5 p. 51. 232 Aylton Barbieri Durão é algo cujo uso não me podem impedir sem lesar-me, mesmo quando não esteja na posse física do objeto18. Por isso, depois de distinguir a posse empírica da posse meramente inteligível ou jurídica (§1), Kant defende a possibilidade de um direito provisório em três etapas. Em primeiro lugar, introduz o postulado jurídico da razão prática como lei permissiva que confere validade provisória à propriedade privada no estado de natureza (§2) e descreve o significado de uma posse meramente jurídica (§ 3, 4 e 5); em seguida, deduz o conceito da posse meramente jurídica baseando-se no postulado jurídico da razão prática, e a necessidade de demonstrar a possibilidade de uma proposição jurídica sintética a priori (§6 e 7); e, por último, afirma que a propriedade no estado de natureza só tem valor provisório e estabelece a exigência de um poder legislativo público no estado civil como condição para se ter algo exterior como seu (§8 e 9). Toda a argumentação de Kant neste capítulo se destina a mostrar a existência de um direito provisório no estado de natureza, mas não tem a intenção de provar a legitimidade do direito de propriedade, algo que somente levará a cabo no segundo capítulo dedicado à aquisição definitiva. Portanto, define o juridicamente meu como um objeto ao qual estou tão vinculado que seu uso por qualquer outro sem meu consentimento me lesa. Depois define a posse como a condição subjetiva para a possibilidade do uso em geral19. Kant entende por condição subjetiva os aspectos ligados ao sujeito, como os fatores empíricos da constituição da subjetividade, circunstâncias históricas ou sociais, assim como a motivação para a ação; enquanto considera condição objetiva, os elementos a priori capazes de mostrar a validade objetiva do conhecimento teórico ou prático. São as condições objetivas do conhecimento (as condições a priori da sensibilidade e do entendimento) que explicam a possibilidade de juízos objetivos, assim como a universalização das máximas. Sem as condições objetivas só teríamos juízos de percepção, do tipo “o mel me parece doce”, mas jamais juízos de experiência com a forma “o mel é doce” ou, por outro lado, as máximas seriam apenas regras subjetivas de ação, pois não existiriam princípios morais universalmente válidos. A condição objetiva não tem a ver com a relação entre um juízo e um objeto, mas com a validade universal do enunciado ou da lei moral da ação. Assim, as condições subjetivas da vontade, segundo a razão prática, são aquelas relativas à natureza humana, quer dizer, as inclinações, que influem nas ações de criaturas empiricamente condicionadas como nós, de tal modo que a lei moral aparece como um imperativo que nos obriga como um dever; enquanto a condição objetiva da vontade é a própria lei moral resultante do imperativo categórico que surge como um dever20. Disto se conclui que, para criaturas empiricamente —————————————— 18 Ibid., §5 p. 51. 19 Ibid.,.§1 p. 47. 20 Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. IKW VII. p. 412-3. O Postulado Jurídico da Razão Prática 233 condicionadas como nós, dado que temos que garantir a sobrevivência mediante o uso de objetos a nossa disposição, a posse é a condição subjetiva para tal uso. Portanto, Kant só pode estar falando da posse física ou empírica, ou seja, a detenção de um objeto distinto de mim, que eu posso ter para meu uso e do qual posso excluir a qualquer outro. Contudo, considera necessário introduzir outro conceito de posse, a posse meramente inteligível ou jurídica. Kant não afirma, embora induz a pensar, que a posse inteligível ou jurídica é a condição objetiva para o uso dos objetos. A posse jurídica não depende da detenção do objeto, pois pode consistir no desfrute de um objeto que se encontra situado em outro lugar espacial ou temporal distinto do sujeito. A posse inteligível ou jurídica, diferentemente da posse física ou empírica que não gera obrigações universais, só pode ter validade objetiva mediante a posse de um objeto por alguém universalmente aceita por todos. Assim, devem ser distinguidos também dois tipos de lesão e de exclusão do uso. Se me tiram um objeto que tenho fisicamente, me lesam em minha liberdade exterior e afetam o meu interior (ou seja, minha própria liberdade externa inata), razão pela qual posso excluir o uso de qualquer outro, enquanto tenha o objeto em meu poder; mas só a posse inteligível ou jurídica autoriza a excluir qualquer outro do uso de um objeto, inclusive se não o tenho, pois seu uso, sem meu consentimento, lesa meu direito reconhecido universalmente, com validade objetiva para todos21. No estado de natureza, evidentemente, não pode existir uma posse meramente