Filosofia Kantiana do Direito e da Política

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Filosofia Kantiana
do Direito e da Política
Seminário Internacional
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FICHA TÉCNICA
TÍTULO: FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA
COORDENAÇÃO: Leonel Ribeiro dos Santos e José Gomes André
COLECÇÃO: ACTA 5
EDITOR: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
CAPA: A República e os seus atributos. Cartaz alemão da II Internacional (c. 1890)
Impressão e acabamento Tipografia Abreu, Sousa & Braga, Lda – Braga
Depósito Legal n.º 260499/07
ISBN 978-972-8531-52-2
Apoiado no âmbito do Programa de Financiamento Plurianual das Unidades de I&D da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que se enquadra no Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação (POCTI),
designadamente no Projecto POCTI/FIL/44903/2002 – «KANT 2004: POSTERIDADE E ACTUALIDADE». Este
Programa insere-se no III Quadro Comunitário de Apoio e é co-financiado pelo Governo Português e pela
União Europeia, através do Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (Feder).
COORDENAÇÃO
Leonel Ribeiro dos Santos
José Gomes André
Filosofia Kantiana
do Direito e da Política
Seminário Internacional
CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
2007
ÍNDICE
Apresentação .................................................................................................................................................................. 9
André Berten A Compatibilidade do Republicanismo Kantiano com o Modelo
do Contrato Social ........................................................................................................................................... 13
Javier García Medina La Ciudadanía en Kant
........................................................................................ 43
Maximiliano Hernandéz Marcos Política y Antropología en Kant
........................................... 65
José Gomes André Kant e James Madison: da Tolerância à Liberdade de
Consciência
.......................................................................................................................................................
António Manuel Martins Propriedade e Trabalho em Kant
101
....................................................... 129
José Luís Villacañas Berlanga Herman Heller y el Argumento Kantiano.
La Evolución de un Pensador y su Relación con el Idealismo Alemán ........................... 141
Pedro M. S. Alves Moral e Política em Kant ......................................................................................... 173
António Braz Teixeira Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento
Luso-Brasileiro
................................................................................................................................................ 183
Leonel Ribeiro dos Santos Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica à
Arqueologia da Razão Prática ............................................................................................................... 205
Aylton Barbieri Durão O Postulado Jurídico da Razão Prática como Lei
Permissiva ......................................................................................................................................................... 225
Autores
........................................................................................................................................................................
243
8
Apresentação
O presente volume colige as comunicações apresentadas no Seminário Internacional de Filosofia Kantiana do Direito e da Política, realizado na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, nos dia 6 e 7 de Abril de 2006, com a participação de especialistas em filosofia kantiana da Bélgica, do Brasil, da Espanha e de
Portugal.
Integrado no Projecto «Kant 2004: Posteridade e Actualidade», desenvolvido
no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa no triénio compreendido entre
2004 e 2006, o Seminário propunha-se destacar um aspecto do pensamento kantiano que mereceu nos últimos decénios uma atenção crescente.
A filosofia do direito fora considerada, desde os dias de Kant, como um
aspecto muito secundário e menor da filosofia kantiana, e até os neo-kantianos, no
final do século XIX e nos princípios do século XX, a tinham por um domínio do
pensamento kantiano que não teria chegado verdadeiramente a ser penetrado pelo
espírito da filosofia crítica. Foi sobretudo a partir da década de 70 do século XX
que vários intérpretes descobriram e reabilitaram esse campo para os estudos kantianos, pondo em destaque não só a importância do pensamento jurídico e político
de Kant como proposta de compreensão da natureza do direito e da política, mas
também a sua capacidade de iluminar o próprio programa da filosofia transcendental e de dar a ver a sua peculiar natureza. Desde então, tornaram-se cada vez
mais incontornáveis não só a doutrina kantiana do Direito, que o filósofo só explicitamente deu a conhecer numa das últimas obras que publicou, em 1797, como
Primeira Parte da sua Metafísica dos Costumes, como também a sua filosofia política, que expôs em alguns pequenos ensaios ao longo da década de 90.
O indesmentível facto de que só no ocaso da sua longa vida de pensador
Kant tenha publicado obras de explícito pensamento político e jurídico não significa, porém, que só então, depois de ter concluído a crítica da metafísica especulativa e a identificação dos princípios transcendentais da razão no plano teorético,
10
Leonel Ribeiro dos Santos
prático e estético, tenha o filósofo acordado para as realidades do mundo das instituições que a razão propõe aos humanos para que desenhem a arquitectura viável e
saudável da sua vida histórica em comum. Bem pelo contrário, o sentido do político e do jurídico faz parte do código genético do pensar kantiano e a filosofia
política e jurídica de Kant estava escrita inequivocamente já na própria forma em
que se construíra e se expusera a filosofia transcendental, a saber, como a envolvente e pregnante alegoria de uma comunidade racional de cidadãos livres, como
uma inequívoca instauração republicana da razão.
O que nos últimos decénios levou a olhar com novo interesse para esse
domínio do pensamento kantiano, antes desatendido, secundarizado e mesmo desprezado, não foi só a renovada exegese do kantismo que se desenvolveu a partir da
segunda metade do século XX, mas também as interrogações e perspectivas abertas
por alguns destacados pensadores do político, como Hannah Arendt, John Rawls
ou Jürgen Habermas, os quais, trilhando o seu próprio caminho, se encontraram
com as propostas do velho filósofo de Königsberg, se não sempre para aproveitar,
transformando-as embora, as suas soluções, pelo menos sim para, no diálogo explícito com ele, encontrar a melhor equação dos problemas políticos e jurídicos contemporâneos. Kant tornou-se sem dúvida o filósofo do passado mais presente nos
grandes debates actuais sobre filosofia política e jurídica.
Esta recente descoberta e a reabilitação da filosofia kantiana do direito e da
política e o reconhecimento do seu alcance filosófico e da sua flagrante actualidade
consentem que se diga que, a existir um novo neokantismo do último quartel do
século XX, tem ele como núcleo primário do seu interesse por Kant não tanto já os
problemas epistemológicos e gnosiológicos, que os neokantianos de finais do
século XIX e dos primeiros decénios do século XX tentavam resolver lendo
sobretudo a Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura, e nem sequer os
problemas metafísicos ou ontológicos, postos depois em realce pela hermenêutica
heideggeriana, mas é um novo kantismo movido por um renovado interesse pelas
questões ético-político-jurídicas, o que leva a ler os escritos de filosofia jurídica e
política do velho filósofo de Königsberg num derradeiro esforço por encontrar
neles, para além da crítica da Metafísica e de todos os desconstrucionismos contemporâneos de que esta tem sido alvo e objecto, uma hipótese viável de refundação de uma racionalidade prática que possa dar ainda um sentido, se não já um
fundamento, para a vida histórica dos seres humanos. Se há, pois, um neokantismo
na actualidade, ele é sobretudo um neokantismo da razão prática, entendida esta,
porém, em todo o seu âmbito, como compreendendo em relação orgânica as
dimensões da Moral, do Direito e da Política.
O presente volume é uma expressiva amostra dessa reconhecida fecundidade
e actualidade do pensamento jurídico e político de Kant e constitui ele próprio um
relevante contributo para um debate ainda só começado.
Apresentação
11
Registe-se aqui o nosso muito sincero e cordial agradecimento, em primeiro
lugar, aos Autores dos ensaios, não só pela sua participação no Seminário como
pelo esforço que puseram em enviar-nos oportunamente os seus textos; agradecimento extensivo também aos participantes no Seminário, que, tendo apresentado
nele as suas muito estimulantes comunicações, não puderam depois, por alguma
razão, enviá-las em versão textual a tempo de as podermos publicar. Infelizmente,
as condições estabelecidas pela entidade financiadora do Projecto não nos permitiram dilatar o tempo de espera.
Leonel Ribeiro dos Santos
A Compatibilidade do Republicanismo Kantiano
com o Modelo do Contrato Social
André Berten
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE LOVAINA
Uma diferença fundamental entre o republicanismo e o liberalismo político
diz respeito à concepção da liberdade, e principalmente da liberdade negativa. Essa
diferença implica também uma recusa, pelo republicanismo, do modelo do contrato
social e de seu individualismo; e finalmente uma desconfiança para com a democracia direta. Neste artigo, pretendo examinar se as idéias de liberdade, de contrato
social e de democracia em Kant se aproximam da definição do republicanismo ou
ficam antes marcadas pelo liberalismo.
Para fazer isso, apresentarei uma concepção do republicanismo contemporâneo inspirada nas obras de Pocock, Skinner e Pettit, isto é, a concepção inspirada
no republicanismo romano, italiano e anglo-saxão (mas muito menos no republicanismo francês).
Em segundo lugar, discutirei três passagens importantes da obra kantiana
que apresentam como característica da “república” um regime constituído pela
liberdade do homem, a igualdade dos sujeitos e a independência dos cidadãos. Em
seguida, discutirei a posição kantiana a respeito do contrato social e da democracia.
A minha tese é que Kant fica dividido entre uma concepção jurídica preferentemente liberal e uma defesa política de alguns valores republicanos. Noutras
palavras, o republicanismo kantiano situa-se entre o modelo liberal (Hobbes-Rawls) e o modelo neo-republicano (Rousseau-Pettit).
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 13-41
14
André Berten
I. Do republicanismo
O mais importante, na perspectiva que pretendo defender aqui, é dar primeiro uma definição (convencional e seletiva) do republicanismo, tal qual é apresentado numa corrente importante de filosofia política contemporânea.
O republicanismo de que se trata nasceu na Roma antiga (Cícero)1, desapareceu durante a Idade Média, e renasceu nas cidades italianas no fim da Idade Média
e do Renascimento: primeiro em Dante 2 e Marsílio de Pádua 3, e depois em Maquiavel4. Fala-se então também de “humanismo cívico”5. Mais tarde, o republicanismo
de Montesquieu e Rousseau desempenhou um papel importante na Revolução francesa, apesar de o destino desta ter tomado rumos pouco compatíveis com as orientações fundamentais do republicanismo clássico. Nas últimas décadas, se defendeu
a tese de que foi uma idéia republicana que inspirou o radicalismo britânico do
século XVIII e a Revolução americana. Durante muito tempo, o consenso era que
foi o liberalismo, principalmente de John Locke, que teve o papel o mais importante. Mas a escola revisionista, iniciada por J. G. A. Pocock 6, defendeu a tese de
que no começo do século XVIII as idéias republicanas – como as de Harrington7 –
foram tão importantes quanto as liberais.
Hoje em dia, o termo “republicanismo” se aplica a muitas coisas diferentes (se tornou um termo “na moda”). Os maiores teóricos, na perspectiva que
analisarei aqui, são Philip Pettit8 e Cass Sunstein9. J. G. A. Pocock e Quentin
——————————————
1
Por vezes, se apela a Aristóteles, pelo menos a uma certa leitura de Aristóteles (cf. Sérgio Cardoso, «Que república? Notas sobre a tradição do “governo misto”», in Newton Bignotto (org.), Pensar a
República, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002, pp. 27-48).
2
Dante Alighieri, De monarchia (1313-1318).
3
Marsílio de Pádua, O Defensor da Paz (1324). Tradução de José Antonio C. R. de Souza,
Petrópolis, Vozes, 1997.
4
Nicolau Maquiavel, Il Principe, (1513); Discorsi sopra la Prima Deca di Tito Livio, 3 volumes,
(1512-1517).
5
Embora houvesse muitas afinidades entre o republicanismo e o humanismo cívico, prefiro
distingui-los, considerando o primeiro como uma concepção antes política e o segundo como uma concepção também ética. No entanto, a distinção aqui será sobretudo metodológica (cf. as referências a Rawls
neste artigo; cf. também a cuidadosa apresentação histórica em Newton Bignotto, Origens do Republicanismo Moderno, Belo Horizonte, ed. da UFMG).
6
J. G. A. Pocock, The Machiavellian Moment: Florentine Political Theory and the Atlantic
Republican Tradition, Princeton (NJ), Princeton University Press, 1975.
7
Cf. James Harrington, The Commonwealth of Oceana (1656) in The Political Works of James
Harrington (ed. J. Pocock), Cambridge, Cambridge University Press, 1997.
8
Philip Pettit, Republicanism. A Theory of Freedom and Government, Oxford, Clarendon Press.,
1997.
9
Cass R. Sunstein, After the Rights Revolution. Reconceiving the Regulatory State, Cambridge
(Mass.) & London, Harvard University Press, 1990.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
15
Skinner10, republicanos convictos, são mais historiadores do republicanismo do que
teóricos. Talvez possamos contar também como republicano Michael Sandel11,
apesar de ele ser melhor qualificado de comunitarista12.
“República” refere, geralmente, uma forma de governo baseada sobre a virtude cívica, a liberdade dos cidadãos e da pátria, lei não arbitrária, o Estado de
direito (rule of law), um governo misto, com separação dos poderes, uma preferência para uma dispersão do poder (assim como no federalismo, a descentralização e
os “checks and balances”), a independência do judiciário, e, finalmente, direitos
fundamentais que protegem a dignidade do indivíduo e a capacidade deliberativa
de todos os cidadãos. A república se opõe simetricamente ao despotismo e à democracia direta. Portanto, a república deve ser um regime “representativo” sem conceder à representação um valor absoluto13.
O republicanismo suscitou várias críticas. John Rawls, por exemplo, define a
sua posição não somente contra o utilitarismo, o libertarismo e o comunitarismo,
mas também contra uma certa forma de “republicanismo”, que ele chama de
“humanismo cívico”. Porém, Rawls, ao definir o “republicanismo clássico” como
«uma posição que exige dos cidadãos de uma sociedade democrática, se quiserem
preservar suas liberdades e direitos fundamentais, inclusive os direitos civis que
garantem suas liberdades privadas, possuírem também, num grau suficiente, as
“virtudes políticas” e estarem prontos a participar na vida pública»14, está ele
mesmo muito próximo do republicanismo. Apesar de reconhecer as diferenças que
podem ser importantes, entre o republicanismo clássico e a teoria da justiça como
equidade, ele estima que «não existe uma oposição fundamental pois o republicanismo clássico não pressupõe uma doutrina abrangente, religiosa, filosófica ou
moral»15. A crítica é, sim, contra o “humanismo cívico” que Rawls considera como
uma forma de aristotelismo «segundo a qual o homem é um animal social e até
político cuja natureza essencial se realiza por excelência numa sociedade democrá——————————————
10
Quentin Skinner, The Foundations of Modern Political Thought, vol.I, The Renaissance, vol. 2,
The Age of Reformation, Cambridge, New York, Cambridge University Press, 1978.
11
Michael J. Sandel, Democracy's Discontent. America in Search of a Public Philosophy, Cambridge (Mass.), The Belknap Press of Harvard University Press, 1996.
12
Claro, há também outros autores republicanos, como Maurizio Viroli, Republicanism, New York,
Hill and Wang, 2002; Jean-Fabien Spitz, La liberté politique, Paris, PUF, 1995; Gordon S. Wood, The
Radicalism of the American Revolution, 1991.
13
Sendo dada a imperfeição insuperável da representação, os republicanos privilegiam as formas de
controle a posteriori (cf. Pettit, 1997, o.c., cap. VII).
14
John Rawls, Libéralisme politique, tr. C. Audard, Paris, PUF (Political Liberalism, New York,
Columbia University Press, 1993), V, 5, p. 250.
15
O.c., p. 250-251.
16
André Berten
tica onde existe uma ampla e intensa participação política.»16. Rawls recusa uma tal
concepção porque a participação política é aí considerada como uma forma da
«vida boa»17.
Jürgen Habermas também tenta situar-se entre o modelo liberal e o modelo
republicano, mas dá uma interpretação deste último que o assimila ao humanismo
cívico. Assim como a de Rawls, a posição habermasiana fica muito próxima do
republicanismo, apesar da argumentação ser de um tipo especulativo que aspira a
uma forma de síntese entre liberalismo e republicanismo18.
As formas contemporâneas de republicanismo compartilham várias características com o liberalismo, o que facilitará, sem dúvida, o julgamento sobre o
“republicanismo liberal” de Kant. Pois, o liberalismo e o republicanismo «compartilham uma mesma fé na autoridade da lei e do Estado de direito.»19.
Da liberdade negativa
Há uma distinção importante que, muitas vezes, fica ocultada por uma outra.
Geralmente, se faz uma distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva,
atribuindo esta última ao republicanismo. Mas, na verdade, o republicanismo de
que se trata aqui adota também uma concepção negativa da liberdade: a distinção
importante situa-se entre duas formas de liberdade negativa.
Para tornar isso claro, lembremos a diferença clássica entre o que Benjamin
Constant chamou de liberdade dos Antigos e liberdade dos Modernos20. Contrapondo a liberdade dos indivíduos em relação ao Estado ou ao público à liberdade
dos cidadãos no Estado, Constant afirma que a primeira forma de liberdade seria
característica dos “modernos”, isto é das sociedades marcadas pela prevalência dos
interesses individuais, permitindo que os indivíduos pudessem dedicar-se a procurar seus fins pessoais. A liberdade dos modernos é a ausência de ingerência da
autoridade pública na conduta da vida dos indivíduos: liberdade de consciência, de
——————————————
16
O.c., p. 251.
17
Rawls atribui essa concepção a Rousseau, seguindo aqui Charles Taylor (Philosophical Papers
II, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, pp. 334-335) e Hannah Arendt. Uma boa discussão do
caráter social do indivíduo se encontra em Philip Pettit, The Common Mind: An Essay on Psychology,
Society and Politics, New York, Oxford University Press, 1993.
18
Cf. entre outros, Jürgen Habermas, A inclusão do outro. Estudos de teoria política, tr. G. Sperber
& P.A. Soethe, São Paulo, Edições Loyola, 2002; (tr. de Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur
politischen Theorie, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main), pp. 269-285.
19
Philip Pettit, «Libéralisme. Libéralisme et républicanisme», in Monique Canto-Sperber (dir.),
Dictionnaire d'éthique et de philosophie morale, Paris, PUF, 2004, vol. II, p. 1082.
20
«De la liberté des Anciens comparée à celle des Modernes» (1819) in Benjamin Constant, De la
liberté chez les modernes: écrits politiques, Paris, Livre de Poche, 1980, pp. 493-515.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
17
escolher sua concepção da vida boa. Essa liberdade dos Modernos corresponde a
«liberdade negativa» de Isaiah Berlin21. Segundo esse autor, o significado do conceito de liberdade negativa é «a liberdade de não ser impedido de agir», liberdade
limitada pela liberdade igual do outro. Esse conceito recebeu uma formulação
poderosa em Thomas Hobbes, que define o direito de natureza como «liberdade
que cada um tem de usar como queira seu poder próprio» e a liberdade como
«ausência de obstáculo exterior»22. A segunda forma de liberdade – a dos “antigos”
(antigos gregos e romanos) – é aquela que diz respeito à possibilidade de participar,
à igualdade com os outros cidadãos, à decisão política, à direção dos negócios
públicos: é a liberdade cívica, dita também liberdade “positiva”. Os liberais, em
geral, desde Hobbes, adotaram uma concepção “moderna” da liberdade: ser livre
define-se “negativamente”, pela ausência de constrangimentos, e portanto pela não-interferência do Estado sobre o privado.
O republicanismo como entendido aqui defende a liberdade negativa, mas
tem uma concepção diferente da liberdade negativa – Pettit fala de liberdade como
não-dominação. As citações seguintes deixam claro o significado dessa concepção
da liberdade. Para o liberalismo,
«A lei sendo uma forma de ingerência – no mínimo, ela tem um efeito
coercitivo sobre os indivíduos –, ela é um exemplo do tipo mesmo de ato que é
contrário à liberdade; se ela aumenta globalmente a liberdade, é porque ela produz um efeito compensador e positivo do fato de que ela proíbe a ingerência dos
outros. A relação entre a lei e a liberdade é portanto meramente extrínseca.»23.
Para o republicanismo, pelo contrário,
«Segundo a doutrina republicana mais antiga, são as leis de um Estado
aceitável, em particular, as leis de uma república, que criam a liberdade da qual
desfrutam os cidadãos.»24.
Por outras palavras, não há liberdade sem leis e civitas. Ou, como o afirmou
claramente Pettit, a liberdade não é somente a ausência fatual de constrangimento,
mas a “não-dominação”, isto é uma liberdade garantida e criada pela lei25.
——————————————
21
Isaiah Berlin, «Two concepts of liberty», in Four Essays on Liberty, Oxford, 1969, p. 122-134.
22
Thomas Hobbes (1651), Leviathan, Part II, cap. 21.
23
Pettit, 2004, a.c., p. 1082.
24
Ib.
25
Essa concepção fica conectada com uma forma original de “individualismo holista”, isto é a idéia
que muitas características do indivíduo dependem, de maneira necessária, de suas relações com os outros ou
as instituições (Cf. Pettit, 1993, o.c., cap. 3 e 4).
18
André Berten
O primeiro que defendeu uma concepção radicalmente liberal da liberdade
foi Hobbes que considerou que se podia ser livre sob qualquer regime. A liberdade
começa no silêncio das leis. Ela é portanto uma questão de grau, uma questão
empírica. É por isso que Hobbes pôde até defender um poder absoluto. Harrington
foi o primeiro a lhe responder. Locke, embora liberal em alguns aspectos e muitas
vezes considerado como tal, defende contudo uma concepção positiva – e republicana – da lei:
«O que só nos impede de cair nos […] precipícios merece mal o nome de
constrangimento; […] a finalidade da lei não é abolir a liberdade nem restringi-la, mas preservá-la e ampliá-la.»26.
Liberalismo, republicanismo, democracia
«No que toca ao processo político, liberais e republicanos são todos, de
maneira geral, democratas, e ainda mais, pode-se supor que são adeptos da
democracia universal.»27.
No entanto, pode se distinguir dois perfis diferentes do processo político
eletivo. Os liberais têm tendência para adotar uma concepção “preferencial” do
voto: os eleitores são como consumidores e os homens políticos como vendedores
ou fornecedores de bens. Os republicanos têm a tendência para adotar uma concepção do voto “segundo o juízo” (é, mais ou menos, um modelo deliberativo).
«Enquanto o principal argumento em favor do modelo preferencial do
voto é que ele fica mais bem situado para favorecer o fim utilitarista que constitui a satisfação global das preferências, para defender o modelo do voto baseado
sobre o juízo, se utiliza dois tipos de argumentos diferentes. O primeiro argumento é que se a população participa nos debates e expressa suas opiniões sobre
——————————————
26
«…for law, in its true notion, is not so much the limitation as the direction of a free and intelligent agent to his proper interest, and prescribes no farther than is for the general good of those under that
law: could they be happier without it, the law, as an useless thing, would of itself vanish; and that ill deserves the name of confinement which hedges us in only from bogs and precipices. So that, however it may
be mistaken, the end of law is not to abolish or restrain, but to preserve and enlarge freedom: for in all the
states of created beings capable of laws, where there is no law, there is no freedom: for liberty is, to be free
from restraint and violence from others; which cannot be, where there is no law: but freedom is not, as we
are told, a liberty for every man to do what he lists: (for who could be free, when every other man’s humour
might domineer over him?) but a liberty to dispose, and order as he lists, his person, actions, possessions,
and his whole property, within the allowance of those laws under which he is, and therein not to be subject
to the arbitrary will of another, but freely follow his own.», (John Locke, Two Treatises of Government,
Second Treatise, sect. 57).
27
Pettit, a.c., 1084.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
19
o que permite melhorar as políticas e sobre a questão de saber que conjunto de
políticas é realmente o melhor, então haverá uma probabilidade maior de que o
conjunto que é melhor, segundo os critérios mais bem defendidos, seja efetivamente escolhido. O outro argumento é que se a população participa nessas atividades, isso aumentará a qualidade da participação política e da comunidade no
seio da sociedade; isto sensibilizará os cidadãos para um assunto de interesse
público, de uma maneira intrínseca e instrumentalmente benéfica.»28.
Da mesma maneira, Pettit desenha duas figuras de homens políticos diferentes. O liberal será antes um “negociador” (ele representa as preferências dos
eleitores, preferências que não discute mas tenta defender) enquanto o republicano
será antes um “deliberador”.29
Por outro lado, a separação dos poderes e a sua dispersão devem impedir
uma pessoa, um grupo ou até a maioria de impor sua vontade a toda a sociedade.
Os republicanos pensam que é importante premunir-se contra o exercício arbitrário
do poder «inclusive contra o arbitrário do poder exercido pelo povo»30. É por isso
que a “separação dos poderes” não pode ser absoluta, pois isto significaria que o
poder legislativo (o poder institucionalizado da maioria) seria absoluto. Isto também impediria o governo (o executivo) de tomar decisões (as leis não podem prever tudo) e o judiciário de decidir nos casos difíceis.
O constitucionalismo de Pettit implica também que «devemos tentar garantir
que as leis investidas dessa supremacia não estarão demasiado acessíveis às
mudanças queridas pela maioria»31.
«Os argumentos republicanos que pleiteiam em favor de uma proteção
contra a vontade maioritária, pelo menos para algumas leis, são muito simples.
A maioria se forma facilmente – ela tem facilmente tendência em transformar-se
em agente real e não mais somente virtual; por conseguinte, se a vontade da
——————————————
28
Pettit, a.c., 1085.
29
Cf. Pettit, a.c., 1086. Pode se comparar essa caracterização do republicanismo por Pettit com
aquela dos modelos de democracia em Habermas (Jürgen Habermas, A inclusão do outro. Estudos de teoria
política, o.c.). É interessante também, nessa perspectiva, ver as críticas aos modelos de democracia deliberativa em Philip Pettit, «Deliberative Democracy and the Discursive Dilemma», Philosophical Issues
(Supp. Nous), 2001, ol 11.
30
Philip Pettit, Republicanism, o.c., cap. VI.
31
Ib.
20
André Berten
maioria não for contida, terá tendência a exercer um poder mais ou menos arbitrário.»32.
«A idéia de instituir proteções contra a maioria exige uma concepção da
lei na qual a lei em sentido próprio – e eu falo aqui da lei propriamente dita, e
não daquilo que foi querido pelo legislativo – se reconhece a um critério que não
se reduz ao fato que essa lei foi votada pela maioria. Os Republicanos pensam
que esse critério é constituído pelo ideal da liberdade como não dominação»33.
Essa última citação mostra claramente que os critérios de um regime republicano não podem ser somente empíricos e formais ou procedimentais.
Minha tese é que Kant “balança” entre uma concepção liberal – principalmente na sua definição do direito – e uma concepção republicana, principalmente
na crítica do despotismo.
II. O republicanismo de Kant
«… a constituição republicana [die republikanische Verfassung], a única
que seja plenamente conforme aos direitos do homem, é também a mais difícil
de estabelecer e de conservar» (Zum ewigen Frieden, primeiro suplemento 1,
Ak. VIII, 366)
a) Três textos
Eu vou tomar como definição kantiana do “republicanismo” as três formulações diferentes onde Kant expõe os “princípios” fundamentais de uma constituição
republicana:
- Um texto de 1793, Über den Gemeinspruch, (UdG)
Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber
nicht für die Praxis (Ak. VIII, pp. 273-313). (Sobre a expressão corrente: isto pode
ser correcto na teoria, mas nada vale na prática, In A paz perpétua e outros opúsculos, pp. 57-102. Tradução de A. Mourão, Lisboa, Edições 70, 1988).
- Um texto de 1795, Zum ewigen Frieden (ZeF) («Primeiro artigo definitivo»
Zum ewigen Frieden: Ein philosophischer Entwurf (Ak. VIII, 314-386). (A
paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1988)
——————————————
32
Ib.
33
Ib.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
21
- Um texto de 1797, Rechtslehre (RL) (§ 46)
Metaphysik der Sitten, Erster Teil: Anfangsgründe der Rechtslehre. (Ak. VI,
203-493). (A metafísica dos costumes, trad. e notas de E. Bini, São Paulo, Edipro,
2003, pp. 49-216)
Nesses textos, os três princípios fundamentais são a liberdade, a igualdade e
a independência (em ZeF, a dependência).
Em ZeF, Kant diz explicitamente que esses princípios determinam uma
constituição [Verfassung ou Konstitution] como “republicana” [republikanische].
Em UdG, Kant fala do estado civil considerado como estado jurídico [rechtlicher] e
indica que um cidadão deve ser considerado como membro de um “gemeine
Wesen”, o que pode ser traduzido por “república”34. Em RL, Kant utiliza de novo a
expressão “gemeine Wesen”. Além disso, ele dá uma definição do Estado onde
essa expressão remete para a expressão latina res publica:
«Esse estado dos indivíduos no seio de um povo na sua relação recíproca
é chamado de estado civil (status civilis), e o conjunto destes em relação aos
seus próprios membros, é chamado de Estado (civitas), o qual, devido a sua
forma, enquanto ele está ligado pelo interesse comum de todos de permanecer
no estado jurídico, é chamado de república [das gemeine Wesen] (res publica
latius sic dicta).» (Ak. VI, 311)
Essa expressão, gemeine Wesen, é interessante também porque ela evoca a
idéia de “bem comum”, idéia central na perspectiva neo-republicana, e pode ser
associada com “res publica”, coisa pública, corpo comum, comunidade, comunidade ética35.
——————————————
34
Em UdG, Kant não utiliza o termo “republikanisch” ou “Republikanism” (como em ZeF), mas
sempre “gemeine Wesen”. Contudo, a descrição de gemeine Wesen corresponde à de “republikanische
Verfassung” em ZeF. (O uso de “Republik” é mais raro e visa antes as repúblicas existentes – como a
República francesa). Na Crítica da faculdade do juízo, § 60, Kant escreve: «A tendência ativa a uma sociabilidade legal constitui um povo como corpo comum [gemeine Wesen] duradouro». Na Carta a Jung-Stilling, março 1789, Ak. XI, p. 10, Kant escreve: «A legislação civil tem como princípio supremo essencial realizar o direito natural do homem que, no status naturalis (antes da associação civil) é uma mera
Idéia, isto é submeter esse direito a prescrições públicas gerais, acompanhadas da coerção adequada,
segundo as quais pode ser garantido ou proporcionado a cada um seu direito […] Salus rei publicae (a
conservação da simples forma legal de uma sociedade civil) suprema lex est.».
35
Kant utiliza o termo nesse sentido em A religião dentro dos limites da simples razão: Begriff
eines «ethischen gemeinen Wesens»; «Begriff einer in den Prinzipien Freiheit und Gleichheit gegründeten
Gesellschaft». Cf. Samuel Klar, Moral und Politik bei Kant. Eine Untersuchung zu Kants praktischer und
politischer Philosophie im Ausgang der «Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft», Würzburg,
Königshausen & Neumann, 2007, cf. cap. 6.2: «Das “ethische gemeine Wesen” als das “höchste sittliche
Gut”: das gesellschaftliche supremum», pp. 192 sq.
22
André Berten
Em UdG, os princípios a priori são aqueles do estado civil, isto é de todo
estado jurídico. Em RL, se trata da sociedade civil ou do Estado, e seus membros
são considerados como legisladores [«zur Gesetzgebung vereinigten Glieder»].
Eis os textos:
A. Über den Gemeinspruch (1793)
«Assim, o estado civil [bürgerliche Zustand], considerado simplesmente como estado jurídico [rechtlicher], está fundado sobre os
princípios a priori seguintes:
1. A liberdade de cada membro da sociedade como homem.
2. A igualdade deste com todo outro, como súdito [Unterthan].
3. A independência de todo membro de uma república [gemeinen
Wesens], como cidadão [Bürgers].» (Ak. VIII, 290)
B. Zum ewigen Frieden (1795)
«Erster Definitivartikel zum ewigen Frieden»
«Die bürgerliche Verfassung in jedem Staat soll republikanisch sein»
«A constituição que se funda [gestiftete Verfassung,] primeiro sobre o
princípio [Prinzipien] da liberdade dos membros de uma sociedade (como
homens), em segundo lugar sobre o princípio [Grundsätzen] da dependência de
todos (como súditos) de uma legislação única, e em terceiro lugar sobre a lei da
igualdade desses (como cidadãos), essa constituição é a única que procede da
idéia do contrato originário e sobre a qual deve se fundamentar toda legislação
jurídica de um povo. Uma tal constituição é republicana [republikanische]. Ela
é portanto, em si, no que diz respeito ao direito, aquela que está na base originariamente de toda a espécie de constituição [Konstitution] civil.» (Ak. VIII, 349-350)
C. Rechtslehre, § 46 (1797)
«Os membros dessa sociedade [Gesellschaft] (societas civilis), que se
acham unidos para legislar, ou seja, os membros de um Estado, são chamados de
cidadãos [Staatsbürgers] (cives), e os atributos jurídicos inseparáveis de sua
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
23
essência (enquanto tal) são a liberdade legal de obedecer unicamente à lei à qual
deu seu assentimento; a igualdade civil, consistindo em não reconhecer em relação a si mesmo no povo outro superior [Oberen] que aquele que tem o mesmo
poder moral de obrigar juridicamente que o outro pode obrigá-lo e, em terceiro
lugar a independência civil, que consiste em não dever sua existência e preservação ao arbítrio [Willkür] de um outro indivíduo no povo, mas aos seus próprios direitos e forças como membro da república [gemeinen Wesens], e por
conseguinte a personalidade civil [bürgerliche Persönlichkeit], que consiste em
não ser representado por nenhum outro nos casos de direito.» (Ak. VI, 314)
b) O status dos direitos
Os princípios ou direitos fundamentais são princípios racionais, inerentes à
humanidade e imprescritíveis. Eles pertencem a um estado jurídico idealizado,
suprasensível, mas devem definir a positividade do direito efetivo. Em UdG, Kant
escreve:
«Esses princípios são menos leis que dá o Estado já instituído [errichtete]
que (leis) segundo as quais só a instituição de um Estado [Staatserrichtung] é
possível, conforme aos puros princípios racionais [Vernunftprincipien] do
direito humano externo em geral.» (Ak. VIII, 290)
Em ZeF, comentando os três princípios fundamentais, Kant acrescenta:
«A validade desses direitos inatos, necessariamente inerentes à humanidade e imprescritíveis, se acha confirmada e enaltecida pelo princípio das relações jurídicas do próprio homem a um mundo mais alto (se ele concebe um tal),
onde o homem percebe-se segundo os mesmos princípios, enquanto cidadão de
um mundo suprasensível.» (Ak. VIII, nota, 350)
Em RL, Kant diz que «o princípio formal da possibilidade» do estado jurídico [der rechtliche Zustand] deve ser «considerado segundo a Idéia de uma vontade legislando universalmente» [§ 41, Ak. VI, 305-306].
Esse status dos direitos básicos pode ser considerado como um quadro regulador. O direito ideal deveria ser deduzido dos princípios da razão mas o direito
real deve ser avaliado ou julgado – e não pode ser deduzido – a partir da Idéia
reguladora do direito ou da “república”, como Kant já dizia na Crítica da razão
pura36:
——————————————
36
Kant critica aqueles que consideram que a Idéia de República platônica corresponde a um puro
sonho irrealizável e, portanto, deveria ser afastada. «Uma constituição que procura a maior liberdade
humana segundo leis que permitem que a liberdade de cada um possa coexistir com a dos demais (…) é em
24
André Berten
«Um Estado (civitas) é a reunião de uma multiplicidade de homens sob
leis jurídicas. Na medida em que estas são, como leis a priori necessárias, isto é
procedem por elas mesmas de conceitos do direito exterior em geral (não são
estatutárias), sua forma é a forma de um Estado em geral, isto é do Estado na
sua idéia, como ele deve [soll] ser segundo puros princípios de direito, idéia que
serve de linha diretriz [Richtschnur] (norma) para toda reunião efetiva em vista
de constituir uma república [gemeine Wesen] (portanto de maneira interior).»
(RL, § 45, Ak. VI, 313)
Isto significa claramente que, idealmente, na forma (isto é, formalmente), o
Estado deve ser deduzido de leis a priori, necessárias, mas que as leis concretas
(estatutárias) devem ser avaliadas segundo a sua maior ou menor aproximação a
essa “linha diretriz”. Colocando a questão da república no pensamento kantiano,
devemos nos lembrar dessa caraterística “reguladora” do modelo político, principalmente quando, ao analisar as limitações impostas por Kant à liberdade, igualdade e independência, encontraremos contradições entre esses direitos fundamentais e absolutos e as posições concretas no contexto histórico e político do século
XVIII.
Agora, vamos ver como Kant define os termos de liberdade, igualdade e
independência nessa constituição republicana.
c) A questão da liberdade
A questão da liberdade é central para entender a definição do republicanismo
em geral, e em Kant em particular. Pois, na concepção do republicanismo que
adotei na primeira parte, a defesa de uma liberdade negativa específica é o que
permite distinguir o republicanismo tanto do liberalismo como das formas mais
fortes de humanismo cívico ou mesmo do comunitarismo.
Como o notou Norberto Bobbio37, nos textos políticos e jurídicos de Kant,
existem duas noções de liberdade que não são bem distintas. Bobbio toma como
referência os conceitos clássicos, desde Constant e Berlin, de liberdade “negativa”,
de tipo liberal, e liberdade “positiva”, de tipo republicano ou rousseauista – isto é,
——————————————
todo caso pelo menos uma Idéia necessária que se deve tomar como fundamento, não somente no bosquejo
dos primeiros contornos de uma constituição política, mas também para todas as leis…». Embora uma
constituição perfeita nunca pudesse ser realizada, «a Idéia fica contudo totalmente justa que estabelece esse
máximo como o modelo necessário para aproximar sempre mais, em referência a este, a constituição jurídica dos homens da maior perfeição possível.» (Crítica da razão pura, Dialética transcendental, Ak. III,
247-248).
37
Norberto Bobbio, «Deux notions de la liberté dans la pensée politique de Kant», in Annales de
philosophie politique, 4, La philosophie politique de Kant, Paris, PUF, 1962, pp. 105-118.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
25
tenta situar Kant na oposição clássica do liberalismo e do republicanismo38. Essa
ambiguidade vem, a meu ver, do fato de Kant usar um modelo liberal na sua teoria
do direito e um modelo quasi republicano na sua teoria política. A liberdade significa, por um lado, a faculdade de cumprir ou não cumprir certas ações quando não
estamos impedidos pelos outros, ou pela sociedade ou pelo Estado – é o sentido
liberal39; por outro lado, significa o poder de obedecer apenas às regras que nós
impusemos a nos mesmos: é o sentido moral que, na sua extensão, corresponde à
autonomia política ou democrática40.
Ora, essa oposição dificilmente dá conta do uso kantiano do conceito de
liberdade (aliás dos dois conceitos de “Freiheit” e “Willkür”), principalmente do
conceito moral de liberdade. Não podendo discutir aqui a complexidade desse uso
através da obra de Kant, ficarei no contexto delimitado do uso dos conceitos na
perspectiva de sua inserção na filosofia política, mais precisamente, do uso do conceito de liberdade como um dos princípios – com a igualdade e a independência –
da república, isto é do regime político privilegiado por Kant. A liberdade “negativa”, entendida pelos liberais – segundo a leitura de Berlin – significa a liberdade
de fazer qualquer coisa sem ser impedido pelos outros. No sentido kantiano, se
trata mais de Willkur que de Freiheit. A liberdade que Kant defende como primeiro
princípio parece, em primeira vista, a Freiheit.
- A liberdade no quadro do direito
Kant adota a perspectiva moderna do direito entendido como direito subjetivo. Por conseguinte, a conexão do direito e da liberdade subjetiva não é somente
estrita, ela é constitutiva da definição mesma do direito: «o conceito de um direito
externo em geral é derivado inteiramente do conceito de liberdade [Freiheit] nas
relações mútuas externas dos seres humanos» (UdG, Ak. VIII, 289). – «O direito é
a limitação da liberdade de cada um sob a condição de seu acordo com a liberdade
de todo outro, enquanto essa [limitação] é possível nos termos de um lei geral.» (ib.
289-290) – «O direito é portanto o conjunto das condições sob as quais o arbítrio
de um pode ser unido com o arbítrio de outrem de acordo com uma lei universal de
liberdade.» (RL, Einleitung, § B «O que é o direito?» Ak.VI, 229) – «Toda ação é
justa [recht] que, de acordo com as máximas, pode fazer coexistir a liberdade do
——————————————
38
Mas sem levar em conta a possibilidade de uma definição nova do republicanismo.
39
«A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem» (Montesquieu, Esprit des Lois, XI, 3).
40
«A obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade» (Rousseau, Contrat social, L. I,
ch. VIII).
26
André Berten
arbítrio [die Freiheit der Willkür] de cada um com a liberdade de todos os demais
segundo uma lei universal.» (id. § C Princípio universal do direito, Ak. VI, 230)41.
Devemos portanto definir o tipo de liberdade que está em jogo nessas definições. Na definição do direito, em RL, Kant insiste sobre o fato que o conceito de
liberdade em relação com o direito é um conceito meramente formal. O conceito de
direito, em primeiro lugar, remete somente para uma relação exterior (enquanto as
ações como facta podem ter uma influência umas sobre as outras). Em segundo
lugar, ele diz respeito às relações entre o arbítrio [Willkür] de um e do outro. Em
terceiro lugar, nessa relação recíproca entre arbítrios, não intervém a matéria do
arbítrio, isto é o fim que todo o indivíduo pode conceber para o objeto que ele quer,
mas somente a forma da relação entre os arbítrios considerados simplesmente
como livres, para que a ação de um dos dois se deixe conciliar com o arbítrio do
outro segundo uma lei universal (cf. Ak. VI, 230). Essa formalidade se justifica em
função de um direito “natural”: o direito de cada um escolher livremente seus fins
empíricos. O direito não se pode determinar a partir de princípios “empíricos”, mas
deve ser baseado sobre um «critério universal ao qual se pode reconhecer em geral
o justo e o injusto (justum et injustum)» e «a fonte desses julgamentos» deve ser
procurada «na simples razão» (Ak. VI, 230).
Há um aspecto negativo: o direito «não tem nada a ver com o fim que todos
os homens têm por natureza (isto é o objectivo de realizar sua felicidade) ou com
os meios reconhecidos para alcançar esse fim. E portanto esse fim não deve de
maneira nenhuma interferir como uma determinação das leis que governam o
direito externo» (UdG, AK. VIII, 289). E isso porque «Os homens têm concepções
tão diferentes do fim empírico da felicidade e em que ela consiste, que, em relação
à felicidade, eles não podem ser levados sob um princípio comum [gemeinschaftliches Prinzip] nem portanto sob uma lei externa harmonizando a liberdade de cada
um.» (290). Mas, positivamente, essa formalidade se funda sobre o direito de cada
um de procurar livremente seus fins empíricos, o que é um princípio fundamental
da modernidade liberal, mas faz parte também das reivindicações republicanas:
«ninguém pode compelir-me em ser feliz à maneira dele (aquela da qual ele concebe o bem-estar dos outros homens), mas é permitido a cada um procurar a felicidade na via que lhe parece, a ele, ser a boa» (290).
——————————————
41
Kant afirma também que o princípio de direito é «um postulado que não é mais passível de qualquer prova» (Ak. VI, 231), que é um «axioma de direito» (Ak. VI, 250). G. A. de Almeida cita também o
artigo sobre «O presumido direito de mentir por amor aos homens», onde Kant diz que uma metafísica do
direito requer «um axioma, isto é uma proposição apodicticamente certa, que resulta imediatamente da
definição do direito externo (concordância da liberdade de cada um com a liberdade de todos segundo uma
lei universal» (Ak. VIII, 349, in Guido Antônio de Almeida, «Sobre o princípio e a lei universal do direito
em Kant», Kriterion (Universidade Federal de Minas Gerais), n° 114, julho-dezembro 2006, p. 211).
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
27
- A liberdade no sentido político
Encontramos aqui portanto uma definição não da liberdade moral – a liberdade exigida «para a constituição» – mas da liberdade de escolha (a autorização de
procurar, cada um à sua maneira, sua felicidade), isto é, liberdade negativa (limitada pela mesma liberdade para os outros), definição que, sem outras precisões, é
tanto liberal quanto republicana. A intenção aqui não é estritamente jurídica, pois
se o que é importante, é a interdição de impor a outrem sua própria concepção da
vida boa, resulta daí a crítica política dos governos “paternalistas” e “despóticos”.
«Um governo [Regierung] que fosse fundado sobre o princípio da benevolência para com o povo, como aquele do pai para com os seus filhos, é um
governo paterno [väterliche] (imperium paternale), onde, por conseguinte, os
súditos, assim como crianças menores [unmündige] incapazes de decidir o que
lhes é verdadeiramente útil ou danoso, são obrigados em comportar-se de
maneira unicamente passiva e em esperar unicamente do juízo do chefe de
Estado a maneira como eles devem ser felizes, e unicamente de sua vontade que
ele o queira, – um tal governo, digo eu, é o maior despotismo que se possa conceber (constituição que suprime toda liberdade dos súditos que, a partir de então,
já não possuem mais nenhum direito).» (Ak. VIII, 290-291)
Conforme a idéia de «saída da menoridade» que Kant tinha desenvolvido em
1784 em Was ist Aufklärung?, ser maior significa decidir livremente, por si
mesmo, o que é útil ou danoso, o que torna feliz ou não. Kant acrescenta que «não
é um governo paternal [väterlich], mas um governo patriótico [vaterländlisch]
(…) aquele que é o único concebível para homens capazes de direitos (…)» (291).
Esse governo patriótico é o governo republicano,
«Pois, a maneira de pensar é patriótica quando cada indivíduo no Estado
(sem excetuar o Chefe) considera a república [gemeine Wesen] como o seio
maternal, ou ainda o país como o solo paternal do qual ele é procedente e onde
ele próprio nasceu, e que ele tem de deixar como um penhor precioso com o
único fim de preservar os direitos [do país, do solo] pelo meio das leis da vontade comum sem considerar-se como autorizado a dispor desses direitos segundo
o seu arbítrio incondicionado. – Esse direito da liberdade lhe pertence a título de
membro da república [gemeinen Wesens] enquanto homem, isto é enquanto ser
que de maneira geral é capaz de direitos» (Ak. VIII, 291).
O que conforta essa interpretação da liberdade jurídica como sendo já política, e não unicamente negativa é o fato de Kant ligar a definição da liberdade à
28
André Berten
obediência à lei desde que essa lei possa ser aceite como racional e justa42. Pois, em
ZeF, escreve:
«Não se pode definir, como de costume, a liberdade jurídica [rechtliche
Freiheit] (por conseguinte, exterior): “a faculdade de fazer tudo o que queira,
desde que não se lese o direito de outrem”. […] É muito melhor definir minha
liberdade exterior (jurídica): a faculdade de não obedecer a outras leis exteriores
senão aquelas às quais eu pude dar meu assentimento.» (ZeF, Primeiro artigo
definitivo, nota, Ak, VIII, 350)
Aparece aqui a oposição entre as duas concepções da liberdade. Kant fala da
liberdade jurídica, mas, na verdade, introduz uma concepção política: a concepção
liberal e negativa se une a uma concepção democrática – que não é idêntica à autonomia moral (não obedecer a outras leis senão aquelas que eu me dou a mim
mesmo enquanto ser razoável, ou às leis da razão), pois a lei jurídica não é a lei
moral. Em UdG, Kant defendia a liberdade de escolher a sua concepção da felicidade. Em ZeF e em RL, Kant defende uma concepção mais próxima da liberdade
democrática. De uma certa maneira, há uma justificação “crítica” para essa idéia da
liberdade como ligada à autonomia política: Kant introduz uma hierarquia entre a
liberdade como característica da razão humana e o livre arbítrio que se manifesta
empiricamente. A primeira (Freiheit) não pode ser conhecida teoricamente:
«O conceito de liberdade é um conceito racional puro e que por isto
mesmo é transcendente para a filosofia teórica, ou seja, é um conceito tal que
nenhum exemplo que a ele corresponda pode ser dado em qualquer experiência
possível, e de cujo objeto não podemos obter qualquer conhecimento teórico: o
conceito de liberdade não pode ter validade como princípio constitutivo da razão
especulativa, mas unicamente como princípio regulador desta e, em verdade
meramente negativo.» (RL, Ak. VI, 221)
Embora o direito esteja ligado só ao aspecto exterior da liberdade, organizando a compatibilidade dos livres arbítrios, a obrigatoriedade do direito se funda
sobre um imperativo categórico: a obrigação de sair do estado de natureza, a obrigação de entrar no estado civil, a obrigação de obedecer às leis positivas. Essa hierarquia tem como consequência que «não é possível definir a liberdade do arbítrio
[Freiheit der Willkür] – como alguns tentaram defini-la –, como a faculdade
[Vermögen] de realizar uma escolha [Wahl] a favor ou contra a lei (libertas indiffe——————————————
42
É verdade também que Kant não confia muito no juízo empírico dos “súditos” e, condenando
todo direito de resistência, concede à lei positiva existente uma validade a priori. Isto provém do fato que
um “direito” de resistência seria uma contradição in terminis, e de que é sempre melhor ter um direito,
mesmo imperfeito e injusto, que nenhum direito. É uma questão controversa nos comentadores de Kant.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
29
rentiae)», mesmo que o arbítrio forneça exemplos disso na experiência. Kant reconhece que «não podemos apresentar teoricamente a liberdade e mostrar como ela
pode exercer constrangimento sobre o arbítrio sensível; somos incapazes, portanto,
de apresentar a liberdade como uma propriedade positiva.». E devemos aceitar a
imperfeição do nosso conhecimento das relações complexas entre a liberdade
moral e a fraqueza de nosso arbítrio:
«É igualmente perceptível para nós que a liberdade jamais pode consistir
em que um sujeito razoável seja capaz de escolher em oposição à sua razão
(legisladora), ainda que a experiência prove com suficiente freqüência que isso
acontece (embora que não compreendamos como é isso possível). […] Somente
a liberdade em relação à legislação interna da razão é realmente uma capacidade
[Vermögen]; a possibilidade de dela se desviar é uma incapacidade. Como pode
a primeira ser definida pela última? Seria uma definição que acrescentaria ao
conceito prático o exercício dele, como o ensina a experiência, uma definição
híbrida (definitio hybrida) que apresenta o conceito sob uma falsa luz.» (RL,
Einleitung in die Metaphysik der Sitten, IV: Vorbegriffe zur Metaphysik der
Sitten; Ak. VI, 226-227)
A liberdade legal faz parte dos atributos jurídicos do cidadão, inseparáveis
de sua essência [Wesen]: «a liberdade legal [gezetsliche], é o atributo de obedecer
unicamente a lei à qual ele deu seu assentimento». É por isso que o contexto empírico que limita drasticamente o exercício da liberdade não pode ser uma objeção a
essa característica essencial do homem. Depois de ter discutido a igualdade e a
independência jurídicas, Kant constata os fatos de desigualdade e de dependência e
faz o seguinte comentário:
«Esta dependência [Abhängigkeit] da vontade de outros e esta desigualdade não se opõem, de modo algum, à sua liberdade [Freiheit] e igualdade
[Gleichheit] na qualidade de homens que, juntos, constituem um povo» (RL, Ak.
VI, 315).
Podemos ficar profundamente insatisfeitos da maneira kantiana de resolver
os problemas políticos da liberdade. No meu modo de ver, Kant fica preso da rígida
arquitetônica crítica, da partição absoluta entre razão teórica e razão prática e de
sua convicção que o direito sendo a melhor aproximação concreta da moral acaba
por ser também absolutamente obrigatório, e simultaneamente, que as injustiças
manifestam de uma certa maneira o “mal radical” e devem por conseguinte ser
30
André Berten
superadas. Para conciliar esses dois pontos de vistas, só resta uma filosofia da história cujo estatuto deve depender do juízo reflexionante43.
d) Igualdade
Não discutirei detalhadamente a questão da igualdade. Kant defende uma
concepção formal da igualdade jurídica, mas admite formas importantes de desigualdade, ligadas aos preconceitos de seu tempo. Por outro lado, Kant tem uma
verdadeira dificuldade em pensar a democracia como o regime que seria o mais
igualitário – entre outras razões, como veremos, porque ele não pode criticar de
maneira explícita o poder monárquico.
Vemos em primeiro lugar o aspecto formal e jurídico da igualdade. Da
mesma maneira que o direito tem uma conexão interna e necessária com a liberdade, a igualdade também faz parte da definição do direito – mas aqui a relação
insiste sobre o aspecto coercitivo, exterior do direito.
«… a igualdade exterior (jurídica) num Estado é essa relação dos cidadãos segundo a qual ninguém pode obrigar juridicamente os outros a algo sem
submeter-se à lei que consiste em poder ser obrigado igualmente por este, e da
mesma maneira.» (ZeF, Ak VIII, 349)
«a igualdade civil, consistindo em não reconhecer em relação a si mesmo
no povo outro superior [Oberen] que aquele que tem o mesmo poder [Vermögen] moral de obrigar juridicamente que o outro pode obrigá-lo» (RL, § 46, Ak.
VI, 314)
No comentário do princípio de igualdade, Kant afirma que a igualdade jurídica é compatível com as maiores desigualdades, não somente econômicas (fortuna) e de condições (talentos, superioridade física ou intelectual), mas de estatuto
(dono e empregado, marido e mulher…). Essas desigualdades e diferenças devem,
no entanto, ser regidas pela lei, pois «nenhum pode coagir o outro senão em virtude
da lei pública…». E Kant introduz uma crítica que poderia questionar indiretamente a legitimidade de poder monárquico, pois as desigualdades não podem ser
algo «hereditário»44 – isto é, perpétuo: «é preciso que todo membro do corpo
pudesse alcançar todo grau de condição […] onde o seu talento, sua atividade e sua
chance podem levá-lo…» (UdG, Ak. VIII, 292).
——————————————
43
Cf. principalmente «Idee zur einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlichen Absicht», (1784,
Ak. VIII, pp. 15-31); Der Streit der Fakultäten (1798, Ak. VII, 1-116); Zum ewigen Frieden, Primeiro
suplemento, Da garantia da paz perpétua (Ak. VIII, 360-368).
44
Kant critica abertamente os privilégios da nobreza hereditária.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
31
Na verdade, poder-se-ia aqui comparar o texto de Kant com as discussões
contemporâneas sobre a justiça, sobre o problema das desigualdades naturais (os
talentos), sobre as situações econômicas herdadas, etc. No meu modo de ver, o
kantismo de John Rawls, sua preocupação com a equidade, corresponde bastante
ao espírito de Kant, embora, no contexto concreto das sociedades atuais, possa
haver muitas diferenças. Admitindo que Rawls representa uma forma de liberalismo político próxima às vezes do republicanismo, essa convergência pleiteia para
uma interpretação republicana de Kant45. Veremos aliás que essas desigualdades
devem ser encaradas num perspectiva evolutiva, típica da filosofia da Aufklärung.
e) Independência
A questão da independência fica ligada imediatamente ao status de “cidadão” e, mais precisamente, às condições de participação ativa na política. Kant
adota, como no caso da igualdade, posições marcadas pelos estereótipos culturais
de sua época. Em primeiro lugar, há a afirmação clara que o princípio básico de
independência – direito “inato” e “imprescritível” – está ligado à condição de cidadão, isto é de “co-legislador”:
«A independência (sibisuficientia) de um membro da república como
cidadão [Bürger], isto é como co-legislador.» (UdG, Ak. VIII, 294)46
«a independência [Selbständigkeit] civil, que consiste em não dever sua
existência e preservação ao arbítrio [Willkür] de um outro indivíduo no povo,
mas aos seus próprios direitos e forças como membro da república [gemeinen
Wesens], e por conseguinte a personalidade civil, isto é o atributo de não ser
representado por nenhum outro nos casos de direito.» (RL, § 46, Ak. VI, 314)
Agora, qual é a qualificação que torna o cidadão capaz de ser co-legislador,
isto é de votar? Kant defende uma posição que podemos considerar como “ilustrada”, pertencendo ao ideário do progresso tornado possível pela educação. Para
——————————————
45
Nenhum pensador político importante defendeu um princípio igualitarista radical. O sentido da
exigência de igualdade deu lugar a um número incalculável de discussões (uma boa apresentação se encontra na Stanford Encyclopedia of Philosophy, artigo «Equality», http://plato.stanford.edu/ entries/equality/).
Para a posição de Kant nessa perspectiva, cf. entre outros, Joaquim Algado. A idéia de justiça em Kant: Seu
fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1986; Leslie A. Mulholland,
Kant's System of Rights, New York/Oxford, Columbia University Press, 1990).
46
Em ZeF, Kant parece se contradizer pois ele fala do princípio de dependência [Anhängigkeit].
Contudo, a definição do princípio de dependência corresponde à do princípio de igualdade jurídica e não
merece um comentário particular: «O princípio da dependência jurídica, desde que já está incluído no noção
de uma constituição em geral, não precisa de definição». Kant não introduz aqui a idéia de independência
como ele faz em UdG e RL.
32
André Berten
votar, tem que se possuir condições intelectuais e materiais. A condição intelectual,
é querer ser um membro efetivo da república, ser um cidadão ativo.
«A única qualificação para ser cidadão é estar apto a votar. Mas estar apto
a votar pressupõe a independência de alguém que, integrante do povo, deseja ser
não uma simples parte [bloss Teil] da república [gemeinen Wesens], mas também um membro [Glied] desta, isto é, uma parte da república que atua a partir
de sua própria escolha em comum com os demais. Esta qualidade de independência, contudo, requer uma distinção entre cidadãos ativos e passivos, embora
o conceito de cidadão passivo pareça contradizer o conceito de cidadão em
geral.» (RL, § 46, Ak. VI, 314)
Um cidadão ativo é um cidadão que não depende do outro para a sua subsistência. Kant dá exemplos: a mulher dependendo do marido, o empregado dependendo do empregador, não têm a independência necessária para participar ativamente da vida pública. Sem dúvida, esse julgamento revela o quanto Kant depende
aqui dos preconceitos de seu tempo. No entanto, isso não impede considerar as
suas opiniões como politicamente “progressistas”47 na medida em que essas limitações, em geral, podem ser consideradas como transitórias. Se todos os cidadãos não
têm a capacidade de contribuir para a formulação das leis ou mesmo de avaliar a
sua pertinência, pelo menos, enquanto cidadãos passivos, têm um direito absoluto
em serem tratados segundo as leis naturais da liberdade e da igualdade, «liberdade
e igualdade que consistem em poder ascender dessa condição passiva a uma ativa»
(RL, § 46, Ak. VI, 315).
De qualquer maneira, a independência corresponde a uma idéia republicana
essencial. A liberdade como “não-dominação” pressupõe exatamente a não dependência de outrem – e uma não dependência que não seja o resultado da boa vontade
arbitrária do soberano ou dos superiores: uma não dependência fundada sobre o
reconhecimento jurídico do cidadão. É nesse sentido que Kant critica a nobreza
hereditária, isto é as formas de dominação que não têm justificação funcional.
f) Contrato social
Uma pedra de toque da definição do liberalismo individual moderno e contemporâneo é a adoção do modelo do contrato social como contrato fundador da
sociedade civil e da sociedade política (quando há uma dualidade explícita ou
implícita de contratos: contrato de associação e contrato de submissão). Kant, aparentemente, formula também uma teoria do contrato originário, do contrato social
——————————————
47
Vale a pena lembrar que o sufrágio universal é recente (por exemplo, 1944 na França, 1948 na
Bélgica). Por certo, Kant nunca podia imaginar o voto das mulheres…
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
33
e, nesse sentido, deveria ser incluído na família liberal. Mas o que é interessante
em Kant, é a diferença radical entre todos os contratos – contrato entendido como
«ato dos livres arbítrios conjugados [vereinigten] de duas pessoas» (RL, § 18, Ak.
VI, 271) – e o contrato social ou contrato originário.
A idéia básica do contrato social liberal é simples. A questão é: como
homens livres, iguais, independentes por natureza, poderiam submeter-se a uma
autoridade, conservando seus direitos individuais. Portanto, o que formalmente
torna um sistema de instituições sociais coletivamente coercitivas legítimo é que
ele é o objeto de um acordo das pessoas que estão submetidas a ele. No caso de um
contrato real, por exemplo numa venda de um bem, cada parte tem uma razão para
respeitar os termos do contrato ao qual ele deu seu acordo. Da mesma maneira, no
caso do contrato social no sentido de Hobbes ou Rawls, cada cidadão deve ter
razões para respeitar os termos do contrato, isto é, as leis que resultam dos procedimentos democráticos (ou da vontade do soberano).
Por outro lado, se sabe que os republicanos convergem nas críticas da idéia
de contrato liberal típico, como foi formulado com a maior coerência por Hobbes e
ultimamente por Gauthier48.
Habermas expressa claramente essa crítica a Hobbes, mostrando que, para
passar racionalmente do estado de conflito permanente para o de cooperação protegida coercivamente, os sujeitos «teriam que poder compreender o significado geral
de uma relação social apoiada no princípio da reciprocidade». Mas, no estado natural, «ainda não aprenderam, antes de qualquer socialização, a assumir a perspectiva de um outro e a considerar-se a si mesmos na perspectiva de uma segunda
pessoa»49. E, da mesma maneira, os sujeitos naturais não podem assumir a perspectiva social de uma primeira pessoa no plural. «Sob premissas hobbesianas, eles não
podem assumir o ponto de vista a partir do qual qualquer um pode avaliar se a reciprocidade da coerção, que limita o arbítrio de cada um segundo leis gerais, é do
interesse simétrico de todos, podendo, por isso, ser querida por todos os participantes.»50.
Por outras palavras, a pressuposição dos indivíduos “naturais” tornaria o
contrato social impossível. E todas as críticas das teorias da sociedade baseadas
sobre um contrato mostram que os indivíduos pretendidos naturais são tipos de
pessoas histórica e culturalmente determinadas: o contrator individualista de Hobbes, o proprietário de Locke, o bom selvagem de Rousseau, a pessoa racional e
——————————————
48
David Gauthier, Morals by Agreement, Oxford, Oxford University Press, 1986.
49
Jürgen Habermas, Direito e democracia entre facticidade e validade, 2003, tr. de F. B. Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, vol. I, p. 124.
50
O.c., p. 125.
34
André Berten
razoável de Rawls, etc.51. Na maioria dos casos, se trata de uma extrapolação do
modelo do contrato privado, entre duas pessoas.
Nesse sentido, em primeiro lugar, Kant afirma claramente que o contrato
originário é radicalmente diferente de todos os outros contratos:
«Entre todos os contratos pelos quais uma multidão de homens se une
para formar uma sociedade (pactum sociale), o contrato estabelecendo uma
constituição civil (pactum unionis civilis) é de uma natureza tão particular que,
enquanto em relação a sua execução, ele tem muito em comum com todos os
outros (que são similarmente orientados para um fim escolhido que deve ser perseguido por um esforço comum), ele é essencialmente diferente de todos os
outros no princípio de sua instituição (constitutionis civilis). Em todos os contratos sociais [Gesellschaftsverträgen], encontramos uma união de muitos indivíduos para um fim (comum, que eles todos compartilham). Mas uma união desses mesmos homens, que é um fim em si (que todos devem compartilhar), portanto uma união em todas as relações exteriores dos homens em geral, que não
podem evitar influenciar-se mutualmente, é um dever incondicional e primário:
ela se encontra somente numa sociedade enquanto ela constitui um estado civil,
isto é uma república [gemeine Wesen].» (UdG, Ak. VIII, 289)52.