jurídica22, mas Kant precisa mostrar que a posse empírica possui, ao menos, a pretensão de se tornar jurídica com a entrada no estado civil, para tanto ele recorre ao postulado jurídico da razão prática (§2): «é possível ter um objeto exterior do meu arbítrio como meu; quer dizer, se uma máxima que afirma que um objeto exterior do arbítrio pudesse ser em si (objetivamente) sem dono (res nullius), fosse transformada em lei, seria contrária ao direito». Depois oferece uma segunda versão do postulado (§6): «é um dever jurídico agir com relação aos outros de tal modo que o exterior (útil) possa tornar-se o seu de alguém». Kant justifica o postulado jurídico da razão prática a partir do princípio do direito de acordo com o qual é conforme ao direito uma ação cuja máxima permite que o livre arbítrio de um possa concordar com o livre arbítrio de todos os demais, segundo uma lei universal da liberdade; portanto, conclui-se que um objeto do arbítrio é algo que está fisicamente em poder de alguém para usá-lo segundo sua liberdade exterior, que é conforme com a liberdade de todos os demais, mas, se o objeto do arbítrio está fisicamente em poder de alguém e seu uso concorda com a —————————————— 21 22 Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. § 6. p. 52. Recorde-se que a posse no estado de natureza é a posse empírica que constitui um direito provisório na espera da realização do estado civil e por comparação com este, de modo que a posse meramente inteligível ou jurídica só pode ocorrer realmente no estado civil. 234 Aylton Barbieri Durão liberdade exterior de todos os demais, então tem que estar também juridicamente, pois, do contrário, um objeto, que pode ser usado fisicamente, não poderia ser usado juridicamente e o arbítrio se privaria de usar coisas utilizáveis, fazendo com que os objetos do arbítrio se convertessem em coisas em si nulas em sentido prático ou res nullius. Por conseguinte, usar um objeto exterior do arbítrio como seu não pode ser incompatível com a liberdade exterior de todos os demais, porque uma proibição de usar este objeto seria uma contradição da liberdade externa consigo mesma. Esta argumentação seguida na exposição do postulado jurídico da razão prática (§2) parece ser uma prova da validade deste postulado. Contudo, entendê-la como uma demonstração implica dizer que Kant deduz o postulado a partir da liberdade exterior, posto que a liberdade exterior permite o uso físico de objetos utilizáveis na medida em que isso é conforme com a liberdade exterior de todos os demais e que, do uso físico facultado pela liberdade exterior, se obtém a necessidade da posse inteligível ou jurídica, pois, do contrário, a liberdade exterior estaria em contradição consigo mesma, já que, ao mesmo tempo, permitiria e não permitiria o uso de coisas utilizáveis. Contudo, a argumentação que Kant apresenta no §2 não constitui uma prova do postulado jurídico da razão prática, porque termina com a afirmação de que este postulado é uma lei permissiva da razão prática que nos confere uma atribuição que não pode ser obtida a partir dos meros conceitos do direito em geral, ou seja, a de impor a todos os demais a obrigação de se abster dos objetos de nosso arbítrio porque tomamos posse deles anteriormente, uma vez que este postulado representa uma ampliação a priori da razão prática. Contudo, por definição, uma lei permissiva não pode ser demonstrada. Kant introduziu o conceito de lei permissiva ao final da primeira seção de Sobre a paz perpétua, intitulada “Sobre os artigos preliminares para a paz perpétua entre os estados”23. Em uma nota, explica que o problema da lei permissiva foi idealizado por um prêmio oferecido pelo Conde de Windischgrätz. Contudo, a solução apontada pelos professores de direito natural não o satisfez, por isso, desenvolveu outra explicação. Existem leis imperativas e leis permissivas; a lei imperativa se subdivide em lei preceptiva, quando tem uma fórmula positiva do tipo «é um dever entrar com os outros em uma constituição civil republicana», e lei proibitiva, que é expressa negativamente tal como «é um dever não fazer a guerra». Uma lei imperativa tem que conter uma obrigatoriedade prática objetiva, enquanto uma lei permissiva é apenas uma autorização para uma determinada ação de caráter temporal. Por essa razão uma lei imperativa não pode admitir em sua própria formulação nenhuma limitação, já que representa uma obrigação jurídica que não admite alternativas, sob pena de por em dúvida toda a certeza jurídica, eliminando —————————————— 23 Zum ewigen Frieden. IKW VI. p. 432. O Postulado Jurídico da Razão Prática 235 a eficácia universal da lei e transformando-a em mera lei geral. Kant considera, não obstante, que o próprio esforço de sistematização da razão exige o conceito de lei permissiva, que não implica uma limitação da lei imperativa, mas a introdução de algumas exceções casuais que atendam à experiência. É, por conseguinte, possível acrescentar algumas exceções a uma lei preceptiva ou proibitiva sempre que as circunstâncias o demandem, mas estas exceções não são determinadas pela razão e, portanto, não podem ser objetivas, mas tão só subjetivas, pois só valem enquanto sigam as condições que as originaram, pois não possuem caráter definitivo. Kant desenvolve o conceito de lei permissiva em Sobre a paz perpétua porque se dá conta de que os artigos preliminares para a paz perpétua entre os estados formulados como leis proibitivas, se opõem à práticas antigas e enraizadas na política internacional que somente podem deixar de ser seguidas gradualmente, pois sua eliminação abrupta pode trazer inumeráveis problemas24. Então, apesar da validade objetiva em sentido prático dos artigos preliminares, sua realização pode ser adiada até que surjam melhores condições para sua aplicação. Considera que é uma prática comum na relação política entre os estados a inclusão de cláusulas secretas nos tratados de paz, a intervenção, pela força, na constituição e no governo de outros países ou, inclusive, contratar assassinos, envenenadores, espiões ou usar outros meios que tornam insegura qualquer paz futura entre os estados. Todas essas atividades devem ser eliminadas da política, sempre que existam condições histórico-sociais para isto. Contudo, existem outras leis proibitivas cuja aplicação imediata ocasiona muitos problemas e que podem ser adiadas até um momento mais propício. Por exemplo: um estado não é patrimônio de outro estado, mas muitos estados (especialmente nos finais do século XVIII) estão submetidos a outros ou a suas famílias reais; a razão determina que somente o contrato originário pode gerar direitos sobre um povo, mas é possível adiar a autonomia de um estado, para evitar uma ruptura abrupta com o governo no poder, que pode ter como conseqüência uma revolução e a volta ao estado de natureza como um estado de injustiça ainda maior; os exércitos permanentes também devem ser suprimidos, uma vez que a sua simples presença já é um motivo para a guerra, mas isso é impossível nas condições atuais da política internacional, pelo menos para a maioria dos países, e sua supressão pode trazer conseqüências desastrosas; ademais, os estados não devem recorrer ao sistema financeiro internacional que aumenta o seu capital para financiar a guerra e produz uma impagável dívida pública, mas isso tem que ser adiado para não gerar uma bancarrota internacional capaz de trazer novos conflitos ou a injustiça da revolução, como ocorreu com a França. Todas essas injustiças são fruto de uma injustiça mais fundamental, ou seja, o fato de que os estados permanecem entre si em estado de natureza sem um direito —————————————— 24 Ibid., p. 431. 236 Aylton Barbieri Durão de gentes e cosmopolita capazes de regular as ações recíprocas25. Por conseguinte, é permitido manter a injustiça em que se encontram os estados entre si e se deve temporariamente adiar a aplicação de algumas leis preceptivas ou proibitivas, como a evacuação de estados, o fim dos exércitos permanentes e do endividamento para propósitos de guerra, pois sua supressão imediata produziria injustiças ainda maiores. Das reflexões kantianas sobre a lei permissiva se conclui, indubitavelmente, que sua filosofia não é insensível no que se refere ao problema da prudência política e jurídica. O que Kant recusa fazer é introduzir na lei jurídica uma fórmula que torne o próprio direito inseguro; por isso, a permissão é introduzida como cláusula de exceção, pois somente tem validade enquanto não existam condições favoráveis para a aplicação da lei imperativa, a qual depende, em última instância, da constituição republicana, da federação de estados e do direito cosmopolita. Portanto, o papel da lei permissiva é adiar a entrada no estado plenamente jurídico até que surjam condições adequadas, pois sem uma situação favorável, a aplicação inflexível da lei imperativa pode resultar em uma injustiça ainda maior. Conseqüentemente, por definição, uma lei permissiva não pode ser fundamentada, pois constitui simplesmente uma exceção que permite a permanência de um estado de injustiça (a ausência de um estado legal público), porque a aplicação rigorosa da lei preceptiva ou proibitiva pode trazer mais problemas do que solucioná-los. Mas, Kant afirma que uma permissão não pode permanecer eternamente ou ad calendas graecas, pois não é uma lei moral ou jurídica, mas uma autorização para adiar a realização de