Em segundo lugar, Kant não instaura um corte radical entre um estado de
natureza asocial e o estado civil. Pelo contrário, ele considera que o estado de natureza é já um estado social, um estado onde existem regras de direito privado. «Se
não se quisesse, antes de entrar no estado civil, reconhecer como jurídica absolutamente nenhuma aquisição, nem sequer a título provisório, esse estado civil
mesmo seria impossível.» (RL, § 44, Ak. VI, 312). O indivíduo no estado de natureza é um homem, no sentido completo do termo que já está orientado pelos puros
conceitos da razão. As leis relativas ao meu e ao teu – leis de direito privado –
contêm, no estado de natureza, exatamente a mesma coisa que elas prescrevem no
estado civil. Kant vai ainda mais longe:
«Nesse sentido, se, no estado de natureza, não tivesse também, a título
provisório, um meu e um teu exteriores, tampouco existiriam deveres de direito
[Rechtspflichten] a respeito deles, e por conseguinte, não haveria nenhum mandamento [Gebot] impondo para sair de esse estado.» (RL, § 44, Ak. VI, 313).
——————————————
51
52
Cf. Carole Pateman, The Sexual Contract, Stanford, Stanford University Press, 1988.
«Kant percebeu que os direitos subjetivos não podem ser fundamentados segundo um modelo
extraído do direito privado. Contra Hobbes, ele levanta a seguinte objeção convincente: ele não levou em
consideração a diferença estrutural entre a figura de legitimação do contrato de socialização e um contrato
privado.», (Habermas, o.c., vol. I, p. 126).
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
35
Essas citações mostram como Kant fica entre o modelo liberal (o direito privado diz respeito ao meu e ao teu) e uma consideração da realidade moral e social
dos indivíduos, da qual surge a obrigação, o imperativo:
«até no estado de natureza podem existir sociedades conformes ao direito
(por exemplo, a sociedade conjugal, paterna, doméstica em geral, e muitos
outras ainda), a respeito das quais vale nenhuma lei a priori desse tipo: “Tu
deves entrar nesse estado”, enquanto, sem dúvida nenhuma, pode ser dito do
estado jurídico [rechtliche] que todos os homens que podem manter uns com
outros (até involuntariamente) relações de direito devem entrar nesse estado.»
(§ 41, Ak. 306, tr. 120).
O contrato social contém uma dimensão moral que o direito privado não
contém53. E, claro, nessa perspectiva não se pode deduzir o contrato social a partir
do cálculo interessado dos participantes. Como o notou Habermas,
«Sob este aspecto, o contrato social serve para a institucionalização do
direito “natural” a iguais liberdades de ação subjetivas. Kant vê esse direito
humano primordial fundamentado na vontade autônoma de indivíduos singulares, os quais dispõem preliminarmente, enquanto pessoas morais, da perspectiva
social de uma razão que examina as leis, a partir da qual eles podem fundamentar moralmente, e não apenas pela astúcia, a sua saída do estado de liberdades
inseguras.»54.
É significativo também que, em muitos aspectos, o contrato pensado por
Kant fica muito mais próximo do modelo de Rousseau55 do que do modelo de Hobbes. No entanto, apesar de todas as diferenças, Kant fica ligado ao modelo “proprietário” (e, em outros aspectos, também, repete alguns dos argumentos de Hob——————————————
53
Pode-se assimilar o direito privado a um estado de natureza. Kant não quer dizer, pelo contrário,
que no estado de natureza não tem “direito”. Há por exemplo um direito “doméstico, familiar”, etc., sem o
qual a passagem ao estado civil e ao direito público coercitivo ficaria impensável.
54
55
O.c., pp. 126-127.
«O contrato originário segundo o qual todos (omnes et singuli) no povo renunciam à sua liberdade externa para reassumi-la imediatamente como membros de uma república [eines gemeinen Wesens],
isto é do povo como Estado (universi)» (RL, § 47, Ak. VI, 315). Cf. Rousseau: «Aquilo que o homem perde
pelo contrato social, é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que o tenta e que ele pode
conseguir; o que ele ganha, é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que ele possui.» (Contrat Social, I,
VIII). Da mesma maneira; Kant, na sua filosofia da história, apresenta a necessidade de sair do estado de
natureza não somente como um dever moral, mas como o resultado da “insociável sociabilidade”, muito
próximo nisso de Rousseau que escreve: «Suponho os homens chegados nesse ponto onde os obstáculos
que prejudicam a sua conservação no estado de natureza vencem as forças que cada indivíduo pode usar
para manter-se nesse estado» (ib. I, VI).
36
André Berten
bes56) na medida em que o fim, a maior condição formal de todos os outros deveres
externos, é o direito dos homens pelo qual «a cada um pode ser dado o que lhe é
devido e assegurado contra o ataque de todo outro», isto é uma finalidade “econômica”, ligada ao direito de propriedade:
«E o fim que é um dever em si nessas relações externas, e que é de fato a
maior condição formal (conditio sine qua non) de todos os outros deveres externos, é o direito dos homens sob leis públicas coercitivas [öffentlichen Zwangsgezetsen] pelo qual a cada um pode ser dado o que lhe é devido e seguro contra
o ataque de todo outro.» [UdG, Ak. VIII, 289]
Como a maioria dos teóricos, Kant considera o contrato social como uma
ficção. Mas essa ficção não propõe um modelo explicativo da necessidade de sair
do estado de natureza – a partir de uma antropologia pessimista ou otimista – mas
tem o status de uma idéia prática radicalmente (e ideal mais que formalmente)
democrática:
«uma simples idéia da razão, mas ela tem uma realidade (prática) indubitável, no sentido em que ela obriga todo legislador a publicar suas leis como
podendo ter emanado da vontade coletiva de um povo todo, e em considerar
todo súdito, enquanto ele quer ser cidadão, como se ele tivesse colaborado em
formar através do seu voto uma vontade desse tipo. Pois isso é o critério [Probirstein] da legalidade [Rechtmässigkeit] de toda lei pública. Pois, se essa lei é
de tal natureza que fosse impossível que um povo todo pudesse lhe dar o seu
consentimento (se por exemplo, ela decreta que uma classe determinada de
súditos deve ter hereditariamente o privilégio da nobreza), não é justa; mas se é
somente possível que um povo lhe desse seu consentimento, é então um dever
considerar a lei como justa, mesmo supondo que o povo está presentemente
numa situação ou numa disposição de sua maneira de pensar tais que se fosse
consultado sobre essa questão, recusaria provavelmente seu consentimento.»
(UdG, Ak. VIII, 297)
——————————————
56
Por exemplo quando ele afirma que no estado de natureza «Ninguém é obrigado a abster-se de
violar a posse alheia se o outro não lhe proporcionar igual certeza de que observará a mesma abstenção em
relação a ele.» (RL, § 42, Ak. VI, 306). «Dada a intenção de estar e permanecer nesse estado de liberdade
sem lei exterior, os seres humanos não causam de modo algum injustiça [unrecht] mútua quando se hostilizam, uma vez que o que é válido para um é válido também, por seu turno, para o outro (…); mas em geral
causam injustiça no mais elevado grau, desejando ser e permanecer num estado que não é jurídico, isto é no
qual ninguém está assegurado do que é seu contra a violência.» (§ 42; Ak. 307-308) Comparar com Hobbes:
«O esforço para obter a paz, durante o tempo que o homem tem esperança de alcançá-la, fazendo para isso
uso de ajudas e vantagens da guerra, é uma norma ou regra da razão.» (Leviathan, parte I, cap. 14) A lei de
reciprocidade faz com que as obrigações sociais sejam hipotéticas. A diferença está no fato de que, para
Kant, sair do estado de natureza é também uma obrigação moral.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
37
Podemos então reconhecer que Kant fica – como Hobbes ou Locke – no
horizonte de um «individualismo possessivo»57. Mas com uma diferença fundamental: esse individualismo liberal está absolutamente subordinado a um imperativo moral: o imperativo de sair do estado de natureza e entrar no estado civil.
g) Republicanismo e democracia
O republicanismo, como foi dito, não é a favor de uma democracia radical,
ainda menos da democracia direta. O pensamento kantiano tampouco é democrático no sentido de ser favorável à soberania absoluta do povo empírico. Porém,
para o republicanismo como para Kant, a idéia do poder do povo, ou do povo
legislador, permanece um “horizonte” regulador. Kant foi muitas vezes criticado
por não ser suficientemente democrático. No entanto, a sua desconfiança a respeito
da democracia não deve ser considerada como uma desqualificação de seu pensamento político, pois a forma ideal do seu modelo de Estado corresponde aos regimes de democracia constitucional representativa que são geralmente aceites nos
Estados contemporâneos.
Kant afirma explicitamente que «não se deve confundir a constituição republicana com a democrática» (ZeF, primeiro artigo definitivo, Ak., VIII, 351-352).
Ele nota que deve se distinguir entre a forma da soberania [Beherrschung] (forma
imperii) – que pode ser, segundo as pessoas, autocracia, aristocracia ou democracia
– e a forma de governo [der Regierung] (forma regiminis), isto é a maneira de
governar [Regierungsart]:
Esta «diz respeito ao modo, baseado sobre a constituição (sobre o ato da
vontade geral que faz da multidão um povo), segundo o qual o Estado usa de seu
poder absoluto; e, deste ponto de vista, ela é ou republicana ou despótica.» (ZeF,
primeiro artigo definitivo, Ak. VIII, 352)
A forma da soberania, ou forma do Estado, é uma realidade empírica,
importante mas não determinante, transitória. É a forma do governo (a maneira de
governar) que deve corresponder à legislação originária.
«As diferentes formas de Estado são apenas a letra (littera) da legislação
originária no estado civil e podem, portanto, subsistir enquanto são mantidas,
por força do velho costume há muito existente (e assim apenas subjetivamente)
pertencendo necessariamente ao mecanismo da constituição. Mas o espírito
desse contrato originário (anima pacti originarii) envolve a obrigação por parte
do poder constituinte de tornar o modo de governo [Regierungsart] ajustado a
essa idéia.» (RL, § 52, Ak., VI, 340)
——————————————
57
C. B. MacPherson, The Political Theory of Possessive Individualism. Hobbes to Locke, Oxford,
Oxford University Press, 1962.
38
André Berten
O termo “Beherrschung” (na forma da soberania) deve ser entendido como
poder legislativo – que pode pertencer a um, a vários ou a todos os cidadãos. Em
RL, Kant escreve: «o soberano [Beherrscher] (o legislador) do povo não pode ser
também seu regente, uma vez que este está sujeito à lei e, assim, é submetido à
obrigação através da lei por um outro, a saber o soberano [Souverän]. Este pode
também retirar do regente a sua autoridade, depô-lo ou reformar sua administração.» (RL, § 49, Ak. VI, 316). O espírito da constituição republicana é de ser «a
única constituição de Estado que dura, a constituição na qual a própria lei governa
e não depende de nenhuma pessoa privada» (RL, § 52, Ak. VI, 341).
Essa prioridade da lei e portanto do poder legislativo, não impede de defender a separação dos poderes e a autonomia relativa de cada um desses poderes. A
constituição republicana defende claramente a tese da separação dos poderes58:
«O republicanismo é o princípio de Estado da separação do poder executivo (o governo) e do poder legislativo; o despotismo é o princípio segundo o
qual o Estado executa por si próprio as leis que ele mesmo fez, por conseguinte,
é a vontade pública agida pelo chefe de Estado como se fosse sua vontade privada.» (ZeF, Ak VIII, 352)
Em seguida, há uma condenação da democracia direta assimilada a um despotismo:
«Das três formas de Estado, aquela da democracia é, no sentido próprio
da palavra, necessariamente um despotismo, porque ela funda um poder executivo onde todos decidem […], por conseguinte, uma forma de Estado onde
todos, que no entanto não são todos [a maioria] decidem – o que põe a vontade
universal em contradição com ela mesma e com a liberdade.» (ZeF, Ak. VIII,
352)
Mas o sentido dessa condenação é claro. Kant visa a democracia direta onde
o povo detém o poder executivo. Contra essa aberração, é preciso uma forma ou
outra de representação: «Toda forma de governo que não é representativa é uma
não-forma [Unform], pois o legislador não pode ser, numa única e mesma pessoa, o
executor de sua vontade.» (ZeF, Ak. VIII, 352). Aliás, vimos que o modo de
governo – isto é a oposição entre governo republicano e despótico – é mais importante que a forma do Estado. Ao contrário de Rousseau que considerava o sistema
representativo como uma traição do povo59, Kant está muito consciente dos perigos
——————————————
58
Essa separação não pode ser absoluta. No caso contrário, significaria um poder absoluto do
legislativo e a dominação das maiorias flutuantes.
59
Rousseau, Du Contrat Social, L. III, ch. 3.
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
39
populistas da democracia, pois o exercício do poder pela multidão pode facilmente
instaurar um despotismo da maioria. O poder do povo não pode ser incarnado
somente numa forma de poder (seja este legislativo ou executivo). Pelo contrário, é
significativo que Kant, na análise mais precisa da diferenciação dos poderes, introduza uma apresentação “trinitária”, no sentido que só existe uma vontade universal,
mas incarnada em três pessoas:
«Todo Estado contém em si três poderes [Gewalten], a saber, a vontade
universalmente unificada em uma tripla pessoa (trias politica): o poder soberano [die Herrschergewalt] (soberania) [Souveränität] na pessoa do legislador, o
poder executivo na pessoa do governo [Regierers] (em conformidade com a lei)
e o poder judiciário (como capacidade de atribuir a cada um aquilo que é o seu
segundo a lei) na pessoa do juiz (potestas legislatoria, rectoria et judiciaria) –
análogos às três proposições de um silogismo da razão prática: a maior, que
contém a lei de essa vontade, a menor, que contém o mandamento de comportar-se segundo a lei, isto é o princípio da subsunção sob a maior e a conclusão, que
contém a decisão de justiça (a sentença), quer dizer aquilo que é de direito no
caso concernido.» (RL, § 45, Ak. VI, 313)
Se sabe, já desde Rousseau, que a idéia de uma «vontade universalmente
unificada» – a idéia de vontade geral60 – coloca problemas críticos difíceis, na
medida em que essa vontade só pode ser ideal e nunca encontrada empiricamente.
O interessante, em Kant, é a idéia de que essa vontade geral não corresponde ao
único poder legislativo, mas está na base de toda a construção constitucional. Isto
reforça o “idealismo” da construção kantiana, mas também mostra o que idealmente pode valer como modelo. Esse modelo ideal não é estritamente liberal nem
radicalmente democrático. No meu modo de ver, ele é “republicano”, dando a
supremacia à lei. É certo que, para aperfeiçoar essa apresentação, seria preciso
introduzir, no “silogismo”, uma perspectiva mais reflexiva, isto é, a forma de juízo
reflexionante da terceira Crítica. Pois, o aspecto “nôumenal” do modelo – como
aliás, da própria liberdade – tem uma conseqüência essencial: nenhuma realização
histórica concreta pode ser considerada como adequada ao modelo.
Basta recordar que se a liberdade nunca pode ser conhecida empiricamente,
da mesma maneira, o Estado ideal baseado na vontade unificada do povo não pode
ser dado em nenhuma experiência possível porque ele é uma idéia reguladora prática. Nesse sentido, pode se dizer que as formas concretas não podem ser julgadas
ou avaliadas como se o modelo de avaliação fosse institucionalmente decidível.
——————————————
60
Cf. Rousseau: Du Contrat Social, Livre II, ch. 3: «Há muitas vezes uma grande diferença entre a
vontade de todos e a vontade geral; esta cuida apenas do interesse comum, a outra do interesse privado e é
somente uma soma de vontades particulares.».
40
André Berten
Uma monarquia constitucional, desde que o monarca fique submetido à lei, pode
ser conforme ao ideal republicano. Aliás, Kant usa argumentos lógicos para mostrar que a vontade unificada, legisladora, não pode ser imediata.
É certo que, e isto merece um parêntesis, a posição de Kant pode parecer
ambígua, por exemplo quando ele excetua o chefe de Estado da condição de
sujeito. Há uma real dificuldade no que respeita ao estatuto do monarca ou chefe de
Estado. Desde UdG, a definição formal da igualdade fica ligada à concepção do
direito, e do direito de coerção. Essa definição implica imediatamente um problema
“lógico”, o caráter excepcional do “chefe de Estado”:
«A igualdade enquanto súdito, pode ser formulada assim: cada membro
do corpo comum possui um direito de coerção sobre todo outro, salvo sobre o
único chefe de Estado (porque este não é membro desse corpo, mas seu criador
ou conservador) que, só, tem o poder de coagir sem ser ele mesmo submisso a
uma lei de coerção.» (UdG, Ak. VIII, 291)
Essa afirmação, aparentemente “lógica”, remete para o poder executivo o
que não pode ser assumido pelo poder legislativo. Por outro lado, poderíamos afirmar que o “criador” do corpo comum só pode ser o próprio povo que, no contrato
originário, é depositário da vontade legisladora61.
Apesar dessas dificuldades de seu pensamento político, Kant é, penso eu,
profundamente “republicano”, não somente idealmente mas, dado o contexto, na
sua avaliação da situação de seu tempo. Ainda se deveria acrescentar que, do ponto
de vista da filosofia da história de Kant, as situações de desigualdade econômica e
jurídica devem ser consideradas como provisórias – salvo algumas exceções (como
o julgamento sobre as mulheres como sendo por natureza inferiores e incapazes de
se tornar cidadãos). Por exemplo, falando das relações entre a letra e o espírito da
constituição, Kant escreve:
«Conseqüentemente, se isso não puder ser realizado imediatamente,
constitui obrigação mudar o tipo de governo gradual e continuamente, de modo
que se harmonize no seu efeito com a única constituição conforme ao direito,
nomeadamente, aquela de uma pura república [einer reinen Republik], de tal
modo que as velhas formas estatutárias (empíricas), que serviram apenas para
produzir a submissão do povo, sejam substituídas pela forma originária (racio——————————————
61
Cf. também o texto ambíguo de RL: «A associação civil [bürgerliche Verein] (unio civilis) não
pode ser classificada ela mesma como uma sociedade, pois entre o soberano [Befehlshaber] (imperans) e o
súdito (subditus) não há parceria [Mitgenossenschaft]. Eles não são associados [Gesellen]: um está subordinado ao outro e não em coordenação com ele, e aqueles que se coordenam entre si devem, por isso mesmo,
se considerar iguais, uma vez que estão sujeitos a leis comuns. Essa associação [Verein] não é bem uma
sociedade [Gesellschaft], mas o que a constitui.» (§ 46, Ak. VIII, 306-307).
A compatibilidade do republicanismo kantiano com o modelo do contrato social
41
nal), a única forma que faz da liberdade o princípio e, realmente, a condição
para qualquer exercício de coerção, como é requerido para uma constituição
jurídica de Estado no estrito sentido da palavra.».
Seria o tópico de um outro artigo mostrar que, na perspectiva de Was ist
Aufklärung? as situações de desigualdade, ligadas a situações de “menoridade”, são
situações transitórias. Kant, por exemplo, defendeu a idéia de que é absurdo pensar
que um povo não está maduro para exercer a liberdade:
«Eu confesso não poder resignar-me a essa expressão, empregada até
pelos homens sábios: um tal povo (que está elaborando sua liberdade legal) não
está maduro para a liberdade; os servos de um proprietário de terras ainda não
estão maduros para a liberdade, e também, os homens ainda não estão maduros
para a liberdade de consciência. Numa hipótese desse tipo, a liberdade nunca
acontecerá; pois não se pode amadurecer para a liberdade se não se fosse já
colocado em liberdade (é preciso estar livre para usar utilmente de suas forças
na liberdade). As primeiras tentativas de exercer a liberdade serão provavelmente grosseiras e ligadas habitualmente a uma condição mais penosa e perigosa que quando se encontrava ainda sob as ordens de outrem, mas também na
sua proteção; porém jamais se amadurece para a razão de uma outra maneira que
não através de suas tentativas pessoais (que necessitam da liberdade para serem
efetuadas). Que os que têm autoridade, forçados pelas circunstâncias do tempo,
adiem para uma época ainda longe, longínqua, o momento de quebrar essas três
cadeias, não posso criticá-los. Mas defender como princípio que a liberdade não
vale de maneira geral (überhaupt die Freiheit nicht tauge) para aqueles que
dependem deles e que tivessem o direito de afastá-los dela para sempre, eis aqui
um insulto aos direitos soberanos da própria divindade, que criou o homem para
a liberdade.»62.
Essa longa citação poderia servir de conclusão. Para alcançar a liberdade, há
que exercitá-la. Na RL, Kant fazia uma distinção entre cidadãos ativos e passivos,
distinção que ele reconhece como problemática e contraditória. Mas ele termina o
parágrafo dizendo que as leis votadas pelos cidadãos ativos não somente não
podem entrar em contradição com as leis naturais de liberdade e de igualdade, mas
que «a liberdade e a igualdade consistem em poder trabalhar a erguer-se desse
estado passivo ao estado ativo» (RL, § 46, Ak. VI, 315) – a tornar-se verdadeiros
cidadãos de uma república.
——————————————
62
Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, IV, 2, § 4, nota, Ak. VI, 188.
La Ciudadanía en Kant
Javier García Medina
UNIVERSIDAD DE VALLADOLID
1. Justificación
El modo de inserción y el status de los individuos que integran un espacio
político hoy radicalmente transformado es un tema crucial para la filosofía política
y jurídica contemporánea. Es un espacio caracterizado, por una parte, por la tendencia a la universalización de la ciudadanía en el interior de cada sociedad política, y de otro por la interconexión e interacción de individuos y sociedades a escala planetaria, más allá de las fronteras políticas tradicionales y también de los
límites entre el ámbito político y el resto de las esferas sociales (en suma, el fenómeno que se conoce como “globalización”). Pero es al mismo tiempo un espacio en
el que subsisten fuertes desigualdades (asimetrías), tanto internas –sociales y culturales- como en la relación con los otros situados en los márgenes de la propia sociedad. Situación que plantea problemas de inclusión y exclusión, y de relación
entre identidad (pertenencia y diferencia).
En consecuencia, los debates actuales en el seno de la filosofía política y jurídica han de abordar hoy, junto al problema de la relación entre sociedad moral
universal y sociedades políticas particulares, los nudos problemáticos correspondientes al eje identidad /diferencia: la (re)definición de la ciudadanía, del status de
los individuos en las sociedades políticas, y el problema de la alteridad (del status
político, jurídico y moral de quienes se encuentran en los márgenes de la ciudadanía).
Pese al universalismo moral dominante en la teoría política actual, la ciudadanía sigue siendo un status particular excluyente dentro de las distintas sociedades. Un status que marca una diferencia clave respecto a los inmigrantes extranjeros que acceden a las ricas sociedades occidentales. Sin embargo, todo suceso histórico tiene raíces y precedentes en el pasado; y seguramente también las interpretaciones que se construyen del mismo.
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 43-64
44
Javier García Medina
2. Objetivo y estructura
Se pretende con este trabajo analizar la concepción kantiana de la ciudadanía
y su eventual papel en la configuración de la ciudadanía en los debates actuales. La
estructura metodológica de este trabajo será la siguiente: en primer lugar, se analizarán los elementos definitorios de la ciudadanía y los modelos que a partir de
aquellos se pueden constituir; y, en segundo lugar, se procederá a determinar qué
elementos aparecen en la concepción kantiana de la ciudadanía y a qué modelo se
puede reconducir.
3. Introducción
Los ciudadanos son titulares de un estatus jurídico al ser sujetos de derechos
y deberes en el marco político, lo que quiere decir que sujetos y espacio político
están mutuamente interrelacionados y la concepción de uno condiciona la definición del otro. Nos enfrentamos con un mundo complejo ya que el acceso a una
serie de derechos (sanidad, educación, etc.) está condicionado por la ciudadanía y
los derechos que la misma lleva aparejados. De esta manera se pone de relieve que
los sistemas de derechos se encuentran atravesados por las diversas interpretaciones que se formulan sobre conceptos a ella vinculados, como el de nación o Estado,
con influencias teóricas, culturales, históricas, religiosas, cuyo sentido en muchas
ocasiones no es explícito sino tácito, y que una adecuada comprensión de esta
complejidad exige explicitar.
Si se acepta la idea de que las sociedades que habitamos son problemáticas,
se ha de conceder también que cuestionar la posición de los sujetos en el espacio
político implica cuestionar al mismo tiempo dicho espacio. La complejidad y problematicidad de las sociedades actuales proviene de la incapacidad de entender con
claridad en qué consiste hoy día ser ciudadano. La razón de esa insuficiencia se
puede sintetizar en un grado de cambio muy rápido en cuestiones que han provocado transformaciones substanciales en la vida social; se ha pasado de un marco de
homogeneidad cultural a uno de heterogeneidad cultural, en el que la incertidumbre
deja paso a las absolutas certezas existentes en lo moral, en lo sexual, e, incluso, en
lo familiar. Toda transición supone cambios también en el dominio de lo urbano
frente a lo rural, presencia de nuevos estilos de vida, modificaciones en el ámbito
económico, en las condiciones de trabajo; supresión de fronteras; procesos de inmigración internos y externos; modificaciones en los ámbitos de decisión (quién
decide y cómo); deslocalización económica, en definitiva, cambio en los espacios
ciudadanos.
La Ciudadanía en Kant
45
Todo ello afecta a la manera de comportarnos y nos interroga sobre cómo
actuamos. Este nuevo panorama hace necesario cambiar la perspectiva a la hora de
argumentar y razonar la cuestión pública en el espacio público. De esa manera la
idea de ciudadano aparece interpelada por las transformaciones culturales internas,
como las que se aprecian entre los géneros o en la cuestión de la inmigración.
Estas transformaciones sociales, morales, políticas, etc., en principio no necesariamente tienen que provocar ningún tipo de patología social, pero ésta aparecerá cuando algunos individuos piensen que tales cambios afectan a su seguridad.
Por tanto, la forma en cómo reaccionemos ante las incertidumbres es determinante.
Así, podemos encontrar posturas reactivas – que pueden derivar en reaccionarias –
negadoras de la complejidad del mundo actual y que se refugian en certezas pasadas. Evidentemente, se trata de un regreso imaginario a algo que existió y en el que
se busca reafirmar la identidad y las creencias, con el fin de defenderse de una realidad presente que no se puede soportar. El sujeto reactivo viene definido por su
falta de “reacción”, es decir, se trata de un sujeto que se entiende a sí mismo como
sólido, recio, con ideas y creencias claras, siendo precisamente esas características
las que, ya se defina el sujeto como progresista o conservador, impiden una correcta reacción ante aquello que no se soporta. Esta reacción se hace patológica
porque, en general, es negadora y nos cuestiona, y cualquier duda provoca que se
reaccione cerrando la comunidad y generando, entre otras cosas, el odio social con
el cual construir la identidad.
Otra forma de reaccionar es “huir del mundo”, adoptar la idea de “no me interesa nada”, que provoca una separación del mundo, no se quiere participar de él,
lo que lleva al individuo a volverse hacia los espacios que considera de refugio –el
hogar- donde no se siente interrogado por el mundo y donde no percibe ni le interroga un mundo que entiende inseguro. Hay en este caso, una oposición al mundo.
Ambas formas de reacción ante un mundo complejo y problemático nos
conducen a una negación de la ciudadanía. La pregunta es qué hacer, para generar
una identidad comunitaria que dé seguridad sin las incertidumbres señaladas. La
solución, a nuestro juicio, pasaría por el desarrollo de una virtud que supondría la
capacidad de ponernos en el lugar del otro, en el sentido en que ya lo proponían
Kant, Leibniz o H. Arendt. No sería suficiente una tolerancia basada en un mero
soportar sino una tolerancia activa y positiva. El punto de partida debe ser el reconocimiento de la complejidad; de la percepción y comprensión de la diferencia y la
observación del mundo con la mirada del otro. Se puede objetar a esta propuesta
que esa alteración de perspectiva puede anularnos a nosotros mismos o, incluso,
que a pesar de los esfuerzos no se vea con claridad qué visión del mundo tiene ese
otro. Tal objeción se puede superar ejercitando la capacidad de juicio y presentando nuestras aceptaciones o rechazos de forma comprensiva. La adquisición de
estas competencias nos permite ser más flexibles pero también más sólidos, pues
debemos proponer también formas claras y determinantes de rechazo, de no tole-
46
Javier García Medina
rancia, a aquello que daña en el espacio público, como, por ejemplo, la exclusión
por diferentes, los nuevos modos de esclavitud, la violencia de género que ha
irrumpido en el espacio público aunque se produzca en el seno de lo estrictamente
privado. Está claro que se trata de una experiencia dañina que se percibe por ponerse en el lugar del otro, por el desarrollo de sensibilidades compartidas. Es posible que esta estrategia nos permita una mejor comprensión del mundo problemático
que vivimos.
4. Elementos y modelos de ciudadanía
La concepción de la ciudadanía viene determinada por el lugar y el tiempo
histórico que consideremos, lo que dificulta establecer un concepto de ciudadanía
con validez para todo tiempo y lugar, o si se quiere, intemporal y universal. La
perspectiva política y jurídica que se adopta también influye en la determinación de
qué se pueda entender por ciudadanía, ya que de ella se deriva una consideración
diferente de la identidad política o de las relaciones entre el individuo y la sociedad. De ahí que, en primer lugar, la ciudadanía puede abordarse como posición
para recibir los beneficios materiales que la prosperidad permite distribuir de la
manera más equitativa para dignificar la vida humana. En segundo lugar, la ciudadanía como requisito para alcanzar una serie de recursos considerados necesarios
para una realización humana efectiva. En tercer lugar, la ciudadanía como inclusión, como instrumento para eludir las trabas que impiden a algunos grupos humanos marginados convivir dentro del espacio político en el que habitan. En último
lugar, la ciudadanía como autogobierno, esto es, como medio para participar en la
vida política. La consideración de la ciudadanía en atención a las perspectivas señaladas remite, en definitiva, a la idea de “derechos”. Pero de unos derechos que se
tienen por pertenecer a una comunidad y que pueden exigir la participación del
sujeto para su efectiva protección y garantía.
En consecuencia, de lo expuesto podemos extraer unos elementos nucleares
que juegan en el concepto de ciudadanía: pertenencia, derechos y participación1.
Sirva a modo de acercamiento, no demasiado preciso, la siguiente consideración.
Cuando se incide en los derechos como centro esencial sobre el que gira la ciudadanía nos encontraríamos con una postura cercana a posiciones liberales. Para el
comunitarismo sería la pertenencia su elemento fundamental, mientras que el republicanismo incidiría en la ciudadanía en términos de participación. Aunque cada
una de esas posiciones resalta un aspecto relevante de la ciudadanía, ello no quiere
decir que prescindan de los demás.
——————————————
1
J. Peña, La ciudadanía hoy: problemas y propuestas, Secretariado de publicaciones de la
Universidad de Valladolid, Valladolid, 2000, p. 24.
La Ciudadanía en Kant
47
Corresponde, por tanto, una breve referencia a los elementos mencionados.
En primer lugar, por lo que se refiere a la pertenencia indicar que la noción de ciudadanía está vinculada a un modo de pertenencia. Ésta no refleja sólo una concurrencia de derechos y deberes entre los miembros sino también la conciencia de
formar parte de una comunidad que posee una propia identidad más allá de quienes
la integran. La cohesión social deriva de los vínculos de solidaridad y no de simples vínculos legales, por tanto la ciudadanía no se identifica esencialmente con un
status jurídico-político o conjunto de derechos, sino más bien con la lealtad y el
afecto hacia la comunidad patria como fundamento del interés por lo común. Es el
modelo de la polis de Aristóteles o de la Sittlichkeit hegeliana que inspira las posiciones comunitaristas frente al enfoque liberal del universalismo de los derechos.
Visto lo que supone la pertenencia hay que preguntarse cuándo se pasa a
pertenecer a una comunidad, dicho de otro modo, qué criterios sirven para acceder
a ser un miembro ciudadano de la sociedad política o, si se quiere, en qué se fundamenta la exclusión de la ciudadanía a algunos sujetos. Pero la propia pregunta
revela la existencia de, al menos, dos grupos: nosotros los ciudadanos y vosotros o
ellos los no ciudadanos, que implica, a su vez, demandarse cómo se ha formado y
bajo qué criterios el “nosotros los ciudadanos”. Demanda que nos coloca ante elementos prepolíticos cómo pueden ser un territorio compartido, la historia, la cultura
común, rasgos étnicos, etc.. Habría, en ese caso, una identidad prepolítica común2
en la que residiría la posterior atribución de la ciudadanía, dicho de otra forma, la
nacionalidad precede a la ciudadanía3. Hay una identidad grupal comunitaria previa
que sostiene y legitima la comunidad política y respalda sus vínculos de cohesión,
da sentido a la obligación política y fija las preferencias en cuanto a valores, objetivos y procedimientos en las situaciones conflictivos. Se consagra, por tanto, una
posición nacionalista frente a la moderna comprensión de la ciudadanía en la que
prevalece la voluntad política de los ciudadanos sin precondicionamientos.
La perspectiva de la pertenencia que hemos ilustrado podría servir para proceder a incluir o a excluir a los individuos dentro de comunidades políticas homogéneas pero no nos permite dar respuesta a problemas que se plantean en las sociedades actuales en las que la diferencia y su reconocimiento ponen en tela de juicio
la consideración de la ciudadanía en su versión anterior. Estamos haciendo referencia a la cuestión del multiculturalismo, esto es, a grupos cuyos miembros ostentan
la ciudadanía legal pero entienden que sus caracteres diferenciadores propios no se
encuentran reconocidos y piden una serie de derechos propios basados en tales
diferencias. La cuestión, en la que aquí no vamos a entrar, será cómo afrontar tales
——————————————
2
En torno a la identidad podemos reflexionar sobre si es algo dado o construido, por qué se toman
unos rasgos para su formación y no otros, por qué prevalecen unos y no otros, etc..
3
Las posturas contractualistas irían en un sentido diferente ya que tanto la existencia como la forma
de la propia comunidad política procede de la voluntad de los sujetos que se asocian.
48
Javier García Medina
diferencias y cómo solucionar los problemas que genera la presencia de grupos
diferenciados por una u otra razón.
Hicimos antes mención a que ser ciudadano equivale a la ostentación de
ciertos derechos pero también de ciertos deberes, lo que implica la consideración
del ciudadano como un sujeto de derechos. Esta comprensión de la ciudadanía
centrada en los derechos encuentra su manifestación histórica en la ciudadanía
romana, en la cual lo relevante es el status legal y no el político. Precedente histórico que inspira la concepción liberal de la ciudadanía, a partir de los supuestos
individualistas de la teoría liberal clásica y cuyo caldo de cultivo será el desarrollo
del capitalismo y de las revoluciones burguesas. La libertad individual, en esta
concepción de la ciudadanía, pasa a tener preferencia frente a la inserción y pertenencia a una comunidad política.
Pero si los derechos son el núcleo esencial de la ciudadanía, la pregunta es
qué derechos. Si en la versión contractualista el hombre natural y el estado natural
preceden al hombre político o ciudadano y a la sociedad política, entonces los derechos que se ostenten como ciudadanos vendrán condicionados por cómo se entienda a aquellos, si se considera o no que en el estado de naturaleza se tienen derechos, qué derechos se tienen, cómo se articulan en el contrato social y qué papel les
corresponde en la sociedad civil. En cualquier caso, y puesto que se ha roto con la
idea de que el hombre ya no es un ser naturalmente político, será la sociedad civil
la que defina el status de ciudadano. Por eso pasan a primer plano libertad y propiedad y se reduce la participación, ya que lo prioritario es el espacio privado y los
derechos que lo amparan. Además, independientemente de qué derechos conformen el eje de la ciudadanía, ésta se entiende como algo propio y particular de un
espacio cerrado. De manera que, si bien en el ámbito de inclusión del Estado-nación la ciudadanía se va extendiendo progresivamente, se va generando al
mismo tiempo un marco de exclusión que expulsa del disfrute de derechos y deberes a quien está fuera.
Se observa, pues, la contradicción entre la idea de unos derechos de ámbito
universal pero que, en la práctica, sólo se reconocen a los nacionales, o, si se
quiere, el conflicto entre universalidad y diferencia, cuya única solución sería una
consideración cosmopolita de la ciudadanía, la cual a su vez genera la crítica del
olvido de las circunstancias concretas en las que los individuos se mueven. La ciudadanía en términos de derechos supone una distribución formal igual de la misma,
pero todos sabemos que el ejercicio de los derechos inherentes a la ciudadanía está
condicionado por la disponibilidad de recursos materiales, lo que revela la conexión entre el status jurídico-político de la ciudadanía y su entorno económico-social4.
——————————————
4
Nos encontramos aquí con la idea de la ciudadanía social, basada en la atribución de una serie de
recursos materiales con los que poder hacer frente a una ciudadanía plena. Pero esos derechos sociales no
La Ciudadanía en Kant
49
La primera de las concepciones de la ciudadanía que hemos visto hace prevalecer a la comunidad sobre el individuo, mientras que la segunda coloca al sujeto
individual y sus derechos sobre la comunidad, de lo que puede inferirse que entre
ambas hay una mutua vinculación pero también cierto grado de conflicto. En el
primer caso, es la pertenencia la que fundamenta el disfrute por parte de los ciudadanos de una serie de derechos; y en el segundo, se corre el riesgo de neutralizar la
ciudadanía al hacerla coincidir con los derechos humanos.
Por último hacer algunas consideraciones sobre la participación. Su precedente histórico lo encontramos en Atenas, donde el núcleo central de la ciudadanía
era tomar parte activa en los asuntos públicos. Concepción de la ciudadanía que
pasa al republicanismo para el cual la participación en el espacio público es condición para el mantenimiento de la propia libertad. Evidentemente, esta forma de
ciudadanía se entiende poco operativa en las sociedades actuales dado que sería
viable en sociedades cerradas y homogéneas y no en sociedades abiertas y heterogéneas como las actuales; pero, además, exigir un compromiso con lo público en
nuestras sociedades actuales pasaría por el ejercicio de una virtudes cívicas que
quizás ya no se tengan y que si se quiere implantarlas se puede invadir el espacio
de los derechos individuales.
El desarrollo de los elementos de la ciudadanía – pertenencia, derechos, participación – permite la construcción de tres modelos de ciudadanía que forman
parte del debate contemporáneo sobre la misma: el modelo liberal, el modelo comunitarista y el modelo republicano. El modelo liberal de ciudadanía afirma el
predominio de los derechos individuales, su distribución igualitaria, la neutralidad
del Estado y la separación del espacio público y del espacio privado, frente a cualquier consideración de carácter identitario o colectivo. El modelo comunitarista,
por su parte, realza la vida comunitaria como una precondición en la que el individuo puede asumir valores colectivos y el consiguiente compromiso con el bien
común, generándose la cohesión y solidaridad necesaria para el mantenimiento de
la sociedad. Habría una concepción compartida de lo bueno, creando en el individuo un sentido de integración que le lleva a participar en la creación del bien común. El modelo republicano se puede colocar en medio de ambos pues comparte
elementos con uno y otro pero los articula de modo propio. Así, frente al individualismo liberal el republicanismo exigiría un compromiso con la comunidad,
ahora bien, y aquí se separa del comunitarismo, no entiende que la comunidad
tenga sustantividad por sí misma y previa a los propios individuos, sino que la
construcción de la vida social se basa en la participación en las diversas instituciones que dan sentido a la comunidad. El modelo republicano admitiría la defensa de
la autonomía y de los derechos individuales propios del liberalismo, eso si, como
——————————————
serán bien vistos por los liberales o neoliberales, lo que nos lleva a la discusión de éstos frente a los partidarios del Estado del Bienestar.
50
Javier García Medina
cuestiones que han de ser debatidas dentro de la comunidad y no como algo previo
que condiciona la vida social.
La definitiva implantación del liberalismo supuso también el triunfo de su
concepción de la ciudadanía que no busca el autogobierno sino la autonomía privada, dentro de un Estado limitado que no interfiera en el ejercicio de sus derechos
individuales. Modelo pasivo de ciudadanía que desincentiva el compromiso con lo
público, reduciendo la política a algo ajeno y profesionalizado y que convierte al
ciudadano en un estricto sujeto de derechos. Pero este modelo no es privativo de la
orientación liberal, sino también de los Estados del Bienestar, en los que los ciudadanos se reducen a demandantes de servicios, que reciben a cambio de una mínima
participación. Esta situación es la que hace que en los momentos actuales se sienta
una distancia cada vez mayor entre la denominada clase política y los ciudadanos.
Éstos entienden que los políticos no se preocupan por las cuestiones que son del
interés general sino exclusivamente de aquellas que pueden dar un rédito electoral
y que el papel de los ciudadanos es prácticamente irrelevante. Si los ciudadanos
formulan esa queja es porque se sienten mal representados y porque consideran que
su opinión no se va a tener en cuenta. Parece, pues, que lo que se impone es un
cambio en el modelo de ciudadanía hacia terrenos de mayor participación lo cual
nos conduciría a revisar el modelo liberal y a sustituirlo o enmendarlo desde la
óptica republicana.
Atendiendo al objetivo de este trabajo parece que la pregunta es si Kant sostiene un concepto de ciudadanía, si éste se puede reconducir a alguno de los modelos expuestos y si puede aportar alguna solución superadora y válida para la redefinición del concepto de ciudadanía.
5. La ciudadanía en Kant
Kant en la Metafísica de las Costumbres escribe «que sólo la voluntad concordante y unida de todos, en la medida en que deciden lo mismo cada uno sobre
todos y todos sobre cada uno, por consiguiente, sólo la voluntad popular universalmente unida puede ser legisladora», es decir, la voluntad unida del pueblo es la
única titular del poder legislativo puesto que garantiza que el derecho que procede
de él no puede ser injusto. Kant añade que «los miembros de una sociedad semejante (societas civilis) –es decir, de un Estado-, unidos con vistas a la legislación,
se llaman ciudadanos (cives) y sus atributos jurídicos, inseparables de su esencia
(como tal), son los siguientes: la libertad legal de no obedecer a ninguna otra ley
más que a aquella a la que ha dado su consentimiento; la igualdad civil, es decir,
no reconocer ningún superior en el pueblo, sólo a aquel al que tiene la capacidad
moral de obligar jurídicamente del mismo modo que éste puede obligarle a él; en
La Ciudadanía en Kant
51
tercer lugar, el atributo de la independencia civil, es decir, no agradecer la propia
existencia y conservación al arbitrio de otro en el pueblo, sino a sus propios derechos y facultades como miembro de la comunidad, por consiguiente, la personalidad civil que consiste en no poder ser representado por ningún otro en los asuntos
jurídicos». Tres son, por tanto, los elementos esenciales de la ciudadanía: libertad,
igualdad e independencia.
Kant concreta algo más en que haya de consistir la ciudadanía y señala que
«sólo la capacidad de votar cualifica al ciudadano; pero tal capacidad presupone la
independencia del que, en el pueblo, no quiere ser únicamente parte de la comunidad, sino también miembro de ella, es decir, quiere ser una parte de la comunidad
que actúa por su propio arbitrio junto con otros. Pero la última cualidad hace necesaria la distinción entre ciudadano activo y pasivo, aunque el concepto de este último parece estar en contradicción con la definición del concepto de ciudadano en
general».
Kant eleva la nota de la independencia a decisiva para la distinción entre el
ciudadano activo y el pasivo, e ilustra la misma con algunos ejemplos como los del
mozo que trabaja para el comerciante o artesano, el sirviente, el menor de edad,
todas las mujeres y, en general, quien por su propia actividad no puede procurar su
existencia; son ejemplos de sujetos que carecen de personalidad civil al encontrarse
obligados a someterse a los mandatos de otros. Pero, continúa Kant, «esta dependencia con respecto a la voluntad de otros y esta desigualdad no se oponen en
modo alguno a su libertad e igualdad como hombres, que juntos constituyen un
pueblo; antes bien, sólo atendiendo a sus condiciones, puede este pueblo convertirse en Estado y entrar en una constitución civil. Pero en esta constitución no todos
están cualificados con igual derecho para votar, es decir, para ser ciudadanos y no
simples componentes del Estado. Porque del hecho de que puedan exigir ser tratados por todos los demás como partes pasivas del Estado, según leyes de la libertad
natural y la igualdad, no se infiere el derecho a actuar con respecto al Estado
mismo, a organizarlo como o a colaborar en la introducción de ciertas leyes, como
miembros activos; sólo se infiere que, sea cual fuere el tipo de leyes positivas que
ellos votan, no han de ser contrarias a las leyes naturales de la libertad y de la
igualdad-correspondiente a ella- de todos en el pueblo de poder abrirse paso desde
ese estado pasivo al activo»5.
Una breve reflexión nos permite apreciar que las categorías de ciudadano
activo y pasivo pueden ser reconducidas, a su vez, a ciudadano y parte pasiva del
Estado, de modo que la ciudadanía sólo se predica del primero pero no del segundo, pues a éste no le corresponde votar, condición imprescindible para entender
que se ostenta una ciudadanía plena. Por tanto, la participación en la voluntad popular legisladora aparece en Kant como un atributo esencial de la ciudadanía, y
——————————————
5
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, 314, 315, Tecnos, Madrid, 2005, 4ª ed., pp. 143-145.
52
Javier García Medina
como precondición, por un lado, de la libertad legal, en cuanto facultad de no obedecer más leyes que aquellas a las que se ha dado consentimiento, se entiende a
través del voto y, por otro lado, de la igualdad civil, pues el voto de un ciudadano
vale igual que el de otro. Dicho de otro modo, libertad civil, igualdad civil e independencia sólo son aplicables a los ciudadanos. La cuestión es ahora determinar
quienes pueden ser ciudadanos, a lo que Kant ya nos ha respondido que quienes
sean independientes.
Para Kant la igualdad civil no supone una distribución igualitaria de la propiedad, situación que genera vínculos de poder y de dependencia de unos sobre
otros. La ciudadanía plena se basa en no estar sometido al arbitrio de otro. Y aquello que confiere independencia es la propiedad. Se observa, por tanto, una estrecha
relación entre la posición que se ocupa en el ámbito privado y en el ámbito público,
pues quien tiene asegurada la independencia en su existencia y conservación por
ser un propietario es quien puede alcanzar la ciudadanía. No se produce en Kant
una tajante separación entre el espacio público y el espacio privado, pues la correcta participación en el espacio público mediante el ejercicio de la virtud, sin
incurrir en corrupción y sin poder ser presionado, requiere la independencia en el
terreno privado. Pero no se trata de establecer un filtro para excluir a quien en el
terreno privado no es un propietario sino de instaurar unas garantías que eviten que
los acaudalados en riqueza y poder puedan imponer su criterio. Esta perspectiva,
por un lado, acerca a Kant al pensamiento republicano6, pues en éste la propiedad
se consideraba un elemento privado material que aseguraba la independencia en el
espacio público; y, por otro, le aleja de la comprensión liberal del Estado como un
mero equilibrio de propietarios egoístas que se conforman con la no-interferencia
de los poderosos.
Permítase una digresión a tenor de lo expuesto. Algunos autores consideran
que Kant estaría utilizando las categorías del Derecho Romano, sui iuris y alieni
iuris, para aludir en el primer caso a quien es dueño de sí mismo y no está sometido
a ninguna voluntad ajena; y, en el segundo caso, para referirse a quien está sujeto al
poder de otro. Además, se da un paso más y se hace equivaler sui iuris, propietario
y ciudadano, mientras que se entiende que el alieni iuris no puede ser propietario,
y en consecuencia, tampoco ciudadano. Estas correspondencias puede que describan una buena parte de los casos pero aplicadas en general son falsas, porque en
Derecho Romano, se podía ser alieni iuris y ostentar derechos políticos plenos,
como algunos menores sometidos a la patria potestas que llegaban a ocupar puestos políticos. La mujer a quien automáticamente se la considera alieni iuris, pero
——————————————
6
En general la tradición republicana es propietarista, esto es, defensora de una propiedad mínima
que asegurase independencia en la esfera pública y que respaldase la autonomía de juicio de los llamados a
ser ciudadanos. Considérese, a modo de ejemplo, la utopía republicana de Harrington, la Océana, habitada
por pequeños propietarios o las medidas de distribución de la tierra por parte de Robespierre cuando accede
al poder.
La Ciudadanía en Kant
53
«si no está bajo la potestad de su padre y se casa sine manu (sin entrar bajo la potestad marital) es ella misma sui iuris. […] También se hace sui iuris a la muerte
del titular de la potestad: pater familias o marido, en su caso»7. Es de suponer que
Kant conocía el Derecho Romano en este sentido8, de manera que si Kant efectivamente utiliza las categorías en el sentido que marcan algunos autores entonces está
simplificando el sentido de las expresiones sui iuris y alieni iuris, pero, a nuestro
entender, Kant lo que pretende es ilustrar, más bien, situaciones de dominación de
su época.
Si se analiza la propuesta de ciudadanía de Kant, a la luz de los elementos
que en ella se han distinguido – pertenencia, derechos, participación –, puede señalarse que nuestro autor subraya la participación como primera característica de
la ciudadanía. Es el hecho de votar lo que da plenitud a la ciudadanía. En torno a la
ciudadanía centrada en los derechos, se ha de apuntar que Kant acepta la tesis republicana de que se debe renunciar a los derechos naturales individuales, puesto
que en el estado civil todo derecho proviene del consentimiento de los ciudadanos
mediante su libertad legal9. Por tanto, el derecho de propiedad no es un derecho
inalienable. En el estado de naturaleza, en que solo hay la posesión empírica, hay
una presunción de derecho10 o una propiedad provisional en comparación y en
espera de la realización del estado civil en que ocurre la posesión definitiva, a partir del consentimiento de todos sobre todos11. Kant se separa de las concepciones
contractualistas de Hobbes y Locke. Para el primero, la situación de amenaza
constante que caracteriza el estado de naturaleza se presenta como insatisfactoria
para los sujetos que la pueblan, haciéndoseles urgente salir de ella. El instrumento
al que recurre Hobbes es la hipótesis de un contrato social12 que supondría renunciar unánimemente a la violencia e instaurar una autoridad que otorgue normas
——————————————
7
T. Giménez-Candela, Derecho Privado Romano, Tirant lo blanch, Valencia, 1999, p. 228.
8
S. Goyard-Fabre, Kant et le problème du droit, Librairie Philosophique J.Vrin, París, 1975, p. 19:
«[…] parce qu’il a etudié le droit romain à travers les compilations impériales marquées par l’influence
stoïcienne […]».
9
J. Carvajal Cordón (coordinador), Moral, Derecho y Política en Immanuel Kant, Ediciones de la
Universidad de Castilla-La Mancha, 1999, p. 55.
10
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 312, p. 141: «[…] esta adquisición […] es sólo
provisional mientras no cuente con la sanción de una ley pública, porque no está determinada por una
justicia (distributiva) pública ni asegurada por ningún poder que ejerza este derecho».
11
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 312, p. 141: «[…] es menester salir del estado de
naturaleza, en el que cada uno obra a su antojo, y unirse con todos los demás (con quienes no puede evitar
entrar en interacción) para someterse a una coacción externa legalmente pública; por tanto, entrar en un
estado en el que a cada uno se le determine legalmente y se le atribuya desde un poder suficiente (que no
sea el suyo, sino uno exterior) lo que debe ser reconocido como suyo; es decir, que debe entrar ante todo en
un estado civil».
12
T. Hobbes, Leviatán, Editora Nacional, Madrid, 1979 (edición preparada por C.Moya y
A.Escohotado), Cap. XIII, p. 268.
54
Javier García Medina
comunes, que tiene poder coactivo para poder hacer que los pactos se cumplan. Se
crea, pues, un poder soberano gracias al cual lo que era un grupo aislado de individuos se convierte en una comunidad políticamente organizada.
Locke opera ya en el estado de naturaleza con unos conceptos moralizados
de igualdad y libertad. Frente a la libertad ilimitada hobbesiana, Locke propone un
estado de naturaleza13 regido por la ley natural que actúa como ley moral y que
prescribe preservar la creación de Dios, es decir, impone el deber general de autoconservación y el deber de no realizar daño alguno a los otros en vida, integridad
física, libertad y posesiones14. Los hombres a través de la recta razón acceden a
estos imperativos morales que la ley natural ha inscrito en el corazón de los hombres.
Surgen así unos derechos originarios, no convencionales, unos derechos naturales individuales15: derecho a la vida, derecho a la integridad física, derecho a la
propiedad, derecho a la libertad. La ley natural tiene la virtualidad de fijar unas
normas básicas comunes gracias a las cuales los hombres pueden establecer relaciones cooperativas, aún en ausencia de normas jurídicas coercitivas. Pero el estado
de naturaleza de Locke puede convertirse en un estado de guerra cuando los hombres confundidos por sus apetitos no respetan la ley natural, pudiéndose generar
conflictos cuya única solución es la justicia privada16.
Esta situación de inseguridad producida por la poca claridad de la ley natural
sobre lo que manda y lo que prohíbe y por la falta de un juez imparcial para la resolución de conflictos, se intenta perfeccionar, no cortar con ella como hacía Hobbes, mediante la creación de la sociedad civil y el Estado17, con el fin de garantizar
los derechos individuales. Para ello es necesario que los individuos renuncien unánimemente a su capacidad de interpretar y aplicar la ley natural. El tránsito del
estado de naturaleza a la sociedad civil se realiza mediante un contrato social basado en el consentimiento de los individuos, sin el cual no se podría hablar de la
legitimidad del estado. La quiebra del consentimiento anula la legitimidad del poder político, lo cual no supone, como en Hobbes, volver al estado de naturaleza ya
que Locke había diferenciado entre “pacto societario” – creación de una comunidad política – y “pacto de sometimiento”. Por éste último el cuerpo político constituye un gobierno cuya acción está definida y limitada por el respeto a los derechos individuales – sobre todo el de propiedad – la generalidad e igualdad ante la
——————————————
13
J. Locke, Segundo tratado sobre el gobierno civil, Alianza Editorial, Madrid, 1990, Cap. 2, p. 36 y ss.
14
I. Hampsher-Monk, Historia del pensamiento político moderno, Ed.Ariel S.A., Barcelona, 1996,
p. 105.
15
J. I. Solar Cayón, «Los derechos naturales en la filosofía política de Locke» en Historia de los
Derechos Fundamentales, Tomo I: Tránsito a la modernidad. Siglos XVI y XVII, Dykinson, Madrid, 1998,
cap. VIII, pp. 601 y ss.
16
Hampsher-Monk, Op. cit., p. 107.
17
Locke, Op. cit., Cap. 9, p. 133 y ss.
La Ciudadanía en Kant
55
ley, la soberanía intransferible (de serlo permitiría a los ciudadanos ejercer el derecho de resistencia en defensa de sus derechos individuales) y la separación de poderes.
Para Kant el contrato ha de asegurar la libertad de todos a través de leyes generales que proceden de la soberanía de los ciudadanos. Se trata de un pacto de
unión civil cuyo objetivo es proteger y promover la autonomía, ejercitando la libertad personal, dado que el estado jurídico creado permite la libertad de todos sin
interferencias arbitrarias de nadie. En palabras de Kant: «El acto por el que el pueblo mismo se constituye como Estado – aunque, propiamente hablando, sólo la idea
de éste, que es la única por la que puede pensarse su legalidad – es el contrato originario, según el cual todos (omnes et singuli) en el pueblo renuncian a su libertad
exterior, para recobrarla en seguida como miembros de una comunidad, es decir,
como miembros del pueblo considerado como Estado (universi); y no puede decirse
que el Estado, haya sacrificado a un fin una parte de su libertad exterior innata, sino
que ha abandonado por completo la libertad salvaje y sin ley, para encontrar de
nuevo su libertad en general, integra, en la dependencia legal, es decir, en un estado
jurídico; porque esta dependencia brota de su propia voluntad legisladora»18.
Resta por aludir a la ciudadanía kantiana desde la óptica de la pertenencia,
dicho de otro modo, desde la inclusión y la exclusión. Cuando en la Metafísica de
las Costumbres alude a la relación del ciudadano con su patria y con el extranjero
señala que «el territorio (territorium) cuyos habitantes son conciudadanos de la
misma comunidad en virtud de la constitución misma, es decir, sin necesidad de
realizar un acto jurídico especial (por tanto, por nacimiento), es la patria; el territorio en el que se encuentran sin que se cumpla esta condición, es el extranjero»19.
Parece, por tanto, que Kant alude a la pertenencia a una comunidad política, presidida por una constitución, ubicada en un territorio, y a la que se accede por nacimiento.
Si bien se habla de un concepto de ciudadanía normativa, Kant alude al nacimiento como criterio de inclusión y exclusión dentro de la comunidad política.
Pero esta fórmula es ambigua y tiene consecuencias diferentes, ya que si basta nacer dentro del territorio de la comunidad para considerarse un miembro de esa comunidad entonces estaría vigente el ius soli y las consecuencias para fenómenos
actuales como la inmigración serían diversas; mientras que si se sostiene que rige
el ius sanguinis, entonces se consideran miembros de la comunidad aquellos que
descienden (de forma biológica o adoptiva) de miembros de la misma. La primera
interpretación permite una mejor correlación entre su cosmopolitismo moral y el
patriotismo; la segunda, por su parte, es más excluyente y puede conducir a una
postura comunitarista o, si se quiere, a un patriotismo nacionalista, pues se alude al
——————————————
18
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit.,315,316, pp. 145-146.
19
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 337, pp. 174-175.
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Javier García Medina
territorio común como elemento prepolítico de referencia, de manera que la nación
preceda a la ciudadanía.
Aclarar estas cuestiones exige realizar algunas consideraciones. Al tratar sobre Antropología, en Reflexionen, Kant se hace eco de la idea según la cual los
sujetos tienden a pensar que la propia nación es claramente superior a las demás;
postulado que puede superarse mediante una adecuada comprensión del patriotismo y del cosmopolitismo. En los debates actuales, el término patriotismo se emplea en ocasiones como sinónimo de nacionalismo; mientras que al cosmopolitismo
se le atribuye la pérdida de las raíces y, por tanto, opuesto a la familia, a la comunidad y a la nación. Se aprecia, pues, una cierta incompatibilidad entre estas dos
acepciones. Pero en el siglo XVIII, la incompatibilidad iba en una dirección pero
no en otra, es decir, los sujetos que se consideraban patriotas tendían a denostar el
cosmopolitismo pero un cosmopolita no rechazaba el patriotismo, es más éste se
convertía en su referente. Y éste puede ser el caso de Kant. Es verdad que la cuestión, en tal caso, es cómo combinar patriotismo y cosmopolitismo, y qué concepción de ambos pueden ser considerados en su obra.
Aludiremos brevemente, dado su general conocimiento, al cosmopolitismo.
Kant puede ser definido como un cosmopolita moral, en el sentido de que todos los
seres humanos son miembros de una misma y única comunidad moral y en virtud
de ello tienen obligaciones morales hacia los demás sin considerar su nacionalidad,
costumbres, religión o lengua20. En cualquier caso, la consideración de la ciudadanía supondría que los individuos son libres e iguales en tanto colegisladores dentro
de sus respectivas comunidades.
En Kant también existe una versión política del cosmopolitismo. En su filosofía política hay dos aspectos relevantes en este sentido: su conocida teoría de la
federación de Estados, y la doctrina del “derecho cosmopolita”. En la Paz Perpetua
y en la Metafísica de las Costumbres, Kant argumenta que los Estados deberían
abandonar el estado de naturaleza y construir una liga de Estados que promueva la
paz. Federación que carecería de poder coercitivo para imponer sus leyes. Los Estados mantendrían su total independencia y sólo se les pediría la conformidad voluntaria con las leyes.
En ambos libros, Kant añade una nueva categoría de derecho público, a saber, el derecho cosmopolita. Mientras el derecho internacional es el derecho entre
Estados, el derecho cosmopolita regula la interacción entre Estados y extranjeros,
siempre que dicha interacción no esté regulada por legítimos tratados entre aquellos Estados. De acuerdo con el derecho cosmopolita, Estados e individuos tienen
el derecho para intentar establecer relaciones con otros Estados y sus ciudadanos,
——————————————
20
I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, Tecnos, Madrid, 1994, pp. 30 y 38. Lo curioso es que hace esta
reflexión partiendo de una analogía, es decir, entiende esta obligación como si fuesen ciudadanos de un
mundo moral, o si se quiere, en términos políticos, de un estado trasnacional.
La Ciudadanía en Kant
57
pero no el derecho a entrar en el territorio extranjero. Los Estados, por su parte,
tienen el derecho a rechazar a los visitantes, pero no de forma violenta y carecerían
de tal derecho si del rechazo se derivase la muerte de aquellos. Los extranjeros
tienen el derecho de “hospitalidad”, que consiste en no ser tratado con hostilidad
por el mero hecho de llegar a la tierra de otro21. Nadie tiene derecho a asentarse en
la tierra de otro, a no ser que un tratado ampare la ocupación. Buena parte de la
discusión de Kant acerca del derecho cosmopolita constituye una fuerte crítica de
las prácticas colonialistas; y puede considerarse una aportación inicial sobre los
derechos de los refugiados al amparo del derecho internacional.
La defensa de Kant del cosmopolitismo moral y político cuestiona su postura
en torno al patriotismo en general. Porque si los humanos, en tanto sujetos morales,
pertenecen a una comunidad moral más allá de las fronteras nacionales, deberían
ser tratados de la misma manera que los compatriotas y los extranjeros. Pero en la
teoría política de Kant cabe el patriotismo, a pesar del peso que la idea de una federación internacional de Estados y los derechos de los visitantes extranjeros puedan
ejercer en su obra.
Puede encontrarse en Kant la defensa de un patriotismo que se puede denominar cívico. Defensa que aparece en diversos momentos de su obra, sobre todo en
aquellos casos en que compara el gobierno “paternalista” y el gobierno “patrio”; y
considera al primero como “despótico”, mientras que acepta el segundo, y caracteriza al patriótico como aquel «en que el Estado mismo (civitas) trata a sus súbditos
efectivamente como miembros de una familia, pero a la vez como ciudadanos, es
decir, según las leyes de su propia independencia, de modo que cada uno se posea a
sí mismo y no dependa de la voluntad absoluta de otro, que está junto a él o por encima de él»22. El Estado estaría gobernado por las reglas de derecho, legislado en
función de la voluntad general, y a partir de la igualdad e independencia de todos los
ciudadanos. Kant de este modo introduce la noción de patriotismo en el marco de la
discusión de las otras tres ideas centrales de su republicanismo: libertad, igualdad, e
independencia. Para Kant, hay un claro nexo entre patriotismo y republicanismo.
Kant en ocasiones menciona el patriotismo como una cualidad bien del Estado bien del ciudadano, pero sin que sea posible establecer una escisión entre ambas. Un Estado patriótico ha de considerar de igual forma a sus ciudadanos. El
patriotismo del ciudadano reside en verse a sí mismos como miembros colegisladores del Estado, y no meramente como su propiedad. En consecuencia ambos se
implican porque para que haya patriotismo del ciudadano ha de existir también
patriotismo por parte del Estado, pues éste se construye a partir del pequeño sentimiento ciudadano de verse a sí mismo como un miembro colegislador del Estado,
en caso contrario, el Estado al no considerar así a sus miembros no estaría contri——————————————
21
I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, cit., p. 27 y ss..
22
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 317, p. 147.
58
Javier García Medina
buyendo en ese sentido. “Patriotismo”, por tanto, es el término para designar tanto
el “identificarse con” como la actividad cívica en nombre de la comunidad política,
concretada tanto en la participación en el gobierno de la república o en su defensa
como en la promoción del bienestar de sus ciudadanos, considerados como libres e
iguales. La república ha de estar al servicio del bien político común de los ciudadanos. Se trata, en último término, de un patriotismo cercano al de la tradición republicana, que no implicaría la noción de una nación en un sentido étnico23.
Pero en Kant puede encontrarse un patriotismo nacionalista al considerar la
comunidad política en la que cada uno es un ciudadano en cuanto grupo nacional al
cual uno pertenece. Se trataría de un patriotismo en términos de pertenencia a una
nación, a partir de unos comunes ancestros nacionales que se afirman como el fundamento del patriotismo. Y al tiempo defiende la idea de que todos los humanos
descienden de unos ancestros comunes y que esto justifica y precisa del cosmopolitismo. De este modo, los ancestros comunes son presentados como la base de un deber
de amar a los connacionales y de un deber general de amar a los seres humanos24.
Se puede identificar una última clase de patriotismo que consiste en el amor
al propio país que resulta de la propia experiencia de unos rasgos y cualidades
particulares, como ser hospitalarios, generosos, humildes, cosmopolitas, etc., cualidades que Kant podría considerar como caracteres definitorios de los alemanes.
Parece contradictorio ver el cosmopolitismo como justificación del patriotismo,
pero en un examen más detallado no es per se incoherente amar al propio país a
causa de las loables características de sus habitantes.
Estas tres clases de patriotismo no se excluyen entre sí. Así, se puede ser un
cívico patriota y también amar al propio país a causa de sus características, y considerar, por tanto, que uno tiene especiales deberes hacia los miembros de su propia
nación. La incompatibilidad entre estos patriotismos ha de buscarse en otro sitio.
Los tipos expuestos muestran que la perspectiva del patriotismo puede ser local,
regional, de ámbito estatal, o incluso más amplio, dependiendo de lo que cada uno
defina como patria. Además, no se determina cuál de estas formas de patriotismo
supone en la práctica la adecuada actitud hacia los no-compatriotas. Cada una de
——————————————
23
De este modo, no es un principio (conceptualmente) imposible renunciar a la propia ciudadanía
en un Estado a favor de la de otro, aunque esto depende de las leyes de inmigración y emigración para ser
una opción real. Finalmente, el patriotismo cívico no requiere la abstención en la crítica de las instituciones
de la república. Efectivamente, muchos autores del siglo XVIII presentan su criticismo a las prácticas sociales y políticas como una señal de su patriotismo, puesto que ellos tenían la intención de aumentar la
calidad de la república apelando a sus reformas.
24
El patriotismo, el amor hacia el propio país, y el cosmopolitismo se implican (en la categoría de
amor general a los otros). En ambos la determinación al amor a los otros está basada en los ancestros comunes: pero el primero es a los del lugar, y es amor hacia el propio país en su sentido verdadero cuando está
dirigido a la sociedad unida del pueblo (vereinigte Volksgesellschat), el cual consideramos como nuestro
tronco/tribu (Stamm), y de la cual nos consideramos como rama/miembros (Glied); el segundo está dirigido
a los ancestros generales globales (Allgemeine Weltabstammung).
La Ciudadanía en Kant
59
las tres variedades puede degenerar en un fanatismo militante, y cada una puede
debilitarse hacia un vago sentimiento sin significado práctico. En el primer caso el
patriotismo claramente excluye al cosmopolitismo, y en el segundo son insignificantemente compatibles. El asunto aquí es cómo establecer vínculos entre estos dos
extremos.
Lo expuesto nos cuestiona, por un lado, si Kant sostiene o no algún tipo de
patriotismo; y, por otro lado, el nexo entre ciudadanía política y cosmopolitismo
moral y político, pues, el cosmopolitismo moral puede neutralizar la noción de
ciudadanía. En el caso de un Estado mundial ideal, el propio país y la república
mundial coincidirían, y esto eliminaría la zona de conflicto, por lo menos al nivel
de ideal teórico. Por tanto la cuestión estaría resuelta, al menos para el patriotismo
cívico y el basado en rasgos. Pero, en su filosofía política madura, Kant rechaza el
ideal de un Estado mundial y aboga por la formación de una federación voluntaria
de Estados sin poderes coactivos. Él considera justificada, e incluso necesaria, la
pluralidad de Estados existentes y con esta conjetura trabaja25. En definitiva, la
pregunta sobre la congruencia entre patriotismo y cosmopolitismo se mantiene.
El hecho de que todos los seres humanos, en tanto racionales, sean considerados moralmente iguales no significa que sean tratados exactamente igual. El propio deber de hacer perfecto implica exigencias que uno debe a todos, y a todos
igualmente26. Pero el deber propio imperfecto tiene en cuenta la libertad sobre
cómo y hasta qué punto uno cumple con ellos. Deberes tales como el deber de ayudar a otros en situación de necesidad o el deber de promover la felicidad general,
requiere que uno adopte ciertas máximas; estos deberes no establecen actos específicos, y la decisión de qué se haga se deja al agente. Puede pensarse que esta libertad se utiliza para justificar el patriotismo, y que el hecho de que no se pueda ayudar a todos, y que de cualquier modo se tenga reducido el ámbito de actuación, le
permite a uno dirigir su acción positiva hacia sus compatriotas o connacionales.
Kant considera que el cumplimiento de los deberes propios imperfectos es un
asunto de juicio, y explícitamente niega que sea posible determinar en abstracto
cómo otros cumplirían sus deberes imperfectos27. Decir que los deberes imperfectos posibilitan la libertad equivale a decir precisamente que no hay en la moral
reglas que prescriban en abstracto acciones específicas que los particulares realicen
en las situaciones concretas, por lo que no cabe otro recurso que el juicio moral.
Cabe, pues, plantearse si el ejercicio de esta libertad puede admitir un tratamiento preferente en atención a la connacionalidad o cociudadanía o si tal preferencia supondría un acto de discriminación reprochable contra los otros. Kant ar——————————————
25
I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, cit., p. 41.
26
De ese modo, uno no debería mentir a los otros, a cualquiera y dondequiera que se esté, y sin
reparar en si actuando así se beneficiase a otros con quienes uno se encuentra en una relación especial.
27
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 433, p. 296.
60
Javier García Medina
gumenta que normativamente se requiere que todos los individuos que interactúan
con otros sean miembros en un Estado. Sostiene que todos los seres humanos tienen un innato e igual derecho a la libertad externa, y que por lo tanto habría que
crear un sistema de acuerdo con el cual la libertad de cada uno pueda coexistir con
la libertad de los demás. Desde el punto de vista de Kant, el Estado justo es la “república”, en la que los ciudadanos son libres, iguales, y colegisladores independientes. Todo ciudadano “activo” tiene derecho a votar, pero su actividad legislativa es reemplazada por sus representantes: «Una verdadera república es y no
puede ser otra cosa que un sistema representativo de personas, en orden a proteger
sus derechos en su nombre, por todos los ciudadanos unidos y actuando a través de
sus delegados (diputados)»28. En orden a evitar abusos, una república separaría las
funciones de gobierno legislativa, ejecutiva y judicial29. Esta clase de Estado implicaría ciertos deberes de los ciudadanos hacia el Estado. Pero qué actividades de
cada ciudadano requiere el patriotismo cívico dependerá de la situación y de las
propias capacidades. Al ser un deber imperfecto no precisa un listado de lo que
necesariamente debe ser hecho bajo determinadas circunstancias. Como mínimo, se
incluiría participar en el debate público, votar y permanecer formado e informado.
Cosas todas ellas necesarias para mantener un estado justo y para mejorar a uno no
perfectamente justo.
Pero, el argumento anterior no justifica directamente los esfuerzos morales y
políticos de un ciudadano hacia los propios compatriotas mientras no se consideren
las necesidades de otros. El deber del patriotismo cívico es el deber de promover el
funcionamiento y el perfeccionamiento de la república como una institución de
justicia. Éste no es originariamente un deber de sostener a los propios compatriotas
sino, más bien, el deber de promover la institucionalización de la justicia. Es probable que aquí se diera el caso en el que los compatriotas reciben ciertos beneficios
como resultado, pero éste no lo es simplemente a causa de que ellos sean compatriotas sino más bien porque son miembros de una república justa que uno debe
sostener y mantener como una institución de justicia. Esto muestra que efectivamente Kant puede defender consistentemente el punto de vista según el cual los
ciudadanos tienen deberes especiales hacia el Estado justo del que son miembros,
deberes que no se tienen hacia otros Estados o sus miembros. Pero mostrando que
el patriotismo cívico es un deber imperfecto no está suficientemente demostrado
que este deber pueda también ser reconciliado con nuestro deber general cosmopolita hacia otras personas morales.
Parece, por tanto, que existe un conflicto de deberes, a pesar de que claramente Kant asegura que tales conflictos no existen30. Porque, en primer lugar, el
——————————————
28
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 341, p. 179.
29
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 313, p. 142.
30
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 224, p. 30-31.
La Ciudadanía en Kant
61
deber imperfecto de patriotismo cívico ha de ceder en algunos momentos a nuestros deberes morales cosmopolitas, siempre que éstos sean deberes perfectos. En
segundo lugar, Kant señala que el verdadero deber de patriotismo se aplica simétricamente a gentes de otras repúblicas justas en otras partes del mundo: tienen un
deber cívico patriótico hacia su república justa. Es más, Kant considera que patriotismo cívico y cosmopolitismo llevan la misma dirección31, y ésta hace incluso
deseable que la gente en cualquier parte adopte el máximo de patriotismo cívico.
Las repúblicas son por naturaleza más pacíficas que las tiranías, argumenta Kant,
porque los ciudadanos tendrían voto para decidir si inician o no una guerra, y tendrían que soportar las cargas de la guerra ellos mismos, y es improbable que ellos
voten a favor de esto32. Tendiendo hacia la paz, las repúblicas es más probable que
hagan avanzar la causa de la federación de Estados y promover la meta cosmopolita de la paz perpetua, la cual a su vez aumenta la estabilidad de las repúblicas
mismas. Por tanto, cuantos más patriotas cívicos de los que Kant establece haya en
el mundo, cuanta más gente haya apoyando formas republicanas de gobierno, más
cercana tendremos la paz global. A la inversa, Kant sostiene que oponer el bien
patriótico al bien cosmopolita implica una mala comprensión de lo anterior y es
autodestructivo a largo plazo.
Por último, según Kant, no hay dificultad para pensar en situaciones en las
cuales los dos son compatibles o en las cuales ambos pueden ser realizados al
mismo tiempo. La promoción de la justicia de la propia república, pasa por concertar pactos justos con otros Estados. Esto implica que no es equivocado actuar
según la propia máxima del patriotismo cívico en favor de algún fin cosmopolita, o
a la inversa, a condición de que uno haya efectivamente adoptado ambas máximas.
Así, nuevamente, no hay un verdadero conflicto de deberes como tal, y el deber de
patriotismo cívico es compatible con los propios deberes cosmopolitas33.
Kant también parece sostener un deber hacia los connacionales y al propio
país derivado del patriotismo nacionalista, con argumentos que recuerdan a Rousseau, pues critica a aquellos que se sienten más cerca de la humanidad en general y
de sus problemas que de aquellos que tienen presentes en su comunidad. El argumento se asienta aquí en una premisa psicológica empírica. Kant asume que la
práctica del amor necesita cristalizarse alrededor de o enfocarse a algún particular
——————————————
31
G. Raulet, Kant, histoire et citoyenneté, PUF, París, 1996, p. 244: «C’est bien pourquoi, de point
de vue du droit, Kant recommande une féderation d´États de droit demeurant autonomes afin qu’au sein de
chacun d’eux le citoyen puisse advenir, que le sujet devienne Homme, donc membre d’une fraternité universelle. Ce n’est qu’en chacun des États que ce passage peut se faire. Il y a certes une validité pratique
universelle de la morale mais pas de résolution universelle a priori des différends».
32
33
I. Kant, Sobre la Paz Perpetua, cit., p. 17.
Ya que un deber imperfecto es el deber de adoptar una cierta máxima, no el deber de hacer un determinado acto, Kant considera no estar equivocado cuando se actúa según una máxima particular en algunas ocasiones, La Metafísica de las Costumbres, cit., 225, p. 31.
62
Javier García Medina
subgrupo de humanos hacia los cuales uno siente un apego emocional, porque la
falta de tal enfoque amenaza los propios esfuerzos para cumplir los deberes de cada
uno. Kant parece estar argumentando que es psicológicamente imposible por afectos y devociones personales realizar la propia beneficencia si ésta está dirigida a la
humanidad en general, ya que la completa falta de tales afectos personales constituye un obstáculo para la acción moral, y esa falta de enfoque debe por lo tanto ser
evitada. El patriota nacionalista entendería que siendo fiel a su país, permitiría
hacer avanzar el bienestar de todo el mundo.
Sin embargo, el argumento de Kant tiene dos problemas. En primer lugar,
Kant inicia el argumento hablando acerca del patriotismo basado en comunes ancestros, pero acaba expresándolo en términos de fidelidad al propio país. Pero esto
sólo es válido si uno asume que los límites de las naciones y los Estados coinciden
y que las naciones efectivamente tienen comunes ancestros. Ahora bien, esta es una
suposición general que en muchos casos puede ser falsa, ya que ni las fronteras de las
naciones y Estados necesariamente coinciden, ni los miembros de una nación tienen
siempre los ancestros comunes. Además, no se puede evitar que haya grupos que
deseen beneficiar a alguien más allá de su propio país, dependiendo del grupo del
que se está hablando y del país en que uno vive. En resumen, el argumento de Kant
no justifica un deber hacia los connacionales desde el patriotismo nacionalista.
A pesar de que Kant atempera su defensa del deber patriótico nacionalista en
la versión publicada de la Metafísica de las Costumbres, continúa usando la analogía entre el país y la familia. Dado que el patriotismo nacionalista es frecuentemente defendido para señalar los deberes propios hacia los miembros de la propia
familia y argumentando que uno tiene deberes análogos hacia los propios connacionales, uno se preguntaría si el uso de Kant de la analogía familiar muestra que
todavía defiende implícitamente una versión de patriotismo nacionalista. Kant emplea la analogía familiar en diferentes lugares. En la Metafísica de las Costumbres,
habla del tratamiento de los súbditos «como miembros de una familia, pero a la vez
como ciudadanos» del Estado34. Y en otra parte de la misma obra dice que «los
hombres que constituyen un pueblo pueden representarse, según la analogía de la
procreación, como indígenas procedentes de un tronco paterno común (congeniti),
aunque no lo sean; sin embargo, en un sentido intelectual y jurídico, en cuanto
nacidos de una madre común (la república), constituyen –por así decirlo- una familia
(gens, natio), cuyos miembros (ciudadanos) son todos de igual condición (…)»35.
Defensores del patriotismo nacionalista hablan de las dos como análogas en
tanto que ambas son invocadas para establecer deberes especiales por parte de sus
miembros hacia los connacionales. La cuestión es si Kant opina lo mismo. Pero
esto no es lo que Kant tiene aquí en mente. Por el contrario, la analogía se asienta
——————————————
34
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 317, p. 147.
35
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 343, p. 181.
La Ciudadanía en Kant
63
en el hecho de que todos los miembros tanto de la familia como de la república
tienen el mismo rango. Del mismo modo que todos los niños en la familia pertenecen a una misma clase social, todos los ciudadanos en una república son iguales.
Así la mera comparación de un pueblo con la familia no hace de Kant un patriota
nacionalista.
En último término, nos queda plantear si el patriotismo fundado en rasgos o
caracteres genera o no algún tipo de deber hacia los connacionales. La respuesta es
negativa y la razón es una bien simple. La presencia de diferentes rasgos presupone
la existencia de pueblos diferentes y esta forma de patriotismo está explícitamente
enraizada en el sentimiento y en las contingencias de la psicología individual. Por
lo tanto, esto no puede ser objeto de un deber general. Puesto que el patriotismo
basado en rasgos se origina por definición en un sentimiento36, y porque uno no
puede ser moralmente obligado a tener ciertos sentimientos, este no es un deber de
raíz kantiana.
6. Conclusión
En resumen, el patriotismo cívico es la única forma de patriotismo que Kant
puede defender consistentemente como deber, ya que sólo este patriotismo puede
conciliarse con el cosmopolitismo. Si un sujeto está firmemente comprometido con
el principio moral cosmopolita según el cual uno debe promover la felicidad de
otros eso quiere decir que su acción tiene valor moral. Esto demuestra que Kant
está comprometido con la perspectiva según la cual cuando la deliberación moral
oriente a uno para juzgar que los múltiples cursos de acción son iguales en línea
con la máxima moral propia, el propio amor al país debería ayudar a decidir qué
elige uno. El valor moral de las acciones no depende de su patriotismo, sino de su
subrayada máxima para promover la felicidad de otros, del deber.
Si el patriotismo levanta sospechas entre muchos se debe a que muchos actos
realizados en su nombre no estuvieron de acuerdo con el deber como tal, siendo
injustas para otros Estados y naciones o individuos de fuera – o incluso con individuos dentro del Estado a quienes se les consideraba una amenaza para la conformación del Estado o de la nación. Se dice también frecuentemente que el patriotismo ha degenerado en un fanatismo que atribuye un más alto nivel moral a los
compatriotas o connacionales que a otros seres humanos. Y en tales casos, se vio——————————————
36
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 449, p. 318: «Ahora bien, no entendemos aquí el
amor como un sentimiento (estéticamente), como placer experimentado por la perfección de otros hombres;
no lo entendemos como amor de complacencia (porque los demás no nos pueden obligar a tener sentimientos), sino que tiene que concebirse como una máxima de benevolencia (en tanto que práctica), que tiene
como consecuencia la beneficencia».
64
Javier García Medina
lan los principios básicos de la teoría moral y política de Kant, pues éste deja espacio para una forma debida de patriotismo, a saber, el patriotismo cívico.
A la vista de lo expuesto el modelo de ciudadanía que Kant nos propone se
corresponde, a nuestro juicio, con el modelo republicano ya que si bien a través del
patriotismo cívico se está exigiendo un compromiso con la comunidad, el rechazo
de un patriotismo nacionalista o basado en unos peculiares caracteres marca la idea
de que la comunidad no anula y absorbe al individuo, y que la comunidad es el
producto de la participación de los ciudadanos en la vida social. Los individuos
pueden esperar la defensa de su autonomía y de sus derechos porque Kant estaría
admitiendo la idea de autolegislación, como eje fundamental del Estado civil.
Decíamos al principio que parte de los males de la sociedad actual derivaban
de la incapacidad de ponernos en el lugar del otro, como consecuencia de considerarlo como alguien que nos es indiferente o, aún peor, por verlo como una amenaza. A esta cuestión se refiere Kant en la Metafísica de las Costumbres, al indicar
que «aunque no es en sí mismo un deber sufrir (y, por tanto, alegrarse) con otros, sí
lo es, sin embargo, participar activamente en su destino y, por consiguiente, es un
deber indirecto a tal efecto cultivar en nosotros los sentimientos compasivos naturales (estéticos) y utilizarlos como otros tantos medios para la participación que
nace de principios morales y del sentimiento correspondiente. Así pues, es un deber
no eludir lo lugares donde se encuentran lo pobres a quienes falta lo necesario, sino
buscarlos; no huir de las salas de los enfermos o de las cárceles para deudores, etc.,
para evitar esa dolorosa simpatía irreprimible: porque éste es sin duda uno de los
impulsos que la naturaleza ha puesto en nosotros para hacer aquello que la representación del deber por sí sola no lograría»37.
Esta confianza en la naturaleza humana se completa con su rotunda defensa
de una educación moral, como se observa al final de la Metafísica de las Costumbres. Educación moral que sería el colofón de una educación que tendría además
como objetivos: la instrucción científica y técnica y la adecuada adaptación del
individuo al medio social mediante el desarrollo de las habilidades sociales necesarias. Es evidente que el objetivo de Kant no es el mismo que el que puede tener
ahora la denominada Educación para la Ciudadanía, pero lo que si es cierto es que
Kant estaba elevando la moral racional a referente necesario del joven y, por tanto,
del ciudadano38.
——————————————
37
I. Kant, La Metafísica de las Costumbres, cit., 457, p. 329.
38
J. Carvajal Cordón (coordinador), Moral, Derecho y Política en Immanuel Kant, cit., pp. 303-304.
Política y Antropología en Kant
Maximiliano Hernández Marcos
UNIVERSIDAD DE SALAMANCA
Este trabajo quiere ofrecer una reconstrucción sintética de la «antropología
política» de Kant1. Con ello se alude al intento de desentrañar la concepción del
hombre que está en la base de su visión del Estado y del quehacer político en general2. Se trata, sin duda, de abordar la relación entre política y antropología en el
——————————————
1
En el presente artículo las obras de Kant se citan conforme a la siguiente nomenclatura: AA =
Kant’s gesammelte Schriften, edición de la Academia Prusiana de las Ciencias, Walter de Gruyter 1910 y
ss.; Dissertatio = Dissertatio de mundo sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (1770); KRV =
Kritik der reinen Vernunft (1781, 1787); Prolegomena = Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik,
die als Wissenschaft wird auftreten können (1783); Idee = Idee zu einer allgemeinen Geschichte in
weltbürgerlicher Absicht (1784); GMS = Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785); Mutmasslicher
Anfang = Mutmasslicher Anfang der Menschengeschichte (1786); KpV = Kritik der praktischen Vernunft
(1788); KU = Kritik der Urteilskraft (1790); Die Religion = Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen
Vernunft (1793); Über den Gemeinspruch = Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein,
taugt aber nicht für die Praxis (1793); ZEF = Zum ewigen Frieden (1795); RL = Die Metaphysik der Sitten.
Erster Theil, metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre (1797); TL = Die Metaphysik der Sitten.
Zweiter Theil, metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre (1798); Anthropologie = Anthropologie in
pragmatischer Hinsicht (1798); SF = Der Streit der Fakultäten (1798). En cuanto al modo de citar, aparece
siempre tras la referencia a la obra el volumen, si lo hubiere, y la página según la primera (A) y/o la segunda edición (B). Por lo demás, este trabajo se inscribe dentro del proyecto de investigación HUM 2005-01063/FISO del Ministerio de Educación y Ciencia español.
2
No se pretende, pues, reconstruir aquí ninguna antropología filosófica que aspire a desvelar la
esencia humana o a responder a la pregunta global “¿qué es el hombre?” (Kant también renunció a esta
ambición especulativa); tampoco se quiere hacer lo que el filósofo crítico ocasionalmente denominó “antropología trascendental” y llevó a cabo en buena medida en su Crítica de la razón pura, a saber, un análisis
del ser humano en sus capacidades cognoscitivas superiores (entendimiento, facultad de juzgar y razón) (cf.
Reflexion 903, AA XV.1, p. 395); ni siquiera se tiene el propósito de extraer del filósofo de Königsberg una
especie de «antropología política» al uso de los antropólogos sociales contemporáneos a base de recomponer inductivamente observaciones etnográficas o etnohistóricas. Para el concepto más teórico de «antropología política» que se maneja aquí véase M. Hernández Marcos, «Idea de una antropología política en
sentido moderno. Breve bosquejo epistemológico», en: Naturaleza y Libertad. La filosofía ante los probleFILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 65-100
66
Maximiliano Hernandéz Marcos
pensamiento kantiano desde una perspectiva externa a la obra estrictamente histórica del filósofo de Königsberg. Pero este enfoque metodológico tiene la ventaja
nada baladí – como se mostrará a lo largo de este breve ensayo – de que contribuye
a iluminar de manera más eficaz la relación entre sendos ámbitos epistémicos
desde la perspectiva interna de la construcción doctrinal del criticismo, es decir,
nos permite comprender mejor el lugar sistemático que corresponde a la antropología en la teoría kantiana de la praxis política. En concreto, podremos entender
que la función esencial de mediación asignada por Kant al conocimiento antropológico en su visión de la praxis política responde, en el fondo, a que su manera de
entender esta última así como su peculiar concepción del Estado y de lo que significa la vida civil en general tiene como presupuesto una determinada idea fundamental del hombre y de su destino histórico, sin la cual la doctrina crítica del derecho y de la política sería otra bien distinta.
El tratamiento de este tema requiere secuenciar la argumentación en cuatro
momentos. En primer lugar, es preciso trazar los rasgos básicos de la teoría kantiana de la praxis política, tal como se bosquejan en el Apéndice de Zum ewigen
Frieden (1795) [1.], y hacer hincapié a continuación en el papel intra-sistemático
que juega ahí el conocimiento antropológico [2.]. Posteriormente nos detendremos
en el concepto kantiano de «antropología pragmática» para poner de manifiesto
que se trata de un saber sobre el hombre orientado precisamente hacia la prudencia
política del ciudadano y, particularmente, del hombre de Estado [3.]. Por último, se
expone la concepción kantiana del ser humano que corresponde a la visión del
quehacer político examinando la célebre y problemática teoría de las «disposiciones naturales» de la especie humana [4.]. Con esta imagen «antropológico-política»
final de un hombre estructuralmente propenso a las ideas morales podrá confirmarse hasta qué punto en el republicanismo de Kant van indisociablemente unidos
«idealismo jurídico» y «realismo político».
1. La teoría de la praxis política. La convergencia necesaria entre «idealismo jurídico»
y «realismo político».
Como es sabido, el único lugar en el que Kant formula una teoría ciertamente escueta pero precisa y rigurosa sobre la praxis política, es en el Apéndice de
Hacia la paz perpetua (1795). Ese breve texto constituye, en realidad, el precipi——————————————
mas del presente, Salamanca: ed. Sociedad Castellano-Leonesa de Filosofía, 2005, pp. 181-196 (también
en: http//saavedrafajardo.um.es). Un ejercicio análogo de reconstrucción antropológico-política pero comparando dos modelos distintos, el teológico-hobbesiano y el republicano, puede encontrarse en J. L. Villacañas Berlanga, «Crítica de la antropología política moderna», en: M. Cruz Rodríguez (comp. .), Los filósofos y la política, Madrid/México: F.C.E., 1999, pp. 161-190.
Política y Antropología en Kant
67
tado final de una reflexión que se remonta al menos hasta el ensayo de 1793 Sobre
el tópico, en el que se hace una primera aproximación, bastante insuficiente por
excesivamente teórica y abstracta, al problema del quehacer político, y que va madurando progresivamente en esos años al hilo de la polémica, desencadenada por la
Revolución Francesa, con el jacobinismo kantiano alemán y con el pensamiento
contrarrevolucionario de orientación burkeana y neoaristotélica (Gentz y Garve) o
de cuño tradicionalista inspirado en J. Möser (Rehberg), a cuyas objeciones y desafíos conceptuales, dada la relevancia de sus implicaciones históricas en aquel momento, era necesario ofrecer una respuesta coherente con el propio criticismo,
además de deshacer injustos malentendidos ideológicos sobre este último3. Y esa
respuesta genuinamente crítica figura ya al comienzo del Apéndice al ser caracterizada la política (Politik) como «doctrina ejecutiva del derecho» (A 66/B 71). La
importancia de esta definición general, el verdadero alcance histórico de esta concepción de la acción política como aplicación o ejecución del derecho reside en
que, como se mostrará a continuación, Kant se aparta tanto de una visión utópico-revolucionaria del quehacer político en la línea del jacobinismo como de su contrapartida empirista y conservadora al estilo de los contrarrevolucionarios seguidores de E.Burke o de J. Möser, para defender en su lugar un «realismo político»
inseparable del «idealismo jurídico» de la razón pura práctica.
Antes de pasar al análisis de lo que significa en concreto la expresión «doctrina ejecutiva del derecho», y con el fin de comprender el sentido «crítico» de esta
posición kantiana, vamos a servirnos de una analogía y de una distinción terminológica, ambas tomadas del propio arsenal teórico del criticismo. Cuando Kant en la
Crítica de la razón pura, al definir su postura doctrinal acerca del mundo de la
experiencia, se califica a sí mismo de “idealista trascendental” (“crítico” o “formal”) y a la vez de “realista empírico”, lo hace porque, por un lado, considera que
los objetos se conocen bajo ciertas formas a priori, ciertamente universales y necesarias, pero propias del sujeto humano (espacio, tiempo y categorías), y porque, por
——————————————
3
Sobre la formación de la teoría kantiana de la política en ese contexto histórico revolucionario, en
la que no podemos entrar ahora, véase M. Hernández Marcos, «Política, ley permisiva y facultad de juzgar a
propósito de Kant (I)», en: P. García Castillo (ed.), Trabajos y días salmantinos. Homenaje a D. Miguel
Cruz Hernández, Salamanca: Anthema, 1998, pp. 51-71; «Política y ley permisiva en Kant», en: J. Carvajal
Cordón (coord.), Moral, derecho y política en el bicentenario de la Metafísica de las Costumbres de Immanuel Kant, Cuenca: ed. Universidad de Castilla-La Mancha, 1999, pp. 365-380; y «Gentz, divergencia e
insuficiencia del criticismo político de Kant», Res Publica (Murcia), 6 (2000), pp. 227-247. En estos artículos puede hallarse también un análisis más exhaustivo del tema de la política en Kant, del cual aquí sólo
cabe presentar una visión sintética. Para la polémica con el ensayo de Ch. Garve, Abhandlung über die
Verbindung der Moral mit der Politik (1788), que está también en el origen del Apéndice de Hacia la paz
perpetua, véase M. Stolleis, Die Moral in der Politik bei Christian Garve, München, 1967, Staatsraison,
Recht und Moral in philosophischen Texten des späten 18. Jahrhunderts, Meisenheim am Glan: Antón
Hain, 1972, espec. pp. 43 y ss., 78 y ss.; así como Z. Batscha, «Despotismus von jeder Art reizt zur
Widersetzlichkeit». Die Französische Revolution in der deutschen Popularphilosophie, Frankfurt/M.:
Suhrkamp, 1989, pp. 13-56.
68
Maximiliano Hernandéz Marcos
otro lado, entiende, no obstante, que esas estructuras subjetivas sólo operan o se
aplican cuando los objetos externos se dan empíricamente a los sentidos, cuando la
realidad material del mundo comparece como tal ante nuestra sensibilidad4. Las
formas cognoscitivas puras son, sin duda, «ideales» por constituir el esqueleto de la
subjetividad cognoscente, pero no funcionan como tales al margen de la experiencia sino únicamente en el seno de ella y con ella, como estructuras ordenadoras de
la diversidad empírica del mundo que se da en la intuición.
En el Apéndice de Hacia la paz perpetua la defensa kantiana de la concordancia entre “moral” y “política” tiene en el ámbito «práctico» un sentido análogo
al de la doctrina «teórica» de la compatibilidad entre “idealismo trascendental” y
“realismo empírico”, un sentido que, parafraseando la analogía, pretendemos evocar al hablar de armonía o convergencia necesaria entre «idealismo jurídico» y
«realismo político», entre las formas racionales a priori del derecho y la diversidad
práctica de la materia histórica. Pero para ilustrar más adecuadamente esta idea
introduzcamos ahora la distinción terminológica anunciada anteriormente.
Cuando en la época de surgimiento de la Dissertatio, hacia 1769-1770, Kant
reflexiona sobre la posibilidad de una “doctrina de la moralidad”, distingue dentro
de ella una parte teórica, objetiva, que versa sobre los principios del enjuiciamiento
moral (principia diiudicandi), y una parte propiamente práctica, subjetiva, que
atiende a las condiciones de ejecución de los principios racionales puros (media o
principia executionis), sin las cuales éstos no llegarían a realizarse efectivamente
en la vida humana5. Esta distinción entre principia diiudicandi y media executionis
nos ayudará a definir mejor el modo como la teoría pura del derecho (“moral”)
concuerda con la doctrina de su aplicación (“política”) y el «idealismo jurídico» de
la razón pura práctica converge necesariamente con el «realismo político» del
hombre de Estado. Pasemos, pues, a desentrañar ya el verdadero significado «crítico» de la caracterización inicial de la praxis política como «doctrina ejecutiva del
derecho».
Esta formulación contiene, en efecto, dos ideas básicas. En primer lugar, con
ella se subraya que la acción política es (ha de ser) la aplicación de una teoría nor——————————————
4
Cf. KRV A 369-370; A 491-492 / B 519-520; A 27-28 / B 44; Prolegomena §13, Observaciones
II y III.
5
«Una doctrina es práctica si no sólo contiene conocimientos ociosos sino además un medio para
su execution. Ésta es la manera en que la mayor parte de las veces se pone en práctica la lógica. La filosofía
práctica es una filosofía acerca de la praxis, muchas veces parece otiosa y un medio propio de la diiudication, no de la execution.» (Reflexion 6608, AA XIX, p. 107; I. Kant, Reflexiones sobre filosofía moral,
Salamanca: Sígueme 2004, p. 47. Cf. Reflexionen 6613, 6619, 6628; y Dissertatio §9, A 11). Como puede
comprobarse, esta distinción se retrotrae, en último término, a la división habitual de la Lógica en una parte
theorica, docens y una parte practica, utens, tal como puede encontrarse en el Auszug aus der Vernunftlehre
(1752) de G.F. Meier utilizado por Kant. Reinhard Brandt, Immanuel Kant: Política, Derecho y Antropología, México: Plaza y Valdés, 2001, p. 136, ha recordado que la expresión «doctrina ejecutiva del derecho»
se explica a partir de ese mismo contexto lógico.
Política y Antropología en Kant
69
mativa del deber (Sollen), basada en conceptos y principios racionales de libertad
que no cabe extraer de la experiencia6. De ahí que Kant dirija ante todo su mirada
polémica en el Apéndice de Hacia la paz perpetua contra quienes entienden la
política como una mera técnica o «arte de gobierno» consistente en aplicar una
serie de reglas o máximas de astucia derivadas del conocimiento empírico de la
naturaleza humana y de la historia. Este empirismo «tecnocrático», que el filósofo
de Königsberg divisaba en burkeanos, tradicionalistas y neoaristotélicos defensores
del absolutismo ilustrado de su tiempo, constituye para él la auténtica “sofística” o
ilusión dialéctica de la política, no sólo porque hace depender la tarea del estadista
de simples fines materiales del arbitrio (felicidad, bienestar, etc.), sino también
porque de este modo busca, en el fondo, únicamente garantizar el “poder” y la dominación de los hombres en vez del “derecho” de los mismos7.
Frente a esto, Kant quiere hacer valer, sin embargo, su «idealismo jurídico»
como la genuina teoría moral, normativa pura, que evita la reducción dialéctico-“realista” de la acción política a simple técnica o arte del poder y la convierte en
auténtica praxis, implicada de manera prioritaria en el destino moral del hombre.
Para ello es preciso que los gobernantes dejen de guiarse por reglas empíricas derivadas exclusivamente del comportamiento histórico de los seres humanos y empiecen a adoptar en su lugar las ideas y principios a priori de la razón jurídico-práctica
como criterios rectores (principia diiudicandi) de su labor pública. Ello significa
que la meta y tarea principal del político, el «fundamento» de su obrar no es, pues,
la consecución y mantenimiento del poder, la consagración de la tradición, ni siquiera propiamente la administración del bienestar de los hombres, sino la realización del derecho y la justicia de acuerdo con las formas prácticas puras de la subjetividad libre. He aquí el verdadero «giro copernicano» que Kant plantea a la política moderna, atrapada hasta entonces entre dos formas sofísticas de «realismo», el
de la vieja prudencia aristotélica y el de la reciente «razón de Estado» maquiavélica. El primer argumento del Apéndice de Hacia la paz perpetua concluye por ello
dejando bien claro este primado del derecho en la praxis política:
«La verdadera política no puede dar un paso sin haber homenajeado antes
a la moral, y si bien la política es por sí misma un arte difícil, su unión con la
——————————————
6
7
Cf. Über den Gemeinspruch A 204 y ss.
Cf. ZEF A 82-83/ B 87-88, A 69-70 / B 74-75. En el fondo Kant viene a poner de manifiesto que
la sofistería política de los empiristas en cuestiones de Estado descansa en su «realismo jurídico», esto es,
en la convicción de que el derecho emana exclusivamente de la facticidad del poder y está a su servicio (cf.
Ibidem A 69 / B 74). Ello se debe, sin duda, a que no reconocen más moral que la política misma, a que
hacen de la «prudencia política», abandonada a sí misma, el único principio válido de la acción estatal y la
convierten así en una «pseudo-sabiduría del interés” de poder y de la razón de Estado (cf. Monique Castillo,
«Moral und Politik: Misshelligkeit und Einhelligkeit», en: O. Höffe (hrsg.), Immanuel Kant. Zum ewigen
Frieden, Berlin: Akademie Verlag, 1995, p. 103).
70
Maximiliano Hernandéz Marcos
moral no es un arte, pues ésta [la moral] corta el nudo que aquélla es incapaz de
desatar cuando ambas se oponen entre sí. El derecho de los hombres debe mantenerse sagrado por muy grandes sacrificios que pueda costar al poder dominante. Aquí no puede haber división en partes iguales ni cabe inventar la cosa
intermedia de un derecho condicionado pragmáticamente (entre derecho y utilidad), sino que toda política debe doblegar su rodilla ante aquél [el derecho]»8.
No obstante, Kant difícilmente habría salvado la objeción de sus críticos
conservadores sobre el carácter “quimérico” de su teoría pura del derecho por la
supuesta impracticabilidad de sus exigencias normativas9 y menos habría dado
cuenta de la acusación paralela de que su “metafísica” de la razón pura era, precisamente por “platónica” y “quimérica”, la causa de revoluciones políticas como la
de Francia10, si hubiera extendido el idealismo práctico más acá del cometido jurídico-racional del obrar público, hasta convertirlo en el proceder de la política
misma, transformando subrepticiamente de este modo la idealidad pura de los principios de la acción en una idealidad fáctica de los medios de ejecución. Pero el
idealismo kantiano, limitado a los fines jurídicos, si bien presupone ciertamente la
viabilidad o factibilidad del derecho racional en cuanto exigencia normativa de la
praxis política (carece de sentido plantear una tarea moral, un deber, que no pueda
realizarse), no incluye, sin embargo, ni se refiere al modo de aplicación de las ideas
jurídicas al mundo empírico11, que constituye, sin duda, el trabajo cotidiano del
político.
Por eso el segundo argumento del Apéndice de Hacia la paz perpetua, el que
se sigue de la caracterización de la Politik como práctica o ejecución de la teoría
pura del derecho, consiste en sostener que la idealidad moral de los principios ha
de ser complementada y restringida a la vez por el realismo político de los medios
y condiciones fácticas de su traslación efectiva a una determinada sociedad humana
(media executionis). Kant, espoleado por la observación crítica de Friedrich von
——————————————
8
ZEF A 91/ B 97.
9
Sobre esta objeción que siempre planeó sobre el «idealismo jurídico» kantiano, y que ha llevado a
entenderlo hasta hace un par de décadas como una forma de «utopismo», v. Volker Gerhardt, Immanuel
Kants Entwurf «Zum ewigen Frieden». Eine Theorie der Politik, Darmstadt: WBG, 1995, p. 39, quien
recuerda cómo Silvestre Chauvelot, en una carta a Kant del 18 de septiembre de 1796, aún le reprochaba
que la propuesta de paz perpetua constituyese «un viaje al país de las quimeras». Cf. Asimismo R. Brandt,
o.c., p. 138.
10
Kant mismo se hace eco de esta interpretación ampliamente difundida en la época, en la cual
coincidían en Alemania los jacobinos kantianos (Erhard, Fichte…) y sus detractores burkeanos y tradicionalistas (Gentz, Rehberg…), en los Trabajos preliminares de En torno al tópico (1793) al plantear la cuestión de si el dicho «lo correcto en teoría vale también para la práctica» sólo tiene un significado político
revolucionario (cf. AA XXIII, p. 127).
11
En esto radica la diferencia de la «política» con respecto a la «ética», entendidas ambas como
prácticas de la moral (cf. AA XXIII, pp. 13-131).
Política y Antropología en Kant
71
Gentz acerca de la insuficiencia e impotencia de la doctrina racional pura para convertirse en práctica sin una teoría suplementaria de la experiencia (Theorie aus
Erfahrung) o de los «principios intermedios»12, se percató de que en el tránsito de
los principios jurídicos de la razón a la realidad empírica del mundo y de los hombres ha de tenerse en cuenta la materia histórica que aquéllos van a conformar, de
manera que no es posible, so pena de poner en peligro la buena realización de la
teoría normativa, aplicar inmediatamente lo que ordena la razón jurídico-práctica
(como es el caso de los deberes «éticos»), como si pudiera darse una irrupción originaria y pura del derecho en la vida social y la praxis política viniera entonces a
confundirse con una acción mesiánica sobre un mundo traspasado del todo por el
caos y la corrupción. Este «idealismo político» de los jacobinos alemanes, que
entendía la tarea moral de la política en términos de acción revolucionaria, ignoraba, entre otras cosas, que no cabe una manifestación absoluta, una creatio ex
nihilo del derecho racional en sí en un momento privilegiado de la historia humana,
sin precedentes ni mediaciones institucionales del mismo, porque la «idealidad»
normativa del derecho no supone su clausura en un reino trascendente de meras
ideas a la espera de un acto de intervención providencial en el acaecer mundano;
muy al contrario, para Kant la idealidad de los conceptos jurídicos – como la de las
formas a priori del sujeto cognoscente – va unida a su realidad práctica objetiva
en forma de «derecho positivo», de estructuras efectivamente ordenadoras de la
diversidad fáctica de la acción social, si bien esa realización práctica es siempre la
de una manifestación empírica imperfecta y “provisional” que simplemente participa, cual mera copia platónica, de aquel ideal puro del «derecho racional»13. Pero
esto, en cualquier caso, quiere decir que – contra todo dualismo radical entre un
supuesto mundo trascendente de pureza jurídica y un mundo empírico presuntamente contaminado de raíz – no hay un grado cero de las formas jurídicas en la
historia humana, una especie de «estado de naturaleza» bruta que haya que erradicar de golpe para iniciar el orden del derecho, sino una «materia histórica» (una
sociedad, un pueblo determinado) que ya tiene la forma del derecho (positivo) en
——————————————
12
Se trata de: F. von Gentz, «Observaciones complementarias al razonamiento del Sr. Profesor
Kant sobre la relación entre teoría y praxis» (Berlinische Monatsschrift, 22, 1793), Res Publica (Murcia), 6
(2000), pp. 247-261.
13
R. Brandt, p. 131, ha interpretado con acierto la relación entre «derecho positivo» o «estatutario»
y «derecho racional» en Kant en términos de méthexis (participación) platónica, en la se funda (pero también se restringe normativamente) el principio de continuidad jurídica. Sobre esta «realidad práctica» del
derecho racional en términos de “participación” imperfecta del derecho positivo en él o de mera “provisionalidad” de este último con respecto a la relación entre constitución republicana y constituciones políticas
históricas cf. RL §52, A 212-213/B 241-242; y SF A 154-156. No es casual que ahí se haga uso de la distinción «crítica», idealista, entre «númeno» y «fenómeno» para aclarar esa relación práctica. Asimismo, en
nombre de la ley de continuidad jurídica que de este modo se hace valer, Kant interpreta la Revolución
Francesa como «evolución de una constitución iusnaturalista» (SF A 148-49).
72
Maximiliano Hernandéz Marcos
un cierto grado de aproximación a la idea, gracias a la cual se garantiza una lex
continui de la razón jurídica en su devenir mundano.
El político no puede pasar por alto esta realidad positiva del derecho (instituciones sociales, formas de organización política, derechos privados, etc.) ni tampoco el conjunto de condiciones empíricas (geográficas, culturales, económicas…)
que definen el ser histórico de la sociedad a la que se ha de aplicar la forma racional, so pena de precipitarla en el abismo de la anarquía, de esa barbarie que consiste en la ausencia de todo derecho. Sólo que la valoración de la idoneidad y
oportunidad de las circunstancias históricas para la recepción y aplicación de las
ideas racionales puras no depende del conocimiento a priori del deber jurídico, que
es incondicionado, ni de un sentido arraigado de la justicia, sino de un saber empírico sobre el hombre y la sociedad concreta que proporciona el «juicio» sobre el
presente, así como de una capacidad técnico-práctica para usarlo correctamente
para el fin del derecho y, por ende, de la felicidad de todos. Esta capacidad para el
juicio y la decisión ejecutiva basada en el conocimiento empírico de las condiciones históricas y de los medios adecuados para la realización de las ideas jurídicas
es, sin duda, la vieja prudencia política (Staatsklugheit)14, que Kant reclama ahora
como compañera inseparable de la conciencia jurídica, en un esfuerzo por integrar
el tradicional «arte de gobierno» dentro de las condiciones liberal-emancipatorias
de la modernidad marcadas por el «giro copernicano» de la política, esto es, por el
primado del derecho sobre la «razón de Estado» y sobre el mero poder de la historia. La convergencia necesaria entre el idealismo de los principios y fines jurídicos
y el realismo de los medios y modos de aplicación política de los mismos a la realidad se traduce así en la exigencia de entender la acción del estadista en términos
de sabiduría política (Staatsweisheit)15, una exigencia que se hace visible en el
——————————————
14
En la Fundamentación de la metafísica de las costumbres se define la «prudencia» [Klugheit] “en
sentido estricto” como «la habilidad en la elección de los medios para el mayor bienestar propio» (GMS AB
42). Referida a la política, esa habilidad ha de concernir a la toma de decisiones adecuadas para lograr el
«fin general del público», a saber, la felicidad (ZEF A 13 / B 111). Kant no se opone, pues, a la «prudencia»
como tal, sino a una prudencia abandonada a sí misma y elevada a principio único y absoluto, a «moral»
exclusiva de la acción política, tal como la entienden los «moralistas políticos» Sobre la relación de la
«prudencia política» con el «juicio» del público v. J.L. Villacañas, Res Publica. Los fundamentos normativos de la política, Madrid: Akal, 1999, pp. 206-210; y Enrique Serrano Gómez, La insociable sociabilidad.
El lugar y la función del derecho y la política en la filosofía práctica de Kant, Barcelona: Anthropos, 2004,
pp. 203-221.
15
En KpV AB 194 y ss. Kant presentó ya la «sabiduría» como el ideal racional práctico del «sumo
bien» y, por ende, como la realización efectiva de la unión entre moralidad y felicidad que se logra mediante la virtud (cf. TL A 46-47). Con este mismo sentido «ejecutivo» de puesta en práctica de las ideas
morales entiende Kant aquí la «sabiduría política», si bien ahora se trata de la ejecución del derecho puro
que concuerda con las condiciones de la felicidad general, marcadas por la prudencia, sin las cuales no se
lograría el «sumo bien» a nivel colectivo y cosmopolita, pero tampoco a nivel individual. De ahí que la
versión «política» de la sabiduría sea la condición prioritaria y con ello la forma por excelencia de la sabiduría práctica misma, en consonancia con la decantación «política» del «sumo bien» posible en la Tierra (v.
E. Serrano Gómez, La insociable sociabilidad…, p. 67 y ss., 176 y ss.).
Política y Antropología en Kant
73
nuevo ideal del «político moral», en contraste con su contraimagen tecnocrática, el
«moralista político», que encarna la visión sofística de la praxis política:
«Puedo pensar ciertamente un político moral, es decir, uno que toma los
principios de la prudencia política de tal modo que puedan coexistir con la moral, pero no un moralista político, que se forja la moral que considera más útil
para la conveniencia del estadista. […] Ahora bien, el primer principio [el principio «material» de la razón práctica], el del moralista político (el problema del
derecho político, de gentes y cosmopolita) es una mera tarea técnica (problema
technicum); en cambio, el segundo principio [el principio «formal» del derecho],
como principio del político moral, para el cual es una tarea moral (problema
morale), es totalmente diferente del otro en el procedimiento para lograr la paz
perpetua, a la que desea no sólo como un bien físico sino también como un estado surgido del reconocimiento del deber. […] La solución de este segundo
problema, a saber, el de la sabiduría política, se impone por sí misma, por así
decir, es clara para todo el mundo, convierte en vergüenza toda artimaña y lleva
directamente al fin, pero acordándose de la prudencia para no arrastrarlo precipitadamente de manera violenta, sino ir aproximándose a él sin interrupción, según las condiciones de unas circunstancias favorables»16.
A manera de conclusión de lo expuesto hasta ahora, podemos resumir de la
siguiente manera la concepción «crítica» de la praxis política en términos de mediación entre idealismo jurídico y realismo político, esto es, de complemento y
restricción entre ambos. Por un lado, la acción política está sujeta a los principios
normativos del derecho (público), que no cabe extraer de la experiencia histórica,
sino que son enteramente a priori, ideas racionales de la subjetividad libre, pero
que, en calidad de formas ideales de regulación de la praxis común, el político ha
de realizar en el mundo convirtiéndolas en estructuras ordenadoras de la diversidad
práctica de la vida social. Esta tarea moral no sólo amplía o complementa el hacer
político más allá del mero proceder empírico-instrumental de la «prudencia» (le
otorga una perspectiva de unidad y universalidad), sino que sobre todo restringe o
limita el alcance de ésta al exclusivo ámbito técnico y pragmático de los «medios
de ejecución», evitando su injerencia en el orden de los fines prácticos y su subsiguiente degeneración totalitaria, «inmoral» en la sofistería del «moralismo político» (absolutismo de la «razón de Estado» y del solo interés de poder).
Por otro lado, la acción política, que siempre opera en el mundo real de la
sociedad y de la historia, ha de proceder, sin embargo, según reglas instrumentales
de prudencia derivadas del conocimiento empírico de los hombres y de las condi——————————————
16
ZEF A 71/ B 76; A 83 / B 88-89; A 84-85 / B 90.
74
Maximiliano Hernandéz Marcos
ciones fácticas de vida de un pueblo. Este saber empírico-técnico sobre la realidad
histórica no sólo complementa la conciencia jurídica que ha de orientar al político
(le añade una perspectiva de pluralidad y particularidad), sino que al mismo tiempo
restringe la realización del derecho racional a las condiciones y «medios» de viabilidad fáctica que aconseja la prudencia en función de la materia histórica a la que
aquél se ha de aplicar, evitando así que la conciencia moral del político interfiera
en el modo de su traslación al mundo de la experiencia, con el consiguiente peligro
de caer en la ilusión dialéctico-totalitaria del «misticismo de la revolución». En
suma: no hay (no ha de haber) praxis política en el mundo que no esté regida por la
idealidad a priori de la normatividad jurídica del sujeto libre, pero a su vez el derecho racional no puede, a través de la acción política, dar forma y ordenar la vida
social (de manera pura) más que condicionado, en su realización, por la materia
histórica a la que se aplica.
2. Lugar y función de la antropología en la teoría de la política.
¿Qué tiene que ver la antropología con todo lo anterior? ¿Desempeña algún
papel y ocupa algún lugar en esta teoría de la política? De entrada, salta a la vista
que si a la antropología le compete alguna función en la visión kantiana del quehacer político, no estará relacionada en modo alguno con el orden de los fundamentos
y fines morales, con la teoría racional de los principios jurídicos que han de guiar al
estadista, sino en todo caso únicamente con el orden de los media executionis de
aquella tarea moral, con la teoría empírico-realista de la prudencia política. Pues
siempre que Kant se ha pronunciado sobre su estatuto epistémico dentro de la filosofía crítica en algunos de sus escritos, la ha considerado como una ciencia empírica ligada a la “aplicación” de la «metafísica de las costumbres»17. Como doctrina
«ejecutiva» de la teoría moral pura parece, en principio, confluir claramente con la
política y, en concreto, ocupar un espacio, si es que ha de tenerlo, dentro de la
doctrina de la prudencia.
——————————————
17
En el Prólogo de la Fundamentación de la metafísica de las costumbres se considera la así llamada «antropología práctica» como la parte “empírica” de la Ética o filosofía práctica en general, a diferencia de su parte “pura”, que es la “moral” o “metafísica de las costumbres” (GMS AB). En la Metafísica de
las Costumbres se recuerda que la “antropología” no es necesaria para fundamentar la «metafísica de las
costumbres» ni para fijar, por ende, la teoría pura del derecho, sino sólo para aplicarla. En este sentido se
habla allí de una «antropología moral» que «contendría sólo las condiciones subjetivas, tanto obstaculizadoras como favorecedoras de la realización de las leyes de» aquella metafísica racional «en la naturaleza
humana, la creación, difusión y consolidación de los principios morales (en la educación y en la enseñanza
escolar y popular) y de igual modo otras enseñanzas y prescripciones fundadas en la experiencia» (RL AB
11). Pero esta “antropología práctica” o “moral” no llegó a ser escrita por Kant ni constituyó el tema de sus
célebres Lecciones de Antropología. En su lugar lo que apareció en 1798 fue, en la línea de las Lecciones,
una antropología «pragmática». V. Al respecto nuestra nota 24.
Política y Antropología en Kant
75
Ahora bien, ¿ha planteado el propio Kant esa presumible relación entre política y antropología y ha llegado a definir, en su caso, el lugar que a ésta le corresponde en el marco de su concepción de la Politik? La parquedad del filósofo crítico
en este asunto nos obliga a tener que colegir una hipotética respuesta a partir de
algunas afirmaciones ocasionales relacionadas con el tema. En el Apéndice de
Hacia la paz perpetua encontramos tres declaraciones sintomáticas en el contexto
de la polémica con los «moralistas políticos».
Por un lado, Kant sostiene que la visión técnico-realista de la política como
una práctica de poder siguiendo principios contrarios al derecho se escuda en «el
pretexto de una naturaleza humana incapaz de hacer el bien según lo que prescribe
la razón», y para la que es, pues, «imposible cualquier mejora» moral18. La concepción pesimista del hombre como un ser «malo» o corrupto por naturaleza parece
ser aquí el supuesto antropológico de una concepción escéptico-realista de la política como mera técnica del poder destinada a controlar y demorar el mal. Este sentido meramente instrumental de la acción política y de la relación de los mandatarios con los ciudadanos y los pueblos se halla refrendado por el hecho de que el
pesimismo antropológico va unido ahí a una visión «mecánico-naturalista» de la
historia y de los seres humanos que los sitúa «en la misma clase que las restantes
máquinas vivientes», con la sola diferencia ciertamente de contar con la «conciencia de no ser seres libres»19, pero siendo en realidad igualmente manipulables.
Por otro lado, Kant atribuye esa antropología naturalista y pesimista de los
«moralistas políticos» a un conocimiento empírico de «los hombres (lo cual puede
esperarse, por cierto, ya que tienen que tratar con muchos)», pero no «del hombre y
de lo que puede hacerse de él (para lo cual se requiere un punto de vista superior de
observación antropológica)»20. Frente a una concepción tan empirista de los seres
humanos que no es capaz de trascender con su mirada el plano meramente fenoménico de los individuos y del mecanismo natural de sus comportamientos particulares, del cual sólo cabe extraer conclusiones pesimistas y una correspondiente práctica de astucia y de poder, el filósofo de Königsberg viene a plantear aquí la necesidad de hacer pivotar la praxis política sobre una antropología que proponga una
concepción del hombre resultante no de la inmediatez de la experiencia en su diversidad sino de una contemplación de la misma desde una perspectiva “superior”
y externa a ella, que nos permita obtener un visión de unidad y totalidad acerca del
——————————————
18
ZEF A 74 / B 78-79.
19
Ibidem, A 86 / B 91-92. Obviamente este naturalismo antropológico, que niega la libertad del ser
humano, sólo puede traer consigo una restricción técnico-realista de la política a mera doctrina de la prudencia, ya que la Klugheit se atiene a la experiencia humana y la comprende sólo bajo «la legislación única
del entendimiento», ignorando la legislación moral de la razón (Cf. M. Castillo, «Moral und Politik…»,
p. 205).
20
ZEF A 75-76 / B 81.
76
Maximiliano Hernandéz Marcos
ser humano en su existencia empírica. Parece claro que esta perspectiva global
y unitaria sólo puede suministrarla la razón en el uso empírico de su principio
regulativo, proyectado aquí sobre la diversidad de la experiencia humana y de
su historia21.
La importancia de esta antropología hecha desde el punto de vista global de
la razón estriba en que sólo mediante ella Kant puede mostrar a los adversarios
empírico-realistas que su teoría jurídica de la constitución republicana y de la paz
perpetua, así como la tarea idealista que ella comporta para la praxis política, no
constituye una quimera impracticable, una «idea vacía»22 que exceda de las posibilidades y capacidades reales del hombre, sino que es incluso «más realista que la
mera prudencia de los políticos orientados al mundo»23, porque se ajusta mejor a lo
que la naturaleza humana y la historia, consideradas en conjunto, en cierto modo
buscan o tienden a hacer. Si el estadista hace suya esta perspectiva antropológica
“superior”, si se aparta de la estúpida ceguera que impone la atención exclusiva al
juego cotidiano de pasiones e intereses de quienes le rodean, entonces se convencerá – tal es el argumento kantiano de fondo contra los «moralistas políticos» – de
que actuar según principios jurídicos, además de ser moral, es también más prudente que obrar contra el derecho, pues de esta manera cumplirá ciertamente lo que
la razón pura ordena (según la Staats- und Völkerrechtslehre), pero también estará
haciendo a la vez lo que aconseja (conforme a la Staatsklugheitslehre) la experiencia del acontecer histórico mismo.
Estas observaciones nos permiten pergeñar ya el lugar y función sistemáticos
del conocimiento antropológico dentro de la teoría kantiana de la praxis política.
En primer lugar, puede decirse con carácter general que la antropología forma parte
de los media executionis de la Politik, en la medida en que suministra un conocimiento empírico sobre el hombre que resulta indispensable para la prudencia de las
decisiones políticas. En segundo lugar, hay que matizar, sin embargo, que, para
Kant, no cualquier antropología o doctrina del hombre presta este servicio prudencial sino sólo aquélla que contempla la naturaleza humana y su variado acaecer
histórico desde el punto de vista unitario de la razón. Ello se debe a que únicamente
este saber antropológico “superior” cumple la función que propiamente corresponde a la antropología dentro de la «doctrina de la prudencia política»: no sólo (ni
principalmente) la de enseñarnos (y enseñar al político) cómo actúa de hecho el
hombre (o los hombres) para proceder astutamente en consecuencia, sino sobre
——————————————
21
Sobre el principio regulativo de la razón en su uso empírico v. KRV A 643 y ss. / B 671 y ss.; y
KU AB XXXII-XXXVIII, XLIX y ss. Es obvio, como se mostrará después, que se trata del concepto “teleológico” de naturaleza que se aplica aquí al caso del hombre como ser natural, tal como se bosqueja al
final de la Crítica de la facultad de juicio.
22
ZEF A 14 / B112.
23
R. Brandt, Immanuel Kant… (2001), p. 138.
Política y Antropología en Kant
77
todo la de indicarnos «lo que puede hacerse de él» («was aus ihm gemacht werden
kann»), es decir, la tendencia general observable en la naturaleza humana que nos
asegura la viabilidad o factibilidad de la tarea jurídica de la política. Dicho de otro
modo: no se trata tanto de adoctrinar al estadista sobre cómo ser prudente en este o
en aquel caso proporcionándole información empírica relevante sobre la conducta y
motivaciones de los hombres, cuanto más bien de sugerirle la forma general de
actuar siempre con prudencia (que no es otra que la de realizar el derecho siguiendo el principio de publicidad) mostrándole que el ser empírico del hombre, la
naturaleza de las cosas humanas en su conjunto confluye con lo que manda la moral, con lo que “debe ser” según la razón práctica. La convergencia necesaria entre
derecho y prudencia política, entre moralidad y felicidad (públicas) que – como es
sabido – asegura a cada decisión particular del estadista la fórmula positiva del
principio de publicidad al final de Hacia la paz perpetua, tiene, pues, en esa antropología “superior” su base empírica general, su garantía cognoscitiva racional. Y
con ella se fundamenta al mismo tiempo la posibilidad de que el «idealismo jurídico» del estadista sea también la mejor forma de «realismo político».
Pero ¿cuál es esa antropología “superior” que viene a garantizar la viabilidad
política de la Constitución republicana y de la paz perpetua? ¿Cuál es la concepción del hombre en general que ella contiene, y que avala la tarea jurídica del político? A responder a estas dos cuestiones: la del perfil científico o epistémico de la
antropología política y la de su contenido propio, dedicamos los dos apartados siguientes.