um estado de justiça legal-público26. Portanto, em Sobre a paz perpétua, uma lei permissiva concede uma autorização excepcional para adiar a realização da constituição republicana, da federação de estados e do direito cosmopolita e para que permaneça a injustiça do estado de natureza entre os estados, atrasando a evacuação de um estado estrangeiro, a supressão do exército e do endividamento para o financiamento de guerra, pois sua eliminação geraria conflitos e, por conseguinte, também injustiças maiores, como a volta ao estado de natureza no interior do próprio estado, pelo menos, até que se possam alcançar as condições de uma justiça definitiva que depende de um autêntico estado jurídico com a aplicação plena da lei jurídica. Pois a aplicação incondicional da lei imperativa e a conseqüente negação da permissão podem resultar em uma volta ao estado de natureza sem nenhuma justiça positiva, sendo preferível, portanto, manter a injustiça vigente do que gerar em uma ainda maior. Em A metafísica dos costumes, a lei permissiva tem um papel distinto que no projeto de paz perpétua. O projeto de paz considera que o estado de natureza foi parcialmente superado no âmbito do estado civil, embora sobreviva nas relações —————————————— 25 Ibid., p. 431-2. 26 Ibid., p. 432. O Postulado Jurídico da Razão Prática 237 entre os estados pela insuficiência do direito internacional. Por isso, a lei permissiva permite adiar a realização da lei imperativa determinada pelo dever e a permanência temporária de práticas que fazem inviável a paz perpétua porque sua aplicação imediata pode resultar em uma injustiça ainda maior. Em A metafísica dos costumes, contudo, a problemática da fundamentação do direito privado transcorre totalmente no estado de natureza, que é por si mesmo um estado de injustiça, mesmo que nenhum homem cometa uma violência efetiva com relação a outro27, pois a ausência de um poder coativo garantido pela justiça distributiva do estado civil torna inseguro o seu exterior de todos. «Enquanto pretendem se manter no estado de liberdade exterior sem lei, os homens não são injustos uns com os outros se lutam entre si, porque o que vale para um vale também para o outro, como em um convênio; mas são injustos em sumo grado por querer se manter em um estado que não é jurídico, quer dizer, em um estado em que ninguém está seguro do que é seu por causa da violência»28. Por conseguinte, permanecer no estado de natureza, onde não se garante a posse dos objetos externos do arbítrio pela justiça distributiva, já é cometer uma injustiça em sumo grau contra todos aqueles com quem se mantém relação, pois torna inseguro o direito ao meu e ao teu exteriores. Contudo, o postulado jurídico da razão prática, enquanto lei permissiva, autoriza a posse jurídica provisória dos objetos externos do arbítrio que já se encontram sob a posse empírica. Portanto, já no estado de natureza existe um direito privado provisório que somente pode tornar-se definitivo por meio da entrada no estado civil que é o único que pode submeter a liberdade exterior inata (sem lei) ao poder coativo da justiça distributiva. A permissão de posse jurídica provisória de objetos externos do arbítrio no estado de natureza representa uma ampliação da razão prática que possibilita o surgimento de um direito que não poderia existir de outro modo29. O postulado jurídico da razão prática, não obstante, torna um dever a saída do estado de natureza e a entrada no estado de justiça pública, na medida em que só concede validade provisória aos direitos privados, os quais necessitam ser outorgados definitivamente pela vontade unida do povo. Então, é um dever incondicionado da razão prática sair do estado de natureza, mas, enquanto este persista, deve ser possível aos homens ter algo exterior como seu, porque têm que usar as coisas exteriores do arbítrio no estado de natureza e não podem esperar o estado civil para começar a desfrutar dos objetos do —————————————— 27 Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. §42. p. 114. 28 Ibid., §42. p. 114. 29 Ibid., §2. p. 49. 