3. Idea y alcance político de la antropologia «pragmática».
El tratado antropológico que Kant publica en 1798 no contiene la «antropología práctica» o «moral» mencionada en varias ocasiones como complemento
empírico y «ejecutivo» de la filosofía moral sino un estudio científico del hombre,
basado ciertamente en la experiencia, pero hecho – como reza en el título de la obra
– «desde un punto de vista pragmático» (Anthropologie in pragmatischer Hinsicht)24. En el Prólogo de la obra hay indicaciones bastante claras acerca del esta——————————————
24
Aunque no faltan textos en las Vorlesungen über Anthropologie en los que parece tener lugar esa
identificación, al considerarse en ellos la Antropología, ya entendida en sentido «pragmático», como inseparable de la Moral por ser la «ciencia de las reglas del comportamiento real del hombre» que nos da a
conocer si el sujeto humano «puede» o «está en condiciones de realizar lo que se exige de él» moralmente
(Ethik-Vorlesung de 1774-75, editada por Paul Menzer, AA XXVII, 244; cf. Friedländer-Vorlesung über
Anthropologie, invierno de 1775-76, AA XXV.1, p. 471-72; Mrongovius-Vorlesung über Anthropologie,
1784-85, AA XXV.2, 1211), R. Brandt, Kommentar zu Kants Anthropologie in pragmatischer Hinsicht,
Hamburg: Meiner, 1999, pp. 15-16 ha aducido, sin embargo, tres razones contra la idea de que el tratado de
1798 sea el complemento sistemático de la Moral: 1) No hay coincidencia alguna en las palabras clave de
78
Maximiliano Hernandéz Marcos
tuto epistémico de esta Antropología. Ante todo Kant deja bien claro que no nos
entrega una ciencia meramente teórica del ser humano, que se limite a ampliar
nuestra erudición sobre su naturaleza o sobre lo que el hombre supuestamente es
mediante una indagación empírica o especulativa de su ser psicofísico o de la relación entre el alma y el cuerpo, tal como era habitual en la época. Alejándose de la
orientación científico-experimental de la antropología psicofisiológica de Ernst
Platner y Charles Bonnet, lo mismo que de la tradición racionalista alemana de la
«Psicología empírica» como parte de la Metafísica (Wolff y Baumgarten)25, Kant
propone y ofrece una antropología que selecciona los conocimientos empíricos
sobre el ser humano en función de su utilidad para la acción del individuo en el
——————————————
ambos lados: en los escritos de Moral se habla de antropología «práctica», pero no de «pragmática», y tanto
en la Anthropologie publicada como en los manuscritos de las Lecciones no hay la más mínima alusión a
términos éticos clave como «imperativo» y «categórico». 2) Tampoco hay una discusión, ni siquiera una
alusión en la Anthropologie de 1798 a su posible relación sistemática con la Filosofía Moral, como tampoco
en los escritos de filosofía moral se menciona la «Antropología pragmática» y el posible papel sistemático
de ésta; y 3) Kant concibió y fue elaborando la Antropología como una disciplina autónoma, en su origen
ligada a la Psicología Empírica de Baumgarten, pero desde mediados de los setenta orientada a la interacción global del ser humano, no restringida al ámbito moral, y concebida por ello como una «doctrina de la
prudencia del hombre en cuanto ser mundano», que se halla vinculada más bien con la Geografía Física
(Kant de hecho presenta en la Anthropologie ambos cursos unitariamente como dos formas de «conocimiento del mundo» -Anthropologie AB XIII-XIV). Ni en su comienzo ni en su desarrollo posterior está,
pues, la idea de ser un «complemento de la filosofía moral». Conviene añadir, no obstante, que esta concepción de la «Antropología en sentido pragmático» como un saber independiente de la Filosofía Moral en su
enfoque, objetivos y buena parte de los contenidos no significa que en ella no se aborden algunas de esas
“condiciones subjetivas”, empíricas de realización (u obstaculización) de la moralidad (a saber, sentimientos, apetitos e inclinaciones, etc.) de las que se supone debería ocuparse exclusivamente la «Antropología
práctica» o «moral»; más bien ocurre lo contrario, y en este aspecto la obra de 1798, sin ser restrictivamente
la aplicación antropológica de la teoría de la razón pura práctica, contiene muchos elementos empíricos
complementarios de ésta, elementos que, por otra parte, aparecen también diseminados en la Metafísica de
las costumbres. Para un análisis más minucioso de la problemática de la Antropología pragmática y de las
correspondientes Lecciones, véanse los trabajos de R. Brandt ya citados (el Kommentar, 1999; e Immanuel
Kant, 2001, aquí especialmente el ensayo titulado «La idea rectora de la Antropología Kantiana y la determinación del Hombre», pp. 197-219), así como su «Einleitung» de Vorlesungen über Anthropologie, AA
XXV.1, pp. VII-CLI, trabajos que tenemos muy presentes en este apartado.
25
La Antropología pragmática no es, pues, ni una antropología filosófica que aspire a desvelar mediante la razón la «esencia» del ser humano respondiendo a la cuestión “¿qué es el hombre?” –según la
formulación de las cuatro célebres preguntas rectoras de la «filosofía pura» en la Lógica (1800) y en la carta
a C.F. Stäudlin del 4 de mayo de 1793-, ni una antropología trascendental, que mediante el «autoconocimiento del entendimiento y de la razón humana» (cf. Reflexion 903) delimite el campo de lo cognoscible a
priori; por la metodología empírica que desde el inicio la caracterizó, la Antropología (pragmática) fue
siempre concebida por Kant como una disciplina al margen de su sistema puro de filosofía crítica (cf. R.
Brandt, Kommentar…, pp. 16-17, 8). Mas no por ello la antropología kantiana se abandona a la orientación
fisiológica (e incluso fisiológico-médica) de la emergente Psicología experimental, a la que, según Kant ya
en 1773, se ve abocada la «Psicología empírica», la cual –contra Baumgarten- en modo alguno puede pertenecer ya a la metafísica, y se limita a indagar los mecanismos físico-naturales que intervienen en los procesos psíquicos, suministrando con ello un mero conocimiento contemplativo, que no conduce a resultado
práctico alguno (cf. Anthropologie AB IV-V; R. Brandt, Kommentar…, p. 11, 59 y ss.; Immanuel Kant…,
p. 204).
Política y Antropología en Kant
79
mundo, una antropología orientada a la formación de ciudadanos, elaborada, por
tanto, para ser aplicada al “hombre mismo”, «como ser que actúa libremente»26.
Este giro científico desde la mera descripción y explicación cognoscitivas del
acontecer psíquico de los hombres («lo que él hace»), siguiendo el planteamiento
de Baumgarten, hacia la investigación de los fenómenos psicofísicos desde una
perspectiva «pragmática» («lo que puede hacer de sí»), que se inicia en el semestre
de invierno de 1773-74, vino determinado por la necesidad de establecer un
«puente desde la escuela o universidad hacia el mundo»27, y se halla expresamente
recogido en el Anuncio de las Lecciones de Geografía Física para el semestre de
verano de 1775:
«El conocimiento del mundo [Weltkenntnis] es el que sirve para proporcionar lo pragmático a todas las ciencias y habilidades adquiridas de otro modo,
gracias a lo cual éstas se tornan útiles no solamente para la escuela, sino también
para la vida, y el aprendiz ya formado se introduce en el escenario de su destino
[Bestimmung], es decir, en el mundo»28.
Pero ¿qué es «lo pragmático» de todos los conocimientos antropológicos?;
¿en qué consiste la perspectiva «pragmática» en la investigación de la naturaleza
empírica del hombre? Cuando Kant se planteó por primera vez dar este giro a su
curso de Antropología, su intención inicial fue abarcar todo el ámbito de «lo práctico», y no sólo ni prioritariamente el territorio estricto de lo moral, según se nos
informa en la carta a Marcus Herz del otoño de 1773. Es claro, no obstante, que en
una teoría empírico-antropológica de la «razón práctica» en general que aspiraba a
erigirse en una forma de «conocimiento mundano» frente al mero «conocimiento
escolar», el criterio desde el que tenía que enfocarse y abordarse la diversidad del
material de observación disponible no podía ser otro que el del fin natural subjetivo
de la acción en el mundo, a saber, la «felicidad» humana29. Esta finalidad eudemó——————————————
26
Anthropologie AB III-IV; cf. AB VI. La «libertad» de acción que aquí entra en juego no es, pues,
la del concepto «trascendental» de KRV o del «positivo»-moral de KpV, sino la que corresponde a la perspectiva exclusivamente empírico-mundana de la observación antropológica: la «libertad del arbitrio», la
libertad de decisión y acción, la de la «distinción cotidiana entre actos que está en nuestro poder hacer u
omitir conforme a experiencia» (R. Brandt, Kommentar…, p. 39).
27
R. Brandt, Kommentar…, p. 11; cf. Immanuel Kant…, pp. 204-05.
28
«Ankündigung der Vorlesungen der physischen Geographie im Sommerhalbjahre 1775», en: AA
II, p. 443. Cf. asimismo el «Proemium» de la Friedländer-Vorlesung de 1775-76 (AA XXV.1, pp. 469-471).
29
Para Kant, lo que determina la orientación «mundana» o «cosmopolita» de un saber es el criterio
teleológico desde el que se organizan sus conocimientos. Así, cuando en la Crítica de la razón pura se
defiende una concepción “mundana” (conceptus cosmicus) de la filosofía pura frente a la meramente “escolar”, se apela a la «teleología de la razón humana» para estructurar el sistema arquitectónico de los conocimientos a priori en torno a una Metafísica (inmanente) de la Naturaleza y a una Metafísica de las Costumbres (cf. KRV A 838-841/ B 866-869). Análogamente, la consideración de la Antropología como parte
del «conocimiento mundano» (Weltkenntnis), junto a la Geografía Física (que se ocupa de la utilidad del
80
Maximiliano Hernandéz Marcos
nica de la existencia práctica es precisamente la que lleva a Kant a concebir su
Antropología como una «doctrina distributiva de la prudencia»30 y a calificarla por
ello de «pragmática» por extensión metafórica de un término de origen político, las
así llamadas «pragmáticas» de los gobiernos, con el que se aludía a las «providencias» de los Estados «para el bienestar general»31.
Que el modo como el conocimiento antropológico sirve para introducir en el
«mundo» pasa, pues, por su transformación en un «arte de la prudencia», se sigue
claramente de la evidencia práctica de que el fin natural de la felicidad sólo puede
lograrse mediante una administración prudente de nuestras capacidades, sentimientos y apetitos, sin la cual al individuo le resultará muy difícil convivir de manera razonable o saludable con los demás individuos en sociedad así como consigo
mismo. Semejante formación «mundana» o capacitación para el trato social (prudente) con los hombres y con uno mismo entra dentro de «lo que puede hacerse a
partir de» cualquier ser humano o de «lo que éste puede hacer de sí» o «extraer de
sí mismo» («aus sich selbst herausbringen») si desarrolla sus disposiciones y, en
particular, sus impulsos e inclinaciones naturales de acuerdo con la capacidad ra——————————————
saber sobre la otra parte del mundo, o sea, la «naturaleza» en general, la Tierra en particular), se debe también a su enfoque «teleológico», sólo que en una ciencia empírica del hombre no pueden invocarse los fines
últimos de la razón pura que inspiran el sistema metafísico, sino la finalidad natural (subjetiva) de la acción
humana, que no es, sin embargo, el «fin último» de la naturaleza para la especie.
30
R. Brandt, Immanuel Kant…, p. 205. En este mismo sentido se pronuncia, por ejemplo, la Ch.C.
Mrongovius-Vorlesung correspondiente al curso de 1784-85: «En la antropología escolástica se indago las
causas de la naturaleza humana. En la pragmática me limito a estudiar su estructura y trato de encontrar
aplicaciones a mi estudio. La antropología se denomina pragmática cuando no sirve a la erudición, sino a la
prudencia [Klugheit]» (AA XXV.2, p. 1211). De ahí que Kant en la Fundamentación de la metafísica de las
costumbres califique de «pragmáticos» a los «consejos de prudencia», en la medida en que son «imperativos hipotéticos» relacionados con la consecución de la «felicidad» (cf. GMS AB 42-44).
31
GMS AB 44 nota. Y en esa misma nota añadía Kant: «Una historia [Geschichte] está redactada
pragmáticamente cuando nos hace prudentes [klug], es decir, cuando instruye al mundo acerca de cómo
puede procurar su provecho mejor o al menos tan bien como en tiempos pasados». Esta idea de una «Historia en sentido pragmático» (o «cosmopolita») la había concebido Kant ya algunos años antes como una
disciplina complementaria de la Antropología pragmática y se había referido a ella – sin llegar a escribirla –
en los cursos de Antropología como una forma alternativa de escribir la historia que, frente al tradicional
relato meramente descriptivo de los acontecimientos gloriosos del pasado (guerras, sucesión de dinastías…), reconstruyese los acontecimientos políticos desde la perspectiva de “un mundo mejor”, recordando
para «la posteridad sólo aquellas acciones que contribuyeron a la prosperidad de todo el género humano»
(Menschenkunde oder philosophische Anthropologie [hacia 1780], ed. Por F. Ch. Starke, Leipzig 1831,
p. 374). Esta «Historia pragmática» parece que debía tener la misma función y cumplir el mismo propósito
que la correspondiente Antropología: dar a conocer los fenómenos del hombre, en ese caso históricos (más
que empírico-psicológicos), que pueden favorecer un arte de la prudencia en el trato práctico con el mundo
(y con nosotros mismos), que pueden contribuir, por tanto, a la formación de buenos ciudadanos y que, de
manera especial, han de servir de guía cognoscitiva para una praxis política de buen gobierno. Para este
concepto de «historia pragmática» y su conexión con la Antropología v. R. Rodríguez Aramayo, «Kant ante
la razón pragmática (Una excursión por los bajos del deber ser)», estudio preliminar de: I. Kant, Antropología práctica (Según el manuscrito inédito de C.C. Mrongovius, fechado en 1785), Madrid: Tecnos, 1990,
pp. IX-XLIX (espec. pp. XVII-XXI).
Política y Antropología en Kant
81
cional que nos ha sido dada en lugar del “instinto”, según lo establecido por Kant
en la tercera proposición de sus Ideas para una historia universal en sentido cosmopolita (1784)32.
Ahora bien, hacer prudentes a los hombres o enseñarles a que ellos mismos
se hagan prudentes mediante consejos sacados del conocimiento empírico de su
naturaleza equivale a formarles para ser buenos ciudadanos, capaces de llevar una
vida «cívica» en sociedad, ya que todo proyecto de felicidad, aunque es siempre
individual, sólo puede llevarse a cabo en el medio de la vida social y, en última
instancia, en una comunidad humana, de manera que la formación «civil» en la
«prudencia mundana» es parte inseparable de la formación propia en la «prudencia
privada»33. Esta dimensión «civil» de la felicidad y de la prudencia explica precisamente que un conocimiento orientado a «saber vivir» en el mundo y a educar, en
este aspecto, para la ciudadanía pueda ser calificado de «pragmático», dado que, al
igual que las «pragmáticas» de los gobiernos, no sólo tiene por objeto el bienestar
de los individuos sino que además presupone la condición y decantación política
(común, pública, social) del mismo.
A la vista de la conexión conceptual de carácter práctico recién descrita entre
felicidad, prudencia y ciudadanía sobre la que se articula la «razón pragmática», se
comprende que una antropología elaborada desde esta perspectiva sea la que, precisamente por su finalidad civil, ocupe un lugar destacado entre los media executionis
de la Politik. En efecto, el conocimiento empírico del hombre orientado a la acción
prudencial en el mundo tiene una doble utilidad «pragmática» para el político, en su
doble condición de individuo y de estadista. En cuanto a lo primero, la antropología
pone a su disposición un conjunto de enseñanzas sobre los sentimientos, apetitos,
inclinaciones y pasiones del hombre así como sobre el mejor modo de ordenarlas
satisfactoriamente que le ayuda a formarse como un buen ciudadano, a convertirse
en un hombre prudente en el mundo de las relaciones sociales en el que ha de moverse, que en su caso es primordialmente el mundo de la vida pública. Pero también
el hombre de Estado (no ya sólo el ciudadano particular) recibe, por otro lado, del
conocimiento antropológico una información indispensable acerca de la naturaleza
humana que ha de servirle de base para un arte de la prudencia política o del buen
——————————————
32
Idee A 390. Repárese en la identidad casi literal de las tres expresiones antropológicas que recogen la naturaleza práctica del hombre: «was aus ihm gemacht werden kann» (ZEF A 76 / B 81); «was er
[…] aus sich selber macht, oder machen kann…» (Anthropologie, AB IV); «…dass der Mensch alles […]
gänzlich aus sich selbst herausbringe » (Idee A 389-390).
33
En la Fundamentación de la metafísica de las costumbres se establece con nitidez esta conexión:
«El término “prudencia” se toma en un doble sentido; en el primero puede llamarse “prudencia mundana”,
en el segundo “prudencia privada”. La primera es la habilidad de un hombre para influir en otros con el fin
de usarlos de cara a sus propósitos. La segunda es la perspicacia para hacer converger todos esos propósitos
con su propio provecho duradero. Esta última es propiamente aquélla a la que se retrotrae incluso el valor
de la primera, y de quien es prudente según el primer tipo pero no conforme al segundo, sería más correcto
decir que es hábil y astuto, pero en suma, sin embargo, imprudente» (GMS AB 42).
82
Maximiliano Hernandéz Marcos
gobierno, al menos en el sentido fundamental y general de llevarle a decidir públicamente teniendo en cuenta lo que los hombres quieren y «pueden hacer» (y no sólo
«lo que de hecho hacen»), así como el modo más adecuado de satisfacer este fin
natural del público (la felicidad), lo cual implica, de entrada, poner en marcha una
administración distributiva de los bienes y recursos comunes que contribuya al bienestar de todos en la comunidad estatal. Gobernar, pues, para la felicidad del pueblo:
tal parece ser la consecuencia de que la prudencia llegue «a las cortes desde los gabinetes de estudio» de la Antropología y de la Historia «pragmáticas»34; tal parece ser
también el modo como la «prudencia política» viene a coincidir con la «prudencia
privada» del político que aspira personalmente a mantenerse en el poder o a conquistar «un recuerdo glorioso en la posteridad»35.
Este saber sobre el hacer humano y sobre sus capacidades psíquicas orientado al manejo prudencial de los hombres y a la administración racional de los
intereses colectivos ¿es todo lo que la Antropología «pragmática» puede aportar a
la Politik? ¿Cómo podría entonces esta ciencia empírica del hombre acreditar una
praxis de prudencia política distinta de la del «absolutismo ilustrado» de un Federico II, por ejemplo, quien gobernaba ciertamente de manera autocrática pero para
el bien del pueblo, y hacerse valer como una concepción alternativa y “superior”
del hombre frente a la visión empirista y alicorta de los hombres puesta en práctica
por los «moralistas políticos», si permanece atrapada en el vertiginoso devenir de
los fenómenos psíquicos y de sus mecanismos ciegos de acción, sin la posibilidad
de ofrecer otras reglas de conducta en el mundo que las de la sola Klugheitslehre,
elevada así a única moral? ¿Puede una Antropología que se agote en el solo «arte
de la prudencia» avalar la viabilidad de la tarea jurídica de la política y proporcionar a la ciudadanía una formación «cívica» concordante con las exigencias normativas del espíritu republicano? La Antropología kantiana, como parte sistemática de
su teoría de la Politik, no puede permanecer ajena a la convergencia necesaria entre
«idealismo jurídico» y «realismo político» que se reclama para la praxis política.
También ella ha de abandonar, pues, el suelo pantanoso de la razón pragmática,
situarse fuera de la centrípeta mirada empirista que absorbe a ésta, y contemplarla
desde allí, remitiéndola a sus debidos límites, en el lugar que le corresponde dentro
de la praxis humana. Esa perspectiva «idealista», «trascendente» a la experiencia,
desde la cual, sin embargo, ha de contemplarse la realidad empírica de las acciones
de los hombres, procede – como se indicó arriba – de la razón pura en su esfuerzo
——————————————
34
Cf. Reflexion 1436, AA XV.2, p. 628. En esta Reflexion Kant exige, en realidad, que la “sabiduría”, en vez de la sola prudencia, llegue «a las cortes desde los gabinetes de estudio», en un alegato claramente crítico contra el absolutismo ilustrado de la época.
35
Idee A 411. Como es sabido, el motivo del interés privado del príncipe en gobernar para el bien
del pueblo, e incluso de acuerdo con las leyes promulgadas por él mismo, fue frecuentemente aducido por
los teóricos oficiales del absolutismo ilustrado en Alemania para ahuyentar el peligro de despotismo (forma
suprema de imprudencia, a la vez política y privada) que se cernía jurídicamente sobre los monarcas absolutos.
Política y Antropología en Kant
83
por alcanzar la totalidad universal y unitaria de la pluralidad y diversidad de los
cursos pragmáticos del hacer humano, y ha de constituir, sin duda, el signo distintivo de la Antropología “superior” que Kant echa de menos en los partidarios de la
sola teoría de la prudencia política. ¿Hay rastros doctrinales de esta consideración
“superior” del hombre en el tratado antropológico de 1798?
En la fenomenología general de las capacidades psíquicas del sujeto humano y
de sus comportamientos patológicos que se ofrece en la primera parte, la más amplia
de la obra, la «Didáctica antropológica», encontramos ciertamente un variado mosaico de «lo que el hombre hace» de hecho (facticidad psíquico-práctica) y de «lo
que puede hacer(se) de él» en función de su ser empírico (consejos prudenciales),
esto es, atendiendo a lo que, en realidad, «la naturaleza hace del hombre»36 al dotarle
de determinados talentos (capacidades cognoscitivas) y temperamentos (capacidades
afectivo-apetitivas), pero en modo alguno podemos hallar ahí (exceptuado el último
párrafo sobre «el bien físico-moral» – §88) indicaciones sobre lo que el ser humano
«hace» o «puede hacer de sí mismo» en sentido estricto y radical (más allá de lo que
quepa hacer con él desde un punto de vista instrumental y pragmático) ni sobre la
perspectiva de totalidad que unifica y da sentido a los múltiples cursos individuales
de acción así como al uso y desarrollo de esas dotaciones naturales de los hombres.
Ese horizonte “superior” sobre la existencia humana se dibuja, sin embargo, con
bastante nitidez en la segunda parte, la «Característica antropológica», y, en concreto,
en el capítulo final sobre «El carácter de la especie».
La importancia de ese capítulo es doble. En primer lugar, allí se sustituye la
miopía analítica y empirista de las facultades y hechos de los hombres por la contemplación sintético-práctica de los mismos en su dimensión histórico-sistemática,
como fenómenos que han de ser valorados desde el punto de vista global, «colectivo» del todo de la humanidad como especie natural sobre la Tierra («universorum»), desde el cual el agregado múltiple de estrategias y complejos de acción individuales así como de formas diversas de despliegue de las capacidades cognoscitivas,
afectivas y apetitivas («singulorum») puede tener un sentido unitario o responder a
una finalidad específica dentro del reino de la naturaleza en su conjunto. Como es
sabido, para Kant los individuos humanos no representan nada de por sí en el orden
natural, pues a diferencia de los animales y demás seres vivos no pueden realizar en
ellos el fin de su naturaleza y, por ende, son simples medios para el desarrollo de la
especie. Ello se debe, sin duda, a la peculiaridad de su carácter como especie biológica, que no viene dado de antemano por una serie de determinaciones fijas e instintos innatos, sino que ha de ser adquirido mediante la acción a lo largo de la historia,
en el curso ininterrumpido de las generaciones sucesivas.
En segundo lugar, en la exposición de esta doctrina del «carácter» de la especie humana encontramos dos ideas fundamentales que nos sitúan en los límites
——————————————
36
Anthropologie A 267 / B 265.
84
Maximiliano Hernandéz Marcos
de la Antropología «pragmática», ya que plantean la consumación de ésta avanzando precisamente más allá de su limitada comprensión «naturalista» de las acciones humanas. Me refiero, por un lado, a la idea del destino moral de la especie
humana que se reconoce de antemano en su «carácter» o signo diferencial entre los
seres vivos: la «perfectibilidad» o capacidad de «darse sus propios fines», gracias a
la libertad (de su arbitrio) y a la razón, en virtud de la cual se abre para el hombre
la perspectiva, trascendente a la naturaleza sensible, de crearse un carácter «inteligible» propio (moral) con absoluta independencia de ésta, desde el cual cobra un
sentido total y unitario su existencia, tanto a nivel individual como colectivo. Pues
«lo que el hombre puede hacer de sí mismo» por libre arbitrio según se naturaleza
psíquica (talentos y temperamentos) queda entonces condicionado por lo que «debe
hacer» según su libertad trascendental y su destinación a la autodeterminación
racional pura37. El orden «pragmático» de la vida de los individuos y de los pueblos, la multiplicidad de sus cursos de acción prudencial según el mecanismo de los
sentimientos y pasiones, el desarrollo de las capacidades cognoscitivas, afectivas y
apetitivas de los hombres, que por sí solo considerado tiene un «precio» en el intercambio teleológico-instrumental de las relaciones sociales y carece, por ende, de
una finalidad última, tiene sentido ahora como medio de realización de la tarea
moral, a la vez que recibe un valor absoluto al convertirse también en asunto de
moralidad, en objeto de deberes jurídicos y éticos38. Incluso la naturaleza entera, no
ya sólo nuestra vida sensible como especie racional, cobra también sentido como
un sistema de fines subordinado al ser moral del hombre en cuanto «fin final de la
creación»39.
La perspectiva “superior”, trascendente, del destino moral de la especie
humana nos conduce así, por otro lado, a la segunda idea fundamental, aquélla en
la que se cifra el genuino servicio «pragmático» que la Antropología presta al «po——————————————
37
R. Brandt, Immanuel Kant…, pp. 198 y ss., especialmente 205-206; Kommentar…, p. 9 y ss., ha
mostrado que la Antropología es el resultado del ensamblaje de los tres aspectos prácticos del hombre: el
fáctico (“lo que el hombre hace”), el pragmático (“lo que puede hacer”) y el normativo (“lo que debe
hacer”), que recogen los tres estratos de formación del texto y de evolución de las Lecciones, y ha subrayado además que el último estrato incorporado al Curso de Antropología desde mediados de los años setenta fue precisamente el del «carácter» y «destino moral de la especie humana» como consecuencia de la
asunción de la idea rousseauniana de la perfectibilidad del hombre. Con esta cuestión del destino moral de
la especie Kant suministraba así la «unidad histórico-sistemática» de todos los cursos particulares de acción
y les daba el sentido de “totalidad” que no puede encontrarse en lo meramente pragmático.
38
Como es sabido, la «libertad del arbitrio» es en la Rechtslehre el único «derecho innato» y, por
ende, el objeto y base fundamental de todo el orden jurídico, orientado a garantizar precisamente la autonomía empírica de acción y decisión de los hombres en sus diversos grados o niveles sociales. A su vez en
la Tugendlehre tanto la propia conservación física como el cultivo y perfeccionamiento «pragmático» de las
propias facultades naturales (corporales, psíquicas, espirituales…), además incluso de la felicidad ajena,
forma parte de los deberes éticos del individuo.
39
KU §84, AB 398-99; Cf. AB 396 nota; y Mutmasslicher Anfang A 10-11. Sobre esta cuestión del
carácter de la especie volveremos en el próximo apartado.
Política y Antropología en Kant
85
lítico moral», al concienciarle del «realismo» de su praxis jurídica guiada por la
meta republicano-cosmopolita de la razón pura. Se trata del nuevo punto de vista,
también “superior” pero inmanente, sobre el hacer empírico del hombre que supone
concebir la naturaleza en general y la del ser humano en particular no en los términos meramente mecánico-deterministas que nos entrega la experiencia inmediata,
sino en el sentido “teleológico” que Kant elabora en la segunda parte de la Crítica
de la facultad de juicio, y que en sus escritos políticos y de filosofía de la historia
ha vinculado, reelaborándolas, a la idea cristiana de “Providencia” y a la vez a la
estoica de “destino” (fatum)40. Pues este nuevo concepto nos lleva a vislumbrar en
la pluralidad fáctica de las acciones individuales y de sus estrategias patológicas o
prudenciales un hilo conductor común, una «tendencia natural» que nos permite
comprender racionalmente y encontrar un sentido unitario en el variopinto teatro de
indignación que es la historia real de los seres humanos, un sentido que ha de ser,
desde luego, concordante con nuestro destino moral, esto es, con la posibilidad real
de crearnos un carácter propio por medio del obrar. Pues si la perspectiva suprasensible de la moralidad como destino de la especie nos otorga la confianza en la actividad humana, en la capacidad de mejora mediante la acción, no podemos entonces
admitir como definitiva esa visión pesimista de la naturaleza del hombre que nos
ofrece la conducta de los hombres no ya sólo en “la historia antigua” sino también
“en la historia de cada día”, con el espectáculo habitual de la idiotez, el ocultamiento y el engaño deliberado, más propio de una “caricatura” despreciable y burlesca que de una especie con un “puesto de honor entre las restantes” de la Tierra;
visión negativa que, por lo mismo que sólo invita a la pasividad de los ciudadanos,
abandonados así al mero juego eficaz del poder para controlar o demorar el mal (a
la manera del katechon schmittiano), sirve únicamente para justificar – como lo
acredita incluso el caso de Federico II – un gobierno despótico, basado en la “impostura” de la sola «astucia política»41. Frente a esta imagen de la desesperanza
histórica, con la idea de la moralidad ha de abrirse paso (salvo que aceptemos sin
más una absurda esquizofrenia en el ser humano o la contradicción de una finalidad
destinada a no poder cumplirse) una concepción esperanzada del hacer empírico de
los hombres que sea compatible con su autodeterminación pura, que nos haga tomar conciencia de que nuestra naturaleza no es reacia u hostil a los fines normativos de la razón sino que incluso apunta hacia ellos, de manera que entonces lo que
el estadista debe hacer según los principios a priori del derecho tenga la sanción de
«viabilidad» característica de lo que la naturaleza humana puede hacer por sí
misma siguiendo la necesidad de su propio curso histórico.
——————————————
40
Para estas diversas denominaciones de la naturaleza teleológica v. ZEF AB 47-51. Cf. También
R. Brandt, Immanuel Kant…, p. 216 y ss.
41
Cf. Anthropologie A 332-334 / B 330-332. Acerca de esta interpretación de Federico II como
«político moralista» o de la mera «prudencia política» en nombre de una visión empírico-pesimista del
hombre como una “raza malvada” o corrupta, véase la última nota a pie de página de la Antropología.
86
Maximiliano Hernandéz Marcos
Pero ¿cuál es ese concepto teleológico de la naturaleza humana? ¿Qué notas
lo definen de tal modo que podamos pensarlo en concordancia con los conceptos
morales de libertad? Aunque Kant llega a una formulación bastante precisa de ese
concepto ya en los años ochenta (aparece claramente en Idea de una historia universal en clave cosmopolita y se sugiere implícitamente tres años antes en la «Disciplina de la razón pura» a propósito del camino dialéctico o de ofuscación cognoscitiva que sigue la metafísica), es en la Anthropologie de 1798 donde se presenta
vinculado al «carácter de la especie», y es considerado precisamente como la garantía real, en calidad de estímulo, del perfeccionamiento humano. Se trata de la
comprensión global del mecanismo empírico y negativo de la «discordia», el «mal»
o el «antagonismo» en el despliegue de las facultades psicofísicas que determina
causalmente el curso práctico de la historia y de los hombres como una estructura
teleológica que conduce, no obstante, hacia el «fin último» de la naturaleza en el
hombre como especie viva, esto es, hacia la cultura como forma de desarrollo de
todas las disposiciones naturales:
«… pero en todo ello lo característico de la especie humana, en comparación con la idea de posibles seres racionales sobre la Tierra en general, es esto:
que la naturaleza ha puesto en ella el germen de la discordia y ha querido que su
propia razón saque de ésta aquella concordia, o al menos la aproximación constante a la misma, que es en la idea el fin, pero de hecho, en el plan de la naturaleza, es sólo el medio de esta última y suprema sabiduría inescrutable para nosotros: la de producir el perfeccionamiento del hombre por medio del progreso
de la cultura, aun cuando sea con más de un sacrificio de las alegrías de su
vida»42.
Sobre esta idea estoico-teleológica de naturaleza vamos a hacer aquí sólo
tres aclaraciones. La primera es que, en consonancia con el planteamiento de la
Crítica de la facultad de juicio, la representación del curso fenoménico de la acción
humana en su conjunto como un mecanismo natural que tiende, sin embargo, a un
fin, no tiene valor cognoscitivo o explicativo («teórico»), pues carece de una realidad objetiva acreditable en la intuición empírica; es simplemente un concepto
«problemático» de la razón pura que funciona como principio regulativo de la facultad de juicio reflexionante en relación con la totalidad del hacer histórico del
hombre en cuanto ser vivo, gracias al cual podemos entender globalmente su com——————————————
42
Anthropologie A 316 / B 313-314. La traducción sigue el manuscrito «H» de la Anthropologie, el
propio de Kant, no el texto publicado en 1798 con las correcciones del copista Külpe que cambian del todo
el sentido al concebir la «discordia», en vez de la «concordia» como el «medio» de la naturaleza para el fin
de la cultura humana. Cf. Al respecto R. Brandt, Kommentar…, p. 471. Otra formulación del mismo concepto teleológico, más general, es la de KU §67, AB 300-301: «“todo cuanto hay en el mundo es bueno para
algo y nada en él es gratuito”».
Política y Antropología en Kant
87
portamiento real o hacerlo inteligible de acuerdo con nuestras propias categorías,
teleológico-prácticas, de racionalidad, es decir, en analogía con nuestra «capacidad
de actuar según fines»43. No se trata, pues, de que la naturaleza humana opere de
hecho con intenciones, proponiéndose como fin «último» la cultura de sus diversas
capacidades ni, por ende, de que persiga este fin conscientemente hasta lograrlo; se
trata más bien de que la razón exige que juzguemos el propio mecanismo causal, en
sí ciego, de los procesos empírico-prácticos del hombre en su totalidad, como si
fuera un proceder con sentido, fundado en una «causalidad final», de la misma
índole que la que mueve los actos de nuestra voluntad libre, porque dicho mecanismo parece conducir de por sí al mismo resultado que conseguiría un ser inteligente que se lo hubiera propuesto como objetivo práctico.
Ese proceder concordante (de manera casual o contingente) del ser natural
humano con el del ser racional práctico tiene, en segundo lugar, un carácter dialéctico que Kant formula de diversas formas (discordia concordante, surgimiento del
bien a partir del mal y antagonismo social o «insociable sociabilidad»44), coincidentes todas ellas en poner de manifiesto que la plena realización de las capacidades naturales del hombre es el resultado de la suprema complexio oppositorum, es decir, tiene lugar únicamente cuando se da la máxima diversidad y discrepancia, la máxima libertad particular posible bajo las mejores condiciones de unidad y comunidad, de coexistencia pacífica de las libertades. Dicho de otro modo: el
perfeccionamiento natural de la especie humana depende, por un lado, de que se
——————————————
43
Cf. KU §61, AB 268-270; §64, AB 285; §67, AB 301. Asimismo ZEF AB 48-51: Esta causa
teleológica «no podemos propiamente conocerla en las construcciones artísticas de la naturaleza ni tampoco
inferirla de ellas, sino que sólo podemos y debemos pensarla (como en toda relación de la forma de las
cosas con fines en general), para formarnos un concepto de su posibilidad, por analogía con las acciones
artísticas del hombre, pues representarse la relación y concordancia de la misma con el fin que la razón nos
prescribe inmediatamente (el fin moral) es, empero, una idea que, si bien es delirante en sentido teórico,
está, sin embargo, bien fundada según su realidad y dogmáticamente en sentido práctico (por ejemplo, para
utilizar aquel mecanismo de la naturaleza en relación con el concepto de deber de la paz perpetua)». Para
una visión más exhaustiva de esta noción teleológica de naturaleza y su utilidad práctica v. P. Laberge,
«Von der Garantie des ewigen Friedens», en: O. Höffe (ed.), Immanuel Kant…(1995), pp. 149-170; y recientemente M. Meinhardt, «Der Naturbegriff in Kants Entwurf zum ewigen Frieden», en: H.W. Ingensiep/
H. Baranzke/ A. Eusterschulte (eds.), Kant-Reader. Was kann ich wissen? Was soll ich tun? Was darf ich
hoffen?, Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005, pp. 271- 291.
44
Conviene aclarar que el concepto dialéctico-teleológico de naturaleza no se restringe al mecanismo de la «insociable sociabilidad». Éste, en realidad, es –como se verá en el próximo apartado- únicamente la forma dialéctica de desarrollo de la «facultad apetitiva» y, por lo tanto, sólo una de las manifestaciones de una naturaleza que se sirve también de otros mecanismos dialéctico-teleológicos en los restantes
ámbitos de la vida humana: por ejemplo, el mecanismo de la confusión y el ocultamiento cognoscitivos para
llegar a la verdad (ámbito del saber o de la «facultad de conocer») o el mecanismo del dolor como medio de
activación para acceder al placer del arte y de la cultura (ámbito de «la facultad de sentir») (cf. Brandt,
Kommentar…, p. 13). Aquí, no obstante, nos referiremos fundamentalmente a aquella forma «pragmática»
de la concordia discordante de la naturaleza, porque, al ser la implicada directamente en el desarrollo del
ámbito práctico y social del hombre, es la que también tiene un claro signo político.
88
Maximiliano Hernandéz Marcos
alcance el mayor grado de pluralidad y diferencia en el desarrollo de los individuos
y los pueblos, pero esto sólo es posible, por otro lado, si entre ellos se da una situación de unidad y armonía social completa, que garantice aquella total diversidad
sin perjuicio o menoscabo de la libertad de alguna(s) parte(s). En este sentido la
Quinta Proposición de Idea de una historia universal en clave cosmopolita declara
por ello que el «fin último» o «propósito supremo» de la naturaleza en la especie
humana, a saber, la cultura o el pleno «desarrollo de todas sus disposiciones naturales», sólo puede lograrse en una «sociedad civil que administre universalmente el
derecho», es decir, en una sociedad de “máxima libertad” o «antagonismo generalizado entre sus miembros», pero a la vez de «protección y fijación máximamente
exacta de los límites de esa libertad» para asegurar la coexistencia de las libertades
de todos45. Obviamente Kant piensa que esa situación sólo se dará en una «sociedad cosmopolita» articulada sobre la base de Estados de constitución republicana, y
que, por tanto, ésta, como forma suprema de «concordia», es también la «tarea
suprema de la naturaleza para la especie humana»46. Repárese en un detalle importante: la sociedad de paz cosmopolita no es el fin último de la naturaleza en el
hombre sino la «única condición formal bajo la cual ésta puede conseguir ese propósito final suyo» que es la «cultura» de todas las disposiciones47. En este aspecto
la armonía social en general y, en particular, la armonía perfecta de una sociedad
universal justa es sólo un «medio» (el único medio) para el “plan” o «fin último»
de la naturaleza – de acuerdo con el fragmento citado del manuscrito «H» de la
Anthropologie –, aunque, como «tarea» real en «poder del hombre», venga a ser a
efectos prácticos el fin pragmático de la naturaleza en nosotros.
Ahora bien, la dialéctica entre concordia y discordia en el mecanismo natural
de la especie humana no se refiere sólo a la meta ni consiste en exclusiva en que
únicamente bajo condiciones de «concordia», y a fortiori de concordia suprema, se
obtenga la máxima discordia o desarrollo diferenciado de las disposiciones naturales. Este aspecto, con frecuencia descuidado por la historiografía kantiana sobre el
tema, es, sin embargo, inseparable de la otra cara de la relación dialéctica, la que
los intérpretes de Kant han subrayado suficientemente, a saber: que en el origen
está la «discordia» como factor de la concordia, que la «insociabilidad» es el estímulo o acicate que activa o pone en marcha las capacidades naturales del hombre,
posibilita así el desarrollo de las mismas frente a la inercia de la pasividad, la pereza o el abandono a la mera animalidad, y genera con ello formas de cultura y
«sociabilidad» que controlan, limitan y favorecen a su vez un despliegue «sano»
(pacífico) de las tendencias individualizadoras. Como motor desencadenante del
——————————————
45
Idee A 394-395.
46
Ibidem, A 395. Cf. Anthropologie A 331-332 / B 329-330; A 334 / B 332.
47
KU §83, A 388-89 / B 393.
Política y Antropología en Kant
89
perfeccionamiento humano, el antagonismo de las inclinaciones egoístas es – según
Idee, prop. 5ª – el «medio» de la naturaleza para que el hombre se haga a sí mismo
y adquiera un «carácter» propio. Pero la discordia como tal no perfecciona al ser
humano; lo hace sólo en la medida en que lleva consigo socialización, esto es, en la
medida en que crea las condiciones de armonía y cultura social con las que o bajo
las cuales se despliegan las capacidades naturales de manera diversa y saludablemente discordante. A este respecto, Kant, sirviéndose de la metáfora de los árboles
que crecen rectos sólo si están juntos formando un bosque, señala que las inclinaciones naturales no pueden desarrollarse aisladamente y en estado de libertad salvaje, sino tan sólo en el «terreno acotado de la unión civil»48. En este sentido cabe
decir que de la discordia, por la necesidad misma de autodespliegue de los impulsos, surge la concordia y que, por tanto, el antagonismo natural acaba siendo la
causa del orden social o político.
Ahora bien, como esta «tendencia natural» a la sociedad común desde el interés privado conlleva un proceso gradual y progresivo, en el horizonte del propio
curso histórico de las cosas humanas está (es una posibilidad fundada) que el mecanismo de la insociabilidad pueda llegar a ser la causa de la fundación de una
constitución republicana y de una sociedad de paz cosmopolita. Basta con que por
la evolución tan negativa de los acontecimientos mismos (violencia insostenible,
guerras aniquiladoras, depresiones económicas, etc.) se llegue a una situación en la
que los hombres y los Estados se convenzan, por propio interés, de que la mejor
forma de contrarrestar los efectos destructores de sus inclinaciones egoístas es una
«buena organización del Estado» y de las relaciones internacionales. En esas circunstancias el consejo de la prudencia política, coincidirá con el imperativo de la
moral, de tal suerte que entonces «el mecanismo de la naturaleza basado en las
inclinaciones egoístas que se oponen externamente entre sí de modo natural», podrá «ser utilizado por la razón como un medio para hacerle sitio a su propio fin, el
precepto jurídico, y, por ende, para fomentar y asegurar también la paz tanto interna como externa, en tanto que ésta descansa en el Estado mismo»49. De este
modo, bajo la presión ineludible de las causas eficientes en el orden fenoménico de
la historia natural, la razón pura práctica sacará de la discordia más insociable la
genuina «concordia» del derecho según la causalidad inteligible de su representación en la idea, se la propongan o no los gobernantes como quehacer político: fata
volentem ducunt, nolentem trahunt.50
Esta advertencia kantiana, dirigida a los políticos de su tiempo, acerca de la
plausible inevitabilidad de la constitución republicana y de la paz internacional
——————————————
48
Idee A 395.
49
ZEF A 61 / B 62; cf. AB 51.
50
Ibidem A 58 / B 59.
90
Maximiliano Hernandéz Marcos
según el determinismo natural de las inclinaciones humanas, constituye la conclusión extrema, a fortiori, del argumento antropológico con el que, en tercer lugar,
quiere apoyar su defensa crítica de una praxis de «idealismo jurídico» como la
mejor forma de «realismo político», a saber, el argumento de que la naturaleza
empírica del hombre, lejos de ser contraria al fin jurídico-práctico de la razón pura
– como argüían sus adversarios empiristas –, actúa en concordancia con ese fin, ya
que los efectos y producciones sociables inherentes al mecanismo causal de los
egoísmos particulares incluyen como medida más prudencial, tras una larga y penosa experiencia histórica (no puede saberse cuándo aquel mecanismo natural forzará la resolución más prudente), una organización social republicana y cosmopolita de todos los habitantes del globo terráqueo. Por consiguiente, si la especie
humana tiende por naturaleza a lo que la razón ordena como deber moral, la tarea
política de fundar constituciones republicanas y alcanzar la paz perpetua no es
«quimérica» sino perfectamente «viable»; más aún: es la tarea más genuinamente
«realista», la forma más prudente de hacer política, la que más se ajusta al curso
natural de las cosas humanas. De esta manera, la praxis política del estadista que
gobierne según la idea pura del derecho, se caracterizará no sólo por la certeza
«científica» que emana del imperativo categórico de la razón (la de saber siempre
«qué hacer»)51, sino también por la “certeza moral” que proporciona la garantía
teleológica de la naturaleza humana: la de confiar en la eficacia o éxito del obrar
moral, la de no desesperar en el esfuerzo político por conseguir un reino de paz y
justicia en la Tierra, porque, a pesar de las apariencias, no nos hallamos en un
mundo infernal o diabólico, sino en un orden natural que trabaja secretamente a
favor del bien52.
Para concluir este apartado, hagamos una reflexión final sobre la relación
entre lo «pragmático» y lo «moral» en la Antropología y en la Política kantianas.
En primer lugar, salta a la vista que el realismo superior del «político moral» que
sigue la regla de la primacía del derecho, nos remite de nuevo al planteamiento
«pragmático» que inspira la Antropología kantiana, y pone de manifiesto hasta qué
punto el conocimiento del hombre orientado a la formación de ciudadanos prudentes ha de culminar con la doctrina del «carácter de la especie» y de su destino moral. Pues la moralidad, aunque de por sí trascienda el ámbito de la prudencia, tiene
——————————————
51
52
Cf. ZEF A 67-68 / B 72-73.
Cf. Anthropologie A 328 / B 326: la perspectiva que abre la «tendencia de la naturaleza» al fin
racional puede «esperarse, si no la cortan de una vez revoluciones naturales, con certeza moral (suficiente
para el deber de cooperar a ese fin)». Cf. ZEF A 64-65 / B 66: «De este modo la naturaleza garantiza la paz
perpetua mediante el mecanismo de las inclinaciones humanas mismas, ciertamente con una seguridad que
no es suficiente para predecir (teóricamente) el futuro, pero que sí es suficiente en sentido práctico, y que
convierte en deber trabajar con miras a ese fin (no meramente quimérico)». Sobre este sentido práctico
inmanente de esa antropología «negativa» de la «insociable sociabilidad» para la acción jurídica del político
véase también R. Brandt, Kommentar.., p. 13; Immanuel Kant…, p. 141, especialmente nota, y 217-218.
Política y Antropología en Kant
91
una indudable utilidad «pragmática» para el trato social en el mundo, ya que implica una estabilidad en el obrar de los hombres que permite a cualquier individuo
saber a qué atenerse con respecto a ellos con la misma infalibilidad con la que confía en el curso de las estrellas. En efecto, de un hombre que tiene “carácter” (moral)
– afirma Kant –, «se sabe con seguridad lo que puede esperarse de su voluntad»,
dada la firmeza de sus principios de autodeterminación racional53. La misma certidumbre práctica en relación con sus fines propios con la que cuentan los individuos
que se relacionan con personas de principios morales, es también la que tiene con
respecto a los fines del público el político que actúa según la normatividad del derecho y el principio de publicidad, y la que los ciudadanos mismos pueden albergar
de cara a sus propósitos privados bajo un gobernante así. El proceder moral en
general garantiza, por tanto, la máxima prudencia, la única prudencia «cierta» (no
la de la mera probabilidad empírica) en las relaciones sociales tanto al individuo
como al hombre de Estado.
Pero, en segundo lugar, la tendencia natural del mecanismo causal de los
egoísmos hacia formas sociables nos permite hablar asimismo, en sentido inverso,
de la utilidad «moral» de la prudencia, por más que el comportamiento «pragmático» no conlleve de por sí moralidad. Pues, por un lado, parece evidente que una
conducta imprudente, de entrega a las pasiones propias, impide toda posible autonomía moral del individuo. En cambio, un proceder consigo mismo y con los demás según las reglas de la razón prudente, aunque no nos convierta en seres morales, crea las condiciones externas adecuadas para ser moralmente autónomos. En
este sentido cabe decir que la prudencia, en el individuo lo mismo que en el estadista, trabaja a favor de la moralidad.
4. El concepto de homo politicus. La teoría de las «disposiciones naturales» de la
especie humana.
Una vez mostrado en el apartado precedente que la Antropología asegura la
prudencia del estadista que actúa según los principios jurídicos de la razón, mediante la constatación de un proceder de la naturaleza humana que hace viable y
sensata semejante praxis política, es preciso examinar ahora la idea concreta del
hombre como especie natural que avala o fundamenta la concordancia entre tarea
normativa y necesidad del curso empírico de las cosas que está en la base de esa
concepción «crítica» de la Politik. Se trata, por consiguiente, de analizar el con——————————————
53
Anthropologie A 256 / B 254; cf. A 266 / B 264. R. Brandt, Immanuel Kant…, p. 206 ha señalado
que la perspectiva pragmática de la Anthropologie predomina incluso cuando se aborda el tema del «carácter» y destino moral de la especie, porque éste es considerado allí en relación con el trato práctico en el
mundo.
92
Maximiliano Hernandéz Marcos
cepto de homo politicus que nos brinda la Antropología kantiana, y que nos obliga
a volver de nuevo al ya mencionado capítulo sobre «El carácter de la especie». La
visión del hombre como «animal político» que se bosqueja allí se desprende básicamente de la relación entre dos nociones, la de «carácter» y la de «destino» [Bestimmung], así como del concepto que media o transita entre ellas: el de «disposición natural» [Naturanlage]. Veamos lo que cada uno de estos conceptos aporta a
la visión kantiana de la naturaleza humana.
Kant empieza ofreciéndonos esta primera imagen general del «carácter» distintivo del hombre como ser vivo de la naturaleza:
«Para señalar al hombre su clase dentro del sistema de la naturaleza viva
y así caracterizarle no nos queda, pues, más que decir lo siguiente: que tiene un
carácter que él mismo se crea, al estar capacitado para perfeccionarse según fines sacados de sí mismo, gracias a lo cual, como animal dotado de la facultad de
la razón (animal rationabile), puede hacer de sí mismo un animal racional
(animal rationale)»54.
Haciendo un uso rentable de la ambivalencia del término, Kant viene a poner
de relieve ante todo que la especie humana no tiene propiamente un «carácter»
natural sino la capacidad para adquirir o crearse un carácter, que será necesariamente «cultural». Dicho de otro modo: el signo distintivo (lo «característico» en
general) del hombre como especie animal («universorum») está en que la naturaleza no le ha dado estas o aquellas cualidades o propiedades biológicas fijas y determinantes («carácter sensible»), sino tan sólo la «facultad, como ser racional, de
otorgarse un carácter en general tanto para su persona como para la sociedad en la
que le coloca la naturaleza»55. Que entre todos los seres vivos el ser humano es el
único animal dotado de la facultad de la razón («rationabile») significa, pues, que
es el único ser con capacidad de perfeccionarse y de conseguir un «carácter» propio convirtiéndose en animal racional («rationale»). La «perfectibilidad» que le
caracteriza no es más que la capacidad de darse o «proponerse en general» fines
propios56, con independencia de la constricción físico-biológica de la naturaleza,
una capacidad que viene dada por el libre arbitrio del ser humano, frente al arbi——————————————
54
Anthropologie A 315 / B 313.
55
Ibidem A 328 / B 325-26. Para esta distinción entre «carácter natural» o sensible y «carácter pura y
simplemente» (moral) como «modo de pensar» (Denkungsart) v. Ibidem A 255-56 / B 253-54; A 266 / B 264.
56
Cf. TL A 23; KU §82, AB 383. Este planteamiento concuerda sustancialmente con el de la Tercera Proposición de Ideas para una historia universal en clave cosmopolita, en el que se dice que el hombre
ha de sacar todo de sí mismo y buscar su felicidad haciendo uso de su razón y libertad. Para la procedencia
histórica de la idea de «perfectibilidad» de Turgot y Rousseau v. R. Brandt, Kommentar…, pp. 466-67,
quien, por otra parte, subraya la visión más negativa del hombre del texto de Ideas en comparación con el
de Anthropologie.
Política y Antropología en Kant
93
trium brutum del animal carente de razón. Ello presupone, sin duda, que el hombre
es un «ser carencial» en cuanto a su constitución natural, en el sentido de no estar
determinado (mecánicamente) por un cuadro instintivo y una serie de dotaciones
fisiológicas de adaptación al medio para hacer frente a las necesidades de la vida.
Mas no por eso es un ser «indeterminado», absolutamente plástico – como supone
Pico della Mirandola –, para el que resulte indiferente lo que pueda hacer de sí,
como si su capacidad racional representase una mera posibilidad lógica para elegir
entre múltiples figuras alternativas igualmente plausibles y válidas. Muy al contrario, la facultad de otorgarse un carácter (no natural) indica una orientación práctica
ineludible, significa que la especie humana está destinada a la acción en general y,
en particular, a la acción absolutamente libre, independiente de cualquier determinación empírico-teleológica de su arbitrio (incluida la interna o psíquica, no sólo la
externa de la naturaleza físico-biológica); es decir, está determinada (teleológicamente) a la tarea de la moralidad, a la autodeterminación racional pura como fin
incondicionado de su existencia en el mundo57.
El «carácter» de la especie humana nos permite reconocer, pues, su «destino». La perfectibilidad, que le sitúa por encima de la determinación coercitiva de
la naturaleza, le orienta necesariamente hacia la emancipación gradual de ella para
lograr el desarrollo o perfeccionamiento de sus capacidades naturales por medio de
la autodeterminación según fines propios. En este sentido, cabe decir que la facultad de la razón destina al hombre a la cultura en general o «formación» de todas
sus capacidades y fuerzas, conforme a lo establecido en el §83 de la Crítica de la
facultad de juicio. Pero este «hacerse a sí mismo» por medio de la cultura no sólo
requiere un progreso constante, sino que además cuenta con distintos niveles de
desarrollo o usos de la razón en función de las fuerzas o capacidades humanas en
juego, los cuales, sin embargo, se hallan entre sí en una relación sistemática de
subordinación al nivel «supremo» de la existencia del hombre, que viene determinado por la «capacidad suprasensible» de la autodeterminación moral (jurídica y
ética) como «fin final» de la creación (uso puro práctico de la razón). De ahí que la
«suma de la Antropología pragmática» fije el «destino» de la especie en tres tareas
«culturales» básicas, de las cuales las dos primeras, si bien no garantizan la realización moral del hombre, son, no obstante, condiciones necesarias de la misma en el
proceso gradual de emancipación de la coacción de la naturaleza, a la vez que sólo
tienen sentido y valor intrínseco como medios preparatorios de la moralidad:
«La suma de la Antropología pragmática con respecto al destino del
hombre y la característica de su formación [Ausbildung] es la siguiente. El hom——————————————
57
R. Brandt, Immanuel Kant…, pp. 207-212, ha puesto de manifiesto este sentido teleológico de la
Bestimmung del hombre sirviéndose de la distinción de M. Mendelssohn entre la «determinatio» por algo y
la «destinatio» para algo.
94
Maximiliano Hernandéz Marcos
bre está determinado por su razón a estar en sociedad con hombres y a cultivarse
en ella por medio del arte y de las ciencias, a civilizarse y a moralizarse; por
grande que pueda ser su propensión animal a abandonarse pasivamente a las incitaciones de la comodidad y del bien vivir, que él llama felicidad, está determinado más bien a hacerse digno de la humanidad activamente, en la lucha con los
obstáculos que le vienen de la rudeza de su naturaleza»58.
Culturización, civilización y moralización (Kultivierung, Zivilisierung, Moralisierung) son, pues, las tres tareas que definen el «destino» del hombre, las que
le permiten alcanzar la única felicidad adecuada al carácter racional de su especie,
aquélla que es posible bajo la condición restrictiva de la dignidad de merecerla,
esto es, la «felicidad civilizada [gesittete Glückseligkeit]» como «sumo bien físico-moral»59. No podemos entrar aquí en más detalles sobre cada una de estas tareas ni
sobre la relación entre ellas. Baste con añadir a lo dicho una advertencia relevante:
esta tríada constitutiva del destino moral de la especie humana guarda un palmario
paralelismo con las tres «disposiciones naturales» con las que cuenta el hombre de
cara a la adquisición de un carácter inteligible.
Pero antes de entrar en este tema, conviene hacer una breve observación
acerca de las condiciones históricas necesarias que han de darse para que el ser
humano pueda cumplir su «destino» moral y convertirse en «animal racional». De
nuevo nos encontramos aquí con una tríada ascendente, en la que cada condición
en el uso de la razón se mantiene y se amplía cualitativamente en la siguiente: la
«conservación» (biológica) del individuo y de la especie; el ejercicio, la instrucción
y la educación de la facultad de la razón para la «sociedad doméstica»; y el gobierno racional de los hombres en una sociedad civil y, en última instancia, cosmopolita60. Sólo esta última condición, la única propiamente «moral», es, pues, la que
permite el pleno desarrollo de las capacidades naturales de las especie y una felicidad digna para todos los hombres. De ahí que la instauración de una «sociedad
cosmopolita» sobre la base de una «progresiva coalición» de Estados de constitución civil republicana61 acabe siendo el gran objetivo histórico de la especie
humana, aquél en el que ésta, fundándose en la autonomía jurídica de todos, se
——————————————
58
Anthropologie A 321 / B 318-19. Esta tríada figura también en Idee A 402-03 como la triple tarea
de la «cultura». En KU §83, A 387-390 / B 392-395 se habla, sin embargo, de “cultura de la habilidad” y de
la “disciplina”, la cual, sin identificarse exactamente con la «Zivilisierung», parece incluirla, mientras que
la moralidad, por su índole suprasensible, trasciende como tal, coronándolo, el «fin último», cultural, de la
naturaleza en el hombre.
59
Anthropologie §88, A 244 / B 243. Cf. Idee Prop. 3, A 390-391.
60
Cf. Anthropologie, A 315-16 / B 313. En KU §83, AB 393, se considera por ello la «sociedad civil cosmopolita» como «la única condición formal bajo la cual la naturaleza puede alcanzar su propósito
final» de desarrollar al máximo todas las disposiciones naturales del género humano.
61
Ibidem A 331 /B 329; A 334 / B 332. Cf. Idee Prop. 5, A 394-95; Prop. 7.
Política y Antropología en Kant
95
asegure la cultura plena de todas las facultades naturales y con ella un «carácter»
inteligible propio. Éste es por ello también el «principio regulativo» que el político
ha de asumir como meta y fundamento de su acción pública.
Ahora bien, este destino del hombre concretado en la triple tarea de «cultivarse», «civilizarse» (y/o «disciplinarse») y «moralizarse», ¿cómo puede cumplirse?; ¿cuáles son los medios, poderes o fuerzas de la naturaleza humana cuyo
uso o despliegue por medio de la razón constituye precisamente la realización de
aquel destino?; ¿en qué competencias, capacidades o potencias naturales se concreta el «carácter» de la especie humana, su facultad de «perfeccionarse» racionalmente? La idea de que el ser humano, a diferencia de los restantes seres naturales,
tiene que hacerse a sí mismo mediante su facultad racional, ha llevado a Kant a
ordenar sistemáticamente las diversas fuerzas empíricas del hombre (psíquicas y
físicas) según el criterio de los tres posibles ámbitos o usos prácticos de la razón,
tal como se formularon por primera vez en la Fundamentación de 1785 con ocasión de la doctrina de los imperativos (cf. GMS AB 39 y ss.), y a hablar en este
aspecto de tres «disposiciones naturales» correspondientes, es decir, de tres “tendencias” u orientaciones fundamentales de la especie humana no meramente posibles, sino reales, en tanto que descansan en potencias o fuerzas naturales (la constitución biológica del hombre y las «facultades del ánimo»)62, la tercera de las cuales, sin embargo, trasciende el mero orden sensible de la naturaleza, porque está
ligada directamente a la dimensión propiamente suprasensible de la razón. Estas
tres «disposiciones» antropológicas, que definen el carácter de la especie como una
determinación a la acción en tres direcciones básicas, se presentan del modo siguiente en la Anthropologie:
«Entre los habitantes vivientes de la Tierra el hombre se distingue notoriamente en su ser de todos los restantes seres naturales por su disposición técnica
(mecánica pero con conciencia) al manejo de las cosas, por su disposición pragmática (a usar hábilmente a otros hombres para sus propósitos) y por la disposición moral (a actuar frente a sí mismo y a los demás según el principio de la
——————————————
62
Kant emplea, además del término «disposición» (Anlage, dispositio), también la palabra «tendencia» (Tendenz –cf. SF A 142), para subrayar, en analogía con el mundo biológico, la orientación «germinal»
de determinadas fuerzas o facultades humanas a desarrollarse en cierta dirección marcada por un uso racional concreto de las mismas (en la Proposición Segunda de Idee A 388 se habla de las «disposiciones naturales, que están orientadas al uso de la razón –auf den Gebrauch seiner Vernunft abgezielt»). Sobre este
punto véase también Pauline Kleingeld, Fortschritt und Vernunft. Zur Geschichtsphilosophie Kants, Würzburg: Königshausen & Neumann, 1995, p. 171 y ss. Es claro que, aunque la tríada de las facultades del
ánimo (facultad de conocer, de sentir y de apetecer) que estructura la Primera Parte, la más empírico-psicológica, de Anthropologie, no se corresponde con la tríada de disposiciones naturales (técnica, pragmática y moral), hay, no obstante, una cierta conexión: la disposición técnica es impensable al menos sin la
facultad de conocer, al igual que la disposición pragmática tiene su base empírica primordial, no exclusivamente en la facultad de apetecer.
96
Maximiliano Hernandéz Marcos
libertad bajo leyes); y cada uno de estos tres niveles puede ya por sí solo diferenciar de manera característica al hombre de los otros habitantes de la Tierra»63.
No podemos entrar aquí en una exposición exhaustiva de estas tres disposiciones naturales, que de alguna manera se hacen eco de las tres dimensiones humanas fundamentales o tipos de hombre y correspondientes formas de racionalidad
reconocidas en nuestra historia cultural: la técnico-instrumental (homo faber), la
eudemónico-prudencial (homo politicus) y la ético-espiritual (homo moralis). Sólo
queremos hacer algunas aclaraciones sobre las dos disposiciones antropológicas
que avalan y justifican a la vez más directamente una praxis de «sabiduría política», esto es, una forma de entender la acción en el Estado en términos de tarea
moral («idealismo jurídico») y simultáneamente en términos de obrar prudente
(«realismo político»): las disposiciones moral y pragmática respectivamente. Empecemos por esta última.
Lo primero que llama la atención de la «disposición pragmática» es su cariz
político, al ser la base antropológica de la sociabilidad humana, ya que no puede
desarrollarse sin que cada hombre entre en sociedad con otros hombres y sin generar
de este modo formas de “concordia” o de cultura social (reglas de convivencia, orden
social…) y “cualidades sociables” (cortesía, buenos modales…), que llevan a los
individuos a abandonar la «rudeza de la autarquía [Selbstgewalt]» natural y a “civilizarse”, hasta fundar una sociedad civil y someterse a un poder común64. Por su
tendencia inevitable hacia la vida social y al gobierno organizado de la praxis civil, la
disposición pragmática constituye, sin duda, la dimensión sensible del hombre que
fundamenta la posibilidad del Estado y del quehacer político, a la vez que garantiza
además la «viabilidad» del cometido jurídico-normativo del gobernante.
Esta orientación sociable que conduce a la civilización y a la vida política, se
debe a que la disposición pragmática tiene su sede antropológica fundamental en la
facultad de apetecer, que abre y conforma propiamente el ámbito de la acción
humana, y, particularmente, en un desarrollo apetitivo que se adquiere empíricamente sobre la base de la «propensión» o “tendencia subjetiva” a influir en los otros;
me refiero a la inclinación a poseer los medios de influencia sobre los hombres, en la
medida en que tales medios (honor, poder y bienes o dinero) proporcionan una capacidad efectiva (Vermögen) para utilizar a los demás en función de nuestros fines
——————————————
63
Anthropologie A 316 / B 314. Esta teoría de las tres disposiciones naturales del hombre ya figura
en La religión dentro de los límites de la mera razón (1793), aunque la concepción y denominación de las
mismas allí («disposición para la animalidad», «disposición para la humanidad» y «disposición para la
personalidad») no coincide exactamente con las de la Antropología en sentido pragmático (cf. Die Religion,
A 13 / B 15 y ss.).
64
Cf. Ibidem A 319 / B 317; A 329-330 / B 318-19.
Política y Antropología en Kant
97
particulares65. Estamos, pues, ante la tendencia, empíricamente consolidada, al dominio en las relaciones sociales con los otros, cuyo desarrollo pone en juego el proyecto
de felicidad o bienestar individual de cada uno y requiere, por tanto, el correspondiente uso racional de máximas de prudencia en el trato social. Pues si por una administración imprudente de las inclinaciones al honor, al poder o al dinero, si por un uso
insensato y no meramente estratégico de estos medios de dominio sobre los demás,
esas inclinaciones degenerasen y se transformaran en las pasiones correspondientes
(«afán de honor», «afán de dominación» y «afán de posesión»), convirtiéndose así en
objetivos únicos y prioritarios de la acción social en detrimento de los restantes apetitos humanos, con la consiguiente dependencia esclavizante de ellas, pasarían a ser
entonces fuentes de “debilidad” frente a nuestros congéneres en vez de proporcionarnos una «capacidad» sólida de influencia sobre ellos66. Por tanto, sólo con una gestión prudencial de las inclinaciones constitutivas de la disposición pragmática puede
lograr cada individuo en sus relaciones sociales el poder de dominio sobre los demás
suficiente para su felicidad.
Pero la inclinación a poder influir sobre los otros para usarlos de cara a los
propios fines, por lo mismo que fomenta necesariamente la sociabilidad entre los
hombres, favorece también su cualidad insociable, pues genera en todos ellos una
“resistencia” paralela a ser utilizados y dominados por los demás y desarrolla así la
tendencia a apartarse y aislarse de la vida social para obrar y decidir siempre «según su parecer» individual, que descansa en la «inclinación natural a la libertad
externa»67. El conflicto inevitable que conlleva el desarrollo concurrente de ambas
inclinaciones, la tensión dialéctica constante entre el impulso a la individualización
y la propensión a entrar en sociedad para satisfacer y realizar las propias fuerzas y
apetitos mediante el posible dominio sobre los demás, define la «insociable sociabilidad» que impulsa el desarrollo de la «disposición pragmática» del hombre, y
que funciona como una especie de mecanismo «prudencial» de la naturaleza para
lograr el pleno cumplimiento de la facultad apetitiva de la especie mediante el pro——————————————
65
Sobre la «facultad de apetecer» (Begehrungsvermögen) y los conceptos de «propensión» (Hang) o
tendencia apetitiva del sujeto, e «inclinación» (Neigung) o propensión sensible consolidada empíricamente, así
como, en concreto, la «inclinación a la capacidad para influir en otros hombres» v. Anthropologie, 1.Teil, 3. Buch,
§73, A 203 / B 202; §80, A 226 / B 225; A 229-230 / B 229; y §§84-85, A 235 y ss, / B 234 y ss.
66
Cf. Ibidem, §84, A 235-236 / B 234-235. Recuérdese que para Kant la «pasión» (Leidenschaft) es
una inclinación convertida por la razón en máxima exclusiva o al menos predominante de la acción, con el
subsiguiente perjuicio para todas las demás inclinaciones, que resultan así sacrificadas. De ahí que, en la
medida en que las pasiones impiden una satisfacción equilibrada de todas las inclinaciones, Kant las considere «malas en sí» y las califique de «cánceres para la razón pura práctica» (Ibidem, §81, A 227 / B 226; cf.
§80, A 226 / B 225).
67
Idee Prop. Cuarta, A 392. Parece claro que la base antropológica de la «insociabilidad», como
tendencia a la individualización y al aislamiento, es la «inclinación natural», innata, «a la libertad externa»,
esto es, a no ser sometido a la voluntad de otro para ser feliz (cf. Anthropologie, A 229-230 / B 229, y §82,
A 230 y ss. / B 229 y ss.).
98
Maximiliano Hernandéz Marcos
greso en la civilización gracias a la cultura de la «apariencia social» y de la coexistencia «política» que dicho mecanismo genera por sí solo68. De esta manera –
tal como se indicó antes – la disposición pragmática asegura mediante su modo
dialéctico de despliegue, la insociable sociabilidad, la prudencia política del estadista que gobierna a favor de las formas de máxima concordia social definidas por
el derecho, según la idea pura de la razón.
La viabilidad de la tarea jurídica que el mecanismo natural así acredita, no
exime, sin embargo, al político del deber moral de realizarla ni explica tampoco el
carácter normativo de la misma. Pues ¿puede acaso el estadista abandonarse pasivamente a los procesos naturales de la historia y limitar su acción a gestionarlos en
función de su propio interés de poder y del mero orden social escudándose en la
certeza teórica de que la sociedad jurídica universal en el futuro será el efecto causal necesario (el único posible, ineluctable) del antagonismo de los intereses egoístas, tal como sostiene la interpretación naturalista de corte librecambista o hegeliano-marxista de la «insociable sociabilidad»? Pero incluso si eventualmente se
dieran las circunstancias empíricas adecuadas para que la propia necesidad natural
precipitase la instauración del estado civil de derecho (pues a esta sola posibilidad
fáctica se limita la «garantía de la naturaleza» apetitiva del hombre en cuanto mera
presunción a posteriori, fundada en la experiencia histórica, de una concordancia del
curso fenoménico de las cosas humanas con las ideas de la razón), ¿cómo podría
surgir en ese caso únicamente de la causalidad mecánica de los acontecimientos una
constitución propiamente jurídica (incluso defectuosa) sin que los hombres que la
promulgaran pusiesen en juego sus ideas de justicia y de derecho y sin que, por
tanto, interviniera en su fundación una capacidad suprasensible de autolegislación
pura, con independencia de toda determinación empírica, que les llevara a valorar y
ordenar los asuntos mundanos conforme a principios racionales de una «causalidad
——————————————
68
Aunque la «insociable sociabilidad» parece ser el mecanismo de la naturaleza humana que impulsa y despliega en concreto la «facultad apetitiva» y el ámbito práctico en general (incluido aquí lo que en
buena parte corresponde a la «disposición técnica»), en Idea de una historia universal en clave cosmopolita,
el único texto publicado en el que Kant introduce esa noción, aparece asociada, sin embargo, de manera
restrictiva a la forma degenerada o viciosa de desarrollo de la disposición pragmática, esto es, se dice en
particular de las «pasiones» derivadas de la inclinación al dominio sobre otros: el «afán de honor» (Ehrsucht), el «afán de poder» o «dominación» (Herrschsucht) y el «afán de posesión» (Habsucht) (cf. Idee
Prop. Cuarta, A 393-394); pasiones que – como hemos indicado más arriba – no potencian, por su carácter
imprudente, la realización positiva y feliz del individuo sino su debilitamiento y esclavización psíquica. Al
poner, no obstante, el acento de la insociable sociabilidad en esas pasiones es obvio Kant no está concibiendo este mecanismo antagónico como un medio de perfeccionamiento y mejora de los individuos sino de
la «especie» humana. Para subrayar ese contraste y destacar a la vez el carácter «estoico-providencial» de la
naturaleza apetitiva del hombre el filósofo de Königsberg quiere poner de manifiesto que incluso el vicio,
tan nocivo para el feliz desarrollo de los hombres (singulorum), es beneficioso, sin embargo, desde la perspectiva global del cumplimiento del destino de la especie (universorum), ya que contribuye al progreso en
la sociabilidad. Desde este punto de vista histórico-sistemático lo malo para el individuo tiene un sentido
para la humanidad en su conjunto.
Política y Antropología en Kant
99
libre»? En el Apéndice de Hacia la paz perpetua Kant es suficientemente explícito
acerca de la imposibilidad de explicar y, por ende, de derivar un estado jurídico (no
meramente «político») de simples relaciones causales de los apetitos egoístas guiados
por la «prudencia», sin apelar al mundo inteligible de la moralidad:
«Ciertamente, si no hay libertad ni ley moral basada en ella, sino que todo
lo que ocurre o puede ocurrir es simple mecanismo de la naturaleza, entonces la
política (como arte de utilizar ese mecanismo para el gobierno de los hombres)
es toda la sabiduría práctica, y el concepto de derecho un pensamiento vacío»69.
Con independencia, pues, de lo que la naturaleza de las cosas humanas
ayude o pueda hacer de cara al establecimiento de una sociedad civil justa; más
aún, refrendado por la presunción empírica y la subsiguiente confianza práctica en
que ella obra a favor del derecho, el político debe obrar también a favor de la naturaleza pero consumándola y trascendiéndola según el derecho, ya que sólo él (el ser
humano en general) puede coronar el reino natural haciendo mediante su razón
(pura) lo que la naturaleza ya no puede hacer de él ni por él: crear un reino moral
en la Tierra. La tarea normativa de la política se explica, por consiguiente, a partir
de este destino moral que se reconoce en el «carácter» de la especie humana. Para
avalar, no obstante, la posibilidad y necesidad práctica de ese cometido jurídico
Kant cierra la caracterización de la humanidad con una tercera disposición antropológica: la disposición moral o «disposición al bien».
Este último concepto, incorporado al pensamiento kantiano en la época de la
Anthropologie70, indica ciertamente que el hombre, en virtud de su racionalidad,
cuenta con un germen o «carácter inteligible» que le orienta originariamente hacia
el bien, y que esta tendencia suprasensible innata se acredita empíricamente a través de dos fenómenos psíquicos comunes: la «conciencia del deber» y el «senti——————————————
69
70
ZEF A 70-71 / B 76.
Aunque en La religión dentro de los límites de la mera razón (1793) se habla ya de una «disposición a la personalidad» (Die Religion A 17 / B 18-19) e incluso en Idea de una historia universal en clave
cosmopolita (1784) se reconoce una «ruda disposición natural a la distinción moral» (Idee, Prop. Cuarta, A
393), Kant no llega a asumir plenamente y a defender con nitidez la idea de una «disposición moral» hasta
la época de 1797-98, tal como puede comprobarse en los escritos de esos años: la Doctrina de la Virtud de
la Metafísica de las costumbres, El conflicto de las Facultades y la Antropología en sentido pragmático.
Parece que el acontecimiento decisivo para ello fue la experiencia de la “simpatía” e incluso “entusiasmo”
generalizados del público por la causa revolucionaria del pueblo francés luchando por su derecho de soberanía y por una constitución republicana, en la medida en que la “universalidad” y el “desinterés” de semejante implicación afectiva de los espectadores sólo podía deberse a una causa moral y revelaba, por tanto, a
la vez una «disposición moral del género humano» (cf. SF A 142 y ss.). En este fenómeno histórico colectivo y desinteresado de la receptividad del público a la idea del derecho encontraba Kant, pues, la certeza
empírica externa acerca de la «disposición al bien» y de la tendencia hacia lo mejor de la especie humana
que no le podía proporcionar la experiencia psíquica, borrosa y privada, de la «conciencia del deber» y del
«sentimiento moral». Sobre este punto también v. R. Brandt, Kommentar…, p. 481 y ss.
100
Maximiliano Hernandéz Marcos
miento moral» de lo justo e injusto de las acciones humanas71. Pero al mismo
tiempo Kant subraya que esta disposición al bien propia del carácter inteligible
tiene su base en una estructura antropológica de por sí favorable a la moralidad, a
saber, es indisociable del «carácter» mismo de la especie, de su «libre arbitrio»
como capacidad de perfeccionarse según fines propios, en la medida en que con
ello se abre necesariamente para el hombre la posibilidad de un mundo no natural y
una «tendencia» irreversible a avanzar continuamente «hacia lo mejor» y a «elevarse del mal al bien en un progreso constante entre obstáculos»72. En este aspecto
el hombre es bueno por naturaleza, ya que la «perfectibilidad» como «carácter»
del género humano «presupone ya una disposición natural favorable y una propensión al bien en él», excluye su maldad innata (supondría negarle ese carácter o capacidad de mejora inherente a su libre arbitrio)73 y permite considerar las demás
disposiciones naturales (la técnica y la pragmática), que no implican de por sí un
uso moral de la razón, como «disposiciones para el bien», en la medida en que su
desarrollo y mejora culturales «fomentan el seguimiento» de la ley moral74. En
suma: la disposición a la moralidad, aunque ciertamente supone descartar que el
hombre tenga una «naturaleza buena», indica, sin embargo, que la naturaleza
humana está orientada o «destinada» al bien. Con semejante constatación antropológica el político puede cerciorarse entonces de que el idealismo de su praxis jurídica es también la forma realista de atenerse al carácter y tendencia natural de la
especie humana.
——————————————
71
Anthropologie A 320 / B 318. También en la Introducción de la Doctrina de la Virtud la
«conciencia moral» [Gewissen] y el «sentimiento moral» [moralisches Gefühl] son las dos formas originarias (no adquiridas) de receptividad de la naturaleza sensible a la moralidad con las que se acredita empíricamente la «disposición moral» (cf. TL, §XII, A 36 y ss.). Recuérdese asimismo que la conciencia del deber
y la correspondiente capacidad de juicio moral del hombre común son el punto de partida empírico de la
Fundamentación de la metafísica de las costumbres. Para el tema de la relación entre «disposición moral» y
sus formas de «receptividad» sensible v. M. Hernández Marcos, «Sentirse obligado. Reflexiones a partir de
Kant», en: A. Andaluz Romanillos (ed.), Kant. Razón y experiencia, Salamanca: Ed. Universidad Pontificia,
2005, espec. pp. 230 y ss.
72
Anthropologie, A 320 / 318; A 334 / B 332; cf. A 319 / B 317.
73
Ibidem A 328 / B 326; cf. A 320 / 317-18; A 334 / B 332.
74
Die Religion, A 17 / B 19.
Kant e James Madison:
Da Tolerância à Liberdade de Consciência
José Gomes André
CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Prólogo: onde se dá conta de um novo paradigma
A discussão em torno da liberdade religiosa, um tema dominante nos debates
teológicos, filosóficos e políticos da modernidade, dificilmente se pode subsumir
num enunciado homogéneo, capaz de dar conta da sua complexidade. Trata-se de
um processo de avanços e recuos, envolto numa dinâmica histórica onde convivem
a intolerância civil, a institucionalização do fundamentalismo religioso, o clima de
permanente conflito, e, ao mesmo tempo, os esforços humanistas de Thomas More
ou de Erasmo, a apologia da liberdade humana avançada por Espinosa e Pierre
Bayle, e as propostas revolucionárias de Henri de Beauval e de John Locke. Pese
embora a natural dificuldade em apresentar uma recapitulação integralmente explicativa do problema, é possível, contudo, identificar uma série de tendências fundamentais dessa discussão, que ajudam inequivocamente à compreensão deste
debate.
Gostaria de destacar uma dessas tendências, directamente relacionada com o
título desta comunicação, que servirá de ponto de partida para o nosso estudo.
Refiro-me a uma curiosa e relevante alteração conceptual, verificável principalmente na segunda metade do século XVIII, que consiste, grosso modo, num progressivo abandono do paradigma da “tolerância civil”, então predominante, substituído por um outro modelo reflexivo, que assenta no conceito fundamental de
“liberdade de consciência”.
O ideal da “tolerância civil” – que surgira como uma resposta aos desafios
colocados pela situação religiosa que a Europa vivia, especialmente depois da
Reforma – baseava-se no pressuposto de que, mesmo existindo uma Igreja Oficial
num determinado território, os simpatizantes de outros credos não-dominantes
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 101-128
102
José Gomes André
deveriam usufruir de alguns privilégios concedidos pelos governantes, relacionados
sobretudo com a prática do culto e a ocupação de cargos públicos. Esta tentativa de
compromisso entre as minorias religiosas e o Estado encontra expressão legal em
documentos como o Édito de Nantes, de 1598, que garantia liberdade religiosa aos
huguenotes franceses, e a Lei da Tolerância [Toleration Act], de 1689 (aprovado
em Inglaterra na sequência da Glorious Revolution), que permitia a livre prática de
culto a um conjunto diversificado de credos – conhecendo o seu expoente máximo,
de um ponto de vista doutrinal, na Carta sobre a Tolerância, de Locke.
O modelo da “tolerância civil”, não obstante o significativo alcance destes
contributos, possuía todavia algumas insuficiências: colocava uma grande ênfase
nas regalias a atribuir, perspectivando-as como cedências dos governantes, e não
como direitos plenos dos cidadãos; subalternizava o indivíduo perante a indulgência do soberano, a quem cabia decidir em que circunstâncias aquele poderia ou não
beneficiar dessas permissões; e condicionava estas prerrogativas a relevantes
excepções (recordemos como Locke considerava serem indignos de tolerância os
ateus e os católicos, ou o facto de a referida Lei da Tolerância inglesa impor uma
série de restrições aos benefícios concedidos a católicos e não-cristãos1).
Essencialmente na segunda metade do séc. XVIII, por via do amadurecimento do jusnaturalismo e da divulgação de um ideal secularista, vários autores
criticam os limites deste paradigma, insistindo na necessidade de remover do conceito de liberdade religiosa esta dimensão excepcional, que a fazia depender de um
consentimento do governante, e não de uma categórica afirmação de um direito
integral do indivíduo, direito esse que se deveria designar “liberdade de consciência” – noção capaz de exprimir de uma forma mais ampla o verdadeiro significado
do que estava em causa. Permitam-me referir três exemplos.
Podemos começar por mencionar Thomas Paine, esse aventureiro de duas
revoluções, e um dos mais notáveis panfletistas ingleses. Na célebre obra Direitos
do Homem [Rights of Man], de 1791-92 – resposta corrosiva às não menos famosas
Reflexões sobre a Revolução em França, de Edmund Burke – elogia Paine as diligências tomadas pelos revolucionários franceses a fim de protegerem os direitos
fundamentais dos cidadãos, nomeadamente através da criação da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, incorporada na Constituição de 1791. A este
propósito escreve Paine:
«A Constituição Francesa aboliu ou renunciou [à] Tolerância ou [à] Intolerância, e estabeleceu o DIREITO UNIVERSAL DA CONSCIÊNCIA. A Tolerância não é o oposto da Intolerância, mas sim a sua imitação [counterfeit].
——————————————
1
Cf. John Locke, A Letter Concerning Toleration. New Haven/London, Yale University Press,
2003, pp. 244-246; Toleration Act [1689],arts. XIII e XVII (disponível em http://www.agh-attorneys.com/4_act_of_toleration_1689.htm).
Kant e James Madison
103
Ambas são despotismos. Uma assume para si própria o direito de recusar a
Liberdade de Consciência, e a outra de a conceder.»2.
Segundo Paine, o conceito de “tolerância”, entendido como uma disposição
que para si advoga a verdadeira prerrogativa – conceder o direito fundamental da
liberdade de consciência – reveste-se de uma autoridade ilegítima e arrogante.
Nesta medida, o acto de tolerar subordina o indivíduo a uma posição meramente
passiva, dependente da indulgência daquele que o tolera. O tolerado é afinal o
sujeito que simplesmente aguarda um benefício, e não aquele que usufrui de um
direito que lhe assiste.
Alguns anos antes, em 1785, Richard Price – pastor presbiteriano, filósofo
moral e ensaísta – havia esboçado uma tese semelhante, na obra Observações sobre
a importância da Revolução Americana [Observations on the Importance of the
American Revolution]. Price considerava que o conceito de “liberdade de consciência” era mais nobre e extensivo que o de “tolerância”, na medida em que a “tolerância” consignava uma relação hierárquica entre o sujeito que tolera e aquele que
é tolerado, remetendo este último para uma posição diminuída, puramente expectante perante a eventual benevolência daqueloutro:
«Na liberdade de consciência eu incluo muito mais do que na tolerância.
Jesus Cristo estabeleceu uma perfeita igualdade entre os seus seguidores. O seu
mandamento é que eles não devem assumir nenhuma jurisdição uns sobre os
outros, nem reconhecer um outro senhor além d’Ele. É, portanto, uma presunção
de qualquer um deles reivindicar o direito a uma superioridade ou preeminência
sobre os seus irmãos. Tal reivindicação está implicada sempre que um deles
pretende tolerar o resto.»3.
No entender de Price, apenas o termo “liberdade de consciência” designava
de forma adequada esse direito imprescritível do indivíduo a aceitar livremente
uma doutrina religiosa, e a expressar integralmente as suas convicções4.
——————————————
2
«The French Constitution hath abolished or renounced Toleration and Intoleration, and hath
established UNIVERSAL RIGHT OF CONSCIENCE. Toleration is not the opposite of Intolerance, but it is
the counterfeit of it. Both are despotisms. The one assumes to itself the right of withholding Liberty of
Conscience, and the other of granting it.», Thomas Paine, Rights of Man, in Collected Writings, New York,
The Library of America, 1995, p. 482.
3
«In liberty of conscience I include much more than toleration. Jesus Christ has established a perfect equality among his followers. His command is, that they shall assume no jurisdiction over one another
and acknowledge no master besides himself. It is, therefore, presumption in any of them to claim a right to
any superiority or preeminence over their brethren. Such a claim is implied whenever any of them pretend
to tolerate the rest.», Richard Price, Observations on the Importance of the American Revolution, in Political Writings, Cambridge University Press, 1991, pp. 130-131.
4
Cf. idem, ibidem, p. 131 et passim.
104
José Gomes André
Um terceiro exemplo encontra-se num célebre discurso de Rabaut de Saint-Étienne, efectuado em 23 de Agosto de 1789 na Assembleia Nacional, em pleno
processo revolucionário francês. Estando em discussão a inclusão do conceito de
tolerância na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Rabaut de Saint-Étienne, pastor de Nîmes, e grande defensor das liberdades dos protestantes, pede
a palavra e afirma:
«Senhores, não é a tolerância que reclamo, é a liberdade. […] A tolerância! Exijo que seja proscrita por sua vez, e sê-lo-á, esta palavra injusta que nos
apresenta unicamente como Cidadãos dignos de piedade, como culpados aos
quais se perdoa, àqueles que, muitas vezes, o acaso e a educação levaram a pensar de um outro modo que nós.»5.
A insurgência de Saint-Étienne contra os limites da noção de tolerância destaca precisamente o facto de esta atentar contra a dignidade do indivíduo sobre o
qual recai. Se a tolerância é, na realidade, simplesmente fruto de um acto condescendente, não é o direito do sujeito que se honra e se protege, mas o poder de quem
o concede que se sublinha e salvaguarda. No entender de Saint-Étienne, urge abolir
este conceito de tolerância, que torna o indivíduo alvo de piedade, e substituí-lo por
uma afirmação positiva de um direito originário, que absolutamente respeite as
diferenças de opinião religiosa dos cidadãos, assim integradas num plano de reciprocidade e plena igualdade.
I. EM TORNO DE KANT
§1. O «arrogante nome de tolerância» e a reavaliação da liberdade religiosa.
Esta crítica generalizada à doutrina da “tolerância civil”, preterida a favor de
um inequívoco elogio à liberdade de consciência, encontra um espaço relevante na
produção kantiana. Atesta-o em particular uma passagem do opúsculo de 1784,
Resposta à Pergunta: o que são as Luzes? [Beantwortung der Frage: Was ist
Aufklärung?]:
——————————————
5
«Messieurs, ce n’est pas même la Tólerance que je réclame; c’est la liberté. […] La Tólerance! Je
demande qu’il soit proscrit à son tour, et il le sera, ce mot injuste qui ne nous présente que comme des
Citoyens dignes de pitié, comme des coupables auxquels on pardonne, ceux que le hasard souvent et
l’éducation ont amenés à penser d’une autre manière que nous.», Rabaut de Saint-Étienne, Discours à
l’Assemblée nationale, 23 Août 1789, in Julie Saada-Gendron, La Tolérance, Paris, Flammarion, 1999,
pp. 163-164.
Kant e James Madison
105
«Um príncipe que não acha indigno de si dizer que tem por dever nada
prescrever aos homens em matéria de religião, mas deixar-lhes aí a plena liberdade, que, por conseguinte, recusa o arrogante nome de tolerância, é efectivamente esclarecido e merece ser elogiado […] como aquele que, pela primeira
vez, libertou o género humano da menoridade, pelo menos por parte do governo,
e deu a cada qual a liberdade de se servir da própria razão em tudo o que é
assunto da consciência.»6.
Inscrito numa apologia de Frederico II, cujo reinado havia coincidido com
um período de significativa liberdade religiosa na Prússia, este trecho alude, nas
suas linhas fundamentais, à problemática por nós previamente introduzida: também
para Kant, o que está em causa é a rejeição de um paradigma conceptual que perspectiva a liberdade religiosa nos termos de uma simples concessão, submetendo o
indivíduo a um arbítrio do governante. A tolerância, «arrogante nome» [hochmütigen Namen], é própria de um regime paternalista, no qual o Estado reclama para si
mesmo o dever de decidir acerca da extensão da liberdade dos seus súbditos; ou
seja, que toma a liberdade de consciência como um privilégio dos mesmos, susceptível de uma prescrição e delimitação7. Neste quadro, o indivíduo encontra-se
numa posição de absoluta subordinação, diante de uma autoridade de quem espera
uma atitude benevolente; a liberdade torna-se um dado circunstancial, e o sujeito
mero objecto de complacência. Na tentativa de defesa da humanidade, a dinâmica
da tolerância resulta, afinal, num pernicioso atentado à dignidade do indivíduo.
O excerto supracitado mostra como Kant procura resgatar a liberdade de
consciência deste espaço confinado, afirmando-a como direito inalienável, transcendental, originário. Trata-se de propor a libertação do indivíduo deste modelo
tutelar, reivindicando a liberdade do pensar, a autonomia da razão, e o direito do
cidadão a expressar livremente as suas convicções – condições necessárias para a
«saída da menoridade» [der Ausgang aus der Unmündigkeit] e para a progressiva
ilustração da humanidade. No entender de Kant, esse lento processo de amadurecimento deve inevitavelmente assentar na recusa da tutela religiosa, «a mais deson——————————————
6
«Ein Fürst, der es seiner nicht unwürdig findet, zu sagen: daß er es für Pflicht halte, in
Religionsdingen den Menschen nichts vorzuschreiben, sondern ihnen darin volle Freiheit zu lassen, der also
selbst den hochmütigen Namen der Toleranz von sich ablehnt: ist selbst aufgeklärt, und verdient […] als
derjenige gepriesen zu werden, der zuerst das menschliche Geschlecht der Unmündigkeit, wenigstens von
Seiten der Regierung, entschlug, und jedem frei ließ, sich in allem, was Gewissensangelegenheit ist, seiner
eigenen Vernunft zu bedienen.», I. Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, in Gesammelte
Schriften, ed. Königliche Preussische Akademie der Wissenschaften (doravante Ak.), vol. 8, p. 40.
7
Para a crítica kantiana do “governo paternal” [väterliche Regierung], que reduz os cidadãos à
condição de meros súbditos, vide I. Kant, Metaphysik der Sitten, Ak., vol. 8, §49, pp. 316-318; também
Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, II, Ak., vol.
8, pp. 290-291.
106
José Gomes André
rosa de todas»8, nas suas palavras, pela forma como pretende diminuir o indivíduo
na esfera da sua própria consciência, e pelo modo como intenta condicionar a sua
vivência moral e as suas mais elevadas aspirações aos desígnios de uma coacção
exterior, violando os seus direitos inamíssiveis e subjugando-o aos imperativos de
uma autoridade heterónoma.
A liberdade religiosa reclama, por conseguinte, uma edificação em novos
alicerces, que poderíamos sumariar do seguinte modo: a defesa de uma não-intervenção do Estado nos assuntos da consciência; a promoção da liberdade de
pensamento (inextricável da liberdade de expressão); a progressiva libertação dos
condicionamentos impostos pelo poder espiritual; e a efectivação destes direitos
sob a forma de dispositivos legais. Debrucemo-nos, com mais pormenor, na análise
destes elementos do programa kantiano.
§2. Propondo um Estado não-interventivo.
Um primeiro requisito fundamental para a existência de um regime social e
político, no qual vingue uma plena liberdade religiosa, consiste na instituição de
um Estado não confessional. No entender de Kant, importa relevar, por um lado, a
manifesta incompetência do Estado para intervir em disputas teológicas, por outro,
a necessidade de manter afastada a autoridade pública do poder espiritual. Dito de
outro modo, urge impedir a existência de um Estado prescritivo em assuntos de
religião, que, ora impondo o estabelecimento de uma Igreja Oficial, ora manifestando apreço por um determinado credo em particular, condicionaria à partida as
crenças dos cidadãos, desde logo restringindo a sua liberdade em matéria de consciência.
Este apelo à secularização do Estado está presente em diversas passagens da
obra kantiana. Em A Religião nos Limites da Simples Razão [Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft], Kant recomenda, por exemplo, que o
Estado não se imiscua nas controvérsias religiosas9, referindo-se, por outro lado, à
necessidade de se estabelecer com clareza os limites do poder político face às
Igrejas, as quais «[…] não devem ser estorvadas pelo braço secular, nem por ele ser
vinculadas a certas proposições de fé […]»10. Já em O que são as Luzes?, afirmava
o nosso autor constituir dano para o governo interferir em assuntos relacionados
——————————————
8
Cf. I. Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak., vol. 8, p. 41.
9
Cf. idem, Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 113.
10
«[…] vom weltlichen Arm schlechterdings nicht können gehindert und an gewisse Glaubenssätze
gebunden werden […]», idem, ibidem, p. 113.
Kant e James Madison
107
com «a salvação das almas» dos súbditos11. Este tema será retomado na primeira
parte da Metafísica dos Costumes (Doutrina do Direito) [Metaphysik der Sitten/Rechtslehre], onde Kant enuncia:
«[…] o Estado não tem o direito de ajustar a Igreja à legislação constitucional interna, segundo a acepção do que se lhe afigura vantajoso, nem de prescrever ou decretar ao povo a fé e as formas de culto (ritus), […] mas apenas o
direito negativo de prevenir a influência dos doutrinadores [Lehrer] na comunidade política visível, quando ela causar dano à tranquilidade pública […]»12.
Um eventual acordo entre as esferas do poder secular e das organizações
religiosas, ao ponto de se identificar Estado e Igreja, preconiza um retorno ao
modelo conceptual da “tolerância civil” e aos seus limites: institucionaliza-se a
discriminação das minorias e condiciona-se a liberdade do indivíduo à indulgência
do soberano. A separação entre Igreja e Estado, ao invés, permite a instituição de
uma sociedade aberta à livre expressão e à salutar convivência entre múltiplos credos, condicionando-se essa coexistência e a prática do culto somente à necessidade
de se respeitar a «concórdia civil» [die bürgerliche Eintracht]13 – última instância
validadora, i.e., condição de possibilidade do usufruto dessas liberdades. No entender de Kant, a conservação do Estado e a manutenção da ordem pública constituem
um derradeiro predicado, cuja violação tornaria inválida e objectivamente ineficazes as manifestações e os valores que se pretendem salvaguardar. Não se trata, pois,
de impor coercivamente uma fronteira à liberdade, tão-só de apelar a um compromisso que a torna efectiva para os cidadãos.
Surpreendemos na defesa deste ideal secularizante a apologia de uma visão
porventura mais funda relativamente ao estatuto do próprio Estado, para o qual
Kant reclama uma existência tão ausente quanto possível – consideração que leva,
aliás, alguns autores a incluírem-no na galeria dos pensadores liberais14. Na
perspectiva de Kant, a fim de garantir a protecção dos direitos dos cidadãos –
——————————————
11
Cf. idem, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak., vol. 8, pp. 39-40.
12
«[…] so hat der Staat das Recht, nicht etwa der inneren Konstitutionalgesetzgebung, das
Kirchenwesen nach seinem Sinne, wie es ihm vorteilhaft dünkt, einzurichten, den Glauben und
gottesdienstliche Formen (ritus) dem Volk vorzuschreiben, oder zu befehlen, […] sondern nur das negative
Recht, den Einfluß der öffentlichen Lehrer auf das sichtbare, politische gemeine Wesen, der der
öffentlichen Ruhe nachteilig sein möchte, abzuhalten […]», idem, Metaphysik der Sitten, Ak., vol. 6, p. 327.
13
Cf. idem, ibidem, §49, p. 327; vide também Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak.,
vol. 8, p. 40, referindo-se Kant, nesse caso, à preservação da «ordem civil» [bürgerlichen Ordnung].
14
Cf., a título de exemplo, Reinhold Aris, History of Political Thought in Germany (1789-1815).
London, Frank Cass, 1965, p. 104; Leonard Krieger, The German Idea of Freedom. The University of
Chicago Press, 1957, p. 86; D. J. Manning, Liberalism (Modern ideologies). London, Dent, 1976, pp. 75-78; Howard Williams, Kant’s Political Philosophy. Oxford, Blackwell, 1985, pp. 126 e ss.; Allen Wood,
Kant’s Ethical Thought. Cambridge University Press, 1999, p. 306.
108
José Gomes André
nomeadamente no que se refere às questões de liberdade religiosa – cumpre ao
Estado abster-se, enquanto poder, de interferir no pleno usufruto individual da
mesma. O Estado existe para tornar possível a liberdade, i.e., para regular a sua
manifestação em condições isentas de coacção externa, mas não só não estabelece
o conteúdo da mesma, como, em nenhuma ocasião – salvo a excepção anteriormente aludida – deve determinar a sua espontaneidade. Por outras palavras, a presença do Estado assume uma dimensão essencialmente negativa, como compromisso de não-intervenção. É através deste retiro do Estado, deste reconhecimento
da ilegitimidade e improficiência da tutela governamental sobre as livres manifestações do indivíduo, que verdadeiramente se enaltece a autonomia dos cidadãos e
se salvaguarda a liberdade de consciência.
§3. Da autonomia do pensar à liberdade de expressão.
Esta insistência na limitação do poder da autoridade, constitui, afinal, um
evidente desafio ao indivíduo para que assuma totalmente a responsabilidade de
um juízo próprio, que recusa a tentação fácil de ceder às opiniões alheias e aos
ditames externos. Neste sentido, o projecto kantiano representa um verdadeiro
panegírico à autonomia da razão, e a um pensamento capaz de reclamar para si
mesmo a condição de uma actividade independente. A definição das «máximas do
entendimento humano» [Maximen des gemeinen Menschenverstandes], levada a
cabo no §40 da Crítica da Faculdade do Juízo [Kritik der Urteilskraft] principia
justamente com a referência à ideia de um «pensar por si» [Selbstdenken], «livre de
preconceito» [vorurteilsfreien], ou seja, à capacidade de a razão renunciar a uma
condição passiva, subordinada à imposição de ideias pré-concebidas, e a determinações heterónomas, que restringem o livre exercício da mesma15. No entender de
Kant, a razão deve, ao invés, submeter-se a uma única lei – aquela que ela confere
a si própria – livre de arbítrios constritivos e de formas de pensamento coercivos,
assumindo desse modo um posicionamento crítico e emancipado.
A defesa kantiana do papel preponderante a desempenhar por uma razão
activa conhece no escrito de 1786, O que significa orientar-se no pensar? [Was
heisst: Sich im Denken orientiren?], um dos seus momentos mais significativos.
Opondo-se a Mendelssohn, o qual atribuía à fé uma função mais extensiva que a
razão (entendendo-a como a capacidade de estabelecer um contacto directo com
uma realidade suprema), Kant adverte, primeiramente, para a impossibilidade de
circunscrever a ideia de um ser supra-sensível, Deus, a um conhecimento fenoménico, reclamando, em seguida, para a razão – e somente para a razão – a tarefa
——————————————
15
Cf. I. Kant, Kritik der Urteilskraft, Ak., vol. 5, §40, p. 294.
Kant e James Madison
109
dessa aproximação impossível à ideia de um objecto supra-sensível. Atente-se
como Kant sublinha a insubstituibilidade da razão:
«Se, pois, se negar à razão o direito que lhe compete de falar em primeiro
lugar nas coisas que concernem aos objectos supra-sensíveis, como a existência
de Deus e o mundo futuro, fica assim aberta uma ampla porta a todo o devaneio
[Schwärmerei], superstição [Aberglauben], e até mesmo ao ateísmo [Atheisterei].»16.
A subtracção da razão resulta na cedência a um pensar acrítico, dominado
pelo preconceito, pelas fantasias de uma especulação sem limites, ou pela aceitação
inquestionada de crenças infundadas – traduzindo-se, em suma, num triunfo absoluto de uma heteronomia que emudece o livre pensar, no êxito de um fanatismo
que nega a liberdade17. Diminuída na sua autonomia, a razão cede de novo à autoridade, à imposição de um poder alheio, impulsivamente coercivo, que se alimenta
da sistemática prescrição a um pensar tolhido na sua espontaneidade, dando lugar
ao progressivo êxito de formas alienantes, como a superstição e o «devaneio»
[Schwärmerei].
No âmbito do nosso estudo, a liberdade de pensar constitui, portanto, a verdadeira pedra de toque: ela é, por um lado, a condição para o estabelecimento e
afirmação da autonomia da razão, sem a qual a liberdade de consciência cede a
uma qualquer tutela externa, por outro, o conceito operativo que introduz a exigência de uma razão publicamente expressa. Sublinhemos este último aspecto: o pensar por si próprio não desagua numa prática puramente solipsista; pelo contrário, a
liberdade de pensar revela-se plenamente apenas como exercício dialógico e comunitário. Só existe verdadeiramente um pensar livre se este estiver em condições de
ser apresentado a um outro, com o qual entra em debate. As opiniões procedentes
de uma reflexão autónoma devem, pois, ser submetidas a uma discussão pública e
ao confronto de ideias. Neste sentido, escreve Kant:
——————————————
16
«Wenn also der Vernunft in Sachen, welche übersinnliche Gegenstände betreffen, als das Dasein
Gottes und die künftige Welt, das ihr zustehende Recht zuerst zu sprechen bestritten wird: so ist aller
Schwärmerei, Aberglauben, ja selbst der Atheisterei eine weite pforte geöffnet.», idem, Was heisst: Sich im
Denken orientieren?, Ak., vol. 8, p. 143.
17
Vide o seguinte excerto: «Also ist die unvermeidliche Folge der erklärten Gesetzlosigkeit im
Denken (einer Befreiung von den Einschränkungen durch die Vernunft) diese: daß Freiheit zu denken
zuletzt dadurch eingebützt und, weil nicht etwa Unglück, sondern wahrer Übermuth daran schuld ist, im
eigentlich Sinne Worts verschertz wird.»; «[…] a consequência inevitável da declarada inexistência de lei
no pensamento (a libertação das restrições impostas pela razão) é esta: a liberdade de pensar acaba por
perder-se e, porque a culpa não é de alguma infelicidade, mas de uma verdadeira arrogância, a liberdade, no
sentido genuíno da palavra, é confiscada.», idem, ibidem, p. 145.
110
José Gomes André
«Sem dúvida, há quem diga: a liberdade de falar ou de escrever pode-nos
ser tirada por um poder superior, mas não a liberdade de pensar. Mas quanto e
com que correcção pensaríamos nós se, por assim dizer, não pensássemos em
comunhão com os outros, a quem comunicamos os nossos pensamentos e eles
nos comunicam os seus! Por conseguinte, pode então perfeitamente dizer-se que
aquela autoridade exterior que retira aos homens a liberdade de comunicar
publicamente os seus pensamentos, retira-lhes também a liberdade de pensar
[…]»18.
Em certa medida, retornamos a uma questão previamente aludida: se efectiva
quando apenas comunicável, i.e., se verificável somente quando publicamente
exposta, a liberdade de pensar subtrai-se ao condicionamento do poder político,
que apenas de um modo ilegítimo poderia reclamar para si mesmo o direito de
cercear o conteúdo e as condições dessa manifestação. Estamos perante um evidente elogio à liberdade de expressão, reivindicada por Kant com o intuito de edificar um espaço público de livre discussão, no qual a razão exerce a sua capacidade
crítica, e onde se entrelaçam diversos modos de activa participação cívica. Se quisermos, Kant reclama aqui a instituição de uma verdadeira “sociedade aberta”, na
qual os indivíduos confrontam opiniões e manifestam os seus juízos, exercendo
livre e emancipadamente a sua cidadania. Um efectivo usufruto da liberdade do
pensar e da liberdade de consciência não se circunscreve, por conseguinte, à esfera
de uma dinâmica interna isenta de coacções externas; ele adquire um pleno significado apenas quando projectado comunitariamente. Deste modo, a liberdade de
consciência desvenda-se como atributo de uma acção pública e não simplesmente
como um foro interno intangível, emergindo como um inalienável direito do indivíduo a expressar publicamente as suas convicções e opiniões.
No entender de Kant, a liberdade de expressão deve configurar um espírito
crítico em relação aos mais variados elementos da vida pública, incluindo as questões relacionadas com a dinâmica governativa propriamente dita. Neste contexto,
enuncia o nosso autor:
«[…] é preciso conceder ao cidadão […], com a autorização do próprio
soberano, a faculdade de fazer conhecer publicamente a sua opinião sobre o que,
——————————————
18
«Zwar sagt man: die Freiheit zu sprechen oder zu schreiben könne uns zwar durch obere Gewalt,
aber die Freiheit zu denken durch sie gar nicht genommen werden. Allein wie viel und mit welcher
Richtigkeit würden wir wohl denken, wenn wir nicht gleichsam in Gemeinschaft mit andern, denen wir
unsere und die uns ihre Gedanken mittheilen, dächten! Also kann man wohl sagen, dass diejenige äussere
Gewalt welche die Freiheit, seine Gedanken öffentlich mitzutheilen, den Menschen entreisst, ihnen auch die
Freiheit zu denken nehme.», idem, ibidem, p. 144.
Kant e James Madison
111
nos decretos do mesmo soberano, lhe parece ser uma injustiça a respeito da
comunidade.»19.
Na perspectiva de Kant, a liberdade de expressão consigna um dever de
cidadania: alertar para a necessidade de se corrigirem injustiças e superarem deficiências da acção do governo. O direito de emitir livremente as suas opiniões constitui para o cidadão uma arma crítica insubstituível, dotando-o de capacidade para
denunciar publicamente eventuais erros das autoridades, que de outro modo passariam impunes. Neste sentido, elogia Kant a liberdade da pena [die Freiheit der
Feder], descrevendo-a como «o único paládio dos direitos do povo»20. Na verdade,
a alternativa a uma sociedade aberta, na qual o cidadão exprime livremente o seu
desacordo em relação aos assuntos da vida pública, é um regime despótico, que
amordaça as opiniões dos indivíduos e censura a liberdade de pensar, pondo em
risco uma dinâmica de auto-correcção, sem a qual um progressivo aperfeiçoamento
social e político se tornam irrealizáveis.
Importa, todavia, ressalvar que a liberdade de expressão não se define como
um predicado incondicional, como pura irrestrição. Tal como a livre prática do
culto e a manifestação das convicções religiosas dos indivíduos seriam aceitáveis
somente se inscritas num quadro de respeito pela «concórdia civil», também a
liberdade de expressão não pode subverter a autoridade e o direito, atentando portanto de uma forma sediciosa contra a ordem civil, sob pena de provocar uma ruptura insanável na constituição legal em vigor – o que colocaria em risco o instrumento que salvaguarda a possibilidade de usufruto dessa liberdade de expressão21.
De igual modo, a liberdade de pensar deve atender ao lugar específico em
que se inscreve. Exercendo-se como «uso público» [öffentlich Gebrauch], a razão
pode exprimir-se livremente, contribuindo para a instituição de um debate alargado, promotor da emancipação intelectual da humanidade, e do triunfo das
Luzes22. Um «uso privado» [Privatgebrauch] da mesma pressupõe, contudo, uma
moderação e uma restrição que o seu autor deverá impor a si próprio. A ocupação
——————————————
19
«[…] so muß dem Staatsbürger, […] mit Vergünstigung des Oberherrn selbst, die Befugnis
zustehen, seine Meinung über das, was von der Verfügungen desselben ihm ein Unrecht gegen das gemeine
Wesen zu sein scheint, öffentlich bekannt zu machen.», idem, Über den Gemeinspruch: Das mag in der
Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, Ak., vol. 8, p. 304.
20
«Also ist die Freiheit der Feder […] das einzige Palladium der Volksrechte.», idem, ibidem,
p. 304.
21
Cf. o seguinte excerto: «A proposição – salus publica suprema civitatis lex est – conserva intacto
o seu valor e autoridade, mas a salvação pública, que antes de mais importa ter em conta, é justamente a
constituição legal que garante a cada um a sua liberdade mediante leis […]»; «Der Satz: Salus publica
suprema civitatis lex est, bleibt in seinem unverminderten Wert und Ansehen; aber das öffentliche Heil,
welches zuerst in Betrachtung zu ziehen steht, ist gerade diejenige gesetzliche Verfassung, die jedem seine
Freiheit durch Gesetze sichert […]», idem, ibidem, p. 298.
22
Cf. idem, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak., vol. 8, pp. 36-37.
112
José Gomes André
de certos cargos públicos (um oficial de justiça, um soldado, um colector de
impostos, etc.) requer a sobreposição do princípio da obediência a estoutro da
liberdade de expressão, embora, como refere Kant, na condição de «eruditos»
[Gelehrteren], i.e., fora do compromisso específico que esses lugares encerram, os
cidadãos possam desfrutar plenamente da liberdade de pensar – visto que seriam
novamente remetidos para o espaço próprio de um «uso público da razão»23.
§4. A libertação do poder espiritual e a crítica às religiões estatutárias.
A existência de uma cidadania publicamente empenhada (capaz de se fazer
ouvir através deste espírito crítico responsável), bem como a libertação da tutela
governamental (possível pela existência de um Estado não-interventivo em assuntos de religião), lançam as bases para a ocorrência de um terceiro momento determinante na plena afirmação da liberdade de consciência e da autonomia do pensar,
a saber, a emancipação do indivíduo relativamente aos condicionalismos impostos
pelo poder espiritual.
Trata-se de um tema central da obra kantiana, desenvolvido particularmente
em A Religião nos Limites da Simples Razão, texto no qual o nosso autor defende a
existência de um pensar autónomo em matéria religiosa, capaz de rejeitar corajosamente as orientações externas que conduzem a um «[…] modo de pensar preguiçoso, pusilânime, que desconfia inteiramente de si mesmo […]»24. Este repto lançado por Kant inscreve-se numa acérrima crítica às religiões estatutárias, historicamente estabelecidas através de um conjunto de crenças supersticiosas, dogmas
revelados, e mandamentos que constituem um cânone de verdade – embora os seus
princípios careçam de verificação racional e universalidade – sistema tutelar que
submete o indivíduo à condição de uma absoluta, incondicional e silenciosa obediência.
Kant é especialmente corrosivo ao analisar o modo como as “religiões históricas” urdiram esta estrutura na qual só existe espaço para a ortodoxia e a subordinação. Ortodoxia que se traduz na alienação litúrgica, na imposição de uma interpretação oficial das verdades reveladas, inacessíveis à compreensão do crente25.
——————————————
23
Cf. idem, ibidem, pp. 37-38.
24
«[…] die faule sich selbst gänzlich mißtrauende und […] kleinmütige Denkungsart […]», idem,
Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 57.
25
Embora esta situação seja particularmente visível no que respeita à Igreja católica, Kant considera que ela não deixa de se aplicar – em certa medida com alguma ironia – aos credos protestantes; atente-se no seguinte excerto: «A Igreja católico-romana proíbe a leitura da Bíblia ao homem comum e também,
portanto, a sua tradução na língua nacional. Os protestantes dizem: procurai na própria Escritura mas vós
tendes de não encontrar nela nada para além do que nós lá encontramos.»; «Die Römisch Catholische Kirche verbietet das Bibellesen dem gemeinen Mann also auch die Übersetzung in die Landessprache. Die
Kant e James Madison
113
Subordinação que decorre desta coacção espiritual, instituída mediante a prescrição
de um sistema de mandamentos impingidos, que inculcam um permanente temor
aos indivíduos, fazendo-lhes crer que só através deste pseudo-culto, obediente e
submisso, pode a salvação ser alcançada. Ao indivíduo, forçado a aceitar pressupostos que não compreende e não conhece, resta, por conseguinte, anuir, i.e., crer.
Para Kant, estamos perante uma inaceitável coerção do poder espiritual sobre o
indivíduo, «violenta intromissão» [gewalttätigen Eingriffen] que consigna uma
«verdadeira coacção de consciência» [eigentlich Gewissenszwang]26. Em última
análise, assiste-se deste modo ao triunfo de uma razão heterónoma que reclama um
controlo sobre a liberdade de pensar:
«Quando um governo não quer que se considere como coacção de consciência o facto de proibir dizer publicamente a minha própria opinião religiosa,
embora não impeça ninguém de pensar para consigo o que achar bem, costuma
gracejar-se a esse respeito e dizer que isso não é nenhuma liberdade por ele concedida, pois é algo que, de qualquer modo, não pode impedir. Mas o que não
consegue o poder supremo mundano realiza-o, no entanto, o poder espiritual, a
saber, proibir inclusive o pensar […]»27.
Subtraída ao indivíduo a liberdade para questionar a validade dos princípios
basilares das religiões estatutárias – encontrando-se o seu pensar crítico submetido
ao jugo do poder espiritual – está aberto o caminho para a cimentação de formas
religiosas alienantes – o clericalismo, o feiticismo, a superstição e o fanatismo –
que o condenam a uma cega obediência, a uma simples observância de preceitos
casuais. Formas espiritualmente despóticas, submetem o indivíduo a mandamentos,
estatutos e regras de fé, por via das quais supostamente aquele presta um serviço a
Deus – embora, na verdade, elas sirvam apenas para alimentar um afastamento da
“verdadeira religião”, que certamente não se encontra nesta negação da liberdade
humana. Bem pelo contrário, a emergência do clericalismo [Pfaffentum] assinala o
estabelecimento de uma «[…] submissão obediente de um estatuto, como serviço
——————————————
Protestanten sagen forschet in der Schrift selbst aber ihr müsst nichts anderes darin finden als was wir darin
finden.», idem, Vorarbeiten zum Streit der Fakultäten, Ak., vol. 23, p. 447.
26
27
Cf. idem, Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 134.
«Wenn eine Regierung es nicht für Gewissenszwang gehalten wissen will, daß sie nur verbietet,
öffentlich seine Religionsmeinung zu sagen, indessen sie doch keinen hinderte, bei sich im Geheim zu
denken, was er gut finden, so spaßt man gemeiniglich darüber, und sagt: daß dieses gar keine von ihr
vergönnete Freiheit sei; weil sie es ohnedem nicht verhindern kann. Allein, was die weltliche oberste Macht
nicht kann, das kann doch die geistliche […]», idem, ibidem, p. 133.
114
José Gomes André
forçado […]», e não «[…] a homenagem livre que deve ser rendida supremamente
à lei moral […]»28. Ainda nas palavras de Kant,
«[…] trata-se sempre de uma fé feiticista pela qual a multidão é regida e
privada da sua liberdade moral mediante a obediência a uma Igreja […]. Onde
os estatutos da fé se registam como lei constitucional, aí domina um clero que
julga poder prescindir da razão […], porque, como único e autorizado guardião e
intérprete da vontade do legislador invisível, tem a autoridade de administrar
exclusivamente a prescrição da fé e, por isso, munido deste poder, é-lhe permitido não convencer, mas apenas ordenar.»29.
Este atentado à liberdade de consciência só poderá ser invertido por meio de
um acento na autonomia da razão, sujeitando as doutrinas e os estatutos das religiões históricas a um espírito crítico, para o que é necessário restaurar plenamente
a liberdade de pensamento, o único instrumento que permite discutir essas “verdades reveladas” e eventualmente pôr a nu a sua inconsistência. Nesta libertação das
constrições impostas pelo poder espiritual e pelas religiões estatutárias, abre-se ao
indivíduo um novo horizonte – a possibilidade de um espontâneo vínculo a uma fé
racional [Vernunftglaube], que não carece de autenticação ou demonstração empírica e «que não se funda em nenhuns outros dados excepto os que estão contidos na
razão pura»30, segundo Kant. Através da fé racional, o homem descobre-se como
um indivíduo potencialmente pertencente a uma «comunidade ética» [ethisches
gemeines Wesen], onde cada um se rege segundo «leis de virtude» [Tugendgesetzen], submetendo-se apenas à lei que a razão a si mesmo lhe impõe, livre de coacções externas31. Na imediata adesão a esta fé racional vislumbra-se, pois, a edificação de uma igreja moral, fraterna e solidária, que honra verdadeiramente a dignidade do ser humano.
E assim retornamos à pedra de toque do projecto kantiano: uma apologia da
autonomia da razão, do livre pensar, da emancipação do ser humano, da responsa——————————————
28
«[…] die gehorsame Unterwerfung unter eine Satzung, als Frondienst, nicht aber die freie
Huldigung auferlegt, die dem moralischen Gesetze zuoberst geleistet werden soll […]», idem, ibidem,
p. 180.
29
«[…] so ist immer ein Fetischglauben, durch den die Menge regiert, und durch den Gehorsam
unter eine Kirche […] ihrer moralischen Freheit beraubt wird. […] Wo Statute des Glaubens zum
Konstitutionalgesetz gezählt werden, da herrscht ein Klerus, der der Vernunft […] entbehren zu können
glaubt, weil er als einzig autorisierter Bewahrer und Ausleger des Willens des unsichtbaren Gesetzgebers
die Glaubensvorschrift ausschließlich zu verwalten die Autorität hat, und also, mit dieser Gewalt versehen,
nicht überzeugen, sondern nur befehlen darf.», idem, ibidem, p. 180.
30
Cf. «[…] ein Vernunftglaube ist der, welcher sich auf keine andere Data gründet als die, so in der
reinen Vernunft enthalten find.», idem, Was heisst: Sich im Denken orientieren?, Ak., vol. 8, p. 141; cf.
também Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak., vol. 6, p. 102 e ss..
31
Cf. idem, ibidem, p. 95 e ss..
Kant e James Madison
115
bilidade pessoal e comunitária – apologia essa indiscernível de uma afirmação
integral da liberdade de consciência.
§5. Para uma liberdade constitucional.
A realização deste programa pressupõe, contudo, uma derradeira e decisiva
salvaguarda – a necessidade de proteger a liberdade de consciência e os direitos a
ela adstritos (liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de
imprensa) através de um conjunto de dispositivos legais. Só uma garantia jurídica
confere efectividade a estes direitos, os quais, na sua ausência, se vêem permanentemente expostos a todo o tipo de abusos.
O ideal constitucional32 devém pressuposto de uma sociedade baseada no
primado do direito, e organizada segundo o princípio da justiça – o qual, no entender de Kant, reivindica precisamente a enunciação dos direitos fundamentais dos
indivíduos na evidência de leis explícitas33. Comentando em Para a Paz Perpétua
[Zum ewigen Frieden] a máxima fiat justitia, pereat mundus, esclarece Kant que
este princípio
«[…] deve entender-se como a obrigação dos detentores do poder de não
recusar a ninguém o seu direito, nem de o restringir por antipatia ou compaixão
por outra pessoa […]», acrescentando em seguida que «[…] para isso requer-se
sobretudo uma constituição interna do Estado em conformidade com os puros
princípios do direito […]»34.
O que está aqui em causa é, por um lado, a defesa da existência de uma série
de direitos humanos imprescritíveis e inamissíveis, que o soberano, em circunstância alguma, pode cercear35; por outro, a insistência no facto de que um pleno usufruto dos mesmos só poderá verificar-se mediante a sua constitucionalização. É
essa efectivação legal que, em última instância, os transforma em garantias políticas, de que os indivíduos poderão objectivamente desfrutar.
——————————————
32
Utilizamos aqui o conceito cunhado na investigação de Viriato Soromenho-Marques, Razão e
Progresso na filosofia de Kant, Lisboa, Edições Colibri, 1998, p. 413 e ss..
33
Cf. I. Kant, Zum ewigen Frieden, Ak., vol. 8, p. 349 e ss..
34
«[…] als Verbindlichkeit der Machthabenden, niemanden sein Recht aus Ungunst oder Mitleiden
gegen andere zu weigern oder zu schmälern, verstanden wird; wozu vorzüglich eine nach reinen
Rechtsprinzipien eingerichtete innere Verfassung des Staats […] erfordert wird.», idem, ibidem, p. 379.
35
Cf. idem, Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die
Praxis, II, Ak., vol. 8, pp. 303-304; vide também Zum ewigen Frieden, Ak., vol. 8, p. 380.
116
José Gomes André
Uma sociedade que é capaz de administrar o direito em geral36, assegurando
a existência das liberdades essenciais através de dispositivos legais, é aquela em
que se impõe, por conseguinte, a «forma da publicidade» [Form der Publizität],
axioma primeiro de toda a norma jurídica. Recordemos como Kant designa essa
«fórmula transcendental do direito público»37: «Todas as acções relativas ao
direito de outros homens, cuja máxima é incompatível com a publicidade são
injustas.»38. O princípio da publicidade revela-se, deste modo, como a chave para a
compreensão do que verdadeiramente importa quando falamos do ideal constitucional kantiano: o facto de que existem direitos apenas quando eles se podem
manifestar, de que somente mediante uma inscrição pública os direitos dos indivíduos adquirem inequívoca validade.
Sob pena de se converter num mero conceito vazio e inefectivo, a liberdade
de consciência deverá sustentar-se, por conseguinte, no sólido alicerce que apenas
a transparência dos dispositivos legais consagra. Em última instância, é como
liberdade constitucional que aquela plenamente se afirma.
II. EM REDOR DE JAMES MADISON
Até aqui, procurámos mostrar como o pensamento de Kant representa um
dos expoentes máximos de uma fundamental reavaliação do problema da liberdade
religiosa, ocorrida na segunda metade do séc. XVIII, a qual definimos como uma
alteração paradigmática em que progressivamente o conceito de “liberdade de
consciência” substitui o de “tolerância”. Como sublinhámos, essa modificação
transporta consigo algo mais que uma simples mudança conceptual, configurando,
pelo contrário, uma nova, complexa e mais extensiva abordagem dessa questão
fulcral da filosofia política e do direito.
Como referimos, tratou-se de uma tendência global, oriunda de várias culturas e expressa em diversas línguas. Falámos inicialmente de Thomas Paine,
Richard Price e Rabaut de Saint-Étienne, mas poderíamos ainda aludir a outros
pensadores que, directa ou indirectamente, participaram na reequação deste problema, como Joseph Priestley, Wilhelm von Humboldt e o jovem Fichte39.
——————————————
36
Cf. idem, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, Ak., vol. 8, p. 22.
37
«[…] die transzendentale Formel des öffentlichen Rechts […]», idem, Zum ewigen Frieden, Ak.,
vol. 8, p. 381.
38
«Alle auf das Recht anderer Menschen bezogene Handlungen, deren Maxime sich nicht mit der
Publizität verträgt, sind unrecht.», idem, ibidem, p. 381.
39
Cf., entre outras, as seguintes obras: Johann G. Fichte, Zurückforderung der Denkfreiheit [1793],
in Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, ed. R. Lauth e H. Jacob, Stuttgart – Bad
Kant e James Madison
117
Um dos mais relevantes contributos neste domínio surgirá, no entanto, do
outro lado do Atlântico: falamos de James Madison – autor de uma vasta obra no
domínio da filosofia política, co-autor do clássico O Federalista [The Federalist
Papers], directo interveniente na criação da Constituição federal de 1787 e quarto
Presidente dos EUA. Proponho que nos detenhamos na apreciação dos elementos
fundamentais da sua concepção relativamente à questão que nos ocupa.
§6. Uma experiência legislativa: a substituição da tolerância pela liberdade de
consciência.
O tema da liberdade religiosa ocupa Madison desde os tempos da sua
juventude, quando, ainda estudante em Princeton (então College of New Jersey), se
familiariza com a obra de Montaigne, Locke e Voltaire, encontrando este interesse
um primeiro eco na correspondência trocada com William Bradford entre 1772 e
1775, na qual Madison descreve com especial virulência o estado decadente da
Igreja Anglicana na Virgínia e os problemas relacionados com o facto de ela ser a
Igreja Oficial da colónia40.
Esta atenção à questão da liberdade religiosa, que o acompanhará até ao final
da sua vida41, manifesta-se essencialmente em dois momentos, nos quais
surpreendemos uma abordagem que conduz directamente ao percurso enunciado no
título da nossa comunicação: “da tolerância à liberdade de consciência”.
Uma primeira ocasião surge na sequência da independência das colónias, em
1776, pela necessidade que às mesmas se colocou de formarem novas constituições
que as sustentassem. Madison participará na criação de uma nova lei fundamental
do Estado a que pertencia – a Virgínia – imiscuindo-se especialmente na elaboração de uma Declaração de Direitos, e na discussão da cláusula que dizia respeito à
liberdade religiosa. A posição de Madison, expressa então num contexto teórico-político, será posteriormente complementada com a redacção, em 1785, de um
panfleto intitulado Exposição e Reclamação contra Impostos Religiosos [Memorial
——————————————
Cannstatt, Frommann (G. Holzboog); Wilhelm von Humboldt, Ideen zu einem Versuch, die Grenzen der
Wirksamkeit des Staates zu begrenzen [1792]. Wuppertal, Marées-Verlag, 1947; Joseph, Priestley, Essay on
the First Principles of Government [1768], in Political Writings. Cambridge University Press, 1993.
40
Esta correspondência pode ser encontrada em The Papers of James Madison [doravante PJM],
vol. 1, The University of Chicago Press, 1962, pp. 71-180; cf. especialmente as cartas de 1 de Dezembro de
1773 (pp. 100-102), de 24 de Janeiro de 1774 (pp. 104-108) e de 1 de Abril de 1774 (pp. 111-114).
41
Cf., entre outros documentos, as cartas de Madison a Edward Everett (19 de Março de 1823), The
Writings of James Madison (ed. Gaillard Hunt), vol. IX, New York, G.P. Putnam’s Sons, 1910, pp. 124-130; a Frederick Beasley (20 de Novembro de 1825), ibidem, pp. 229-231 e ao Reverendo Adams (?,
1832), ibidem, pp. 484-488.
118
José Gomes André
and Remonstrance against Religious Assessments], no qual apresentava uma tentativa de fundamentação do conceito de liberdade de consciência.