238 Aylton Barbieri Durão arbítrio que já detêm fisicamente, pois somente a vontade unida do povo no estado civil pode garantir um autêntico direito de propriedade. Permanecer no estado de natureza é em si uma injustiça contra os homens e a permissão facultada pelo postulado jurídico da razão prática torna um dever sair deste estado de injustiça30. Portanto, não tem sentido pensar que Kant está fundamentando o postulado jurídico da razão prática a partir da liberdade exterior. Como lei permissiva, o postulado é uma cláusula de exceção da lei jurídica «é um dever entrar com outros em um estado civil sob uma constituição republicana, uma federação de estados e um direito cosmopolita que garanta o meu e o teu exteriores», pois é uma injustiça permanecer no estado de natureza sem uma justiça distributiva; mas, enquanto este estado perdure, é necessário que os homens disponham juridicamente, embora com validade provisória, da possibilidade de usar os objetos de seu arbítrio que detém fisicamente, o que é conforme com a liberdade exterior, pois os homens não podem manter sua vida sem o uso de objetos externos e me lesaria em minha liberdade exterior se me impedissem de usar um objeto de meu arbítrio que tenho fisicamente. Mas, se, ao se manterem no estado de natureza sem violência, os homens não cometem injustiça uns contra outros, eles cometem uma injustiça em sumo grado contra o direito, ao meu e o teu exteriores de qualquer um, pois se mantêm em um estado de liberdade exterior sem lei e impedem ter a posse jurídica definitiva de um objeto que eles têm fisicamente, porque, se recusando a entrar no estado civil, onde há uma justiça distributiva capaz de garantir o seu exterior de cada uno, os outros se privam do direito definitivo de propriedade. O postulado é uma lei permissiva provisória que não gera nenhum direito de propriedade em caso de que nunca se realize a entrada no estado civil e se permaneça no estado de injustiça, mas que gera um direito provisório de propriedade, que permite obrigar os outros com que se mantêm relações recíprocas a entrar no estado civil, o que possibilita a superação da injustiça de permanecer no estado de natureza, pois autoriza a posse jurídica provisória que torna necessária a entrada no estado civil como forma de garantir a posse jurídica definitiva31. Ademais, o direito de propriedade no estado civil confirma o direito proveniente da lei permissiva, até o ponto de que, sem o postulado jurídico da razão prática, também não existiria direito de propriedade no estado civil. «Em caso de que não houvesse no estado de natureza provisoriamente um meu e teu externos, também não haveria deveres jurídicos com respeito a isto, assim como mandato de sair daquele estado»32. —————————————— 30 Ibid., §41. p. 113. 31 Ibid., §16. p. 71. 32 Ibid., §44. p. 119. O Postulado Jurídico da Razão Prática 239 Portanto, o postulado não pode ser deduzido da liberdade externa por meio do princípio do direito, pois é uma simples exceção à lei jurídica, na medida em que concede a permissão para a posse inteligível no estado de natureza, enquanto não se possa alcançar um estado jurídico no qual a vontade unida do povo garanta definitivamente a cada um o seu exterior, mas cria um dever de entrar no estado civil sob uma lei coativa e torna possível obrigar a qualquer um com quem se mantenha relação a se submeter à justiça distributiva. O postulado jurídico da razão prática é uma lei que permite usar de forma juridicamente provisória os objetos externos do arbítrio disponíveis fisicamente para a liberdade exterior, o que implica que oferece aos sujeitos o direito provisório ao meu e o teu exteriores. A partir deste direito provisório à propriedade privada, se pode obter o postulado do direito público que afirma que a coexistência inevitável entre todos torna um dever passar ao estado jurídico sob a justiça distributiva. Este postulado do direito público é deduzido analiticamente a partir do conceito de direito por oposição ao conceito de violência33. A permanência no estado de natureza representa uma injustiça em sumo grado, pois este se constitui como um estado não-jurídico34 que torna inseguro todo o direito; então, o postulado jurídico da razão prática é uma lei permissiva que autoriza à propriedade provisória dos objetos externos do arbítrio, que torna um dever sair do estado de injustiça em sumo grado do estado de natureza e obriga a entrar no estado civil, enquanto estado jurídico, que resulta na supressão da injustiça. Então, a argumentação de Kant no §2, que parece uma prova, somente pode ser entendida como uma explicação de que o postulado não contradiz o princípio do direito, quer dizer, que o postulado, ao permitir o uso jurídico de objetos exteriores do arbítrio usados fisicamente, não viola a liberdade exterior, condição sine qua non para que haja conformidade com o direito. Conseqüentemente, Kant não prova o postulado, mas mostra que é compatível ou não é contrário ao direito. Se o postulado jurídico não é deduzido no §2 a partir da liberdade em seu uso exterior, então, não fica ainda demonstrado o direito ao meu e ao teu exteriores, o que implica a necessidade de uma dedução da possibilidade do meu e o teu exteriores ou da posse meramente jurídica. Como vimos, Kant considera que esta questão pode ser formulada através da pergunta: como é possível um juízo jurídico sintético a priori?35 Evidentemente que os juízos sintéticos na razão prática são distintos dos da razão teórica. Na razão teórica um juízo sintético necessita das intuições que provêm da sensibilidade e, quando a razão pretende se ampliar além da experiência, se —————————————— 33 Ibid., §42. p. 113. 