Procedamos em seguida a uma leitura mais cuidada destas duas abordagens,
começando com a participação de Madison na Convenção Constitucional da Virgínia, em 1776. Como dissemos, a sua intervenção principal nessa Convenção surge
aquando da discussão em torno do artigo concernente à protecção da liberdade
religiosa. O projecto inicial, da autoria de George Mason, referia-se à tolerância
religiosa no quadro institucional da Virgínia, mantendo por isso o respeito pela
Igreja Anglicana como Igreja Oficial e prevendo um regime geral de tolerância
para todos os credos, à excepção dos que pusessem em causa «a paz, a felicidade, a
segurança da sociedade ou dos indivíduos», acrescentando restrições implícitas às
confissões não-cristãs42. Madison não ficou satisfeito com estas determinações e
adiantou uma nova proposta, na qual podemos ler:
«Dado que a Religião […] e o modo de a exercer, se encontram unicamente sob a direcção da razão e da convicção, e não da violência ou da compulsão, todos os homens estão igualmente habilitados a usufruir de um pleno e livre
exercício da mesma [Religião], de acordo com os ditames da Consciência
[…]»43.
O ponto de partida era o mesmo de Mason: considerava-se que, sendo o
culto religioso uma matéria relativa à consciência de cada indivíduo, a existência
de coacções externas sobre o mesmo era ilegítima. A conclusão é todavia distinta:
enquanto Mason se posicionava no contexto histórico da Virgínia e no seio da corrente especulativa que perspectivava a liberdade religiosa sob o olhar da tolerância,
Madison opera uma mudança conceptual significativa, e substitui esse termo pelo
de liberdade de consciência.
Esta alteração, mais do que simples modificação estilística, introduz, como
sabemos, uma nova tomada de posição. O termo tolerância era habitualmente
usado num contexto estatutário caracterizado, como vimos, pela existência de
«religiões estabelecidas» [religious establishments], protegidas por lei, significando pois “tolerância religiosa” uma forma de concessão do poder político aos
——————————————
42
A proposta de Mason consistia na seguinte enunciação: «That as Religion, or the Duty which we
owe to our divine and omnipotent Creator, and the Manner of discharging it, can be governed only by
Reason and Conviction, not by Force or Violence; and therefore that all Men shou’d enjoy the fullest Toleration in the Exercise of Religion, according to the Dictates of Conscience, unpunished and unrestrained
by the Magistrate, unless, under Colour or Religion, any Man disturb the Peace, the Happiness, or Safety of
Society, or of Individuals. And that it is the mutual Duty of all, to practice Christian Forbearance, Love and
Charity towards Each Other.», George Mason’s Proposed Declaration of Rights, PJM, vol. 1, p. 172.
43
«That Religion (…) and the manner of discharging it, being under the direction of reason and
conviction only, not of violence or compulsion, all men are equally entitled to the full and free exercise of it
[Religion] according to the dictates of Conscience […]», James Madison, Amendments to the Virginia
Declaration of Rights, PJM, vol. 1, p. 174.
Kant e James Madison
119
restantes credos, que os autorizava a praticarem o seu culto religioso mediante
certas restrições – pensadas justamente em relação à matriz doutrinária da Igreja
Oficial. Esta configuração de liberdade religiosa assumia deste modo um carácter
limitado, como se decorresse de um privilégio, de uma aceitação passiva do poder
político, e não de um reconhecimento positivo de um direito inalienável do indivíduo. A tolerância representaria neste quadro um misto de indiferença e discriminação, sendo característica de regimes que, beneficiando um determinado credo,
implicitamente tendiam a impedir a profusão dos demais.
A raiz etimológica do próprio conceito de “tolerância” – tollerare (“sofrer”,
“suportar”) – consigna desde logo essa acepção primordialmente negativa do
termo, como algo que tende a consentir, mas não a aceitar, que se dispõe a conceder, mas não a reconhecer. Além do mais, a tolerância religiosa implica uma forma
de desaprovação do outro, porque reclama para si o direito de não proibir ou interferir com os restantes credos e práticas religiosas, e nunca de positivamente autorizar a plena legitimidade desses credos e práticas. Madison estava ciente das limitações de um regime político assente na simples ideia de tolerância religiosa:
«[…] uma oficialização legal da religião sem tolerância é algo que não
pode ser pensado, e, com tolerância, não é uma segurança para a harmonia e
tranquilidade públicas, mas antes nela própria uma fonte de discórdia e animosidade […]»44.
A sua proposta assenta por isso na defesa da liberdade de consciência, termo
que designa o reconhecimento de um direito substantivo, que proclama a existência
de uma garantia individual inalienável, racionalmente válida, e cuja legitimidade
deriva, não de uma concessão política, mas do direito natural. É o próprio Madison
quem o afirma, anos mais tarde, nas suas Notas Autobiográficas [Autobiographical
Notes]:
«Este importante e meritório documento [a Declaração de Direitos da
Virgínia] foi redigido por George Mason, o qual adoptou inadvertidamente a
palavra ‘tolerância” no artigo relativo a esse assunto [a liberdade de Consciência]. A mudança sugerida e aceite […] declarava ser a liberdade de consciência
um direito natural e absoluto.» 45.
——————————————
44
«[…] a legal establishment of religion without a toleration could not be thought of, and with a
toleration, is no security for public quiet and harmony, but rather a source itself of discord and animosity
[…]», Carta de James Madison a Edward Everett, 19 de Março de 1823, in The Writings of James Madison
(ed. Gaillard Hunt), vol. IX, New York, G.P. Putnam’s Sons, 1910, p. 127.
45
«This important and meritorious instrument [the Virginia Declaration of Rights] was drawn by
George Mason, who had inadvertently adopted the word ‘toleration’ in the article on that subject [freedom
of Conscience]. The change suggested and accepted […] declared the freedom of conscience to be a natural
120
José Gomes André
Esta leitura afirmativa da liberdade de consciência, entendida como o reconhecimento efectivo de um direito de cada indivíduo a expressar publicamente as
suas convicções religiosas, destaca-a como condição fundamental de uma sociedade plural e de um regime que aceita a existência de uma diversidade de credos e
práticas religiosas, e que limita a sua intervenção à preservação da própria liberdade de consciência contra potenciais ofensas ou violações.
A passagem lógica da “tolerância” para a “liberdade de consciência” oculta,
por conseguinte, um segundo intento: proceder à destituição das Igrejas Oficiais e
de qualquer forma de relação institucionalmente dependente entre Igreja e Estado.
Nesse sentido, o artigo revisto por Madison afirmava que «[…] nenhum homem ou
classe de homens deverão, por motivos religiosos, ser investidos com emolumentos
ou privilégios peculiares; nem deverão ser sujeitos a quaisquer punições ou impedimentos […]»46. Esta determinação abria caminho na prática para o fim do
regime proteccionista de que a Igreja Anglicana beneficiava na Virgínia, instituindo um Estado secular, no qual não se reconhecia legitimidade ao poder político
para impor restrições legais ao funcionamento das Igrejas. Para Madison, tratava-se
da única forma de promover a existência de um pluralismo religioso efectivamente
respeitador da liberdade de consciência e da livre prática do culto.
O dado mais relevante, e em certa medida, mais original, da proposta madisoniana reside, porém, no modo como esta aborda os regimes de excepção consignados na própria ideia de liberdade religiosa. Vimos que um dos matizes comuns à
especulação anterior sobre o tema residia precisamente na forma como essa liberdade era pensada como uma concessão, ou seja, como se a liberdade outorgada aos
indivíduos derivasse de uma definição dos seus próprios limites. Dito de outro
modo, a liberdade religiosa de que os cidadãos gozavam dependia da forma mais
ou menos abrangente com que se definiam as condições nas quais ela não podia ser
usufruída. Todo o peso conceptual desta reflexão recaía sobre as excepções à regra,
promovendo-as ao estatuto de proposição fundamental.
Madison compreendeu que esta determinação negativa conduzia a um esvaziamento do problema, tendendo a colocar cada vez mais enfoque nas punições a
imprimir às circunstâncias em que se verificava uma violação das restrições previstas pelo próprio conceito de liberdade religiosa, quando o que se pretendia era
garantir o respeito afirmativo pelos casos em que a liberdade religiosa se aplicava.
A sua proposta visava assim dois objectivos essenciais. Em primeiro lugar,
acentuar a dimensão positiva da liberdade religiosa, pelo que era necessário conferir-lhe o máximo grau de universalidade – conduta contrastante com os habituais
——————————————
and absolute right.», James Madison, Autobiographical Notes, cit. por Robert Alley, «The Despotism of
Toleration», in Robert Alley (ed.), James Madison on Religious Liberty, p. 147.
46
«[…] no man or class of men ought, on account of religion to be invested with peculiar emoluments or privileges; nor subjected to any penalties or disabilities […]», James Madison, Amendments to the
Virginia Declaration of Rights, PJM, vol. 1, p. 174.
Kant e James Madison
121
procedimentos, concentrados na proibição da liberdade religiosa a pequenos credos
minoritários, confissões não-cristãs ou correntes ateístas. Em segundo lugar, era
indispensável optar por um minimalismo conceptual quanto às excepções a definir.
A proposta de George Mason, como vimos, referia-se aos casos em que a prática
do culto religioso perturbasse «a paz, a felicidade ou a segurança da sociedade».
Locke, uma importante referência para Madison, referia-se mais genericamente à
necessidade das acções decorrentes da liberdade religiosa não ameaçarem as fundações morais da sociedade política47. Madison, ao invés, opta por uma definição
operativa tão sintética e irrestrita quanto possível:
«[…] todos os homens estão igualmente habilitados ao livre exercício da
religião, de acordo com os ditames da consciência, sem punição e restrição do
magistrado, A menos que a preservação da igual liberdade e a existência do
Estado sejam manifestamente colocadas em perigo» (sublinhado meu)48.
Apenas numa situação em que a prática do culto religioso pusesse absolutamente em causa a existência da própria sociedade, o Estado poderia agir de modo
legítimo. Para Madison, como também para Kant, a máxima latina salus populi
suprema civitatis lex est possuía, por conseguinte, integral validade, constituindo-se como axioma primordial que importava antes de mais ter em conta.
Esta determinação, que teria garantido a existência de uma plena liberdade
religiosa na Virgínia – ou, pelo menos, tão ampla quanto uma sociedade organizada
de seres humanos poderia aceitar – seria, contudo, rejeitada (como também a sua
proposta que visava destituir a Igreja Anglicana como Igreja Oficial do Estado). De
algum modo, a Virgínia não estava preparada para uma mudança tão radical. A
declaração final, embora preferindo o termo madisoniano de “liberdade de consciência” à fraseologia de Mason, mantinha uma referência à importância do Cristianismo para o Estado e não criava nenhum procedimento legal respeitante à
extinção da Igreja Oficial na Virgínia49.
——————————————
47
Vide: «No opinions contrary to human society, or to those moral rules which are necessary to the
preservation of civil society, are to be tolerated.», John Locke, A Letter Concerning Toleration. New Haven/London, Yale University Press, 2003, p. 244.
48
«[…] all men are equally entitled to enjoy the free exercise of religion, according to the dictates
of conscience, unpunished and unrestrained by the magistrate, Unless the preservation of equal liberty and
the existence of the State are manifestly endangered» (sublinhado meu), James Madison, Amendments to
the Virginia Declaration of Rights, PJM, vol. 1, pp. 174-175.
49
Sobre este assunto cf. “Editorial Notes”, PJM, vol. 1, pp. 170-175.
122
José Gomes André
§7. Memorial and Remonstrance: definindo a liberdade de consciência como direito
inalienável.
Pese embora este parcial fracasso, Madison regressará alguns anos mais
tarde ao tema da liberdade religiosa, desta vez num âmbito propriamente especulativo, compondo em 1785 Exposição e Reclamação contra Impostos Religiosos
[Memorial and Remonstrance against Religious Assessments], texto no qual reinvoca as principais ideias traçadas na sua juventude, às quais acrescenta alguns
desenvolvimentos que ajudam a esclarecer a sua concepção.
A obra inicia-se com uma tentativa de fundamentação do conceito de liberdade de consciência. Também aqui Madison procura furtar-se a uma tendência
comum no seu tempo, que consistia na utilização de uma lógica argumentativa
dependente do comentário bíblico e do exemplo estatutário. A grande maioria dos
autores que na América discorreram sobre o tema da liberdade religiosa, sobretudo
no contexto do processo revolucionário, recorreu especialmente à análise de passagens bíblicas, em busca de evidências da ilegitimidade das perseguições religiosas
e de justificações para a tolerância dos restantes credos. Também frequentes eram
as argumentações que apelavam aos precedentes legais, baseadas na tradição das
“liberdades inglesas” e na herança estatutária colonial, para justificarem as suas
posições favoráveis à liberdade religiosa.
Embora respeitando estas duas linhas argumentativas, Madison procura um
outro tipo de resposta, independente das ambíguas interpretações bíblicas e dos
precedentes legais. Madison recorre assim à filosofia do direito natural, assentando
a liberdade de consciência numa justificação puramente racional, que a evidencia
como direito primitivo e inalienável, cuja validade e legitimidade se demonstram
per si. Observemos o seguinte excerto:
«A Religião de cada homem tem de ser deixada à convicção e consciência de cada homem; e é um direito de cada homem exercê-la tal como estas
eventualmente o ditarem. Este direito é na sua natureza um direito inalienável.»50.
Adiante, acrescenta Madison:
«[…] “o igual direito de cada cidadão ao livre exercício da sua Religião
de acordo com os ditames da consciência” é retido pela mesma propriedade com
——————————————
50
«The Religion of every man must be left to the conviction and conscience of every man; and it is
the right of every man to exercise it as these may dictate. This right is in its nature an inalienable right.
[…]», James Madison, Memorial and Remonstrance against Religious Assessments [em diante, Mem. Rem.
], PJM, vol. 8, The University of Chicago Press, 1973, p. 299.
Kant e James Madison
123
todos os nossos outros direitos. Se recorrermos à sua origem, é igualmente uma
dádiva da natureza.»51.
A inalienabilidade da liberdade de consciência deriva de duas premissas. Em
primeiro lugar, o facto de a liberdade de consciência se referir, pela sua própria
natureza, à intimidade de cada indivíduo, onde se verifica uma inexorável isenção
de coacções externas – o foro da consciência no seio da qual se forma o juízo relativo às opiniões religiosas (portanto necessariamente independente das concepções
ou pressões dos demais indivíduos). Por outras palavras, a liberdade de consciência
remete, nesta primeira acepção, para uma individualidade originária e incoercível52.
Em segundo lugar, Madison refere-se à liberdade de consciência como
estando revestida de uma anterioridade, mesmo do ponto de vista do contrato
social, que a sublinha como pressuposto do mesmo:
«Defendemos portanto que, em matérias de Religião, nenhum direito do
homem se encontra limitado pela instituição da Sociedade Civil, e que a Religião está totalmente isenta da sua jurisdição [cognizance].»53.
Numa outra ocasião, encontramos uma referência à liberdade de consciência
como fazendo parte dos «direitos naturais do Homem excluídos da concessão na
qual toda a autoridade política está fundada.»54.
Madison posiciona-se aqui no território do contratualismo (essencialmente
de matriz anglo-saxónica e sobretudo por via de Locke), considerando que a passagem do estado de natureza para a sociedade civil, que permite aos indivíduos uma
melhor protecção da sua propriedade e direitos, não consigna uma absoluta renúncia aos seus direitos naturais. Existem direitos fundamentais – entre os quais a
liberdade de consciência – que, pela sua própria natureza, são intransferíveis, e
cuja violação representaria uma ruptura no seio da própria lógica inerente ao con——————————————
51
«“the equal right of every citizen to the free exercise of his Religion according to the dictates of
conscience” is held by the same tenure with all our other rights. If we recur to its origin, it is equally the gift
of nature.», idem, ibidem, p. 304. Num texto mais tardio, escreve Madison que «Conscience is the most
sacred of all property; other property depending in part on positive law, the exercise of that, being a natural
and inalienable right.», James Madison, «Property», National Gazette, 27 de Março de 1792, PJM, vol. 14,
Charlottesville, University Press of Virginia, 1983, p. 267.
52
Cf.: «This right [freedom of Conscience] […] is unalienable, because the opinions of men,
depending only on the evidente contemplated by their own minds cannot follow the dictates of other men
[…]», idem, Mem. Rem., PJM, vol. 8, p. 299.
53
«We maintain therefore that in matters of Religion, no mans right is abridged by the institution of
Civil Society and that Religion is wholly exempt from its cognizance.», idem, ibidem,p. 299.
54
«[…] the natural rights of Man excepted from the grant on which all political authority is
founded», idem, Detached Memoranda [1819?], Writings (ed. Jack Rakove), New York, Library of America, 1999, p. 759.
124
José Gomes André
trato social (a ideia de que a sociedade civil existe para proteger esses direitos)55.
Nesse sentido, as leis produzidas no âmbito do pacto social não podem cercear o
pleno usufruto destes direitos inalienáveis, predicados do sujeito anteriores à sua
condição de cidadão e, desse modo, requisitos para a existência e manutenção
daquele pacto.
O desenvolvimento subsequente de Memorial and Remonstrance decorre
dos princípios anteriormente expostos. Se a liberdade de consciência deve ser reconhecida como um direito inalienável, individualmente exercido, e se a própria natureza desse exercício é incongruente com a existência de coacções externas potencialmente violadoras dessa reflexão pessoal, é ilegítimo que um corpo exterior ao
indivíduo – seja ele individual ou colectivo, social ou político – interfira na liberdade de consciência do sujeito. Assim sendo, escreve Madison:
«[…] se a religião estiver isenta da autoridade da sociedade em geral,
menos ainda pode estar sujeita ao corpo legislativo. […] A preservação de um
governo livre requer, não apenas que sejam invariavelmente mantidos os limites
e fronteiras que separam cada departamento de poder; mas, mais especialmente,
que a nenhum deles seja possível ultrapassar a grande barreira que defende os
direitos do povo.» 56.
Para Madison, a Igreja e o Estado são instituições que se devem manter
separadas: na medida em que os sentimentos religiosos se baseiam em disposições
da mente humana, não deve ser permitido ao governo interferir com esses desígnios – suportando ou incitando grupos que defendem ou convidam a diferentes
credos e práticas religiosas. Essa ingerência constituiria um evidente abuso de
poder, porquanto o governo exerceria a sua capacidade de influenciar os cidadãos
numa matéria que se encontra fora da sua esfera de acção legítima. Particularmente
interessado em fomentar um contexto social livre de conflitos religiosos, de perseguições ou comportamentos intolerantes, bem como de relações suspeitas entre o
poder político e as autoridades eclesiásticas, Madison insiste, por conseguinte, na
necessidade em extinguir as Igrejas Oficiais.
——————————————
55
Num texto de 1792, sobre o conceito de propriedade, escreve Madison: «To guard a man’s house
as his castle […] can give no title to invade a man’s conscience which is more sacred than his castle, or to
withhold from it that debt of protection, for which the public faith is pledged, by the very nature and original conditions of the social pact.», idem, «Property», National Gazette, 27 de Março de 1792, PJM, vol. 14,
p. 267.
56
«[…] if religion be exempt from the authority of the Society at large, still less can it be subject to
that of the Legislative Body. […] The preservation of a free government requires not merely, that the metes
and bounds which separate each department of power may be invariably maintained; but more especially,
that neither of them be suffered to overleap the great Barrier which defends the rights of the people.», idem,
Mem. Rem., PJM, vol. 8, p. 299.
Kant e James Madison
125
Madison refere-se a esta necessidade recorrendo aos exemplos da História:
as Igrejas (embora esse facto contradiga o seu propósito), quando “oficiais” (i.e.,
quando associadas a um regime proteccionista do Estado), não constituem instâncias pacificadoras da vivência social, instigando, pelo contrário, à perseguição e
discriminação dos restantes credos: pense-se no exemplo das lutas religiosas que na
Europa ceifaram milhares de vidas humanas. Além disso, se “institucionalizadas”,
as Igrejas tendem a abandonar a sua pureza original (os valores da simplicidade, da
discrição, da humildade) e o seu objectivo primordial (a divulgação das suas doutrinas), cedendo antes à tentação da corrupção, da ambição e do fanatismo.
O nosso autor opõe-se a uma tese comum na sua época, que considerava que
os diversos credos religiosos necessitavam da protecção do Estado para sobreviverem e que entendia ser a sua proximidade – ou melhor, a sua dependência institucional – (para) com o governo uma importante contribuição para a ordem pública,
para o bem-estar social e para uma evolução moral da sociedade. A sua posição vai
no sentido contrário: a de propor que se atribua às Igrejas uma máxima autonomia,
definitivamente separando-as do Estado. Este facto beneficia a cultura das próprias
Igrejas, conferindo-lhes a liberdade necessária para desempenhar o seu papel missionário sem constrangimentos políticos. Ao remover «todos os obstáculos ao vitorioso progresso da Verdade»57, essa emancipação favorece também um clima de
alargada e pacífica discussão doutrinária entre os diversos credos, diálogo que tenderá a aprofundar as suas concepções bem como a promover um espírito de aberta
e livre investigação.
Madison é um dos primeiros pensadores a afirmar na América – numa cultura onde a religião desempenhava um papel preponderante – que o secularismo
era, não apenas o melhor como o único desígnio lógico para a subsistência do
Estado, aquele que o reconduzia à sua tarefa própria: a protecção das leis e o zelo
pelo bem-estar social dos cidadãos. Como já afirmara Locke, e na esteira do que
defendia Kant, o propósito do Estado é salvaguardar os interesses civis dos indivíduos e punir quem contra eles atentar, e não legislar, proteger ou de qualquer forma
intervir em matéria de religião, a qual respeita exclusivamente à consciência dos
indivíduos58. Neste sentido, o bom exercício do governo não necessita de uma
associação a uma religião, qualquer que ela seja, como suporte para a justeza da
sua acção.
Na concepção madisoniana, a única relação legítima entre governo e religião
deve cingir-se ao esforço de vigilância daquele para que os indivíduos possam
aceitar ou rejeitar livremente diferentes dogmas religiosos, criando idênticas condi——————————————
57
«[…] every obstacle to the victorious progress of Truth […]», idem, Mem. Rem., PJM, vol. 8,
p. 303.
58
Cf. LOCKE, John, A Letter Concerning Toleration. New Haven/London, Yale University Press,
2003, p. 218 e ss..
126
José Gomes André
ções para os cidadãos que praticam credos distintos ou mesmo para aqueles que
não professam nenhum deles.
Em última instância, essa atitude do Estado – que se pauta por um compromisso global de não-intervenção (ideia na qual ecoa novamente o pensamento kantiano) – beneficiará a sociedade considerada no seu todo e as próprias seitas, porque a posição neutra do governo em relação ao incentivo ou auxílio de instituições
religiosas contribui para uma convivência sadia entre os diferentes credos, ao
mesmo tempo que zela pelo respeito integral dos direitos individuais.
§8. A derradeira garantia: a fixação dos direitos em dispositivos legais.
A reflexão levada a cabo em Exposição e Reclamação contra os Impostos
Religiosos sugere implicitamente a necessidade de se proteger a liberdade religiosa
mediante uma última e decisiva salvaguarda – a sua inscrição num documento legal
com poder coercivo. Esta ideia – que nos recorda o itinerário kantiano – será posta
à prova nos anos subsequentes à redacção daquele panfleto, na sequência dos desafios colocados pela criação da Constituição federal, em 1787, e do novo edifício
político americano por ela suportado.
Uma das primeiras e mais complexas questões então surgidas referia-se precisamente à protecção dos direitos individuais, em relação aos quais a Constituição
era omissa. Esta disputa, que suscitou um demorado debate público, conheceria
uma solução sobretudo por intermédio de Madison, que, em Junho de 1789, propõe
ao Congresso a aprovação de vários Aditamentos à Constituição, garantindo a salvaguarda de uma série de direitos pessoais – entre os quais se contava, sem surpresas, o direito à liberdade de consciência e à livre prática do culto. A sugestão madisoniana rezava assim:
«Nenhuns direitos civis deverão ser limitados tendo em conta as crenças
ou as práticas religiosas, nem uma religião nacional deverá ser estabelecida, nem
os absolutos e iguais direitos da consciência deverão, em qualquer modo, ou sob
qualquer pretexto, ser infringidos.» 59.
Posteriormente aprovadas pelo Senado e ratificadas pelos Estados, estas propostas, com pequenas correcções, formariam os primeiros dez Aditamentos à
Constituição, ainda hoje conhecidos como Carta de Direitos [Bill of Rights].
——————————————
59
«The civil rights of none shall be abridged on account of religious belief or worship, nor shall
any national religion be established, nor shall the full and equal rights of conscience be in any manner, or on
any pretext infringed.», idem, Speech in Congress Proposing Constitutional Amendments (8/06/1789), in
Writings (ed. Rakove), p. 442.
Kant e James Madison
127
O modo como Madison se empenhou na elaboração deste projecto confirma-nos, se dúvidas houvesse, de que a sua reflexão em torno do problema dos direitos
individuais (e nomeadamente da liberdade de consciência) consigna uma significativa preocupação com a efectivação das mesmas, possível apenas pela sua incorporação em documentos legais. Na realidade, discursando no Congresso em defesa
das suas propostas, afirmara Madison ser vital «declarar expressamente os grandes
direitos da humanidade» no texto fundamental da nação, de modo a transformá-los
em algo mais que nobres conceitos60. Só a fixação destas liberdades essenciais em
documentos escritos com efeito legal garantia a plena eficácia das mesmas, validando-as como direitos políticos de que os cidadãos poderiam livremente beneficiar. Definindo objectivamente os direitos individuais, estes dispositivos legais
delimitavam com rigor a extensão dos poderes da intervenção governativa, instituindo um espaço estritamente reservado aos cidadãos, no qual as suas liberdades
definitivamente se cumpriam.
Recordando o que Kant escrevera sobre a edificação de uma liberdade constitucional, poderíamos então, referindo-nos ao pensamento madisoniano, concluir
que, também neste caso, a realização da liberdade de consciência só é exequível
quando sustentada num sólido alicerce legal; que, por conseguinte, a definitiva
superação do modelo conceptual da “tolerância” se concretiza apenas mediante a
transformação da liberdade de consciência num direito constitucionalmente protegido.
Bibliografia selecionada
(além da referida no texto)
ALLEY, Robert (ed.), James Madison on Religious Liberty. Buffalo-New York, Prometheus Books,
1985
ANDRÉ, José Gomes, «James Madison e a protecção dos direitos individuais. Em torno da criação da
Carta de Direitos federal norte-americana.», in Philosophica, nº22, Novembro 2003. Lisboa,
Edições Colibri, pp. 147-171
ARENDT, Hannah, Lectures on Kant’s Political Philosophy. The Chicago University Press, 1982
BANNING, Lance, The Sacred Fire of Liberty. James Madison and the Founding of the Federal
Republic. Ithaca/London, Cornell University Press, 1995
BARATA-MOURA, José, «O Tratado Teológico-Político de Kant. No segundo centenário de Die
Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft», in Religião, História e Razão: da
Aufklärung ao Romantismo (coord. Manuel J. Carmo Ferreira e Leonel Ribeiro dos Santos),
Lisboa, Edições Colibri, 1994, pp. 65-96
BOOTH, William J., Interpreting the World: Kant’s philosophy of history and politics. University of
Toronto Press, 1986
——————————————
60
Cf. IDEM, ibidem, p. 439.
128
José Gomes André
BOURGEOIS, Bernard, Philosophie et Droits de l’Homme. De Kant à Marx. Paris, P.U.F., 1990
CATROGA, Fernando, «Secularização e laicidade: uma perspectiva história e conceptual», in Revista
de História das Ideias, vol. 25 (2004), Coimbra, pp. 51-127
GOYARD-FABRE, Simone, La philosophie du droit de Kant. Paris, Vrin, 1996
LAMEGO, José, “Sociedade Aberta” e Liberdade de Consciência: o direito fundamental de
liberdade de consciência. Lisboa, Edição AAFDL, 1985
McCOY, Drew R., The Last of the Fathers. James Madison and the Republican Legacy.
Cambridge/New York, Cambridge University Press, 1989
PONTON, Lionel, Philosophie et Droits de l’Homme de Kant a Lévinas. Paris, Vrin, 1990
SHELDON, Garrett W., The Political Philosophy of James Madison. Baltimore/London, The Johns
Hopkins University Press, 2001
SHELL, Susan, The rights of reason: a study of Kant's philosophy and politics. University of Toronto
Press, 1980
SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Revolução Federal. Filosofia Política e debate constitucional
na fundação dos E.U.A.. Lisboa, Edições Colibri, 2002
SOROMENHO-MARQUES, Viriato, História e Política no pensamento de Kant. Mem-Martins,
Europa-América, 1994
SOROMENHO-MARQUES, Viriato, Razão e Progresso na filosofia de Kant. Lisboa, Edições
Colibri, 1998
VLACHOS, Georges, La Pensée Politique de Kant. Métaphysique de l’ordre et dialectique du
progrès. Paris, P.U.F., 1962
WHITE, Morton, The Philosophy of the American Revolution. New York, Oxford University Press,
1978
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WILLS, Gary, Explaining America: The Federalist [1981]. New York, Penguin Books, 2001
WOOD, Allen, Kant’s Ethical Thought. Cambridge University Press, 1999
Propriedade e Trabalho em Kant
António Manuel Martins
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
A doutrina kantiana sobre a propriedade foi durante muito tempo ignorada
por se pensar que representava um retrocesso inqualificável relativamente ao novo
modelo de justificação introduzido por Locke em que o trabalho desempenhava um
papel fulcral. Só nas últimas décadas se começou a olhar de modo mais positivo
para esta doutrina kantiana fazendo jus à sua complexidade1. Aliás não foi apenas
esta doutrina a ser negligenciada pelos estudiosos da obra de Kant mas toda a
reflexão desenvolvida na Metafísica dos Costumes. Tanto para os contemporâneos
de Kant como para as gerações seguintes, esta era uma obra menor. As grandes
construções filosóficas do Idealismo Alemão, aparentemente pelo menos e aos
olhos de muitos, tinham ultrapassado definitivamente Kant designadamente no
âmbito da filosofia do direito. Fichte e Hegel tinham obra seminal neste domínio
com influência preponderante nas discussões em torno do direito e da filosofia
política. Um certo regresso a Kant a partir de meados do século XIX não alterou
significativamente este estado de coisas. O próprio Cassirer, num livro sobre a vida
e obra de Kant, publicado em 1918, considerava a doutrina kantiana do direito privado excessivamente esquemática. Só depois da II Guerra Mundial começou a
desenvolver-se investigação em torno da Metafísica dos Costumes e da sua dou——————————————
1
O leitor pode encontrar no final da tradução da Metafísica dos Costumes, tradução, apresentação e
notas de José Lamego (Lisboa: F. C. Gulbenkian, 2005) uma boa bibliografia (ver, em especial, pp. 474-6;
482-4). Gostaríamos apenas de acrescentar: R. R Terra, «A doutrina kantiana da propriedade» in: Discurso,
São Paulo, 14 (1983), pp. 113-143; José N. Heck, «Estado e propriedade na doutrina do direito de Kant»,
Veritas, Porto Alegre, v. 42 (1998), pp. 169-179; M. Brocker, Arbeit und Eigentum (Darmstadt: WbG,
1992); Rainer Friedrich, Eigentum und Staatsbegründung in Kants 'Metaphysik der Sitten'. (Berlim:W. De
Gruyter, 2004); Andreas Heckl & B. Ludwig (Hrsg), Was ist Eigentum? (München, Beck, 2005); Susann
Held, Eigentum und Herrschaft bei John Locke und Immanuel Kant: ein ideengeschichtlicher Vergleich.
(Münster: LIT, 2006).
Aproveitamos para salientar que usaremos esta tradução nas citações incluídas no nosso texto;
quanto ao modo de citação seguiremos as siglas convencionais usadas entre os estudiosos de Kant.
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 129-139
130
António Manuel Martins
trina do direito privado em particular. Uma reabilitação da filosofia do direito de
Kant dá-se, de modo mais claro, a partir de 1970, num processo em que as obras de
Reinhard Brandt e Wolfgang Kersting, entre outros, desempenharam papel importante2.
As questões ligadas à legitimação do Estado desempenham papel fulcral na
filosofia política moderna. Também em Kant se encontram elementos teóricos
importantes que exigiriam um desenvolvimento das teses centrais da sua doutrina
do direito. Não vamos sequer apresentar todos os aspectos da doutrina kantiana da
propriedade. Focaremos apenas alguns dados do contexto histórico que nos permitam situar a reflexão de Kant face à doutrina de Locke (I) e, num segundo tempo,
perceber o sentido mais exacto da doutrina kantiana da primeira aquisição que não
é, contra todas as aparências, um regresso aos modelos explicativos da prima occupatio (II).
I
A questão central que aqui pretendemos contextualizar tem que ver a justificação da primeira aquisição. Problema importante mas não o único que uma
genuína e exigente doutrina da propriedade tem de enfrentar. Quem rejeita qualquer tipo de jusnaturalismo, como é o caso de Hobbes ou Hume, o problema tem
uma solução positiva. Mas Kant insere-se numa linhagem de pensamento contratualista que ainda incorpora alguns elementos do direito natural. Apesar de só ter
publicado as suas doutrinas sobre o direito privado em 1797, na primeira parte da
Metafísica dos Costumes, Kant já se ocupava de questões de filosofia do direito
desde os anos sessenta tendo dado o primeiro curso de filosofia do direito em 1767.
A principal fonte de informação sobre o tipo de reflexão que Kant desenvolvia nesta fase relativamente à questão que nos ocupa é um conjunto de notas
manuscritas, de 1765, sobre o seu livro Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, publicado no ano anterior3. Para além de documentar a evolução do pensamento de Kant sobre o direito de propriedade, estas notas manuscritas
são o documento mais antigo relativo à recepção da doutrina Lockeana da apropriação pelo trabalho na cultura alemã.
Nestas reflexões, Kant, tal como Locke, parte da noção de uma posse natural
de si mesmo que caracteriza a pessoa humana: «o corpo é meu pois é uma parte do
meu eu e é movido pelo meu arbítrio. Todo o mundo animado e inanimado, que
não tem arbítrio próprio, é meu na medida em que eu o posso obrigar e mover de
——————————————
2
Reinhard Brandt, Eigentumstheorien von Grotius bis Kant (Stuttgart: Frommann, 1974);
Wolfgang Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts- und Staatsphilosophie (Frankfurt:
Suhrkamp, 1993; 1ª edição 1984); Id., Kant über Recht (Paderborn: Mentis-Verlag, 2004).
3
Estas notas encontram-se publicadas no volume XX da edição da Academia (pp. 1-192).
Propriedade e Trabalho em Kant
131
acordo com o meu arbítrio […]»4. Esta afirmação de Kant não deve ser entendida
num sentido corrente mas antes como expressão da sua reflexão sobre o direito.
Neste sentido, afirma-se, aqui, a posse jurídica do meu próprio corpo com base na
ideia de uma articulação entre esse corpo e o meu arbítrio. Através dele, eu posso,
conscientemente, movimentá-lo e influenciá-lo. A vontade consciente de si mesma
torna-se, assim, não só a capacidade de mover o corpo como o fundamento da
posse, jurídica, de si mesmo. Posse esta que se pode estender a tudo quanto há na
natureza que esteja ao seu alcance. Por isso, observa Kant, nunca poderei dizer que
o sol é meu. Daqui decorre também a necessidade da liberdade que deve contar
sempre com a liberdade dos outros. Assim como é inadmissível, e contraditório,
sujeitar outra pessoa a um arbítrio estranho, também seria contraditório tomar
posse daquilo que outro trabalhou. Pois se alguém se apoderasse daquilo que eu
trabalhei isso significaria que «[…] ele pressuporia que a sua vontade movia o meu
corpo»5.
A doutrina aceite por Kant em meados de 1760 é uma nova versão da doutrina da apropriação pelo trabalho defendida por Locke. A novidade de Kant, relativamente a Locke, consistia na fundamentação explícita num acto de vontade livre
e não apenas na simples incorporação pelo trabalho. De igual modo, estão já aqui
presentes elementos importantes como a sua justificação puramente imanente, sem
recurso a qualquer tipo de argumentação teológica como acontecia em Locke6.
Tanto quanto se sabe, Kant não conhecia o Segundo Tratado sobre o Governo
Civil. As teses de Locke sobre a propriedade chegaram ao seu conhecimento por
via indirecta: através do Émile e do Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens de Rousseau. Nas Notas de 1765 Kant segue uma
linha de interpretação crítica muito próxima de Rousseau sublinhando o contraste
entre o direito natural e prática corrente ganhando assim uma dimensão de instân——————————————
4
XX, 66: «Der Leib ist mein denn er ist ein Theil meines Ichs und wird durch meine Willkühr
bewegt. Die gantze belebte oder unbelebte Welt die nicht eigene Willkühr hat ist mein in so fern ich sie
zwingen u. sie nach meiner Willkühr bewegen kann. Die Sonne ist nicht Mein. Bey einem andern
Menschen gilt dasselbe, also ist keines Eigenthum eine proprietat oder ein ausschliessendes Eigenthum. In
so fern ich aber ausschließungsweise
mir etwas zueignen will so werde ich des andern Willen
wenigstens nicht gegen den meinigen oder nicht seine That wieder die Meinige voraussetzen».
5
XX, 67, 5-8: «Welcher Wille Gut seyn soll muß wenn er allgemein u. gegenseitig genommen wird
sich nicht selbst aufheben um des willen wird der andre nicht dasjenige sein nennen was ich gearbeitet habe
denn sonst würde er voraus setzen daß sein Wille meinen Korper bewegte».
6
Este é um aspecto importante que não poderemos desenvolver aqui. Ver, sob este ponto de vista, a
obra de Jeremy Waldron, God, Locke and Equality: Christian Foundations of Locke's Political Thought
(Cambridge University Press, 2002). Locke começou por defender a teoria da occupatio como era corrente
na tradição jusnaturalista moderna. Foi a crítica implacável de R. Filmer a Grócio que levou Locke a abandonar a doutrina da prima occupatio. Como não podia nem queria aceitar a doutrina de Filmer não lhe
restavam outra alternativa senão procurar outra solução. Foi a própria narrativa bíblica que lhe deu a sugestão do trabalho como categoria chave para explicar a situação do homem relapso no estado de natureza
correspondente.
132
António Manuel Martins
cia crítica que a doutrina de Locke não possuía7. Nunca chegou a publicar estas
reflexões sobre o direito de propriedade talvez por ter tido consciência de que a sua
teoria do direito ainda era demasiado incipiente e, por outro, porque os seus interesses especulativos estavam voltados para o grande programa crítico que ainda
tinha para realizar.
Na Crítica da Razão Pura (1781) assinala um papel de relevo ao conceito de
trabalho num quadro completamente diferente do que se encontrava em Locke. É
certo que, neste aspecto, Kant segue uma tendência da sua época. Contudo, não
deixa de ser significativo o papel que atribui a este conceito na própria definição do
estatuto das suas investigações críticas. Basta mencionar a observação feita no
prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura a propósito daqueles que desvalorizavam a importância do trabalho crítico e do método:
«Os que rejeitam o seu método e ao mesmo tempo o procedimento da
crítica da razão pura não podem ter em mente outra coisa que não seja desembaraçar-se dos vínculos da ciência e transformar o trabalho em jogo, a certeza em
opinião e a filosofia em filodoxia». (CRP, B XXXVII)
Não vamos explorar aqui este aspecto da discursividade kantiana nas suas
obras maiores, com reflexos importantes na própria noção do que é o “trabalho” da
filosofia e a sua especificidade face a outros tipos de discurso embora a mensagem
continue actual. Regressando à contextualização mais imediata dos trabalhos preparatórios da Metafísica dos Costumes indicaremos alguns factores que poderiam
explicar a evolução do seu pensamento sobre esta matéria. Para quem esteja interessado em aprofundar esta matéria, importa consultar, como já indicou R. Brandt
no seu trabalho pioneiro, os apontamentos de Kant sobre a obra de Gottfried
Achenwall, Ius Naturae (1763), publicadas no volume XIX da edição da Academia
e sobretudo os trabalhos preparatórios, não datados, publicados no volume XXIII
(211-359) da mesma edição. Reiner Brandt sublinha o facto de o manuscrito das
suas lições sobre Metafísica dos Costumes, do semestre de Inverno de 1793/4,
publicado no volume XXVII da Academia, mostrar claramente que nessa data Kant
ainda não defender intuições fundamentais que caracterizam a sua Doutrina do
Direito, publicada em 1797. A aceitarmos esta interpretação teríamos que procurar
nos trabalhos preparatórios a via para a explicação da mudança de opinião de Kant.
Um dos problemas mais sérios para uma explicação genética com base nesses
manuscritos reside no facto de não estarem datadas essas notas dispersas. Sem
——————————————
7
XX, 40: «Die Begriffe der bürgerlichen Gerechtigkeit u. der Natürlichen u. die daraus
entspringende Empfindung von schuldigkeit sind sich fast gerade entgegengesetzt. Wenn ich von einem
reichen erbete der sein Vermögen durch Erpressung von seinen Bauren gewonnen hat u. ich schenke dieses
an die nämlichen arme so thue ich im bürgerlichen Verstande eine sehr grosmüthige Handlung, im
natürlichen aber nur eine gemeine Schuldigkeit».
Propriedade e Trabalho em Kant
133
entrarmos sequer numa formulação, ainda que provisória, de uma conjectura a este
respeito, diríamos que nelas poderemos encontrar reflexos de insatisfação relativamente à doutrina da justificação da primeira aquisição pelo trabalho. Outro factor
que poderá ter contribuído também para a alteração da posição de Kant foi a publicação dos textos de alguns autores que se reclamavam de uma proximidade teórica
relativamente a Kant e que adoptaram incondicionalmente a tese da justificação da
propriedade pela incorporação pelo trabalho8.
Pensamos que o facto de terem surgido várias publicações imediatamente
antes e depois da publicação da Metafísica dos Costumes explica porque é que a
doutrina de Kant foi mal recebida e votada ao esquecimento. De todos os lados se
levantavam os defensores da nova teoria que justificava a (primeira) aquisição da
propriedade pelo trabalho tal como Locke defendera no Segundo Tratado do
Governo Civil. Papel fulcral terá desempenhado, neste processo, a formulação mais
amadurecida da posição de Fichte na sua obra Grundlage des Naturrechts (1796, 1ª
parte; 1797, 2ª parte) onde se pretendia mostrar como deduzir transcendentalmente
o conceito de direito e em perfeita consonância com a doutrina da ciência. Como
nos lembrará Eduard Zeller, Fichte será sempre reconhecido, pela posteridade, em
primeiro lugar como um grande filósofo mas para os seus contemporâneos ele foi
igualmente e talvez, acima de tudo, um político9. Incontestável é o facto de, à data
——————————————
8
Estamos a pensar, principalmente, em Theodor Schmalz e Carl Christian Erhard Schmid que
publicaram, precisamente neste intervalo entre as lições de Kant sobre a Metafísica dos costumes (1793/4) e
a publicação da primeira edição da Metafísica dos Costumes, textos sobre o direito natural. O texto de
Schmalz apresenta-se mesmo como uma doutrina pura do direito como convinha a quem pretendia seguir o
paradigma kantiano. Em rigor, a primeira edição é de 1792 mas a mais conhecida é a edição de 1795
(Theodor Schmalz, Das reine Naturrecht. Königsberg: Nicolovius, 1792, 1795). Kant conheceu com certeza uma e outra. As melhorias e explicações introduzidas na segunda edição não o devem ter convencido.
Esta obra e a de C.C.E. Schmid (Grundriß des Naturrechts. Iena und Leipzig: Gabler, 1795) permitiram-lhe
ver o que tinha de inaceitável uma doutrina do direito inspirada na sua metafísica da razão prática. Até que
ponto os escritos de Johann Benjamin Erhard sobre o direito do povo à revolução (1795) e de J. G. Fichte
(Considerações sobre a Revolução Francesa, 1793), onde também se incluía uma reflexão sobre as questões do direito de propriedade e sua fundamentação, tiveram impacto em Kant é difícil de avaliar com
exactidão mas pensamos que podem ter funcionado de forma negativa tornando mais claro o caminho por
onde Kant não queria ir.
9
Falando de Fichte como político escreve Zeller: «Er hat selbst seinem Namen zunächst in die
Geschichte der Philosophie mit unvertilgbaren Zügen eingeschrieben; und der Gelehrte wird immer zuerst
an dieser Seite seiner Leistungen denken wenn von Fichte die Rede ist. Aber für seine Zeit noch viel
wichtiger und an unmittelbarer Wirkung auf das Ganze noch weit ergiebiger war die Thätigkeit, durch
welche er sich an dem sittlichen und politischen Leben unseres Volkes, an der Kräftigung des
Nationalgeistes, an der Erhebung Deutschlands aus tiefem Falle betheiligt hat und vielleicht noch
anziehender als für den Philosophen der Denker, ist für den Menschenkenner der Mann, für welchen seine
Wissenschaft selbst nur der Ausdruck und der geistige Rückhalt eines Charakters war, den wir den besten
aller Zeiten unbedenklich an die Seite setzen dürfen». «Johann Gottlieb Fichte als Politiker», in E. Zeller,
Vorträge u. Abhandlungen (Leipzig: Fues Verlag, 1865), p. 142. Este testemunho ainda é mais significativo
se nos lembrarmos que foi Zeller quem cunhou a expressão teoria do conhecimento e está ligado, entre
outras coisas, a um certo regresso a Kant em meados do séc. XIX.
134
António Manuel Martins
da publicação da Metafísica dos Costumes, Fichte se apresentar como uma estrela
no auge da fama ao passo que Kant se encontrava já afastado da cátedra. Em 1799
ainda faz uma declaração pública criticando e demarcando-se de Fichte mas sem
resultados positivos.
Em boa verdade poderíamos mesmo dizer que tudo isto constituiu um obstáculo sério à leitura da Metafísica dos Costumes. A distância histórica que nos
separa destes obstáculos deve permitir-nos ler, com outros olhos este texto de Kant.
O que se segue não passa de um convite à leitura do texto de Kant no sentido de
nos libertarmos de certos preconceitos de modo a podermos surpreender o novo no
texto da Metafísica dos Costumes sem nos deixarmos enredar por fórmulas carregadas de história.
II
Para compreendermos como é que Kant compreende a propriedade, no quadro da sua doutrina do Direito, importa reter a sua definição do que é meu, juridicamente: «meum juris é aquilo a que estou tão ligado que qualquer uso que alguém
dele pudesse fazer sem o meu consentimento ser-me-ia lesivo» (MdS § 1; VI, 245).
Kant segue a concepção tradicional na medida em que vincula a noção de propriedade à de posse:
«Tenho de estar de algum modo na posse do objecto exterior se esse
objecto houver de se chamar meu; porque, caso contrário, quem agisse sobre
esse objecto, contra a minha vontade, não me afectaria com isso e, portanto, não
me lesaria». (MdS, RL § 5; VI, 249)
O problema da teoria kantiana consiste, em grande medida, em explicar
como é que algo pode ser, juridicamente, meu ainda que eu não tenha a sua posse
física.
«Mas algo exterior só seria meu se eu pudesse admitir que me poderia
causar dano o uso que outrem pudesse fazer de uma coisa em cuja posse ainda
não estou investido». (MdS, RL § 1; VI, 245s)
É o próprio Kant quem reconhece que o conceito parece ser problemático e
levar mesmo a afirmações contraditórias. De facto, algo exterior é, por definição,
algo que eu não possuo necessariamente apesar de o modo como se fala de propriedade de objectos (externos) pressupor a posse. A solução de Kant passa pela
distinção entre posse sensível e posse inteligível entendida esta última como «posse
sem detenção». Embora tenha introduzido a ressalva «se um tal género de posse é
Propriedade e Trabalho em Kant
135
possível», a verdade é que Kant vai transformar esta noção numa condição de possibilidade da propriedade em geral.
Sendo assim, importa clarificar a noção mesma de posse inteligível para
podermos compreender a reflexão de Kant sobre o direito de propriedade. Toda a
dificuldade reside no facto de Kant não dar uma resposta simples nem directa a esta
questão. Não só a terminologia mas também a própria estrutura argumentativa do
texto kantiano afastam-se muito do modo como tradicionalmente se colocam estas
questões. Nos vários contextos teóricos da tradição o que era preciso justificar era
precisamente a propriedade privada. Para Kant é também esta a questão fulcral na
medida em que da sua resposta depende o onus probandi de todo o direito privado.
Como se articula a necessidade de um instituto como o da propriedade privada com
a possibilidade da posse inteligível é algo que julgamos ser central na concepção de
Kant mas que só poderemos compreender melhor depois de considerarmos, ainda
que sumariamente, os passos da argumentação kantiana. Vamos distinguir, ainda
que provisoriamente, três pressupostos da argumentação de Kant acerca da justificação do direito de propriedade.
1) Em primeiro lugar, Kant nega qualquer relevância ao simples facto de
alguém ter na sua posse física determinados objectos. Ao dizer que admiti-lo seria
defraudar a própria possibilidade de um uso livre e justo dos bens exteriores Kant
está, de facto, já a operar com a sua compreensão da propriedade como uma relação jurídica em sentido forte, algo que, no quadro do seu pensamento, só pode dar-se entre pessoas. É este entendimento da propriedade que o leva a negar que exista
qualquer direito imediato sobre uma coisa (ius in re) e a afirmar que se houvesse
apenas um homem à face da terra ele não poderia ter qualquer propriedade (MdS,
RL § 11; VI, 260 s).
2) A necessária forma das leis práticas da razão implica que o uso dos
objectos/coisas em geral só possa estar sujeito a uma lei formal. Esta deverá abstrair das características particulares dos objectos e muito particularmente da circunstância de estarem ou não na posse física de alguém. Se o primeiro pressuposto
jogava com um direito da liberdade parece, agora, que o carácter formal das leis da
razão prática dificilmente poderá ser assegurado sem admitirmos a possibilidade de
uma autorização geral que abra caminho para a possível propriedade de objectos
externos.
3) Admitida a possibilidade da posse inteligível (posse sem detenção ou uso
da força física), Kant pensa poder concluir que a razão prática pura nos permite
considerar todo e qualquer objecto externo como potencial propriedade.
Tudo isto permite a Kant estabelecer um postulado jurídico da razão prática:
«É possível ter como meu um qualquer objecto do meu arbítrio; quer
dizer, é contrário ao Direito uma máxima segundo a qual, se esta se convertesse
136
António Manuel Martins
em lei, um objecto do arbítrio devesse tornar-se em si (objectivamente) sem possuidor (res nullius)» (MdS, RL, § 2; VI 246)
A este postulado chama Kant, no final deste mesmo parágrafo, uma lei permissiva da razão prática. Postulado que se tornou necessário pois, no entender de
Kant, não seria possível inferir uma justificação da propriedade a partir de um mero
conceito do “Direito em geral” tal como a simples distinção nocional entre o meu e
o teu não bastariam. Daí a necessidade de recurso à razão prática pura para que
fosse possível «impor a todos os demais uma obrigação que, de outro modo não
teriam, a obrigação de se absterem de usar certos objectos do nosso arbítrio, pois
que os tomamos com anterioridade na nossa posse» (MdS, RL, § 2; VI 247). Este
postulado da razão prática pura é, além disso, uma proposição jurídica sintética a
priori (MdS, RL, § 6; VI 250). Por outras palavras, é válida independentemente de
qualquer experiência empírica. Com este postulado da razão prática pura Kant
pensa ter encontrado a resposta à questão nuclear da justificação do direito de propriedade.
A segunda parte do direito privado trata do modo de adquirir algo exterior.
Sendo certo que nada exterior é originariamente meu, tenho que o adquirir para lhe
poder chamar, juridicamente, meu. Deixando para o §18 e seguintes a problemática
da aquisição derivada, no âmbito do direito pessoal, Kant concentra-se, em primeiro lugar, numa análise das questões ligadas à aquisição originária. De acordo
com o «princípio universal da aquisição exterior» (§10), uma aquisição originária
envolve três aspectos principais:
1) a «tomada de posse do objecto do arbítrio no espaço e no tempo» (apreensão);
2) a declaração pública da posse do referido objecto;
3) a «apropriação como acto de uma vontade universal» (MdS, RL, § 10; VI, 259).
Um dos grandes equívocos na interpretação da posição de Kant é criado em
grande parte por ele mesmo quando designa esta aquisição originária por ocupação
(occupatio) sublinhando que ela só pode dar-se relativamente a coisas corpóreas.
Contudo, uma simples consideração atenta dos três aspectos envolvidos na aquisição originária mostra claramente que não se trata de um regresso acrítico a uma
posição teórica mais tradicional. Não nos podemos deixar iludir pelo uso de uma
terminologia tradicional mais directamente associada a determinados esquemas de
pensamento com origens remotas no pensamento antigo.
No §12 Kant sublinha o facto de esta primeira aquisição de uma coisa não
poder ser senão a da terra. É precisamente porque a questão de Kant é a de saber
como é que os homens que habitam o planeta terra adquirem um direito de propriedade sobre determinada parcela deste planeta. Por isso, toma como ponto de partida
a posse física de uma parte concreta da superfície terrestre. É por esta via que surge
no texto kantiano a contaminação da linguagem da occupatio. Porém, Kant caracteriza também a primeira aquisição como uma autorização; isto poderia evitar
Propriedade e Trabalho em Kant
137
algumas dificuldades de interpretação. Sendo, contudo, insistente a referência à
ocupação não podemos fazer outra coisa que não seja tentar interpretar com o
maior rigor possível o texto de Kant. Parece claro que ele rejeita uma justificação
que se baseie unicamente no facto bruto da ocupação unilateral por parte de alguém
que toma posse física de uma parcela de terreno. No estado de natureza, nada pode
ser adquirido que não seja provisoriamente.
Para compreendermos melhor a posição de Kant neste ponto, importa ter em
conta dois elementos que ele introduz na sua análise. Em primeiro lugar, «a posse
em comum originária (communio possessionis originaria)» de todos os homens
sobre a terra (MdS, RL § 13;VI, 262; cf § 16). Em segundo lugar, «a ideia de uma
vontade de todos unificada a priori (que há que necessariamente unificar)» (MdS,
RL § 15; VI, 264).
A posse em comum originária de que fala Kant não se deve confundir com
conceitos aparentemente próximos de certo jusnaturalismo, mais antigo ou mais
moderno. Trata-se, em Kant, de um conceito transcendental, da razão prática pura,
que «contém a priori o princípio segundo o qual somente os homens podem fazer
uso em conformidade com leis jurídicas do lugar que ocupam sobre a terra» (MdS,
RL § 13; VI, 262). Não está em causa qualquer especulação sobre os primórdios da
espécie humana na sua luta por um espaço vital nas condições de vida que outrora
se viviam na terra mas antes de reflectir sobre as condições de possibilidade de
uma aquisição originária da propriedade. É neste sentido que devem ser lidas as
afirmações de Kant de acordo com as quais «todos os homens estão originariamente (isto é, antes de qualquer acto jurídico do arbítrio) investidos na posse legítima da terra, quer dizer, têm o direito de estar onde os colocou a natureza ou o
acaso» (MdS, RL § 13; VI, 262). Uma vez que a terra é esférica e espacialmente
finita, os homens não poderiam nunca disseminar-se de tal modo que nunca se
encontrassem. Desta constatação da necessidade de os homens partilharem um
espaço finito retira Kant a conclusão que qualquer um pode, legitimamente, ocupar
qualquer lugar reivindicando essa posse face a qualquer potencial concorrente. Mas
o texto de Kant não parece deixar margem para dúvidas neste aspecto: tudo isto é
possível porque se parte da convicção de que toda a terra está na posse em comum
originária de todos.
Este pressuposto de Kant é, efectivamente, diferente daqueles que encontramos nas teorias que admitem uma forma qualquer de contratualismo. De um lado
temos aqueles para quem, como é o caso de Hobbes e de Hume, não fazia sentido
falar de um “meu” e um “teu” natural sendo a propriedade, por definição, algo
instituído pelo estado soberano. Do outro temos todos os que admitem a apropriação como alguma forma de direito natural, independentemente da forma como o
interpretam. Para Locke, por exemplo, o instituto da propriedade é viável num
estado de natureza, ainda antes de os homens se constituírem em “corpo político”.
Porém, em Locke, a apropriação faz-se, no estado de natureza, a partir de uma
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António Manuel Martins
situação em que todos os bens da terra estão destinados pelo seu original criador e
proprietário ao uso de todos os homens. Em Kant, na aquisição originária, não está
em causa adquirir uma parcela de terra sem dono mas antes de adquirir algo que já
estava na posse comum originária de todos os co-proprietários unidos.
Esta transformação kantiana do ponto de partida do jusnaturalismo e do
contratualismo de inspiração Lockeana não era suficiente para justificar, à luz do
direito, essa primeira aquisição que, por isso mesmo, era considerada como sendo
necessariamente provisória. A posição que Kant defende, na Metafísica dos Costumes, é que a primeira aquisição não pode adquirir legitimidade apenas através da
intervenção de uma vontade unilateral. Para que a vontade de um sujeito possa
impor aos demais uma obrigação jurídica será preciso fazer intervir «a vontade de
todos unificada a priori» (MdS, RL § 15). Esta é que constitui o “título racional”
da aquisição. O facto de Kant se servir da terminologia mais corrente e de ele próprio ter aderido, antes, a outra concepção, torna mais difícil, para muitos intérpretes, compreender a posição de Kant. Importa, por isso, sublinhar a diferença relativamente ao quadro teórico em que se desenvolviam as várias posições sobre a primeira aquisição. Os vários passos da argumentação de Kant só podem ser correctamente entendidos se tivermos em conta todos os passos e o facto de se tratar de
uma argumentação de tipo transcendental. É também a esta luz que se deve ponderar a questão da função distributiva da propriedade. O tema é demasiado complexo
para poder ser abordado aqui em toda a sua extensão.
Relativamente à questão das condições adicionais a serem preenchidas pela
aquisição originária, Kant não hesita, na Metafísica dos Costumes, em afirmar que
a única condição a ter igualmente em conta para que a aquisição esteja «em conformidade com a lei de liberdade exterior de cada um» é a da prioridade temporal
(MdS, RL §14; VI, 263). Também esta afirmação tem sido mal interpretada por
muitos dos críticos de Kant que a leram num sentido puramente descritivo. Uma
das questões fulcrais que se colocam no contexto da (primeira) aquisição é a dos
seus limites. Há ou não limites e de que tipo? Que critérios usar e qual a instância
última de validação desses critérios? Sobre esta matéria Kant parece ter mudado de
opinião como já referimos atrás. Os critérios para que apontavam alguns textos dos
Vorarbeiten não foram incorporados no texto final da Metafísica dos Costumes.
Aqui encontramos, no §15 da Doutrina do Direito, a seguinte resposta à pergunta
pela extensão da faculdade de entrar na posse de uma porção de terra:
«Até onde chegue a capacidade de a ter sob o seu senhorio, quer dizer, até
onde aquele que dela se queira apropriar a possa defender; é como se a porção
de terra dissesse: se não me podeis proteger, então, também não podeis dar-me
ordens» (MdS, RL §15; VI, 265).
Propriedade e Trabalho em Kant
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Kant sugere no mesmo texto que este critério deveria ser igualmente aplicado na resolução da célebre controvérsia sobre o mar livre desencadeada por
Hugo Grócio. Neste caso, a medida da capacidade defensiva era dada pelo alcance
do tiro de um canhão. Este passo é conhecido como um dos mais controversos da
abordagem de Kant e provocou grande escândalo mesmo entre os admiradores da
sua doutrina. De facto, esta interpretação dos limites da aquisição em termos de
capacidade de defesa coloca alguns problemas complexos. Porém, a crítica sumária
que desde a publicação da Metafísica dos Costumes se faz a este aspecto da teoria
da propriedade peca por isolar os factores da força e da violência imputando a Kant
uma posição que ele não defendeu. Estaria, nesse caso, ainda que a contra gosto,
Kant a defender o direito do mais forte ou pelo menos a capacidade de usar a força
e a violência como critério para justificar se não o direito em geral pelo menos este
direito. O simples facto de, no final deste mesmo parágrafo, Kant condenar, sem
margem para dúvidas, a colonização pela força ou pelo suborno deveria levar-nos a
pensar que as afirmações de Kant que citámos são expressão de uma posição mais
complexa e diferenciada. Pode-se entender facilmente o choque de muitos leitores
de Kant sobretudo porque, no mesmo parágrafo, rejeita, liminarmente, a tese da
apropriação pela incorporação do trabalho:
«Quando se trata de primeira aquisição, a laboração não é mais do que
um sinal exterior de entrada na posse que pode ser substituída por muitos outros
sinais que requerem menos esforço». (MdS, RL §15; VI, 265)
Neste contexto, a crítica fica-se por este sublinhar o carácter extrínseco do
trabalho no processo de aquisição originária.
Seria preciso completar esta exposição com a articulação entre esta primeira
aquisição, provisória por definição, e a sua ratificação jurídica plena depois de
formado o Estado de Direito. Na impossibilidade de completarmos esta análise
remetemos para uma leitura atenta do texto kantiano chamando a atenção para a
dimensão intersubjectiva e social do direito na sua obra. Nela poderemos encontrar
virtualidades interessantes para a resolução de alguns problemas políticos no
âmbito da justiça distributiva e mesmo do direito internacional e direito das gentes10. Pontes a construir para uma paz perpétua.
——————————————
10
Veja-se, sob este ponto de vista, e a título meramente exemplificativo, o estudo de Michael Köhler «Freiheitliches Rechtsprinzip und Teilhabegerechtigkeit in der modernen Gesellschaft» in G. Landwehr
(Hrsg.), Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit. Zur Aktualität der Rechtsphilosophie Kants für die
Gerechtigkeit in der modernen Gesellschaft. (Hamburg: Junius, 1999), pp. 103-128. Devo a Maximiliano
Marcos a chamada de atenção para este trabalho em que se actualiza a reflexão kantiana sobre o conceito de
primeira apropriação e seus limites. Discutir aqui as interessantes propostas de reorientação de perspectivas
teóricas contidas neste artigo exigiria outro ensaio.
Hermann Heller y el Argumento kantiano.
La Evolución de un Pensador y
su Relación con el Idealismo alemán
José Luis Villacañas Berlanga
UNIVERSIDAD DE MURCIA
1. Una atmósfera espiritual.
Aunque se conoce la influencia de Kant sobre la teoría del derecho del siglo
XIX , todavía no hay una visión panorámica de ese mismo asunto en el ámbito del
siglo XX2. Desde luego, ha existido un neokantismo jurídico, y como es natural,
ese rótulo se dividió entre las escuelas de Marburgo y de Heidelberg. Hoy se puede
identificar la influencia de las ideas neokantianas en Kelsen, que hasta cierto punto
derivó su metodología – la que le llevó a definir el derecho como ciencia pura – de
1
——————————————
1
Podemos ir todavía a los trabajos de Hans Kiefner, «Der Einfluss Kants auf Theorie und Praxis
des Zivilrechts im 19. Jahrhundert», o el de Wolfgang Naucke, «über den Einfluss Kants auf Theorie und
Praxis des Strafrechts im 19, Jahrhundert», y Herbert Krüger, «Kant und die Staatslehre des 19. Jahrhundert. Ein Arbeitsprogramm», sobre todo dirigido al análisis de la observación de J. C. Bluntschli, según la
cual «Incontables derechos naturales han surgido después de los fundamentos del sistema kantiano». Muy
interesante es su opinión de que «Si la teoría orgánica del Estado ha conformado la teoría alemana del
Estado del siglo XIX, entonces tiene que ser valorado el influjo y la significación de Schelling para la
doctrina de Estado como mucho más altos que el de Kant.». A pesar de todo, «el sincretismo debe señalarse
como el carácter fundamental de la teoría alemana del Estado en el siglo XIX». Todos los trabajos se
pueden ver en Philosophie und Rechtwissenchaft, Zum Problem ihrer Beziehung im 19. Jahrhundert,
Neunzehntes Jahrhundert Forschungsunternehmen der Fritz Thyssen Stiftung, Hrgs. J. Blühdorn und J.
Ritter. Vittorio Klostermann, Frankfurt, 1969.
2
Se sabe la profunda influencia del neokantismo en la filosofía del derecho de Kelsen. En 1912
Kelsen había leído en los “Kant Studien” una reseña en la que los Hauptprobleme der Staatsrechtslehre se
entendían como fuertemente influenciados por el neokantismo de Hermann Cohen. Sólo en 1923, Kelsen
precisaría la dimensión “real” de su relación con el neokantismo de Cohen. M. G. Losano, Introduzione a
H. Kelsen, La dottrina pura del diritto, Torino, Einaudi, 1990, p. 14.
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 141-171
142
José Luis Villacañas Berlanga
la radical dualidad entre razón teórica y razón práctica, entre leyes naturales y normas, por entonces vigente en Marburgo. La escuela de Heidelberg, organizada
alrededor de la figura de Rickert, tuvo un destacado pensador, en el que la escuela
confiaba para su renovación, que fue Emil Lask. Como tantos otros talentos, el
joven pensador judío murió en la guerra de 1914, pero dejó una Filosofía del derecho que tuvo cierta repercusión.
Para este ensayo, sin embargo, es más relevante recordar que, para los pensadores que fueron conscientes de la dimensión histórica de las ideas políticas,
Kant fue sobre todo el inspirador del liberalismo clásico alemán. Para el nuevo
tiempo, organizado sobre percepciones intensas de cambio, con exigencias cargadas de compromiso personal y de patetismo expresivo, el viejo sabio de Königsberg parecía un pensador demasiado burgués y limitado. Todos los espíritus buscaron otras influencias que consideraban más apropiadas. El propio Emil Lask escribió una monografía importante sobre Fichte, que puso de manifiesto la nueva idea
de un moral concreta, de una ética capaz de ofrecer deberes materiales vinculantes
para la conciencia personal con exigencias sacrificiales. Esto no significa que el
liberalismo no se renovara en el mismo sentido, ante el reto de dotar a los seres
humanos con energías morales a la altura de los tiempos. Tal fue el caso de Leonard Nelson, un hombre que se vinculaba a la renovación kantiana que había impulsado Fries a primeros del siglo XIX, y que mantenía viva la perenne hostilidad a
Hegel. Este enfrentamiento surgía desde la evidencia, incluso excesiva, de que el
Estado prusiano salido de la guerra de 1870, impulsado por Bismarck y luego entregado a una política imperialista, tenía en la filosofía del derecho de Hegel, sobre
todo desde el punto de vista de las relaciones internacionales, su mejor expresión.
El comentario es apropiado porque uno de estos pensadores inspirados por Hegel
fue, sin la menor duda, Hermann Heller. Si trazamos la evolución de sus ideas,
entonces tenemos que partir de aquí. Si alguna vez Heller habría de ser sensible a
argumentos de cierta inspiración kantiana, tendría que ser a costa de superar la
influencia hegeliana, decisiva, determinante en sus inicios. Quizá por eso debamos
referirnos ante todo a este primer momento.
2. El dilema central del pensamiento del primer Heller.
Como hijo de la conciencia social e histórica de la ilustración hegeliana,
Heller ha percibido con agudeza las contradicciones y dilemas en las que se ha
mecido la realidad política alemana en la época del II Imperio. Incluso antes de la
precisa descripción de aquel laberinto histórico de ideas y de tendencias de la Alemania del siglo XIX, que Heller nos lo legó en su El Círculo de las Ideas políticas
contemporáneas, nuestro autor ya se había enfrentado a la sistematización de las
Hermann Heller y el argumento kantiano
143
posiciones más encontradas con la voluntad hegeliana de síntesis. De hecho, esa
potencia de reconciliar – habría que añadir, de forma aparente – los fenómenos
extremos de la vida social, configura el aspecto de Hegel que siempre acaba seduciendo el talento de Heller. Sin embargo, aquella atención a las contradicciones,
aquella voluntad de no ser unilateral – como lo era la teoría pura del derecho, o el
existencialismo político schmittiano – era fruto de una voluntad más bien weberiana de atenerse a una “ciencia de realidad”.
Que Hegel ocupe el lugar central en las referencias del joven Heller implica
muchas cosas, pero ante todo impone que todas las síntesis acaben canalizándose a
través de la nación como potencia ética. Una de esas síntesis aspiraba a realizar un
pensamiento capaz de unir el siglo XVIII y el siglo XIX. En efecto, la contraposición entre estos dos siglos centra la atención de Heller, tal y como se puede leer en
su Hegel und Der nationale Machtstaatsgedanke in Deutschland: «En el camino
del espíritu alemán de Kant y Humboldt hasta Bismarck y Treitschke, desde la
filosofía idealista, del clasicismo y del romanticismo por una parte, hasta el tiempo
de la doctrina darwinista de la lucha por la existencia, de la lucha de clases del
marxismo y de la teoría de las razas y el evangelio nietzscheano del poder, por otro
[…] ningún puente perceptible parece conducir desde el pueblo de poetas y pensadores hasta el pueblo de “sangre y hierro”. Y sin embargo, ¡este puente existe! Sí.
La ideología del Estado–poder nacional es él mismo el hijo de la filosofía idealista
y no tiene otro padre que Hegel. El desarrollo del pueblo alemán desde la nación
cultural a la nación del Estado–poder ha sido a menudo caracterizado. Pero Hegel
como el fundador del pensamiento político moderno no ha sido todavía suficientemente pensado.»3
Hegel sería así el pensador verdaderamente puente entre el siglo XVIII y el
siglo XIX: su pensamiento de la dialéctica anticipaba los fenómenos de la lucha vital
y social tal y como los pensarían posteriormente Marx y Darwin, pero su comprensión de la Historia universal, encontraría la manera de confirmar ontológicamente el
pensamiento de la nación cultural, tal y como lo habían defendido los románticos. De
hecho, este pensamiento de la nación, que ya alentaba en el pensamiento de Leibniz,
y que reclamaba, de la mano de Herder4, la com–posibilidad de las mónadas nacionales en el mejor de los mundos posibles, fluía de la mano de Hegel hacia una
comprensión ontológica diferente. Ya no se inspirada en la simultaneidad de los
órdenes espaciales, sino en la sucesión violenta de los órdenes temporales propios de
——————————————
3
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke in Deutschland, Ein Beitrag zur
politischen Geistersgeschichte, 1ª Edición en Verlag B. G. Teubner, Leipzig und Berlin, 1921, y ahora en
Hermann Heller, Gesammelte Schriften, Aalen, 1963, vol. I. pág. 23.
4
Cf.mis trabajos, «Los orígenes del nacionalismo alemán moderno» en Ilustración y Revolución
francesa en el país Vasco. Ed. Xavier Palacios, Instituto de Estudios sobre nacionalismos comparados.
Vitoria, 1991. págs. 237-283, y «Fichte y los orígenes del nacionalismo alemán moderno», en Revista de
Estudios Políticos, Abril, Junio 1991. págs. 129-173.
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José Luis Villacañas Berlanga
la filosofía de la historia, mediante la forma de imperios. A través de esta centralidad
de la filosofía de la historia, organizada sobre una representación del pasado como
estómago de Saturno que devora a sus hijos, se teje la representación de la lucha por
un futuro que justifica la violencia endémica de la vida5. Así, la filosofía de la nación
pierde el cosmopolitismo de la com-posibilidad cultural ilustrada para entregarse a
los fenómenos de la lucha política por el futuro. Para ello, la cultura nacional tuvo
que fundar una potencia ética capaz de inspirar la profunda solidaridad que permite
entregarse a la lucha con unidad y espíritu de sacrificio6.
Desde esta perspectiva, es verdad: Hegel toma un elemento del siglo XVIII,
la nación, y lo proyecta sobre el siglo XIX. Pero, a decir de Heller, también toma
un elemento del siglo XIX y lo proyecta sobre el siglo XVIII: «Completamente
desconocido ha permanecido el Hegel ante todo como el primer y más amplio
anunciador del pensamiento del Estado–poder moderno. Y sin embargo, Hegel ha
pensado el Estado medio siglo antes de Treitschke y de su tiempo, pero de una
forma más penetrante y profunda que este, no sólo como Poder, Poder y más Poder, sino que ha establecido el poder político también como una exigencia nacional,
incluso como el primer y más elevado imperativo de la razón y la eticidad, del derecho y de la política práctica, de tal manera que la voluntad hegeliana de un poder
nacional–estatal puede caracterizarse en general precisamente como la fuente y el
punto constructivo de su filosofía social»7.
Heller, como se ve, descubre en el sentido cultural y ético de la nación la línea de continuidad entre el siglo XVIII y el XIX. Este último sería el siglo del poder, pero el Estado conformado en las duras realidades del siglo ahora debía recibir
el aporte normativo de la idea de nación. Aunque Heller no lo sabía todavía, un
oscuro discípulo de Herman Cohen también estaba trabajando en lo mismo, sólo
que desde otro punto de vista. Franz Rosenzweig, en su Hegel und der Staat8, también sabía que Hegel no era el inspirador del liberalismo que de él se había propuesto hacer Rudolf Haym9, sino el defensor del Estado prusiano, el dios mortal
——————————————
5
«De Hegel a Schmitt: el sentido de la neutralización moral de la guerra», en Incontro
Internazionale di Studio Filosofía e guerra nell’Età dell’idealismo tedesco, en Universitá degli Studi di
Padova, 26-27-28 settembre 2002.
6
M. Weber, «Los fundamentos económicos del Imperialismo». En el capítulo VIII de Economía y
sociedad. FCE. México. 1969, págs. 671-678.
7
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 24.
8
La edición primera Hegel und der Staat: Gedruckt mit Untersturzung der Heidelberger Akademie
der Wissenschaften, München: R. Oldenboirg, 1920. Una edición italiana de la misma se puede encontrar en
Il Mulino, Bologna, 1968. En mi Historia de la filosofía del idealismo alemán. 2 vols. Editorial Sinthesis.
Madrid. 2001 se puede ver un análisis de esta obra.
9
Rudolf Haym, Hegel und seine Zeit: Vorlesungen: Entstehung und Entwicklung, Wesen und Wert
der Hegel'schen Philosophie, 2. um unnbekannte Dokumente verm. Aufl/herausgegeben von Hans Rosenberg, Leipzig: Wilhelm Heims, 1927.
Hermann Heller y el argumento kantiano
145
por el cual tantos millones de alemanes habían dado su vida pensando realizar con
ello un acto ético, y al que el espíritu judío de Rosenzweig debía denunciar como
un usurpador.
Cuando nos preguntamos por la estructura de este pensamiento hegeliano del
Estado, que conduce desde el idealismo a los tiempos de Bismarck, encontramos
los siguiente elementos, según Heller: 1. – el Estado es una personalidad y un organismo; 2. – el concepto de Nación es la base ética común a todos sus miembros;
3. – el principio monárquico constitucional es la cima de esta construcción y se
sostiene por las dimensiones simbólicas que despliega; 4. – el moderno derecho
internacional, basado en la soberanía absoluta del Estado y en la inexistencia de un
juez tercero a los Estado, está plenamente vigente; 5. – el concepto de derecho
corresponde al Estado–poder nacional en exclusiva. Cuando nos damos cuenta de
este conjunto de elementos, estamos en condiciones de mostrar lo que Hegel deja
fuera del sistema del pensamiento del siglo XVIII. Entonces su capacidad de síntesis no parece tan afinada. Pues el cosmos de la nación, por sí mismo, no representaba el elemento del siglo XVIII. Este cosmos nacional no permanece intacto
cuando cesa de jugar en el ámbito de la cultura, para jugar en el ámbito de la política de poder. Entonces nos damos cuenta de que, en este cambio de la representación de la nación, se ha entregado algo que ni siquiera Weber había entregado: las
premisas jusnaturalistas del derecho racional moderno y la presentación de la nación como res publica. Lo que se abandona en este paso de la nación cultural a la
nación-Poder es la interpretación jusnaturalista de la nación, que en el siglo XVIII
siempre estuvo asistida de premisas morales y culturales que tenían como centro la
dignidad personal y la noción de res publica.
Algo semejante nos sugiere Habermas cuando, en Teoría y Praxis, afirma
que Hegel nos introduce en un mundo donde se aseguran los efectos de la
Revolución francesa, pero sin revolución. Interpreto que esta tesis quiere decir:
olvidando los supuestos del republicanismo10. Todavía no podemos examinar el
juego de estas dos nociones, desde luego. Ahora sólo nos interesa saber que
Hegel era consciente de esta oposición entre el estado–Poder y el derecho natural
del siglo XVIII11. Y sin embargo no manifiesta nostalgia alguna por la ruina del
derecho natural. Para él, aquel derecho racional no implicaba potencia ética
alguna. Su hostilidad al republicanismo y a su idea de contrato en este sentido es
radical12.
——————————————
10
J. Habermas, Teoría y Praxis, Estudios de Filosofía Social. edit. Tecnos, Madrid, 1987, «La crítica de Hegel a la revolución francesa», págs. 123-141.
11
12
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 26.
Para Hegel y la idea de contrato social, debe verse el capítulo dedicado a Hegel, cf. Duso, G.
(editor) La filosofía moderna del contrato social, Res Publica, Murcia, 2000.
146
José Luis Villacañas Berlanga
3. Los límites de la síntesis hegeliana.
Heller, sin mantener distancias algunas, había caracterizado el pensamiento
político de Hegel de esta forma: «El pensamiento del Estado–poder es la expresión
abreviada de una cosmovisión cerrada.»13 Su capacidad de recibir la herencia del
siglo XVIII es desde este punto de vista muy limitada. Sin embargo, Heller, olvidándose de su voluntad de síntesis, ahora se siente mucho más inclinado a entender
la contraposición como la cerrada hostilidad de dos “concepciones del mundo”: la
personalista y la trans-personalista. En esta contraposición de cosmos cerrados se
juega el destino del derecho natural y del republicanismo. Las ideas que definen el
siglo XVIII y el siglo XIX no permiten una síntesis, sino una exclusión. Se trata de
movimientos de pensamiento hostiles entre sí. Sin preguntarnos por la reducción de
esta recepción del siglo XVIII, cuando la miramos desde la forma kantiana, podemos exponer este Personalismo bajo las siguientes características:
1.– Prioridad del individuo sobre la comunidad estatal.
2.– Prioridad de la libertad individual sobre poder del Estado.
3.– Movimiento del pensamiento desde abajo: Estado sirve al particular.
4.– Posición central de los dominados.
5.– El Estado no es necesario para la vida humana.
6.– La individualidad desarrollada vive fuera de la Política.
7.– El individuo es absoluto, el Estado tiene un valor relativo.
8.– Individuo, como persona, es homo noumenon y totalidad.
9.– Este es el portador de igual dignidad.
10. – Estas abstracciones fundan la igualdad cosmopolita y democrática.
11.– «Aquí se vinculan totalidades indeterminadas en un Estado, valioso
para sus fines en exclusiva. El Estado no sino una relación de derecho entre los
particulares racionales. Su idea es un contrato.»14
12.– «Sólo el individuo particular es fin en sí y sólo él posee un derecho absoluto a la autoafirmación y al perfeccionamiento, a la libertad.»
13.– Conclusión: «El Pensamiento del Estado–poder resulta para el personalismo extraño como conocimiento, hostil como deber.»
14.– Por eso se alaba la Kleinstaaterei como condición de la libertad alemana15 y de la libertad europea. La nacionalidad es una dimensión puramente
espiritual, de naturaleza ético–estético. La diferencia radical se visualiza así en la
contraposición entre la nación alemana y el Reich alemán. El nacionalismo cultural
limita por tanto la Machtspolitik.
——————————————
13
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 24.
14
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 28.
15
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 32.
Hermann Heller y el argumento kantiano
147
15.– El Estado es un mal necesario, para estas intuiciones «anarquistas.»16
16.– Así que Heller acaba por aceptar la tesis de Meinecke: «Ilustrados y
Románticos han proyectado una oposición común al Estado del antiguo régimen,
en su opinión inmoral, como si fuera propiamente el Estado-poder general».
En toda esta serie de puntos, la reconstrucción de los argumentos filosóficos
desaparece ante la historia, preparada para que la emergencia de Hegel aparezca
como única salida. La posición de Kant, de la que Heller acaba por reconocer que
sólo con ciertos matices cabe dentro de este esquema, desaparece bajo algunos
comentarios que resultan dudosos. De hecho, este largo listado se aplica mucho
mejor a ciertos románticos y al culturalismo liberal de Humboldt, ya a la defensiva
de jacobinismo patriótico, que al republicano Kant, todavía implicado en una fase
constituyente del Estado de derecho. Lo que se capta mediante esta serie es más
bien un ambiente, en modo alguno una teoría filosófica. Se trata de historia de las
ideas, no de filosofía. En este listado de tesis se mezclan, por tanto, puntos comunes a Kant y al siglo XVIII clásico y romántico, pero se introducen matices e interpretaciones que son ajenas a una filosofía del derecho y del Estado como la kantiana. Cuando comparamos la filosofía kantiana, con la comprensión de Kant que
se trasluce en estas páginas de Heller, comprendemos que se ha forzado el trazo
para que coincidan los principios en un grupo que resulta caracterizado como el de
los anti-hegelianos.
En el fondo, Heller lo sabe. De Kant se tiene que reconocer que ya supera el
individualismo ilustrado, pero que desprecia todo poder expansivo17. Lo cual es
plenamente cierto. Pero no se repara en que, con ello, Kant se sitúa justo en el medio entre el individualismo cultural alemán y el Estado–poder. En la teoría del derecho de Kant se nos ofrece un jusnaturalismo político republicano, que funda
Macht, pero que mantiene este Macht distribuido entre la ciudadanía y entre los
plurales poderes que la representan18. Se reconoce que esta visión del Estado no es
ideológica o «ajena al mundo», como diría un weberiano. Pero no se profundiza en
la idea de que, desde el punto de vista del Estado kantiano, el planteamiento hegeliano bien podría aparecer tal. Por ejemplo, su tesis del jefe del Estado como mera
tilde de la ley, oculta el poder intenso que la burocracia imperial ejerce sin responsabilidad alguna.
Así las cosas, Heller tiene que aparecer claramente insensible a la filosofía
de Kant en el punto decisivo. Heller dice: «Kant en modo alguno ha pasado por
alto la significación del momento del poder del Estado, pero nunca ni en modo
——————————————
16
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 35.
17
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 33.
18
Para esta teoría de la representación Cf. mi Res Publica, Los Fundamentos normativos de la política. Akal, Madrid, 1997. Y para un ensayo general, Cf. G. Duso, Die moderne politische Repräsentation:
Entstehung und Krise des Begriffs, Duncker& Humblodt, Berlin, 2006. Sobre todo el cap. II, págs. 57-124.
148
José Luis Villacañas Berlanga
alguno le ha concedido valor positivo en sí.»19 Esta tesis olvida hasta qué punto
Kant ha hablado del deber de fundar un Estado, de que esta fundación se trata de
un acto de virtud, de que sólo entonces tienen sentido los derechos fundamentales,
de que el Estado se desprende de la estructura racional del derecho, y este de la
estructura misma de la razón práctica, y de que el poder exterior es necesario al
derecho. Por lo tanto, el Estado tiene un valor tan central como la propia libertad
que lo funda y lo garantiza. Y por eso, porque el poder externo se deriva del propio
concepto del derecho, jamás puede escapar a su límite. En suma, para Kant, el individualismo moral no puede separarse del republicanismo político. El uno sin el
otro es inviable. Sin ambas virtudes, morales y políticas, no es posible ninguna de
ellas. El hombre como fin en sí no es separable de la idea de un reino de los fines
cuya única traducción inmanente posible es el reino del derecho.
Por otro lado, aunque Hermann Heller reconoce el papel de la discordia en
Kant, y asume que la formación del Estado es para él la meta de la teleología de la
naturaleza y forma parte de la estructura histórica del bien supremo y de la providencia, interpreta de forma reductiva esta teoría. Por ello no está en condiciones de
recordar que la paz perpetua reclama el estatuto de bien político supremo. Así que
nada de alabanza de los pequeños Estados, sino alabanza de la potencia expansiva
de la constitución republicana mediante federación de Estados libres. Jamás recuerda Heller que la noción de Friede implica a nivel interno la justicia distributiva
y a nivel externo la justicia internacional y que, sin una, no puede existir la otra. La
síntesis entre republicanismo y federación de Estados no le parece a Herman Heller
una alternativa radical al Estado-poder y al imperialismo como camino necesario
de la expansión del Estado-nación. Por lo tanto, debemos concluir que la paz, para
Kant, es la consecuencia inevitable de la propia perfección jurídica del Estado libre. Para Hegel es la hegemonía de un Estado cultural imperial de poder.
Finalmente, reconociendo que el interés en el Estado es ético, Heller se esfuerza por una interpretación reductiva de Kant, que hace del individuo autónomo
lo único valioso en el mundo, olvidando de una manera radical que este individuo,
como tal, no puede ser autónomo si no entra en la trama cooperativo–competitiva
de la acción social. La clave parece ser que «el poder nunca aparece como una
meta ética», sino meramente como medio. Heller cita aquí a Cassirer, no a Kant,
para afirmar la »heteronomía del poder del Estado mismo». Una comprensión genuinamente republicana, como es propia de Kant, y por cierto de Cassirer20, no
permitiría afirmar esta heteronomía misma del Estado. Pues el momento constituyente del pueblo genera una ley constitiución de naturaleza plenamente autónoma.
Sólo en el momento del poder constituido se mantiene la exterioridad entre los
ciudadanos y el poder. Mas desde luego, distancia no es heteronomía. Es la conse——————————————
19
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 33.
20
Cassirer fue muy leído por Heller, sobre todo su Freiheit und Form, Berlin, Bruno Cassirer, 1916.
Hermann Heller y el argumento kantiano
149
cuencia de la autonomía del juicio político que el ciudadano ha de mantener para
ordenar la representación, para cumplir la ley, para verificar su obediencia. De
hecho este es el punto. Representación, el vínculo entre ciudadanos y el poder
constituido, no es heteronomía para el republicanismo, sino confianza, actuación
propia a través de la actuación de otro delegado y autorizado por todos.
En el texto de Heller, por tanto, Kant desaparece como un mero paso intermedio entre el jusnaturalismo cultural de la ilustración y del romanticismo, y el
estatalismo de Hegel, pero se hace a costa de abandonar toda la tradición republicana moderna. Este abandono vino impuesto por las fuerzas hiper-conservadoras
del Reich que se negaron a someterse jamás a un poder constituyente. Al asumirlo,
Heller aceptó la victoria de la facticidad existencial de Reich como si implicara un
triunfo filosófico. La posición de Kant, la única que genera una normatividad capaz
de fundar un Estado como fin ético que no entre en contradicción con la existencia
de la persona como fin en sí, a través de un pleno sometimiento al derecho establecido de forma republicana, queda obviada. Una vez Kant resulta eliminado de su
punto de vista, Heller puede decir: «Para el pensamiento del derecho natural, los
pares de contraposiciones entre poder y derecho, poder y libertad, poder y eticidad,
categorías estancas, entre las cuales no existe ninguna mediación.»21 La nación sin
poder constituyente propio entonces apareció como la única salida cuando el republicanismo había desaparecido.
Así, Heller puede ya introducir el elemento que realmente le interesa: la nación como fundamento existencial del Estado. Pero también con ello, la nación
recibe los atributos absolutos de la persona noumenon, y los proyecta sobre su
manifestación sensible que es el Estado. Desde este supuesto, cae por la borda la
voluntad de limitar el poder de la nación–Estado desde las exigencias del hombre
como persona phaenomenon. La cosmovisión del nacionalismo político, y sus herederos y subrogados de la nación, no es una síntesis del siglo XVIII y XIX, sino la
sublimación de una idea de personalidad individualista, ahora proyectada sobre un
colectivo nacional que antes no tenía operatividad política per se. La nación para
Kant, lo sabemos, es la ficción por la que los hombres de un pueblo jurídicamente
unidos y conscientes de su poder constituyente de derecho, se representan como
hijos comunes de una única patria22. La filosofía de Kant, siempre atenta a reducir
mediante la norma las proyecciones narcisistas del sujeto, fue la única en concebir
un sujeto humano limitado, pero capaz de generar, a través de esa misma limitación, un Estado igualmente limitado en su poder y en su norma.
Frente a esta teoría del sujeto constituido por la norma, la teoría ontológica
de la personalidad nacional, cuyo sujeto se eleva en ambos casos como valor absoluto, carece de toda norma. Su única norma es la autoafirmación que brota de su
——————————————
21
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 89.
22
Cf. mi ensayo La Nación y la Guerra, Res Publica, Murcia, 1999.
150
José Luis Villacañas Berlanga
existencia incuestionable, supuesta, material, vinculada a valores que ha de expresar. En este caso, la obra de Hegel en el siglo XIX no habría significado síntesis
alguna, sino la identificación de otro sujeto capaz de sufrir las mismas patologías
del sujeto sublimado del siglo XVIII, de naturaleza monadológica y auto-referencial. Hegel no sería sino la metamorfosis de una enfermedad, ni la superación saludable y anti-narcisista del sujeto, empresa reservada a la filosofía de Kant.
Cuando con estos comentarios avanzamos en la exposición del Transpersonalismo, encontramos los caminos de esta transferencia de semantemas propios de
una subjetividad narcisista, incapaz de verse a sí mismo como una complexio–oppositorum y de reconocer en sí la centralidad de la ambivalencia. La nación es un
sujeto que no desconfía jamás de sí mismo, que tiene como vocación una expresión
absoluta de sí. Las patologías se trasladan, pero se mantienen. De la misma manera
que el Estado era visto por el individuo ilustrado como una abstracción, ahora es el
Estado el que ve al individuo como una abstracción, cuya dimensión normativa no
reconoce. De la misma manera que el individuo narcisista burgués se comprende
en lucha contra los demás, ahora el Estado se ve a sí mismo bajo este prisma. La
representación profunda, la herramienta conceptual, la noción de Sujeto auto-referencial, exclusivamente narcisista, que ve el mundo a través de sí mismo, y porque
se ve a sí mismo, no se ha cambiado.
A través de la voluntad de pensar al «individuo sin abstraer de las determinaciones de carácter, tiempo y nación», de facto se introduce la estrategia de no
pensar sino la pertenencia misma a la nación, y con esto no se hace otra cosa que
pensar la nación misma. En todo caso, no tenemos que hacer una contraposición
entre los detalles que caracterizaron el Personalismo y los que van a caracterizar el
Trans-personalismo del estado–Nación. Sólo debemos demostrar que, en el fondo,
se trata del mismo sujeto. Por lo tanto, sólo tendremos que hacer un mínimo ejercicio de sustitución. Pero demostrar que la representación de base es la misma es
muy fácil. «Para el Trans-personalismo todo Yo es sólo un Yo-parte y depende en
su completa existencia de un Yo-Todo mayor. Este Yo mayor puede ser Dios,
Iglesia, Clase o cualquier otra forma de sociedad; pero sólo puede ser la humanidad
en tanto que alcanza una objetividad intuitivamente limitada por un principio de
individuación cualquiera concreto. […] Sólo como conexión empírica, no como
representación abstracta es posible un universalismo. […] El Estado nacional se
convierte así en el Yo–Todo presupuesto sin el que ni se puede vivir ni pensar.»23
Estamos por tanto ante una tesis que hace del Estado-nación un trascendental
de la vida humana. De esta forma, no sólo se confiesa la identidad estructural entre
el Yo–individuo del siglo XVIII y el Yo-Estado-Nación del siglo XIX. Ambas
formas de subjetividad proceden de un mundo en el que dominaban formas no desencantadas del sujeto. En esta serie, el hombre se calza las sandalias de Dios o de la
——————————————
23
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 27-28.
Hermann Heller y el argumento kantiano
151
Iglesia, y sólo por los fracasos obvios de esta idea, la nación acaba heredando la
posición de Dios en el mundo. En todo caso, lo que más nos interesa, es que un
sujeto absoluto genera el derecho. La sensibilidad de Heller para apreciar la monstruosidad de esta deducción es mínima por el momento. De hecho sólo al final de
su carrera lo hará. Por ahora olvida hasta qué punto en una genuina consideración
intra-mundana no cabe apelar a derecho absoluto alguno, sin proponer el momento
en que este derecho alcanza su límite; olvida en suma que la única consideración
intra-mundana impone trazar el límite de validez de toda instancia de sentido. Por
ello, Heller da el paso desde la subjetividad nacional al derecho absoluto, sin medir
las consecuencias. «El Estado prescinde de la cualidad-Yo objetiva de los individuales determinados por él y se intuye en la imagen de un organismo tras-personal.
[…] Aquí se atribuye el derecho absoluto sólo al Estado, sólo él es el fin final y
sólo el Yo–total debe ser libre, absolutamente soberano, capaz de afirmarse a sí
mismo y de expandirse: en una palabra, debe ser un Poder.»24
El individuo con derecho limitado por el derecho del otro, el hombre que posee derecho en sí, no existe. Tiene derecho sólo si lo canaliza a través del derecho
del Estado y en la medida en que este se lo reconozca. El Estado que dispone de un
derecho sólo si lo funda a través del derecho de los ciudadanos, y sólo si mantiene
relaciones de derecho con los otros Estados, este tejido de referencias complejas y
en tensión, que constituía el edificio kantiano, queda aquí simplificado por una
visión metafísica del mundo que acaba encontrando un sujeto ideal que sólo parece
real porque reclama Poder absoluto. Pero la idealidad de este sujeto, su naturaleza
extraña al mundo real, reside en el monopolio final del sentido, en su reclamación
de ser la clave de interpretación de la historia. Pensar el tiempo como el juego plural de las interpretaciones, tan plural que ningún sujeto puede reclamar el monopolio final del sentido, ni ganarlo mediante una estricta auto-referencialidad, esta
previsión estaba excluida desde la voluntad de sistema de Hegel.
4. ¿Por qué Hegel?
Cuando nos preguntamos por aquella visión que deforma la mirada de
Heller, y que le permite conceder a un pensamiento tan claramente monstruoso
desde el punto de vista del derecho racional como el de Hegel una hegemonía sobre
todo el pensamiento político moderno, entonces tenemos que acudir a las decisiones de valor, plenamente asentadas en su ideario político socialista. Lo que significa Hegel para Hermann Heller es lo siguiente: «El pensamiento del Estado nacional alemán y el socialismo alemán nos conducen los dos de regreso a Hegel. Nin——————————————
24
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit., pág. 28.
152
José Luis Villacañas Berlanga
gún monumento más digno pueden elevar a sus ancestros que el de encontrar el
camino común a la realización del pensamiento profundizado por Marx y Lasalle
de un pueblo alemán completo organizado en un nuevo poder nacional.». La centralidad de Hegel finalmente no es propia, sino consecuencia de la centralidad del
proyecto socialista y, para ser más precisos, de uno de sus déficit más rigurosos: el
de no ser capaz de unificar el pensamiento de Marx con el pensamiento de Lasalle,
reunir el pensamiento de la clase con el de la nación, el de la ordenación completa
del orden productivo a partir del sujeto nacional. En suma, Hegel era necesario
porque atribuía a la nación la potencia ética necesaria para llegar al socialismo.
Este déficit del marxismo nos lleva de nuevo al problema Hegel como el
pensador de la síntesis. Y hemos de reconocer que aquí adquiere una mayor verisimilitud. Pues Marx se había especializado en una comprensión de la Modernidad
desde el punto de vista del espíritu universal, aunque ahora portase el nombre de
desarrollo de las fuerzas productivas. Desde esta perspectiva, Marx penetraba la
historia, le concedía una teleología inmanente y descubría el juego de la necesidad
y la objetividad científica. De una manera clara, fortalecía los procesos a escala
mundial y estaba poco preocupado por los Estados individuales o por las culturas
nacionales, que acabarían disueltas en el maremoto de las imposiciones de los modos de producción capitalista. Cuando miramos esta terrible y acertada profecía
desde Hegel, quizás se pueda echar de menos en Marx una apreciación de las pasiones naturales de naturaleza ética que se ponen en juego para desplegar la maquinaria del espíritu del mundo, sobre todo si despreciamos la conciencia subjetiva de
la clase, que a Heller le parecía una abstracción universalista. Tener en cuenta esta
mediación fue lo que permitió a Lukács forzar una traducción sin fisuras entre
Hegel y Marx, sin necesidad de mediaciones por la ideología nacional de Lasalle.
Heller no va por este camino de Lukács. Él ve necesaria esta síntesis de clase
y nación, por razones complejas, pero formales. Ante todo porque la dimensión
materialista de Marx debe ser compensada con la visión cultural de la nación, y
porque la visión crudamente belicista de la nación debe ser compensada por las
fuerzas de la solidaridad marxista. Desde este punto de vista, la compensación
permite claramente la crítica de los extremos. Pero en esta crítica de los extremos,
lo que realmente se produce es un movimiento de autocrítica que torna al principio,
al origen. Pues Hegel vio claro que sólo una nación elevada a Estado conforma una
clase nacional capaz de controlar el proceso de la sociedad civil desintegrada y
rota, determinada por el mercado. Pero ya igualmente Marx había previsto en el
Manifiesto Comunista que la lucha del proletariado «se eleva a clase nacional y se
constituye a sí mismo como nación.»25 La necesidad de esta síntesis, sin embargo,
sólo puede apreciarse si reparemos en los caminos divergentes que llevaban el pensamiento de la nación y de la clase obrera. La primera, por obra de Bismarck, se
——————————————
25
Hermann Heller, Hegel und der nationale Machtstaatsgedanke, op. cit.,pág. 255.
Hermann Heller y el argumento kantiano
153
había organizado para la prepotencia imperialista en una guerra externa, y por tanto
sólo pensada desde la política exterior; por su parte, el pensamiento de clase se
había dirigido exclusivamente a la política universalista, pero sin pasar por el esquema intermedio de la construcción de un genuino Estado nacional.
Hegel era en el fondo un pensador equilibrado entre la política interior y la
política exterior, y de esta forma, servía de modelo tanto para una genuina política
socialista, como para una genuina política exterior universalista. Nunca previó este
pensamiento la forma concreta en que este esfuerzo de nación y socialismo se iba a
encarnar en la historia. En cierto modo no la necesitaba. Para un pensamiento inspirado en Hegel, este curso de las cosas quedaba avalado por el espíritu del mundo
y estaba a salvo de toda contingencia. En sí mismo conformaba una especie de
dispositivo cuyos diagnósticos parecían infalibles. La larga evolución del siglo
XIX parecía asegurarlo. La percepción de lo nuevo no ha sido nunca especialidad
de los sistemas filosóficos. La revolución, la irrupción de lo nuevo, no era para
ellos sino el fracaso, lo más viejo.
5. El Personalismo modificado y la interpretación jusnaturalista de la nación.
Desde luego, Heller no ataja el pensamiento hegeliano por el cual las relaciones entre los Estados resultan entregadas a la guerra indefinida de autoafirmación. Como afirma Schluchter26, Heller no es hegeliano porque no acepta la filosofía de la guerra de Hegel. Mas la filosofía de la guerra era solidaria del Trans-personalismo del Estado como organismo. Por lo tanto, este rechazo del derecho
absoluto del Estado a la autoafirmación incondicional mediante la guerra, con el
sacrificio de su ciudadanía, implica una revalorización de los supuestos del jusnaturalismo. Schluchter ha hablado en consecuencia de la necesidad de un “personalismo modificado”. Así se ponía en el camino de una interpretación jusnaturalista
de la nación, en el sentido de inyectar en la base misma de la formación del Estado
principios que garanticen el límite del poder del Estado. Pero de esta forma, Heller
reinterpretaba la nación como comunidad de valores culturales y éticos, en la línea
del difamado siglo XVIII.
En una página de Las ideas políticas contemporáneas se puede leer, de una
manera muy clara, lo que puede significar el fondo cultural de la nación: «Por eso
el desarrollo de toda cultura es necesariamente siempre, dentro de una determinada
dirección, racionalización progresiva de todas las relaciones de la vida, un “proceso
de transformación de lo racial en reflejo” (Jac. Burckhardt). La racionalización,
——————————————
26
W. Schluchter, Entscheidung für sozialen Rechtstaat, Hermann Heller und die staatstheoretische
Diskussion in der Weimarer Republik. 2 ed. Nomos Verlag, 1983, Baden-Baden, pág. 111.
154
José Luis Villacañas Berlanga
frente a la autoridad sacerdotal o la fundada en el nacimiento, significa siempre la
vuelta al individuo como último elemento de la vida social. En este aspecto, como
en muchos otros, un estado de creciente cultura significa un estado de creciente
independencia del individuo, una formación de personalidad, un predominio más
amplio, aunque no siempre más hondo, de una actuación humana consciente frente
a las relaciones sociales irracionales.»27
La base de este movimiento de regreso hacia el personalismo no era otra que
la comprensión de la corriente central de la modernidad, esa atenencia al mundo
que no permite apelar a entidades metafísicas transcendentes, como de hecho era
esa super-subjetividad de la Nación–Estado, entendida como valor absoluto. Este
refuerzo y aceptación de la apuesta por la inmanencia, propia todo el proceso de
modernidad, genera una nueva corriente de ideas en el pensamiento de Heller que
busca su centro en la idea de la Democracia. Sin embargo, como había dejado claro
Carl Schmitt, la idea de democracia no era unívoca28. Muy de señalar es esa sutil
indicación de que la base de toda racionalización no procede del nacimiento o de la
autoridad, sino del individuo, que ahora no se comprende como ser aislado y atómico, sino como elemento de la vida social, tal y como quedaba claro en el individualismo metodológico de un Weber. Con ello, Heller veía el peligro allí donde
Weber lo había puesto en las páginas finales de Wirtschaft und Gesellschaft: en la
tendencia a convertir la política en una dimensión meramente emocional, el camino
preferido por la activación de la idea de nación. Como ya sabemos, en Weber, sólo
una política que apela a la persona puede generar las virtudes de la responsabilidad
y de la acción consciente.
Parece como si, por fin, Heller saliera de una referencia erudita a ideas literarias y se enfrentara a la realidad de su época, en las que aquellas ideas ya aparecían
ampliamente deformadas. Pero igualmente, al levantar la mirada por encima de la
más reciente historia, al contemplar los procesos históricos en la amplitud del arco
de la modernidad, Heller vislumbra que ese proceso histórico nos ha legado una
normatividad implícita, la única electivamente afín con la apelación a la inmanencia. «La nueva metafísica panteísta tenía su exacto paralelo en la inmanencia del
Poder político, en la metafísica de la soberanía del pueblo […] como un ius divinum et naturalem.»29 La democracia juega ahora como la idea matriz de todas las
ideas políticas. Pues sólo ella se enfrenta al reto de producir un orden en una realidad social desacralizada, carente de parámetros transcendentes, condenada a apostar por las fuerzas encontradas en la inmanencia. Esta es la fe heroica de la razón,
——————————————
27
Hermann Heller, Las ideas políticas contemporáneas, Labor, Barcelona, 1933, pág. 23.
28
C. Schmitt, Sobre el Parlamentarismo. 2ª ed. Ed. Tecnos, Madrid, 2002. También su noción de
Dictadura como compatible con la democracia. Cf. La Dictadura:desde los comienzos del pensamiento
moderno de la soberanía hasta la lucha de la clase proletaria. Alianza Editorial, Madrid. 2003.
29
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 25.
Hermann Heller y el argumento kantiano
155
la dimensión carismática de la razón. Las ideas políticas serán así variaciones de la
idea democrática y sobre ella deberá interpretarse tanto el nacionalismo, el liberalismo como el socialismo.
Sorprende de nuevo que el republicanismo no aparezca como idea política.
Una vez más, la democracia caracteriza a la nación. A esta comprensión de la democracia como base de la nación le he llamado interpretación iusnaturalista de la
nación. Con ello no hemos dicho nada acerca de qué puede añadir la nación al pensamiento de la democracia. De entrada podemos captar lo que la sobredeterminación democrática entrega a la nación: a saber, el pensamiento de que la nación no
puede generar un poder que atente al derecho racional de los individuos ni exigir el
sacrificio de sus miembros.
La falsa oposición entre el individuo y la nación quedaba así superada. La
nación es un reconocimiento social del derecho racional, y por tanto, de la democracia30, que conviene definir posteriormente, pero que no se considera desde la
categoría asfixiante de organismo total. Antes bien, el mayor intento del pensamiento posterior de Heller apuntará a definir en qué sentido la nación puede ser
definida en el orden de las ideas democráticas. Por el contrario, el anti–individualismo, y la hostilidad al derecho natural, quedaba ahora reconocido como una de
las herramientas ideológicas del romanticismo reaccionario31. La nación como una
comunidad total, como una inmanencia anti–individualista, es ahora degradada
como instrumento propagandístico utilizada en apoyo de la monarquía alemana.
Aun reconociendo que la idea de nación, tal y como se conoce en su interpretación
jusnaturalista, puede integrar potenciales revolucionarios, Heller insiste ahora en
que ésta no ha sido la forma en la que se ha interpretado la idea de nación en la
Alemania contemporánea. «En el romanticismo – dice Heller – la nación se transforma en “quietista” de la continuidad “orgánica” de la vida, a través de las categorías de la historia.»32
Las viejas categorías se critican ahora justo a partir de las ideas ilustradas.
Pues esta interpretación quietista entregaba a la nación un estatuto trascendente que
la hacía «independiente de la crítica racional y revolucionaria de los individuos».
Ahora se reconocía que esta potencia crítica, procedente del derecho natural, era
una instancia normativa. Ignoro si esta comprensión se alcanza por la iluminación
que Carl Schmitt proyectó sobre el Romanticismo Político33. En todo caso, Heller
estaba ahora en condición de discriminar en el conglomerado de la historia ale——————————————
30
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 27.
31
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 35.
32
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 36.
33
Cf. mi trabajo «Romanticismo Político. Sobre el estatuto del libro de Carl Schmitt, o un capitulo
de Ontología Política»; en Ángel Prior, editor, Estado, Hombre y gusto estético en la crisis de la Ilustración, Biblioteca Valenciana, Valencia, 2003, págs. 31-51.
156
José Luis Villacañas Berlanga
mana, los elementos normativos filosóficos. Hegel pasaba a ser sospechoso de defender la idea de Estado monárquico–feudal. «Hegel – que pasa a ser colocado
junto con Stahl – se convierte en el teórico político del constitucionalismo monárquico, acuñado por Bismarck, y mantenido por la burocracia y la burguesía nacional liberal.»34. En todo caso, la proximidad de los análisis de Heller y los de Weber
resulta ahora muy marcada35. La mirada de Heller pudo comprobar entonces cómo
la metafísica hegeliana del Estado era electivamente afín con el positivismo jurídico. Laband no era en modo alguno contradictorio con Stahl, sino su expresión
jurídica.
La idea democrática moderna, que desde Spinoza hasta Weber insiste en la
comprensión de la legitimidad desde la obediencia que voluntariamente prestan los
dominados – obedientia facit imperantem, decía Spinoza –, es la única que resulta
coherente con el cosmos de representaciones modernas, sean epistemológicas, metafísicas, éticas, políticas o jurídicas36. Ahora, la posición de Kant no es la de un
mero individualismo. Ahora se dice de él: «La idea kantiana de una legislación
general, la exigencia de una autonomía universal, su ética jurídica de la ley, todo
apunta hacia el democratismo político»37. Sin embargo, las reservas no desaparecen. Aunque Kant acogió el contrato social, la soberanía del pueblo, las exigencias
de libertad y de igualdad, «las convirtió en una forma inoperante, inofensiva».
Ahora se reconoce la visión republicana de Kant, tan diferente del individualismo,
y su hostilidad a todo representante soberano. El primado de la ley impersonal,
«característica de toda democracia», es afirmado como la única instancia trascendente que conoce el ser humano.
Heller reconoce, en un pasaje sutil, que este reconocimiento del derecho impersonal tiene que producirse desde el movimiento de la propia autonomía de la
conciencia moral38. En realidad, se dice que Kant opuso al absolutismo policial y
mercantilista «el ideal del Estado de Derecho en su forma más absoluta, abrupta y
estricta». Decisiva es la idea de virtud republicana, el hecho de que por su contenido la ley jurídica no se puede oponer ni distinguir del imperativo categórico.
Además, Heller reconoció que Kant mostró la vinculación entre la ley jurídica y la
idea de una paz general y perpetua a través del principio de libre federación.
Las reservas tienen que ver con el hecho de que Kant retiró «del pensamiento democrático toda la ponzoña revolucionaria.»39 Jamás analiza Heller seria——————————————
34
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 38.
35
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 44, 54.
36
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 64.
37
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 66.
38
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 67.
39
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 68.
Hermann Heller y el argumento kantiano
157
mente si este resultado es fruto de una comprensión roma de la teoría o bien si se
debe a una superior comprensión de la misma. En realidad, Heller supone que Kant
confiaba en la teleología interna de la naturaleza, en la «ley causal que rige el proceso social». Las instituciones republicanas sería fruto de una maduración social,
no de una revolución que suponía una diferencia entre los sujetos activos y el pueblo. Se pasa por alto la tesis de Kant que sugiere que, si el pueblo organiza sus
poderes en una constitución, no puede hablarse de una revolución y, por el contrario, si se habla de una revolución en una situación constitucional, entonces no se
trata del pueblo.
Sin embargo, a pesar de reconocer elementos de su republicanismo, Heller
sigue haciendo de Kant un liberal. «La idea del Estado liberal racional tuvo en
Kant al más grande de sus representantes. Su doctrina construía al Estado como si
estuviese basado en el contrato celebrado por individuos autónomos, con el exclusivo fin de asegurar su situación jurídica. El derecho y la propiedad individuales
son anteriores al Estado»40. De esta manera, Kant sería el representante de las ideas
jusnaturalistas burguesas de corte individualistas y liberales, ejerciendo su principal
influencia sobre Humboldt41, quien habría heredado su actitud anti-revolucionaria.
El conjunto de ideas del liberalismo sería así el núcleo dominante de su inspiración
que, aunque propone el «heroico ideal de la felicidad digna» contra el sentido de la
felicidad utilitaria, no es menos individualista que el hedonismo.
El núcleo básico y fundamento de la idea liberal derivaría del concepto de
dignidad humana en general y, con ella, los ideales de tolerancia, Estado laico,
ciudadanía universal y pacifismo serían inevitables42. El resultado se exponía en la
última página del capítulo entregado a las ideas liberales: «El núcleo de ideas liberales ha implantado, por sus reivindicaciones de respeto a la libre actividad del
individuo, un gran número de instituciones político-jurídicas y sociales que, sin
duda, están tan arraigadas en el complejo de nuestra cultura, que sólo con ella podrán desaparecer. Aún una comunidad socialista habrá de edificarse sobre esas
bases, y reconocer los derechos humanos del individuo.»43 Incluso llegaba a decir:
«No hay que despreciar la función que un vigoroso neoliberalismo podría desempeñar contra los métodos de violencia fascista y bolchevista, especialmente en el
terreno político cultural». A pesar de lo cual, dijo que «el núcleo de ideas liberales,
como tal, es políticamente extemporáneo». Como vemos, entre el liberalismo y la
democracia seguía abierta una brecha, que sólo podía cubrirla una interpretación de
la nación como encarnación concreta de los valores jusnaturalistas. Entre el liberalismo y la democracia no se divisaba el republicanismo.
——————————————
40
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 99.
41
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 100.
42
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 106.
43
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 117.
158
José Luis Villacañas Berlanga
6. Fichte en las Ideas Políticas contemporáneas.
El nuevo héroe del pensamiento de Heller, como ha puesto de manifiesto
Schluchter44, es ahora Fichte. Su mérito consiste justamente en pasar desde las
puras ideas democráticas – por tanto personalistas y jusnaturalistas – a la efectividad de la praxis histórica. «La idea de comunidad de Fichte, aunque pensada con
pocas raíces, daba a su libertad, fundada en la igualdad democrática, una aproximación social desconocida para el pensamiento kantiano.»45 Si nos preguntamos
para qué era necesaria esta idea de comunidad, más allá de la acción consciente de
lo individuos, la respuesta que obtenemos es que «la idea jurídico natural del contrato social nada decía acerca de las fuerzas reales que socializan al individuo.»46
Sin ninguna duda, se trata de una concesión al elemento romántico, cuyas consecuencias Heller apenas logra medir. El hombre, parece derivarse de esta nueva
apuesta, no puede considerarse a sí mismo como ser vivo y social sin dar entrada a
elementos sentimentales de co-pertenencia. Para ello no bastan los conceptos, las
dimensiones críticas individualistas, sino que éstas trabajan sobre contextos de
pertenencia que no pueden ser puestos en duda.
¿Acaso no introducimos todo el tras-personalismo con esta apelación a la
comunidad de Fichte? Ciertamente debemos hacer distinciones. La subjetividad
absoluta en el primer libro era la nación-Estado y su atributo era el Poder. La noción de comunidad en Fichte no tenía que ver con la estructura de poder, y en este
sentido, no podía ser interpretada desde el imperialismo aguerrido. Al contrario,
para Fichte, la comunidad es una dimensión de interacción plenamente significativa, atravesada por la voluntad de perfección recíproca de los individuos. En
efecto, esta comunidad identifica la plenitud de la acción social, con toda la carga
de las dimensiones humanas. No sólo no destruye las dimensiones democráticas,
sino que las refuerza. El Todo ahora no es un organismo estatal, sino el resultado
de la acción social dirigida a hacerse cargo del ser humano también en su totalidad.
Desde esta noción moral de nación, en tanto comunidad de acción recíproca, se
desprendía para Heller una segura respuesta a la exigencia socialista de la política
democrática. La perfección de la comunidad, en este sentido, es el fin moral de la
acción social. De esta forma, sin renunciar al individuo, Fichte señaló en la dimensión comunitaria el elemento que, alojado en el cuerpo mismo del hombre individual, podía inclinar a los hombres a una ordenación social democrática. En suma, y
como veremos, esta comunidad de Fichte era la plenitud de la fuerza normativa de
la sociedad civil, sin la contradictoria encarnación de la sociedad burguesa basada
——————————————
44
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 111-115.
45
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 69.
46
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 70.
Hermann Heller y el argumento kantiano
159
en el mercado. La nación en el pensamiento de Fichte era una sociedad civil igualitaria y post-burguesa.
Es muy curioso, sin embargo, cómo los peligros del absolutismo moral de la
comunidad son tan profundos como los que ya comprendimos en el absolutismo
político de la nación. Aquí, el paso de Heller desde Hegel a Fichte no es sino un
regreso hacia un laberinto que no tiene otra salida que la de Kant, con su rigurosa
identificación de la ambigüedad moral y la clara distinción entre moral y derecho.
En efecto, el problema básico de toda configuración inmanente del orden social,
por muy penetrado que esté por la moralidad, como libre contribución a la igualdad, la justicia y la libertad, no es otro que el de la configuración de una autoridad.
Con el pensamiento de la comunidad moral-nacional como todo moral se corre el
riesgo de proponer una autoridad moral normativa, representante verdadero de los
valores morales comunitarios. Con ello, por tanto, estamos a más de un paso de
abandonar el profundo pensamiento kantiano de la autoridad del magistrado, que
no tiene por qué implicar una autoridad moral.
Frente a esta compleja mirada, Fichte, en su afán de promover la moral por
encima de todo, tiene un concepto instrumental de la autoridad y del poder político.
Esta concepción instrumental falsea lo que el poder realmente es: representación.
Ahora el pensamiento de la comunidad moral manifiesta sus peligros. Si la dimensión que hay que promover es la moral, el poder debe medirse por los efectos de
promoverla. La eficacia moral del poder – para Kant una contradicción en sí
misma, pues el poder ha de suponerla – debe ahora servir de criterio para la autoridad política. «La legitimación racional es el valor de los servicios que pueda prestar.»47 Heller está ciego ante este sencillo hecho: la perfección moral jamás se
identifica de una manera objetiva. Jamás puede ser, por tanto, un punto de partida
de legitimación política. Por el contrario, el poder debe levantarse sobre la consideración de que todo ciudadano es digno de ser representado por igual. Sea moralmente digno o indigno, pues nadie sabe nada de nadie en este sentido. Fichte parece conceder valor al pensamiento de la democracia no por sí mismo, sino en la
medida en que los hombres que lo componen, tomados de uno en uno, han de ser
moralmente buenos. Este pensamiento es en sí mismo monstruoso. De la nación–
poder de Hegel pasamos a la nación moral de Robespierre, no menos carente de
toda idea de ambivalencia moral ni menos expuesto al sujeto narcisista.
La consecuencia más precisa de esta confusión se nos muestra en todo su esplendor cuando Heller, en la línea de Carl Schmitt, considera perfectamente compatibles la democracia con la dictadura. Poco consuelo obtenemos de este hecho,
cuando se nos añade que en el fondo se trata de una dictadura moral o meramente
pedagógica. Cualquiera puede ver que esta dictadura pedagógica se opone a la democracia en sí. Al menos, cualquiera que hubiera leído a Kelsen, que en 1920 ya
——————————————
47
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 72.
160
José Luis Villacañas Berlanga
había publicado la primera edición de Esencia y valor de la democracia. La dictadura pedagógica no recoge la fuerza normativa de la sociedad civil, sino que la
destruye. La confusión final por fin se revela: democracia es una forma de la política, una forma de ordenar la sociedad en la objetividad del poder, es el vínculo
entre la sociedad civil y la república, el único que permite hablar de representación
y de libertad. La igualdad, la libertad, la autonomía, incluso la expectativa de una
justicia distributiva como meta final de la idea del Estado, no implica la afirmación
de la necesidad de una homogeneidad moral, la existencia de un ser humano sin
ambivalencias morales. La democracia no es el gobierno de todos los buenos, sino
de todos, los moralmente buenos y los que ejercer su libertad para convertirse en
moralmente malos. De otra manera, el filósofo tiene que convertirse en el juez moral que penetra los corazones. Con ello, el argumento de que la moral es un asunto
de juicio personal, dada su insuperable ambigüedad, se quiebra.
Un elemento pleno de equívocos se introduce ahora. El paso desde la democracia política de Kant a la democracia comunitaria–moral de Fichte se interpreta
como paso desde «la igualdad jurídica formal, de Kant, a la igualdad jurídica material, de Fichte.»48 He defendido en otro sitio que, en Kant, todo Estado incluye en
su idea de contrato, y desde motivos jusracionalistas imperativos, una exigencia de
igualdad material, consecuencia de la estructura provisional de todo derecho positivo49. Más aún, la vida histórica, dominada por la política, apunta finalmente a ese
progreso material del derecho. Pero por mucho que progrese la igualdad material,
por mucho que cada hombre goce de la independencia civil y de los medios materiales necesarios para su personalidad, su acción social no irá dirigida a garantizar
la perfección moral de alter – esto resulta imposible si se comprende realmente el
estatuto de la moral –, sino a garantizar proyectos de felicidad cooperativos, que de
acuerdo con el segundo imperativo de la Metafísica de la Virtud, deben proliferar
mediante la ayuda a los proyectos de felicidad de los demás.
Al separarse de este cosmos kantiano de problemas, Heller se dejó llevar de
su inclinación a confundir la democracia formal con la democracia política, y a
entender su superación material como una sobredeterminación moral de los principios políticos. De esta forma ignoró la dimensión normativa de una política pragmática en la que se había esforzado Kant. De esta forma, orientado desde su credo
político, Heller pudo ver el socialismo como la herencia moral de Fichte. Como
recordará en Teoría del Estado, aunque ahora ya con un punto crítico, en el fondo
Fichte estaba de acuerdo con Marx al reconocer que el hombre sólo se emanciparía
——————————————
48
49
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 73.
J. L. Villacañas, Res Publica, Fundamentos normativos de la política. Akal, Madrid, págs. 71-85,
donde expongo las tesis de Kaulbach sobre el derecho.
Hermann Heller y el argumento kantiano
161
cuando «el individuo se convierta en ente genérico», y esto significaba cuando «el
individuo humano» aparezca como «encarnación de la socialidad»50.
La comprensión moral de la democracia de Fichte no sólo era compatible
con las ideas voluntaristas del socialismo. En cierto modo, Fichte siempre fue para
Heller el primer teórico alemán del socialismo51. Tenía alguna otra ventaja teórica,
además de conceder a la idea de Dictadura el dulce adjetivo de pedagógica. Se
trataba de mediar en la crisis del Parlamentarismo con la tesis de que el Parlamento
no es necesario a la democracia, sino que se trata de una mera técnica, tesis estrictamente schmittiana. El equívoco acerca del kantismo resultaba aquí escandaloso,
como Kelsen sabía. Pues el Parlamento era la clave jurídica de la democracia política, la idea misma de la representación. Sólo por el abandono de toda idea política
se puede rebajar su papel de una mera técnica democrática. Ni siquiera Weber
había dicho esto, sino que sólo hay representación sí hay políticos auténticos y se
forman en el parlamento52.
En todo caso, Heller puede decir con todas sus letras que «lo que se halla en
crisis es la técnica parlamentaria de la democracia». Sin embargo, la clave no estaba aquí. Lo decisivo residía en que esta crisis respondía a la transformación
misma de la idea democrática. No tiene su origen en el abuso de la burocracia, en
la destrucción de un genuino sentido político por parte de los partidos o en los sistemas electorales que acaban destruyendo la lucha política. Si así fuera, la crisis
técnica tendría soluciones técnicas. Aquí se dice otra cosa, si bien muy abstracta.
La crisis apunta a que el parlamento será superado en tanto idea consustancial de la
democracia. Si avistamos la idea utópica de una democracia basada en la homogeneidad moral, podemos prescindir ya de toda necesidad de representación53. El
Estado es una expresión de la humanidad pecaminosa y desaparecerá ante la huma——————————————
50
Entonces dijo, de manera coherente, como veremos, que «Hay que ver en ello el síntoma de una
posible enfermedad mortal, tan peligrosa para la existencia del alma individual como para la sociedad
entera.». Entonces pudo referirse a Max Scheler para distinguir entre persona social y persona íntima,
viendo en el hombre social un momento del hombre total. Ahora, el hombre moral, interno, irreductible, no
era el que le interesa a la Teoría del Estado, sino el que «se manifiesta en su vida como objetivamente
efectivo en lo social, y no como a sí mismo o a otros aparece». Hermann Heller, Teoría del Estado, FCE,
México, 1985, págs. 87-88. Aquí hay por tanto una adecuada atención a la ambivalencia moral y la imposibilidad de dirigir la política por la moral.
51
De nuevo, Teoría del Estado, ob. cit., pág. 184.
52
Cf. Max Weber, «Parlamento y Gobierno en el nuevo ordenamiento alemán», en Escritos Políticos, Ediciones Folio, México, 1982, vol. I. 149-159.
53
En el fondo, esta dimensión utópica de la moral sólo era viable por una insensibilidad para las
peligrosas dimensiones narcisistas del sujeto moral tan pronto eliminara de sí la ambivalencia. La exposición de Fichte en la Teoría del Estado, que resume la que mantiene Ideenkreise, reposa sobre esta idea: que
la «institución coactiva del Estado» desaparecerá y se hará innecesaria en una ordenación socialista de la
realidad. Con ello, «desaparece toda coacción externa del derecho». Cf. Teoría del Estado, ob. cit.,
pág. 184.
162
José Luis Villacañas Berlanga
nidad transformada y buena, una vez pasada por la dictadura pedagógica de la filosofía54.
Lo que se ofrece a cambio parece insistir en la dimensión moral de la democracia. Parece, porque no resulta claro ni comprensible. El texto dice literalmente:
«Nos hallamos en un periodo de transición, de paso de una democracia racional
individualista a una democracia social indeterminada. A la democracia atomística
se opone la idea nacional, es decir, la existencia de una democracia cultural y colectivamente individualizada. A la democracia liberal se opone […] el socialismo,
es decir, la democracia de la economía social. Las hondad causas de la crisis de la
democracia obedecen a la tendencia intensificadora e individualizada de la misma,
que no puede conseguirse con los medios democráticos al uso, y mucho menos con
el parlamentarismo.»55
El texto defiende algo preciso: la crisis de la democracia procede de su intensificación. Y esta reside en la aceptación material de las exigencias normativas
de la vieja teoría democrática, que ahora se traducen en exigencias de justicia económica. Este proceso de profundización no es un proceso homogéneo, universal,
abstracto o global; se refracta en cada comunidad nacional según las ideas culturales y colectivas propias. Cuál será la democracia social que corresponda a la idea
de nación alemana, o a las naciones europeas, queda sin decir. Qué sea una democracia material en el sentido socialista queda claro, pero no se dice si esto se consigue mediante una política de justicia distributiva o mediante una propiedad socialista de los medios de producción. En todo caso, se asegura que esto no puede llevarse a cabo por la democracia representativa y parlamentaria, aunque no se dice
que se produzca por la auto-determinación democrática del pueblo o por la democracia de los consejos. Todo queda en el vacío, excepto algo concreto.
La influencia de Carl Schmitt sobre Heller sustituye una pertinente lectura de
Weber. Quien antes había iniciado su argumento para complementar la idea de
razón mediante el aporte de sentimentalidad brindado por la comunidad moral,
ahora avanza no a la idea de compensación, sino a la de crisis. Así, no es que el
hombre deba ser socializado mediante sentimientos que permitan dotar de eficacia
a la razón, sino que es la propia estructura de la razón la que entra en crisis56. Mas
no sólo esto: con ella se introduce el final de una comprensión del ser humano
como capaz de dominar sus pasiones por medio de la reflexión, y de encauzar sus
luchas políticas mediante la palabra. Hermann Heller parece apelar ahora a un espíritu del presente, que subraya el papel del mito de la violencia, la apuesta por un
claro irracionalismo, como causas, no se sabe si aceptables o inaceptables, combatibles o defendibles, de la crisis de la democracia parlamentaria.