34 Ibid., §41. p. 112. 35 Ibid., §6. p. 52. 240 Aylton Barbieri Durão vê envolvida na dialética transcendental; por isso, a Crítica da razão pura deve começar pela estética e depois chegar à analítica transcendental. Na razão prática não se deve apelar à intuição, pois a vontade é capaz de determinar seu próprio objeto, o que explica porque a Crítica da razão prática começa pela analítica e não dispõe de uma doutrina da sensibilidade. Contudo, a própria razão se amplia em seu uso prático através do conceito de liberdade e fundamenta a validade da lei moral e a necessidade de pensar o mundo inteligível (inclusive as idéias de Deus e imortalidade, transcendentes à razão pura). Esta ampliação resultante da determinação da vontade pela razão prática constitui um mundo inteligível que Kant denomina um fato da razão, que não pode ser conhecido pela razão teórica36. Esta ampliação da razão pura em seu uso prático gera, inclusive, um sentimento moral resultante do respeito pela lei moral37. O mesmo ocorre com a razão prática em seu uso jurídico. Segundo Kant, a razão prática produz a posse meramente jurídica como um fato da razão, a qual é possível por meio do postulado jurídico da razão prática, que permite ampliá-la a priori, sem recurso algum à intuição38. Do ponto de vista da razão teórica a possibilidade de uma posse meramente jurídica não pode ser provada ou compreendida, pois implica a ampliação do conhecimento sem intuição correspondente e, portanto, a sua perda no inteligível. Mas tal ampliação da razão prático-jurídica é possível porque se fundamenta na liberdade, que, em sentido prático, pode determinar seu próprio objeto39. Contudo, por causa de tal ampliação ao inteligível surge uma dialética na razão prático-jurídica, que implica dois juízos contraditórios. O primeiro afirma que «é possível que eu tenha algo exterior como meu, embora não esteja na posse dele», enquanto o segundo diz que «não é possível que eu tenha algo exterior como meu, se não estou na posse dele». A dialética da razão prático-jurídica tem melhor sorte que a dialética da razão teórica e Kant afirma que tem solução, já que os dois juízos são verdadeiros. O primeiro juízo é verdadeiro quando se compreende a palavra posse como posse empírica e o segundo quando se entende como posse jurídica40. Por conseguinte, o postulado jurídico da razão prática, enquanto fato da razão, constitui um mundo inteligível, fundamenta a posse inteligível provisória e permite uma ampliação da razão prático-jurídica, sem a ajuda das intuições41. —————————————— 36 Kritik der praktischen Vernunft. p. 48-9. 37 Ibid., p. 82. 38 Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. § 6. p. 55. Cf. também § 2. p. 49. 39 Ibid., § 6. p. 55. 40 Ibid., § 7. p. 57-8. 41 Ibid., § 2. p. 49. O Postulado Jurídico da Razão Prática 241 Isto parece uma nova demonstração da posse inteligível, pois Kant pode estar afirmando que a posse jurídica de um objeto externo constitui um fato da razão prático-jurídica por meio do qual ela se amplia a partir da liberdade externa e gera todo um mundo inteligível. Portanto, a prova da possibilidade do juízo jurídico sintético a priori radica no fato da razão da posse inteligível. Contudo, Kant também não pensa que esta seja uma demonstração, pois afirma ao final do §7, depois da dedução da posse meramente jurídica, que a prova dos juízos jurídicos sintéticos a priori logo se mostrará de modo analítico desde uma perspectiva prática (a qual só é apresentada no §17, onde Kant pretende deduzir a posse inteligível a partir do conceito de aquisição originária). A razão pela qual o postulado jurídico da razão prática, como um fato da razão, que a amplia em seu uso prático-jurídico, não pode ser uma solução para o problema da posse meramente jurídica, resulta da circunstância de que o postulado só vale como uma lei permissiva. O postulado jurídico é uma lei permissiva que autoriza a propriedade provisória no estado de natureza, mas não tem nenhum significado sem a realização do estado civil que torna a propriedade privada peremptória. Então, tudo o que se demonstrou no primeiro capítulo da “Doutrina do direito privado” foi que a razão prático-jurídica pode ampliar-se por meio do postulado jurídico e gerar provisoriamente a posse inteligível como um fato da razão no estado de natureza, à espera de que a vontade unida do povo possa deduzir a aquisição definitiva e comprovar o juízo jurídico sintético a priori. Os §8 e §9 representam a transição do primeiro capítulo ao segundo e confirmam que o primeiro capítulo só pretende provar a possibilidade da posse inteligível provisória no estado de natureza. Inclusive esta ampliação da razão prático-jurídica pelo postulado só tem valor provisório em caso de que a vontade unida do povo se realize no estado civil, na federação de povos e no direito cosmopolita. Referências bibliográficas BAYNES, Kenneth (1992): The normative grounds of social criticism. Kant, Rawls and Habermas. Albany, SUNY. BOBBIO, Norberto (1965): Diritto e stato nel pensiero di Emanuele Kant. Torino, Giappichelli. COLOMER MARTÍN-CALERO, José Luis (1995): La teoría de la justicia de Immanuel Kant. Madrid, CEC. DELBOS, Victor (1969): La philosophie pratique de Kant. Paris, PUF. HABERMAS, Jürgen (1994): Faktizität und Geltung. Beitrage zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag. – (1997): Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag. 242 Aylton Barbieri Durão KANT, Immanuel (1922): Immanuel Kants Werke. Herausgegeben von Ernest Cassirer, Berlin, Bruno Cassirer, 11 vols. LOCKE, John (1968): Two Treatises of Government. New York y Scarborough, A Mentor Book. PHILONENKO, Alexis (1976): Théorie et praxis dans la pensée morale et politique de Kant et de Fichte en 1793. Paris, J. Vrin. RODRÍGUEZ ARAMAYO, Roberto (1992): Crítica de la razón ucrónica. Madrid, Tecnos. ROUSSEAU, Jean-Jacques (1971): Du contrat social. In: – Œuvres complètes. Paris, Seuil. vol. 2, p. 518-85. – (2003): Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes. Paris, Gallimard. VLACHOS, Georges (1962): La pensée politique de Kant. Paris, PUF. AUTORES André Berten Professor da Universidade Católica de Lovaina e Professor Visitante da Universidade Federal de Belo Horizonte. Investigador e coordenador de investigação do Centro de Estudos de Filosofia do Direito da Universidade de Lovaina. Autor de numerosos estudos sobre filosofia do direito e em particular (com Jacques Lenoble) da obra: Dire la norme. Droit, politique et énonciation, L.G.D.J. – Bruylant, Paris, 1996. António Braz Teixeira Professor universitário, pensador e ensaísta. Exerceu funções docentes na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, na Universidade de Évora e na Universidade Autónoma de Lisboa. Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, membro efectivo da Academia de Ciências de Lisboa, membro correspondente da Academia Portuguesa da História, da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia (Rio de Janeiro), membro efectivo da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. É autor de: A filosofia portuguesa actual, 1959; O pensamento filosófico-jurídico português, 1983; Sentido e valor do direito. Introdução à filosofia jurídica, 1990; Caminhos e figuras da filosofia do direito luso-brasileira, 1991; Deus, o mal e a saudade, 1993; O pensamento filosófico de Gonçalves de Magalhães, 1994; O espelho da razão, 1997; Ética, filosofia e religião, 1997; Formas e percursos da Razão Atlântica, 2001; História da Filosofia do Direito Portuguesa, 2005. António Manuel Martins Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, é Director da Unidade de Investigação LIF – Linguagem, Interpretação e Filosofia. Autor de uma dissertação sobre Pedro da Fonseca e o aristotelismo quinhentista, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, de estudos sobre a filosofia antiga (Platão e Aristóteles), o pensamento dos Conimbricenses, o pensamento político de John Rawls e sobre a recepção do pensamento jurídico e político de Kant na actualidade. Organizou na sua Universidade vários colóquios e seminários científicos e coordenou a publicação de várias obras colectivas: Da natureza ao sagrado (2 vol.), Fundação Engº António de Almeida, Porto,1999; Sociedade civil. Entre miragem e oportunidade, Faculdade de Letras, Coimbra, 2004. Aylton Barbieri Durão Doutor em Filosofia Política e do Direito. Professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Direito da Universidade Estadual de Londrina. Autor de: A Crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant (Editora UEL, Londrina-Passo Fundo, 1996) e de cerca três dezenas de artigos e capítulos de livros publicados, entre os quais «O conceito de opinião pública em Kant» (1995), «Kant e o suposto direito de mentir por filantropia» (Philosophica, 12, Lisboa, 1999), «La interpretación de Habermas sobre la tensión entre derechos humanos y soberanía popular en el pensamiento de Kant» (Cuadernos de Filosofía del Derecho, 26, 2003, 827-846), «O conceito de autonomia na Doutrina do Direito de Kant» (Lisboa, 2004), «The history of Republic according to Kant» (São Paulo, 2005). Ex-coordenador do Curso de Graduação em Filosofia e do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica da Universidade Estadual de Londrina. Ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná Javier García Medina Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Valladolid, onde lecciona Filosofia do Direito. Autor de uma dissertação de doutoramento sobre A doutrina tridimensional do Direito de Miguel Reale (Valladolid) e de vários estudos sobre o pensamento jurídico-político de Kant. Tem colaborado com a Universidade de Lisboa (Faculdade de Direito e Faculdade de Letras), nomeadamente no âmbito do programa Erasmus. 244 Autores José Gomes André Prepara, sob orientação do Prof. Viriato Soromenho-Marques, uma dissertação de Doutoramento dedicada ao pensamento político de James Madison e ao federalismo americano. Sobre estes temas, publicou artigos e recensões em revistas da especialidade, entre os quais «James Madison e a protecção dos direitos individuais», Philosophica, nº22, Novembro 2003; e «O Federalista: uma edição oportuna», Nova Cidadania, Ano VI, nº22, Outubro/ Dezembro 2004. Apresentou ainda comunicações em congressos, das quais se destaca “Antropologia e Política no horizonte da Revolução Americana” (Congresso Internacional de Filosofia “Pessoa e Sociedade”, Faculdade de Filosofia, UCP, Braga, 17-19 de Novembro de 2005). É bolseiro de investigação científica da FCT e membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. José Luís Villacañas Berlanga Professor Catedrático da Universidade de Múrcia desde 1997. Doutor em Filosofia pela Universidade de Valência em 1981, com a dissertação Realismo Empírico e Idealismo Trascendental en la Filosofía Teórica de Kant. Los níveles de su uso y de justificación. Investigador principal do Projecto “Biblioteca virtual de fuentes del pensamiento político español” (2002-2005). Entre as suas publicações contam-se 23 livros, mais de 180 artigos e capítulos de livros e participação em mais de 90 conferências. Leonel Ribeiro dos Santos Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, onde lecciona as disciplinas de Filosofia Moderna e Filosofia da Educação e orienta seminários nos Programas de Estudos Pós-graduados em Estética e Filosofia da Arte, Filosofia da Natureza e do Ambiente, Ética e Filosofia Política, História da Filosofia e Filosofia em Portugal. Desde 2000 é Director da revista Philosophica, tendo sido Editor científico da mesma desde a sua fundação em 1993. Dirige no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa um Projecto de Investigação sobre a filosofia kantiana, aprovado e financiado pela FCT (Projecto POCTI/FIL/44903/2002 – «KANT 2004: POSTERIDADE E ACTUALIDADE»). Principais publicações: Metáforas da Razão ou Economia poética do Pensar kantiano, JNICT/F-C.Gulbenkian, Lisboa, 1994; A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Edições Colibri, Lisboa, 1994; Retórica da Evidência ou Descartes segundo a Ordem das Imagens, Quarteto, Coimbra, 2001; Antero de Quental, Uma Visão Moral do Mundo, INCM, Lisboa, 2002; Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento, Edições Colibri, Lisboa, 2004; O Espírito da Letra. Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007. Maximiliano Hernández Marcos Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de Salamanca, onde lecciona Filosofia Política. Especialista no pensamento político e jurídico de Kant sobre o qual tem publicado vários estudos e orientado vários cursos e seminários na sua universidade. Colabora na revista Kant-Studien, tendo publicado num dos últimos números desta importante revista uma resenha crítica acerca do estado actual das investigações sobre a filosofia Kantiana do Direito, nomeadamente no espaço filosófico de língua alemã: Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit. Zur Aktualität der Rechtsphilosophie Kants für die Gerechtigkeit in der modernen Gesellschaft (Kant-Studien 96, 2005, pp.116-124). Pedro Alves Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Director da revista Phainomenon. Foi membro da Direcção do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e é Presidente da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica. Tradutor de Sartre e de Husserl (Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo, tradução, introdução e notas, IN-CM, 1994). Autor de: Subjectividade e tempo na fenomenologia de Husserl (1999; publ. pelo CFUL, 2003); Os Princípios da Filosofia: Exposição e Comentário da Metafísica Cartesiana (2002) e de várias dezenas de ensaios sobre a filosofia de Descartes, Husserl e Kant e sobre temática do pensamento fenomenológico.