——————————————
54
Teoría del Estado, ob. cit., pág. 185.
55
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 91.
56
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 93.
Hermann Heller y el argumento kantiano
163
En todo caso, no sólo se ataca al parlamento, en sentido weberiano, como
instrumento de selección de líderes, sino que se entra en una contraposición muy
dudosa. «Fundándose en razones, tanto nacionales como socialistas, se pretende
reemplazar el parlamentarismo deliberante por la dictadura actuante.»57. No me
interesa tanto la primera parte de la frase, sino la segunda. Se trata de reparar en la
contraposición entre parlamento deliberante y dictadura operante. En realidad, no
es necesario que el parlamento sea políticamente pasivo. Weber había mostrado las
condiciones de un parlamento políticamente activo, dotado de poder político. ¿Por
qué entonces se da por sentado que el parlamento es deliberante? ¿Qué razones
nacionales y socialistas determinan que el Parlamento sea meramente deliberante?
¿Y qué razones nacionales y socialistas imponen la dictadura operante?
La autoridad, ya lo podemos suponer, es Carl Schmitt y se acepta sin ningún
tapujo. Porque, inmediatamente, Heller aprovechará no sólo la parte crítica de La
Dictadura, sino la parte positiva. Con ello, no sólo se inicia la línea de una recepción schmittiana de izquierdas58, sino que se nos aclara qué encierra esa democracia social indeterminada. La muy indeterminada propuesta queda concretada, perfectamente concretada, con la idea de dictadura. Esto sí, ya desde Fichte, sabemos
que la idea de la dictadura no era incompatible con la democracia. También ahora
se insiste en la misma idea. La coincidencia no es causal. Junto a ella, también
descubrimos otras viejas ideas, como la legitimación del poder en razón de los
servicios que presta, destruyendo su dimensión política estrictamente representativa por una visión instrumental que parece ennoblecerse porque el fin del instrumento ahora se auto-califica como moral.
Así, Heller puede escribir esta conclusión que, a pesar de todo, no es lo más
problemático de este libro, por lo demás bien intencionado. «El sentido de la Dictadura soberana consiste en «hacer posible una constitución que parezca una verdadera constitución». El dictador se legitima, también en este caso, por la soberanía
del pueblo […] La dictadura es, por tanto, un medio democráticamente sancionado,
y lo que importa es qué fin sirve, qué verdadera constitución ha de instaurar. No
puede dudarse de que la dictadura bolchevique trata de instaurar la democracia
social.»59 La frase entre comillas, citada en el texto, es de Schmitt, naturalmente.
Pero la frase completa nos descubre que la constitución no se mide en sí misma
desde valores políticos, por la capacidad que tenga de cumplir con el encargo político de la representación, del gobierno del pueblo, de la división de poder que impida los abusos contra los derechos racionales, no individuales, sino públicos. Al
——————————————
57
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 91.
58
Cf. J. L. Villacañas, «Les limites de l’influence de Carl Schmitt sur les juristes de gauche dans la
république de Weimar». En Carlos Miguel Herrera (editor), Les Juristes de Gauche sous la République de
Weimar, Editions Kimé, Paris, 2002, págs. 103-127.
59
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 91.
164
José Luis Villacañas Berlanga
contrario, la verdadera constitución sirve a motivos morales–materiales socialistas
que se suponen superiores a los motivos jurídicos del derecho racional, y a los motivos morales que pueda tener un hombre para defender su libertad y su dignidad.
Cuanto menos, así expresado, el razonamiento es unilateral. Pero no se detiene ahí. Mediante los valores socialistas, la constitución bolchevique es legítima.
Mediante los valores materiales nacionales, se puede legitimar la constitución fascista; mediante valores materiales raciales, las ideas constitucionales de los nazis
alemanes puede ser legítima. Ante la índole inevitable de las consecuencias, Heller
concluye: «Es muy difícil organizar estos factores». Y de hecho así es. Pero él
mismo apuntó a motivos nacionales y socialistas para criticar el parlamentarismo.
Ahora vemos dónde llevan estos motivos. Es fácil suponer que Alemania no tenía
otro camino que el que Weber había señalado: tornar complejo y plural el orden
político mediante una genuina parlamentarización democrática con líderes representativos de la vida política y gobiernos responsables ante el Parlamento. Los
otros caminos llevaban a la brutalidad. En cierta forma, esa brutalidad ya está encerrada en esta frase de Heller: «Prescindiendo de este aspecto, la cuestión decisiva
no es quién deba ser excluido, sino cómo han de designar a su jefe los que siguen
excluidos.»60
Ahora ya vemos que los motivos democrático–nacionales o democrático–socialistas son no sólo compatibles con la dictadura, sino con la exclusión. En el
fondo, con esta indicación se introducía el constructivismo político schmittiano,
basado en la identificación del amigo y del enemigo, en la diferencia entre “dentro”
y “fuera”, entre ellos y nosotros. Heller quizás no tuvo la suficientemente imaginación como para suponer qué se encerraba en esa tremenda palabra ni los métodos
sobre los que se iba a producir la individualización de la idea nacional.
7. Kant en la Teoría del Estado.
En la última obra de Heller se dejan sentir todavía los supuestos de su horizonte mental con eficacia y claridad. Sin embargo, las ideas de Heller son ahora
matizadas de nuevo, más allá de los avances de Las ideas políticas contemporáneas. Enfrentado al jusnaturalismo de la Ilustración, Heller recuerda las tesis acerca
de los procesos histórico-causales propios y autónomos del Estado como poder.
Así, desvela el error ilustrado de considerar a los individuos aislados pactando la
existencia del Estado, al margen de las condiciones históricas concretas. Kant, sin
embargo, habría aceptado este punto, ya que él diseña un procedimiento para trans——————————————
60
Hermann Heller, Ideas, op. cit., pág. 93.
Hermann Heller y el argumento kantiano
165
formar los Estados patrimoniales existentes en Estados republicanos61. Al margen
de ello, Heller sigue considerando las ideas ilustradas las propias del racionalismo
abstracto o del individualismo unilateral62. Desde el punto de vista histórico-causal,
la Ilustración concede demasiado a la trasparencia y a la intencionalidad del Estado, olvidando las realidades históricas opacas a la norma. El punto de opacidad
normativa del Estado, verdaderamente existencial, reacio en su origen a procesos
intencionales de la razón, es reconocida por Heller, en la vieja línea de la teoría
alemana desde Jellinek. Sin embargo, algo ha cambiado. Ahora la Ilustración tiene
el mérito de haber subrayado la dimensión racional-normativa y, por tanto, de
haber desplegado «una crítica racional de los poderes políticos existentes.»63
El cambio de época, el siglo XIX, visto desde el siglo de las Luces, aparece
ahora en toda su unilateralidad. Con tono de profunda denuncia, Heller expone
ahora su significado. El siglo XIX implica un desmantelamiento de la creencia en
la razón y, por ende, una entrega a los poderes absolutos de la sociedad y de la
historia, a la facticidad existencial. Contra este proceso, la ciencia política del presente debía reconquistar aquella posición normativa, y debe atender sobre todo a la
manera en que el derecho pude legitimar, fundamentar o limitar el poder político
existente. La doctrina político-sociológica del derecho, que ahora Heller defiende,
reclama esta síntesis de normatividad y facticidad. En cierto modo, para esta síntesis, Heller invocó a Kant de un modo que venía a deslegitimar la apuesta metodológica de Kelsen, en sí misma unilateralmente normativa64: la razón pura, el derecho puro, la norma pura no podía ser el ideal de ciencia, sino la formación de juicios sintéticos que permitan relacionar los conceptos con la experiencia, lo normativo con lo existencial, ese elemento real histórico cuyo origen no puede «derivarse de principio de la formación racional» y que, en este sentido, es ampliamente
——————————————
61
Cf. mi «Kant: entre el republicanismo y liberalismo». En G. Duso, Contrato social en la filosofía
moderna, Res Publica, Murcia, 2000.
62
Hermann Heller, Teoría del Estado, FCE, México, 1985, p. 34. Staatslehre, Leiden, Tübingen,
63
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 36.
1983.
64
Heller reconoce, desde luego, que haber destacado la problemática del método es un método
fundamental de Hans Kelsen, pero que su solución es especialmente detestable. El Estado es un «contenido
parcial de la compleja realidad de la vida, de la cual lo aisla la teoría del Estado». Por tanto, se debe tener
siempre en cuenta una «constante referencia a la realidad total». Con ello, el método no podía legitimar la
aspiración pura de la teoría normativa kelseniana [Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 47]
Heller podía protestar en este sentido de que Kelsen había desconocido la dimensión sintética de la reflexión racional kantiana. «Los neokantianos de la Escuela de Marburgo rechazaban la vida histórico social», asegura Heller. [Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 48]. Sin embargo, añadía que esta
necesidad de vincular lo normativo y lo histórico, se había dado sobre todo en Hegel, de quien decía: «Los
más importantes estímulos para la Teoría del Estado vienen hoy de Hegel y su método». [Hermann Heller,
Teoría del Estado, ob.cit., pág. 48.
166
José Luis Villacañas Berlanga
irracional65. La Teoría del Estado, como disciplina normativa y existencial a la vez,
sintética, no podía ser una teoría racional pura, sino que debía tener en cuenta el
“objeto”, los “hechos concretos”.
Las objeciones insuperables de Heller contra el derecho natural, por tanto, se
centraban más bien en su abstracción, en su creencia en una naturaleza humana
anclada en una misma legalidad universal66. Frente a esta dimensión abstracta,
Heller siguió hablando de relación dialéctica entre norma y facticidad, una «unidad
en un objeto real en el que, junto a la una, se halla siempre la otra», aún sabiendo
que no se puede producir una reducción de la una a la otra67. Fruto de esta nueva
noción de síntesis, ya más bien kantiana, Heller deseaba mirar el Estado como
forma abierta, esto es, como una conexión real normativa e ideal que actuara en el
mundo histórico-social real68.
Una norma operando en contextos concretos: eso era el Estado y la política.
Jamás podía aceptarse un poder que no estuviera conectado a la norma. Y más aún,
jamás la norma era derivada de la sustancia existencial de un pueblo, nación, clase
o grupo real. Al contrario, el sujeto era sujeto político porque se vinculaba a una
norma. Esto era lo decisivo: la norma no era expresión de la sustancia ontológica
del sujeto político, sino aquello que lo constituía. El siglo XIX había perdido de
vista esta idea. «La exigencia de una consagración del Estado por una determinación humana general y, en consecuencia, por una idea jurídica universal, comienza
a desvanecerse en el siglo XIX». Ahora Hegel aparecía a otra luz desde esta tesis,
de innegable inspiración kantiana. Fue Hegel, junto con el historicismo, quienes
impusieron la idea de que «el espíritu del pueblo es la única fuente del derecho y
no están limitados por norma alguna. […] Esto significa que todo aquel que logre
hacerse dueño del poder en el Estado, encuentra éticamente justificado su derecho
a darle leyes sin sumisión a ninguna clase de principios jurídicos.»69 En este sentido, el legislador no podía estar equivocado, ni hacer nada injusto. Por encima por
tanto de cualquier derecho positivo, y por encima de cualquier derecho nacional y
democrático, existían ahora normas universales que no eran meramente morales,
sino principios jurídicos fundamentales – Rechtsgrundsätze70.
El supuesto individualista ya no era relevante, pues el fundamento último del
Estado es una norma jurídica fundamental que es de naturaleza universal y genera
——————————————
65
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 45.
66
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 51.
67
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 81.
68
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 82.
69
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 237.
70
Aquí Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 237, Staatslehre, 248-9. Desplegados en
Staatslehre, 101, 217, 252-256, 289-291, 299, 315. De ellos se hace depender ahora la teoría de la legitimidad, p. 199, 249, 253, 275, 200.
Hermann Heller y el argumento kantiano
167
el ámbito de lo público. En este ámbito nunca se es individuo aislado. Nunca se
tienen derechos individuales puramente. Aquí Heller seguía dejando claras sus
inclinaciones fichteanas, derivadas de una teoría del yo que también llamó dialéctica. Quien negase la realidad de los grupos, debía negar la realidad del individuo.
Pero la realidad social de los grupos estaba radicada en su cualidad de ser «estructuras capaces de decisión y de acción»71, no en estructuras de participación que
reservaba a los individuos la pasividad sacrificial. El abordaje ya podía ser claramente republicano.
En efecto, cuando tuvo que reconocer la estructura del grupo central para
comprender el futuro del Estado, Heller invocó la cuestión de la sociedad civil. De
hecho dijo: «En lo sucesivo, la relación entre el Estado y la sociedad civil constituirá el más importante problema, tanto en lo teórico, como en lo práctico, de la
política de Occidente»72. Que esta estructura tenía una raíz kantiana se había
establecido antes, al reconocer que «la palabra sociedad aparece por primera vez
para designar la conexión de los problemas de la libertad, la igualdad y personalidad, y cómo a partir de entonces, determina el carácter propio de la sociología»73.
Sociedad civil era así la realidad social determinada por la puesta en marcha y la
tensión de los tres derechos racionales de Kant. El escenario de lo público es necesario porque sólo es viable la realización común de esos derechos mediante un
poder público.
Desde luego, como norma ideal esta noción de sociedad civil va más allá de
sus encarnaciones concretas históricas. Su primer supuesto era la libertad y la
igualdad jurídica de las personas, y su exigencia de igualdad en autonomía, pero su
primera facticidad, su terreno de juego histórico real era el mercado. Este juego de
mercado es el que entra en tensión con el alcance completo de la norma, criticando
esa misma sociedad civil en los ámbitos que no cumplen aquellas exigencias de
libertad, igualdad, autodeterminación y autorrespondabilidad. Entonces la tensión
entre la normatividad anclada en la noción de sociedad civil y la facticidad de la
misma sociedad aparece como estructura de dominación. La sociedad civil es así la
«fuente verdadera de toda libertad y de toda opresión.»74 Esta es la aguda verdad de
Hegel y de Marx: «que la verdadera anatomía de la sociedad civil hay que buscarla
en la economía política». Esa diferencia entre una clase dominada y otras
dominante, hace de la sociedad civil un “concepto político” que implica denunciar
la traición que realiza la burguesía respecto a sus propios elementos normativos si
se queda anclada en la forma concreta de la sociedad burguesa basada en el mer——————————————
71
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 115.
72
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 125.
73
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 125.
74
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 137.
168
José Luis Villacañas Berlanga
cado. Pues de hecho, para Heller, «el criterio que informa de la conciencia de clase
es la libertad e igualdad, o sea la primitiva base de legitimación de la sociedad
civil, cuya realidad ha ido a encontrarse en insoluble contradicción con aquél
criterio»75.
Así, la emancipación política aplicará los criterios normativos, derivados de
esos principios jurídicos fundamentales, «elaborados por la conexión total de la
historia del espíritu, a una nueva situación social». Y lo hará contra las limitaciones
que el mercado introduce en tanto versión intolerablemente restrictiva de la norma
profunda de sociedad civil. La libertad y la igualdad, burguesa o de los seres
humanos trabajadores, se comprenden como etapas de la evolución del espíritu
occidental, que define elites portadoras de la conciencia normativa universal en
continuidad espiritual. Y así, el derecho natural estoico, el derecho natural cristiano, el derecho natural absoluto, el derecho racional de Kant, y el derecho a una
nueva sociedad civil son otros tantos jalones del mismo núcleo normativo, aplicado
a diferentes síntesis de contenidos históricos-factuales76. Se trata de una milenaria
tradición del derecho natural que compone una norma que no nos está permitido no
cumplir. Ningún sujeto queda constituido y autorizado a actuar en el espacio público si la pone en cuestión. Porque entonces lo que actúa, bajo una forma u otra, es
la fuerza desnuda. Si se perdía esta tradición, se era incapaz de justificar y legitimar
el Estado salvo como el derecho del más fuerte77.
De esta manera, la relación entre Estado – en tanto principio jurídico fundamental – y sociedad civil no era sino la relación compleja entre normatividad y
facticidad. Se trataba de una doble tensión. Primero, la marcada por la estructura
normativa de la sociedad civil con su facticidad social reducida a mercado. La segunda, la de esta facticidad estatal-positiva con la normatividad misma del Estado
en tanto Ideal jurídico, lo que Kant llamaba contrato ideal. Para mediar esta dialéctica, Heller creía que era preciso atravesar que otros grupos ajenos hasta ahora a la
sociedad civil burguesa debían activar el sentido normativo implícito en la misma y
así actuar públicamente de tal manera que el Estado pudiera contar con fuerzas
para impulsar un Estado de derecho capaz de garantizar sus derechos originarios.
Esos otros grupos debían, por sus mismos contenidos espirituales y culturales, reforzar las exigencias normativas defraudadas por la propia sociedad civil reducida
al mercado.
——————————————
75
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 132.
76
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 135.
77
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 238. Ahora la Ilustración de Leibniz mostraba
que, tras su aparente descripción de este mundo como el mejor de los posibles, se escondía un potencia anti-utópico desolador, pues eliminaba toda «conciencia jurídica ante el éxito político momentáneo». «Olvídase
que sólo existe una historia específica del hombre o de la cultura debido a que el hombre es esencialmente
utópico, es decir, porque es capaz de contraponer al ser un deber ser y valorar el poder actual según la idea
de derecho». Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág, 239.
Hermann Heller y el argumento kantiano
169
Heller, pensó, dominado por el espíritu de una tradición, que ahí se abría de
nuevo el horizonte de la nación. Sin embargo, ahora ya hablaba de la nación republicana, reducida al pueblo, al colectivo que activa sus derechos comunes mediante
acciones públicas. Así que el concepto de nación/pueblo sirvió como mediador
para reactivar la dimensión normativa de la sociedad civil. Si era verdad que «el
objeto específico de la política consiste siempre en la organización de oposiciones
de voluntad sobre la base de una comunidad de voluntad»78, entonces, Hegel era
había tenido razón: la nación era la base de comunidad de voluntad sobre la que se
podían unificar las tensiones de la sociedad civil. Sin embargo, esa nación no era
una sustancia capaz de expresar su propios espíritu en una eticidad específica, sino
un colectivo de seres humanos dotados de la misma conciencia de sus derechos,
dispuestos a hacerla operativa mediante la formación de una Constitución política.
La pretensión a la libertad y la igualdad, entendidas en sentido político-social, se
convierten en el derecho innato del hombre. Todos los poderes, incluso el autocrítico, se legitiman ahora inmanentemente mediante el pueblo y el contrato político
se convierte en «piedra de toque de la adecuación a derecho de toda Constitución
política.». Entonces citó a Kant y precisamente al de Teoría y Praxis, el alegato de
que a norma jamás deja de ser verdadera en la práctica79.
Sería así la nación/pueblo, a través de una opinión pública éticamente caracterizada, la forma histórica en la que se cumpliría el núcleo normativo de la
sociedad civil, la estructura en la que se encarnaría el proyecto milenario del derecho natural, con sus exigencias plenas y concretas de libertad, igualdad y autonomía, y la que impulsaría la norma Estado, con garantías vinculadas a los principios
jurídicos fundamentales. Estos a su vez «reciben toda su fuerza de obligación ética
sólo desde el principio jurídico ético supra-ordinario»80. Como en el caso de los
principios establecidos en la Metafísica del Derecho, de Kant, estos principios de
naturaleza ético-jurídica no tienen desde luego “Rechtssichercheit oder Rechtsgewissheit” y por eso reclamaban un poder público estatal que le ofrezca ambas cosas. Pero en sí mismos tenían una plena Sinngewissheit, tanto por lo que hace a su
contenido normativo – Norminhaltes – como a la certeza de su alcance y realización81.
Desde luego, estos principios ofrecen las líneas directrices que debían ser
realizadas y concretadas en cada caso, pero en la medida en que constituían un
cuerpo público y unitario de ciudadanos con derecho a decidir esa concreción. En
este sentido, no genera meros individuos con derechos, sino conciudadanos vincu——————————————
78
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 182.
79
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág., 135, Staatslehre, n. Pág. 212.
80
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 240, Staatslehre, pág. 252, «Alle sittliche
Verpflichtungskraft empfängt der Rechtssatz nur aus dem übergeordneten ethischen Rechtsgrundsatz».
81
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 252, y 240.
170
José Luis Villacañas Berlanga
lados en su conjunto a una norma que los hace sujetos juntos y a la vez. Los principios jurídicos fundamentales así producen «el status jurídico entre los compañeros
de derecho [Rechtgenossen]»82. El derecho sería la expresión de esta voluntad
unitaria normativamente vinculada y para concretarla y asegurarla – pero no para
conculcarla ni ignorarla – sería necesaria la existencia del poder externo del Estado, frente a todo marxismo y frente toda dictadura del proletariado. Esto significa
que el Estado no es mera actividad organizadora y legisladora de la sociedad, como
quería el Carl Schmitt de los años 30, sino que sólo se justifica plenamente por la
necesidad del ius certum, como organización destinada a lograr seguridad jurídica
cumpliendo y concretando los principios jurídicos superiores, en tanto que sirve a
la «aplicación y la ejecución de principios etico-jurídicos»83. Este era el primer
argumento kantiano en la Staatslehre. Heller sólo tuvo que llamar la atención para
que no se interpretara a la manera liberal. Esta idea generaba un cuerpo político de
naturaleza pública. La opinión pública, por tanto, no tiene como lugar la sociedad
civil dominada por el mercado, sino la esfera de la res publica, que como pueblo se
atiene a sus bases normativas y es la fuente de poder legítimo84.
Ahora bien, para no caer en la dualidad limitada de la sociedad civil, debemos garantizar una opinión pública firme y unitaria, capaz de dar al Estado una
base firme de su poder. Y esto no puede sino significar una cosa: insistir en la tradición universalista de la que formamos parte desde milenios, al margen de todo
específico espíritu de pueblos y de tradiciones entendidas como destino, a lo Heidegger. Y este era el nuevo sentido de la filosofía, que de ese modo no podía dejar
de estar presente en esta sociedad civil entendida como pueblo. Ella tenía la competencia de activar la conciencia normativa de la Humanidad. «La teoría del Estado
tiene que confiar a la filosofía del derecho la cuestión de si los principios éticos del
derecho se refieren únicamente a un sentimiento jurídico inmediato o si pueden
derivarse, con certeza epistemológica objetiva de una ley jurídica suprema racionalmente formulable; y así mismo le dejará las cuestiones difíciles de si y en qué
sentido existen principios jurídicos a priori, cuales son los principios jurídicos universalmente válidos y cuáles están vinculados a ámbitos culturales. Pero para una
teoría del Estado con pretensiones de ser ciencia de la realidad, tiene que valer por
admitido que existen tales principios jurídicos universales que forman los fundamentos [Grundlage] de justificación del Estado y de su derecho positivo»85.
En todo caso, Hermann Heller desplazaba ahora el problema de la legalidad
a problema de la legitimidad. La ley positiva no tenía en sí misma, ni en la referen——————————————
82
«Auf Grund deren der Rechtszustand unter den Rechtgenossen hersgestellt werden soll».
83
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág., 241-2, Staatslehre, pág. 253.
84
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 197.
85
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 242, Staatslehre, pág. 254.
Hermann Heller y el argumento kantiano
171
cia al soberano legislador, la prueba interna de su legitimidad. La afirmación de
Weber de que en la actualidad era legítimo lo que era legal, mostraba una «degeneración de la conciencia jurídica». Ni siquiera la dependencia de la legalidad del
cumplimiento de la forma de la democracia podía ser motivo a fortiori de legitimidad. La democracia no podía legislar contra sus propias bases normativas y ella no
dejaba de ser una organización del Estado vinculada a principios jurídicos fundamentales superiores, de los que deriva el propio sujeto democrático. Ni siquiera
aquí se podía invocar que, en la medida en que cumpliese la división de poderes,
nada tendrá consecuencias perniciosas para una conciencia jurídica anclada en
principios.
Heller tenía razón al sugerir que la división de poder intenta garantizar la seguridad jurídica, pero que aquello que se debía garantizar estaba por encima de la
división de poderes y no se podía entregar a la mecánica de los poderes constituidos su defensa. Esta debía hacerse con medios políticos y definía el espacio de lo
público dominado por su idea constitutiva, en términos de Kant, un contrato ideal
que en cada partida o ocurrencia histórica ponía en tensión sus exigencias normativas renovadas86. Mas el problema de la legitimidad ya nos llevaría a comprender
las diferencias finales entre Heller y Carl Schmitt, cuestión demasiado compleja
para esta ocasión. Sin embargo, sólo añadiré otro pequeño texto, sin voluntad de
cerrar el tema, que demuestra el aspecto kantiano del argumento de Hermann
Heller. Pues los principios éticos-jurídicos «se diferencian claramente de os principios de las ideologías sociales de legitimación, siempre muy numerosas, por su
pretensión de validez general para todos los miembros del Estado, y esa pretensión
de validez además, si no es una absolutamente universal, siempre intenta ir continuamente más allá de las fronteras del Estado»87.
——————————————
86
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 239.
87
Hermann Heller, Teoría del Estado, ob.cit., pág. 242-3, Staatslehre, pág. 254.
Moral e Política em Kant
Pedro M. S. Alves
UNIVERSIDADE DE LISBOA
I
Wilde, tolle Freiheit; Gewalttätigkeit; Krieg – estas três categorias aparecem
como plano de fundo das reflexões políticas de Kant: «os homens têm como
máxima a violência e, pela sua maldade, combatem-se entre si»1. Tomadas isoladamente, estas categorias traçariam um retrato do Homem que seria, por si só, a antecâmara e a justificação do Despotismo. Este institui a Paz na ordem interna do
Estado, mas ao preço de levantar sobre os homens uma força formidável, que é
sempre maior que toda outra força que se lhe possa opor. Assim, o «princípio mau»
(das böses Prinzip) no Homem não é remido, mas esmagado pelas suas próprias
armas. Kant está bem ciente que, no plano da história factual, todas as comunidades políticas começaram por esta intensificação da força, que se alça acima dos
homens e em conjunto os domina: «não se deve contar […] com nenhum outro
começo do estado jurídico a não ser o começo pela força»2. No seu acontecer empírico, a passagem do estado de natureza para o estado civil não é jamais visível sob
a forma de um pacto, em que todos compareçam como livres e iguais, mas de um
acto de violência em que a vontade de um ou de alguns se sobrepôs à vontade de
todos os outros pela instituição de mecanismos externos de coerção.
O governo despótico encontraria, assim, na «debilidade da natureza
humana» (die Schwäche der menschlichen Natur) a sua justificação. E, de seguida,
encontrá-la-ia, mais expressivamente, naquela tranquilidade que resulta, para os
seus súbditos, da boa ordem da coisa pública, do recalcamento da violência, da
——————————————
1
«Es ist nicht etwa die Erfahrung, durch die wir von der Maxime der Gewalttätigkeit der Menschen
belehrt werden, und ihrer Bösartigkeit, sich, ehe eine äussere machthabende Gesetzgebung erscheint,
einander zu befehden.», Kant, Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, §44.
2
«So ist in der Ausführung jener Idee (in der Praxis) auf keinen andern Anfang des rechtlichen
Zustandes zu rechnen, als den durch Gewalt», Kant, Zum ewigen Frieden. Anhang, B 75.
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 173-182
174
Pedro M. S. Alves
certeza de punição dos actos ilícitos, e, mais eficazmente ainda, no modo como o
governo despótico se quer ainda insinuar até o íntimo dos homens e determinar
tanto o seu modo de pensar como a sua concepção do Bem. Se o Despotismo fosse
apenas o único paliativo para a maldade dos homens, então brilharia de uma luz
negra, tão negra quanto a maldade a que viria obstar. Mas ele parece, de seguida,
tornar-se em si mesmo desejável, e não apenas inevitável, pela promessa de Felicidade que acarreta. Pois trata-se não só de tolher a eficácia do “princípio mau” pelos
seus próprios argumentos, mas também de penetrar até o mais íntimo dos homens e
de se apoderar também do seu modo de pensar. Essa é, por exemplo, a lição de
Hobbes: «a medida das boas e más acções é a lei civil, e o juiz, o legislador», de
modo que é uma doença do Estado pensar que «o homem é o juiz do bem e do
mal» e que há uma consciência privada, diferente da consciência pública e podendo
opor-se a esta, acerca do que seja bom e mau, justo e injusto3.
Mas o século XX tem outras lições mais impressionantes para nos dar, dos
fascismos aos comunismos, com a substituição da liberdade de pensar pela propaganda e a doutrinação, da cidadania pela massificação, e tudo isso cínica ou perversamente envolvido num projecto de humana redenção. Trata-se de uma segunda
supressão da Liberdade, em suma, uma segunda supressão tanto mais perigosa
quanto deleitoso será, para os homens, esse aturdimento que resulta de serem dispensados da árdua tarefa da responsabilidade e da autonomia, tanto no pensamento
como na acção. Assim, o Despotismo não apenas se justifica por uma suposta maldade humana, mas mais ainda se recomenda por um propósito benevolente e paternalista. Como Kant bem viu, porém, um “governo paternal”, em que «os súbditos,
como crianças, […] são obrigados a comportar-se apenas de modo passivo, a fim
de esperarem somente do juízo do chefe do Estado a maneira como devem ser felizes, e apenas da sua bondade que também o queira – um tal governo é a pior forma
de Despotismo que pensar se pode»4. E como Kant também confessa em Para a
Paz Perpétua, a propósito de um suposto conflito entre Política e Moral, se as categorias da liberdade natural e sem freio, da violência e da guerra fossem a última
palavra sobre o Homem, a Política seria não mais que uma técnica, a astúcia seria
a virtude suprema de toda a governação, e o Direito, um «conceito vazio»5.
——————————————
3
«The measure of Good and Evill actions, is the Civil Law; and the Judge the Legislator». Thomas
Hobbes, Leviathan. Cap. XXIX. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 223.
4
«Eine Regierung, die auf dem Prinzip des Wohlwollens gegen das Volk als eines Vaters gegen
seine Kinder errichtet wäre, d. I. Eine väterliche Regierung (imperium paternale), wo also die Untertanen
als unmündige Kinder, die nicht unterscheiden können, was ihnen wahrhaftig nützlich oder schädlich ist,
sich bloß passiv zu verhalten genötig sind, um, wie sie glücklich sein sollen, bloß von der Urteile des Staatsoberhaupts, und, dass dieser es auch wolle, bloß von seiner Gütigkeit zu erwarten: ist der größte denkbare
Despotismus», Kant, Über den Gemeinspruch…, A 237.
5
Ver Kant, Zum ewigen Frieden. Anhang, B 71 e sgs.
Moral e Política em Kant
175
II
É contra esta constelação que Kant opõe três teses, de força e alcance crescentes.
A primeira reza assim: «Por mais áspero que isso soe, o problema do estabelecimento do Estado é solucionável mesmo para um povo de demónios (desde
que tenham entendimento)»6.
A primeira decisão de Kant consiste em cortar cerce o ponto forte de todos
os despotismos: a solução do problema político não depende da resolução prévia do
problema ético. Uma constituição política perfeitamente justa não está, por isso,
dependente de, nem fica condicionada por qualquer disposição ético-moral da
humanidade. Problema político e problema ético são independentes. Contra o
argumento reaccionário de todos os tempos, segundo o qual uma outra forma de
governo que não o despótico só seria possível para um «Estado de anjos» (Staat
von Engeln)7, ou seja, sem qualquer inclinação para o mal, Kant, com audácia,
estatui que ele é, no limite, solucionável mesmo para um «povo de demónios»
(Volk von Teufeln), isto é, para seres que, contanto que tivessem entendimento
(Verstand) para avaliar o seu interesse egoísta imediato e discernir a relação do
interesse imediato com o seu melhor interesse, não possuíssem, contudo, qualquer
disposição moral para o bem.
A mesma tese se encontra em A Religião nos Limites da Simples Razão.
Depois de ter distinguido o estado civil político do estado civil ético, que se contrapõem, respectivamente, ao estado de natureza civil e ao estado de natureza
ético, Kant afirma peremptoriamente que, «numa comunidade política já existente,
todos os cidadãos políticos como tais se encontram, no entanto, no estado de natureza ético e estão, também, no direito de nele permanecer, pois seria uma contradição (in adiecto) que a comunidade política tivesse de coagir os seus cidadãos a
entrar numa comunidade ética»8, dado que a obrigação ética é toda ela interior, sem
coacção externa possível, e dependerá apenas do respeito pelo princípio do dever.
Mas a solução do problema político não é apenas independente de qualquer
conversão ético-moral da Humanidade. Para Kant, mais fundo do que isso, em vez
de atenuar a eficácia do “princípio mau” da natureza humana por uma força incoer——————————————
6
«Das Problem der Staatserrichtung ist, so hart wie es auch klingt, selbst für ein Volk von Teufeln
(wenn sie nur Verstand haben), auflösbar», Kant, Zum ewigen Frieden. Erster Zusatz, B 61.
7
«[…] viele behaupten, es müsse ein Staat von Engeln sein, weil Menschen mit ihren
selbstsüchtigen Neigungen einer Verfassung von so sublimer Form nicht fähig wären», Kant, Zum ewigen
Frieden. Erster Zusatz, B 60.
8
«In einem schon bestehenden politischen gemeinen Wesen befinden sich alle politische Bürger,
als solche doch im ethischen Naturzustande, und sind berechtig, auch darin zu bleib; denn dass jener seine
Bürger zwingen sollte, in ein ethisches gemeines Wesen zu treten, wäre ein Widerspruch», Kant, Die
Religion. Drittes Stück, B 133.
176
Pedro M. S. Alves
cível, irresistível e inapelável, que é a pseudo-solução do Despotismo, a solução do
problema político está em que ela neutraliza e reverte esse mesmo princípio mau
pela invenção de uma ordem em que as tendências egoístas umas às outras se anulam e em conjunto se superam. O passo do texto kantiano sobre o “povo de demónios” continua: o problema político «formula-se assim: “Ordenar uma multidão de
seres racionais que, para a sua conservação, exigem conjuntamente leis universais,
às quais, porém, cada um é inclinado no seu interior a eximir-se, e estabelecer a sua
constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas
disposições privadas, se contêm, no entanto, reciprocamente, de modo que o resultado da sua conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições
más”. Um problema assim deve ter solução. Pois não se trata do melhoramento
moral do Homem, mas apenas do mecanismo da natureza»9.
III
Segunda tese de Kant: a solução do problema político consiste na invenção
de um dispositivo em que a wilde Freiheit – a liberdade selvagem – não se suprima
enquanto liberdade, mas se reconfigure e se transmute em bürgerliche Freiheit, em
liberdade civil.
O que faz da questão política um problema de difícil solução não é a Liberdade, mas um regime de liberdade irrestrita, de confronto entre liberdades, sem
plataforma de coexistência, de que resulta, inevitavelmente, a colisão das vontades,
a sua anulação recíproca ou a instauração de uma lógica de dominação e servidão.
A ideia do Despotismo é que a instauração do Estado deve tornar a liberdade dos
súbditos apenas residual. Mais uma vez, Thomas Hobbes é, aqui, a referência
incontornável, para Kant e não só. A tese de Kant é, ao contrário, a de que a sociedade civil não se institui pela supressão da Liberdade e, sim, pela supressão do seu
carácter irrestrito, que Kant adjectiva precisamente como Wilde, “selvagem”, ou
seja, pela supressão de um regime da Liberdade fautor de uma insociabilidade que
obsta à instauração do próprio estado civil.
Mas isto não é, ainda, o pensamento mais profundo de Kant. Pois não se
trata, simplesmente, de restringir a liberdade pela sua confrontação com uma lei
que, provinda do exterior (ou melhor: da vontade discricionária do chefe do
——————————————
9
«Das Problem […] lautet so: “Eine Menge von vernünftigen Wesen, die insgesamt allgemeine
Gesetze für ihre Erhaltung verlangen, deren jedes aber in Geheim sich davon auszunehmen geneigt ist, so
zu ordnen und ihre Verfassung einzurichten, dass, obgleich sie in ihren Privatgesinnungen einander
entgegen streben, diese einander doch so aufhalten, dass ihrem öffentlichen Verhalten der Erfolg eben
derselbe ist, als ob sie keine solche böse Gesinnungen hätten”. Ein solches Problem muss auflöslich sein.
Denn es ist nicht die moralisches Besserung der Menschen, sondern nur der Mechanism der Natur […]»,
Kant, Zum ewigen Frieden. Erster Zusatz. B 61.
Moral e Política em Kant
177
Estado), a limitasse, como se, para garantir a coexistência dos homens numa ordem
civil, todos tivessem de abdicar um pouco da sua liberdade própria, antes irrestrita,
para deixar ainda um lugar para a liberdade de todos os outros. Não é esta visão de
uma Liberdade diminuída, “acanhada”, no espaço exíguo de uma sociedade, que
encontramos em Kant. Pelo contrário, trata-se, antes, para Kant, de duas coisas que
vão exactamente no sentido contrário.
Primeiro, é a liberdade irrestrita que é verdadeiramente uma liberdade não
plena, mas só residual, pois a sua lógica é a da contraposição a outra liberdade,
portanto, o conflito, e o desenlace do conflito numa relação de domínio e servidão,
em que a liberdade em si mesma se suprime.
Segundo, trata-se de fazer da Liberdade não o sujeito passivo de uma limitação externa, mas a autora da própria Lei que a limita, e isto não na medida em que
a restringe, mas na medida em que a determina. A legislação do soberano não é,
assim, contra a Liberdade, mas lugar de objectivação de uma Liberdade que abandonou a sua expressão individualista, egoísta e “selvagem”, e se elevou até o conceito de um sistema de liberdades, segundo leis universais de coexistência que dela
própria provêm. A Liberdade não é “minha” nem “tua”, nem é a minha contra a
tua. Ela é a Liberdade de uma comunidade de agentes racionais ou não é sequer
Liberdade. De facto, só na forma do todo é que ela não encontrará mais em outra
liberdade um princípio limitador. Esta «coexistência das liberdades», que é a fórmula que Kant sempre utiliza para caracterizar a liberdade civil, não será, pois,
pensável como diminuição ou retraimento da Liberdade, mas antes como a única
forma da sua efectiva realização.
Assim, a liberdade civil objectiva-se na Lei, e à Lei está associada uma coerção externa (Zwang) que obsta às acções, no caso das leis proibitivas, ou que obsta
ao que obsta às acções, no caso das leis prescritivas. Esta força coerciva ligada à
Lei é o conceito do Direito associado a uma legislação jurídica10. Só ele permite
outorgar a cada um o que lhe pertence e protegê-lo contra um uso irrestrito da
liberdade de todos os outros. O conceito de uma legislação jurídica subsume-se,
assim, no conceito de Justiça. A ordem civil instaura entre os homens não a bondade das intenções virtuosas, mas a justiça das acções exteriores na sua relação
recíproca. O desígnio último, o fim final da ordem civil, e também o único que ela
pode assegurar, será, pois, o da Justiça. O advento do Direito Público, como fundamento do Direito Privado, institui um mecanismo de regulação jurídico-legal dos
conflitos e instaura a Paz, na ordem interna, de um modo que nenhum despotismo
seria capaz de realizar. Para isso, ele não precisa de convocar nada mais que o simples entendimento, independentemente de qualquer disposição moral boa dos
——————————————
10
Sobre a diferença entre legislação ética e legislação jurídica, ver Kant, Metaphysik der Sitten.
Rechtslehre. Einleitung, III, AB 13 e sgs. Sobre o direito e a coerção, veja-se, idem, Einleitung in die
Rechstlehre, §D, B 35.
178
Pedro M. S. Alves
homens – a invenção da legislação jurídica é, ao nível da simples natureza, aquela
condição pela qual os agentes inteligentes consentem uma acção apenas na condição de ela ser também consentida para todos.
Uma constituição civil perfeitamente justa é, pois, não o Despotismo, que é
justamente o seu contrário, mas aquilo que Kant designa como a Constituição
Republicana.
Tecnicamente, o conceito de uma constituição republicana determina-se pelo
duplo princípio da representatividade e da divisão dos poderes: «Qualquer Estado
contém em si três poderes, ou seja, a vontade geral unificada que se ramifica em
três pessoas: o poder soberano na pessoa do legislador, o poder executivo na pessoa
do governante (em observância à lei) e o judicial (que atribui a cada um o que é seu
de acordo com a lei) na pessoa do juiz»11. O ponto importante, para lá desta fixação
estática das três pessoas do Estado, é, porém, a inserção dinâmica da vida individual na comunidade política e o modo como ela fica determinada a partir desta.
Num opúsculo famoso, até pelo seu longo título, que desafia qualquer princípio de
economia e contenção, Kant estabelece claramente o modo dessa inserção: «O
estado civil, considerado simplesmente como situação jurídica, funda-se nos
seguintes princípios a priori: 1. Liberdade de cada membro da sociedade, como
homem; 2. Igualdade deste com todos os outros, como súbdito; 3. Independência
de cada membro de uma comunidade, como cidadão»12.
Cada indivíduo, como membro de uma comunidade política, permanece livre
para a prossecução da sua felicidade, segundo as suas concepções do Bem e do
Mal, é igual a todos os outros perante a Lei, ou seja, fora de qualquer privilégio, e,
mais importante que tudo o resto, é, enquanto cidadão, co-autor dessa mesma Lei a
que, como súbdito, se obriga e que, como homem, lhe assegura a liberdade na sua
vida privada. O círculo fecha-se, ou pelo menos Kant acreditava-o. Ao contrário da
subordinação despótica de todos à vontade discricionária de um só (que até pode
ser clarividente e almejar o bem comum), a tripla diferenciação da vida no interior
de uma comunidade política assegura que a Lei a que todos se submetem, e que os
deixa livres enquanto homens, é a lei que, como legisladores, a si próprios se
deram, e, acima de tudo, assegura que a justiça das leis que os regulam está na
proporção da sabedoria com que as saibam escolher. A vida individual fica cindida
numa esfera pública e numa esfera privada. Poderá parecer que o homem, e os seus
——————————————
11
«Ein jeder Staat enthält drei Gewalten in sich, d. i. Den allgemein vereinigten Willen in dreifacher Person: die Herrschergewalt (Souveränität), in der des Gesetzgebers, die vollziehende Gewalt, in der
des Regierers (zu Folge dem Gesetz) und die rechtsprechende Gewalt (als Zuerkennung des Seinen eines
jeden nach dem Gesetz), in der Person des Richters», Kant, Metaphysik der Sitten. Das Staatrecht. A 165.
12
«Der bürgerliche Zustand also, bloss als rechtlicher Zustand betrachtet, ist auf folgende
Prinzipien a priori gegründet: 1. Die Freiheit jedes Gliedes der Sozietät, als Menschen. 2. Die Gleichheit
desselben mit jedem anderen, als Untertan. 3. Die Selbständigkeit jedes Gliedes eines gemeinen Weses, als
Bürgers», Kant, Über den Gemeinspruch. Im Staatsrecht, A 235.
Moral e Política em Kant
179
interesses na esfera privada, não coincidem com o cidadão, e os interesses que,
como membro da vontade geral, deveriam ser os seus.
O círculo, afinal, parece não ter um fecho perfeito, porque os seus extremos
não coincidem. Mas esta cisão não é dilacerante, porque não é fonte de uma colisão
de interesses inconciliáveis. Pelo contrário, ela é a garantia da boa ordem da legislação: a pertença de cada indivíduo às duas esferas impede as tendências de absorção socializante da sociedade pelo Estado ou de redução anarquizante do Estado à
sociedade, em prol da lógica liberal de uma reconfiguração permanente dos interesses individuais que os torne conciliáveis com o interesse de todos13. Se o Despotismo culmina num Estado paternalista que trata, no dizer de Kant, os súbditos
como «crianças menores», a exigência permanente da República será, ao invés, a
educação do Homem e a liberdade de pensamento na deliberação sobre a coisa
pública: «admitir que o soberano não pode errar ou ignorar alguma coisa seria
representá-lo como agraciado de inspirações celestes e como superior à humanidade. Por isso, a liberdade da pena – contida nos limites do respeito e do amor pela
constituição […], mediante o modo liberal de pensar dos súbditos, que aquela
mesma constituição ainda inspira […] – é o único paládio dos direitos do povo»14.
Esta tese de Kant acerca do mecanismo da Constituição Republicana não é
apenas uma transposição, para o terreno da Política, do princípio moral da autonomia da vontade. Esse princípio, antes de ser a ideia-chave da ética kantiana, fora já
o núcleo das ideias políticas de Rousseau no Contrato Social: «a obediência à lei
que a nós próprios prescrevemos é liberdade»15.
IV
Terceira tese de Kant: o que a simples natureza no Homem propicia já pelo
seu próprio mecanismo – o advento do Direito Público e de uma Constituição
Republicana – subsume-se na ideia de uma legislação pura e a priori da Razão
Prática. Desse modo, o Homem, na sua existência histórica, como ser natural em
sociedade, é pensável como fenómeno da Liberdade e lugar de realização da
Razão, por sobre o arranjo puramente mecânico das coisas no reino da natureza.
——————————————
13
Sobre este ponto, ver Alain Renaud – Kant aujourd’hui. Paris: Aubier, 1997, p. 321.
14
«Denn, das Oberhaupt auch nicht einmal irren, oder einer Sache unkundig sein könne,
anzunehmen, würde ihn als mit himmlischen Eingebungen begnadigt und über die Menschheit erhaben
vorstellen. Also ist die Freiheit der Feder – in den Schranken der Hochachtung und Liebe für die
Verfassung worin man lebt, durch die liberale Denkungsart der Untertanen, die jene noch dazu selbst
einflößt […] – das einzige Palladium der Volksrechte», Kant, Über den Gemeinspruch… Im Staatrecht,
A 265.
15
«l’obéissance à la loi qu’on s’est prescritte est liberté», Rousseau, Du contrat social. Chap. VIII.
Œuvres complètes. III. Paris: Gallimard, 1964, p. 365.
180
Pedro M. S. Alves
Há que atentar bem nos matizes da tese kantiana. Por um lado, o advento do
Direito Público e da Constituição Republicana pode ser pensado como resultado do
simples jogo natural das disposições egoístas do Homem. A insociabilidade dessas
disposições combina-se com uma tendência irrecusável, também ela natural, para a
sociedade. Esta última tendência não é, por si mesma, expressão de qualquer “bom
princípio” da natureza humana, mas pode ser entendida, ainda, no prolongamento
das disposições egoístas, na medida em que estas buscam na comparação com os
outros, na emulação e nas honras a sua satisfação. Esta «sociabilidade insociável»,
como disposição natural, conduz o homem à solução «do maior problema do
género humano», ou seja «à consecução de uma sociedade civil que administre o
direito em geral»16. De facto, não há, para o Homem, sociedade natural, como o há
para as formigas ou para as abelhas. A insociabilidade das tendências egoístas
impede uma ordem harmoniosa e natural. A sociabilidade impele, porém, para a
união do homem com o homem. A edificação da sociedade é, assim, um problema
que o Homem tem de resolver. Por isso, tal é a tese de Kant, na reflexão retrospectiva sobre a história da Humanidade no seu conjunto, tudo se passa como se houvesse um Plano da Natureza que, através do jogo de disposições em si mesmas
más, propiciasse o advento do Direito e da Constituição Civil, como a única forma
da sociabilidade humana em que essas disposições, em vez de dissolverem o todo
social, contribuem, antes, para o seu constante progresso e para o refinamento da
cultura.
O Direito deixa-se, assim, pensar como o resultado final de um Plano da
Natureza, que se “serve” do egoísmo do homem para a consecução de uma sociedade civil, ou melhor, que pôs no homem uma tal organização egoísta para que ele
tirasse tudo de si próprio, pelo árduo trabalho da cultura e da civilização. Mas o
Direito é, também, a expressão de uma legislação pura prática, segundo a ideia de
Liberdade, de tal modo que o que a Natureza propicia no Homem vem coincidir
com os interesses últimos da Razão: a edificação de um «sistema da Liberdade»
por sobre o «sistema da Natureza», no qual o Homem pode efectivar a sua destinação supra-sensível. De facto, a ideia de uma legislação segundo a Liberdade conduz aos conceitos de uma legislação ética e de uma legislação jurídica. Esta última
é o fundamento da ideia pura do Direito, e deste resulta o conceito de um Estado
(civitas), enquanto «união de um conjunto de pessoas sob leis jurídicas»17. A forma
pura, a priori, sob a qual esta união é pensável é a do contrato originário, em
que uma multiplicidade de pessoas (de agentes racionais) fica unida num
——————————————
16
«Das größte Problem für die Menschengattung, zu dessen Auflösung die Natur ihn zwingt, ist die
Erreichung einer allgemein das Recht verwaltenden bürgerlichen Gesellschaft». Idee zu einer allgemeinen
Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, A 394.
17
«Ein Staat (civitas) ist die Vereinigung einer Menge Von Menschen unter Rechtsgesetzen», Kant,
Metaphysik der Sitten. Das Staatsrecht. §45, B 194.
Moral e Política em Kant
181
Estado sob leis coercivas, que, como leis da Liberdade, as envolvem simultaneamente enquanto súbditos e cidadãos.
Assim, o Direito é o lugar de mediação entre Natureza e Liberdade. Ele
opera a coincidência entre a realização das disposições naturais, por um lado, e a
moralização do Homem, por outro, ou seja, a sua submissão a uma legislação da
Razão pura prática. Aquilo que se realiza pelo jogo exclusivo das disposições naturais pode ser lido como se tivesse promanado de uma conversão do Homem aos
interesses últimos da razão e como se tudo tivesse acontecido por força de um
imperativo incondicionado. Eis como a “liberdade selvagem, estulta”, a “violência”
e a “guerra” não podem ser as últimas palavras sobre o Homem, como o sugere o
Despotismo; eis como elas, em conjunto, despoletam todo o trabalho da cultura e
da civilização, de tal modo que, no juízo de uma reflexão retrospectiva, a história
do Homem se deixa globalmente pensar como História da Liberdade.
V
Tal é a terceira tese de Kant. Mas ela não resolve ainda o problema momentoso da deliberação e da acção política no presente histórico de cada comunidade.
A ideia de um contrato originário é, como Kant o afirma, apenas uma ideia reguladora18. Isso significa que ela é um princípio de unificação das leis particulares, mas
não um princípio de determinação dessas mesmas leis. Por outro lado, o Plano da
Natureza é um simples produto de um juízo reflexionante retrospectivo. Seria
estulto confiar a ele a deliberação sobre o que em cada momento deve ser decidido
na vida concreta de uma República – ele opera sobre factos acontecidos e não é, em
si mesmo, um princípio de ponderação sobre o que deve acontecer. Desse modo, a
Política recupera os seus direitos – ela opera no intervalo entre a ideia reguladora
de um Contrato Originário e o juízo reflexionante sobre um Plano da Natureza, de
um lado, e as exigências de deliberação em conjunto no presente vivo de cada
comunidade republicana – para essa deliberação, uma simples ideia reguladora ou
um juízo reflexionante não podem oferecer qualquer princípio seguro de determinação, que faria da deliberação política uma questão simplesmente técnica. É que o
contrato originário e o plano da natureza projectam-nos sobre um horizonte de
passado, seja ele um passado ideal ou um passado histórico. Mas a deliberação
política, apela ao confronto das opiniões dentro de uma comunidade republicana, e
é abertura sobre o horizonte do futuro – ela ordena-se ao que há-de ser. A Política
só pode tomar esses princípios como um fio-condutor da deliberação, sem que eles
possam conduzir a qualquer ciência sobre o que, em cada caso, deve acontecer.
——————————————
18
Ver Kant, Über den Gemeinspruch…, A 249.
182
Pedro M. S. Alves
Eis como a Política deixa de ser uma técnica, para se volver numa sabedoria. E eis como a sua virtude fundamental deixa de ser a astúcia, para se volver na
prudência. E toda a sabedoria prática, toda a prudência do Político consiste justamente em oferecer ao sufrágio colectivo as máximas das suas acções segundo o
princípio da publicidade19. Mais que uma prudência que faz segredo sobre as suas
razões e torna os desígnios da governação imperscrutáveis, a virtude política fundamental consiste em entregar à comunidade republicana a tarefa de uma deliberação conjunta sobre as leis do seu governo. Do «político moral» (der moralische
Politiker), ou seja, do político que se deixa guiar pela ideia racional de um sistema
da Liberdade, e da Política como actividade submetida ao princípio da publicidade
vale, portanto, dizer o que Kant afirma, num outro contexto, nas páginas iniciais da
Metafísica dos Costumes: a Política «não pode […] compreender nenhuma doutrina técnico-prática, mas somente moral-prática, e se a habilidade do arbítrio
segundo leis da liberdade – em contraposição à natureza – devesse chamar-se aqui
também arte, teria por tal de se entender uma arte que tornasse possível um sistema
da liberdade, semelhante a um sistema da natureza; uma arte certamente divina, na
verdade, se estivesse em condições de realizar plenamente […] aquilo que a razão
nos prescreve e pôr em obra a sua ideia»20. Esta arte “divina” do Político não pertence a nenhum Deus ou aos seus sacerdotes, nem tão-pouco a um homem entre
todos esclarecido – ela é a deliberação permanente no espaço público, ela é, por
isso, a arte que faz de nós um corpo político ou um todo, ela é, pois, a arte de todos
nós.
——————————————
19
Ver Kant, Zum ewigen Frieden. Anhang II – Von der Einhelligkeit der Politik mit der Moral nach
dem transzendentalen Begriffe des öffentlichen Rechts, B 98.
20
O texto completo é o seguinte: «Also kann die Philosophie unter dem praktischen Teile (neben
ihrem theoretischen) keine technisch, sondern bloß moralisch-praktisch Lehre verstehen, und, wenn die
Fertigkeit der Willkür nach Freiheitsgesetzen, im Gegensatz der Natur, hier auch Kunst genannt werden
sollte, so würde darunter eine solche Kunst verstanden werden müssen, welche ein System der Freiheit
gleich einem System der Natur möglich macht; fürwahr eine göttliche Kunst, wenn wir im Stande wären,
das, was uns die Vernunft vorschreibt, vermittelst ihrer auch völlig auszuführen, und die Idee davon ins
Werke zu richten», Kant, Metaphysik der Sitten. Rechtslehre, AB 13-14.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito
no Pensamento Luso-brasileiro
António Braz Teixeira
UNIVERSIDADE AUTÓNOMA DE LISBOA
1. Se bem que, em ambos os países de língua portuguesa, o conhecimento do
pensamento kantiano tenha sido relativamente tardio, a exemplo do que, aliás,
aconteceu em diversas outras partes da Europa, a começar pela França1, havendo-se
iniciado, de modo muito imperfeito, apenas nos primeiros anos do séc. XIX, já
após a morte do filósofo, no entanto, foi significativamente diverso o destino da
reflexão do mestre de Königsberg em Portugal e no Brasil, sendo, inegavelmente,
este um dos aspectos que individualizam a actividade especulativa brasileira relativamente à comum matriz portuguesa, com a qual não deixou de manter assinaláveis convergências.
Assim, enquanto, nas duas primeiras décadas de oitocentos, Joaquim José
Rodrigues de Brito (1753-1831)2 e Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846)3, ambos
no âmbito do sensismo utilitarista, demasiado depressa recusaram a filosofia kantiana, confundindo o seu criticismo com a doutrina das ideias inatas, no Brasil, pela
mesma época, Martim Francisco Ribeiro de Andrade (1775-1844), nos cursos de
filosofia que professava em São Paulo, expunha já os princípios fundamentais da
filosofia transcendental e, alguns anos depois, Diogo António Feijó (1784-1843),
no curso de filosofia racional e moral que ministrava na vila de Itu, revelava clara
consciência do que distinguia a filosofia crítica do dogmatismo e do cepticismo,
bem como do significado e importância da noção de a priori e da diversa natureza
das categorias aristotélicas e das kantianas, fazendo ainda suas as três perguntas
——————————————
1
Cfr. André Stanguennec, La pensée de Kant et la France, Editions Cécile Defaut, 2005, pp. 55 e
segts.
2
J. J. Rodrigues de Brito, Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza das nações,
e principalmente de Portugal, Lisboa, 1803-1805.
3
Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas, Rio de Janeiro, 1813.
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 183-203
184
António Braz Teixeira
fundamentais que o mestre germânico considerava a raiz de toda a actividade especulativa4.
Acontece, porém, que nenhum dos dois últimos se deteve a considerar a problemática filosófico-jurídica e que os dois primeiros, que a ela dedicaram demorada atenção reflexiva, o fizeram em quadros especulativos muito diversos da perspectiva adoptada na doutrina kantiana do direito, embora Rodrigues de Brito não
tenha deixado de se referir, criticamente, aos “kancianistas”, a propósito da distinção ou separação entre o direito e a moral, a que contrapunha o sentimento interno
que conduz à felicidade, hedonisticamente entendida, o qual seria o fundamento
comum da moral e do direito e a fonte de todas as regras éticas.
Deste modo, seria apenas em meados de oitocentos, na obra do lente conimbricense Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886), que a Metafísica dos Costumes
viria a encontrar os seus primeiros ecos no pensamento filosófico-jurídico luso-brasileiro.
2. Depois de, durante os primeiros dez anos do seu magistério da cadeira de
Direito Natural se ter visto obrigado a seguir o velho compêndio de Martini, procurando, contudo, «aditar-lhe as novas teorias dos escritores modernos»5, em 1844
Ferrer decidiu, finalmente, romper com tal orientação e renovar o seu ensino, tendo
em conta as mais recentes doutrinas do direito natural e da filosofia do direito,
«principalmente em Alemanha»6, procurando fundir a expressão krausista do idealismo alemão, na versão dos seus discípulos belgas Heinrich Ahrens e Guillaume
Tiberghien com aspectos essenciais da doutrina kantiana do direito e, mais tarde, já
no fim da vida, com algumas teses do darwinismo7.
Confessamente ecléctico, Ferrer afirmava haver escolhido «de todos os
escritores antigos e modernos» o que lhe parecia melhor, a que acrescentara o
«produto das suas lucubrações», pelo que o que denominava o «seu sistema», não
sendo «inteiramente novo», não seria também «uma reprodução exacta dos sistemas anteriores»8.
Do sistema kantiano, três aspectos essenciais acolhia o lente de Coimbra na
sua doutrina filosófica do direito: a existência, no espírito humano, de ideias ante-
——————————————
4
Diogo António Feijó, Cadernos de Filosofia, São Paulo, 1967. Cfr. A. Braz Teixeira, «Kant e a
reflexão filosófica luso-brasileira do séc. XIX», Cultura-Revista de História e Teoria das Ideias, vol. XX
(2ª série), Lisboa, 2005, pp. 25-47.
5
Curso de Direito Natural, segundo o estado actual da ciência, principalmente em Alemanha,
Coimbra, 1843.
6
Elementos de Direito Natural ou de Filosofia do Direito, Coimbra, 1844, prólogo.
7
Filosofia do Direito, 6ª ed., Coimbra, vol. I, 1883.
8
Princípios gerais de Filosofia do Direito, Coimbra, 1850, pp. 101.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
185
riores à experiência e que dela seriam condições de possibilidade, a ideia de condicionalidade e a separação entre o direito e a moral.
Em matéria gnosiológica, Ferrer vinha, porém, a encontrar-se mais próximo
do inatismo leibniziano do que do criticismo kantiano, cujo exacto alcance é duvidoso que haja apreendido, pois afirmava a existência, não, propriamente, de categorias a priori do entendimento mas de ideias gerais e eternas, que se achariam
gravadas na consciência de todos os homens e que constituiriam os primeiros elementos do pensamento, anteriores a qualquer experiência e condicionantes dessa
mesma experiência e de todo o conhecimento humano. Seriam tais ideias que,
segundo o lente de Direito, garantiriam o conhecimento e lhe forneceriam um princípio de unidade, do mesmo modo que sustentariam a crença na unidade do mundo
e na existência de um Ente Absoluto e Infinito de que essas mesmas ideias promanariam9.
Por seu turno, a ideia de condicionalidade no modo de conceber e definir o
direito vinha a ter, em Ferrer, um sentido mais próximo do de Krause10 ou de
Ahrens11 do que do kantiano12, já que entendia o direito como «o complexo de
condições, tanto internas como externas, dependentes da liberdade e da vontade do
homem, que concorrem para a realização do fim racional, individual e racional do
homem»13. Deste modo, para ele, a ideia de direito viria a fundar-se em dois princípios diferentes e, até certo ponto, antagónicos, a razão prática e a natureza
humana, nela marcando, simultaneamente, presença o ser e o dever-ser, o momento
empírico e o elemento racional, o que era a fonte das maiores dificuldades com que
o seu pensamento veio a defrontar-se e o sentido contrapolar em que se vieram a
orientar as críticas dos seus discípulos e imediatos sucessores e os diversos e divergentes rumos que cada um deles acabou por seguir na sua reflexão filosófico-jurídica.
Quanto ao modo de entender a distinção entre o direito e a moral, o nosso
jusfilósofo acolhia a ideia, vinda de Ch. Thomasius e que Kant fizera sua, de que a
moral se circunscreve ao domínio interno da consciência, curando apenas de intenções e impondo deveres, de natureza afirmativa, ao passo que os deveres jurídicos
têm conteúdo negativo, pois consistem numa mera abstenção, a de não invadir a
——————————————
9
Ob. cit., pp. 17-19 e 41.
10
«O direito é o conjunto de condições externas, dependentes da liberdade, para a realização do fim
racional da Humanidade e de todos e cada um dos indivíduos».
11
«O direito é o conjunto das condições, dependentes da acção voluntária do homem e necessárias
para a realização do bem e de todos os bens individuais e sociais que constituem o fim racional do homem e
da sociedade». Cours de Droit Naturel, 4ª ed., Bruxelas, 1853, p. 154.
12
«O direito é o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o
arbítrio de outrem, segundo uma lei universal da liberdade». A Metafísica dos Costumes, trad. port. José
Lamego, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 43.
13
Elementos de Dir. Nat. §§ 15 e 16 e Princípios gerais, pp. 97 e segts.
186
António Braz Teixeira
esfera jurídica alheia, já que o seu princípio fundamental seria o do neminem laedere. Assim, para Ferrer, o direito era, essencialmente, uma faculdade ou coisa
permitida, pelo que não poderia nunca conceber-se como dever ou obrigação de
alguém, visto depender, exclusivamente, do seu titular o exercê-lo ou renunciar a
ele, tal como, porque o direito de cada pessoa vai até onde chega o direito dos
outros, quando dois ou mais sujeitos jurídicos pretendam a mesma coisa, o direito
de cada um deles deve limitar-se pelo dos restantes, a fim de que as pretensões de
todos possam ser igualmente satisfeitas14.
3. O compêndio de Ferrer gozou de invulgar sucesso e duradoura presença
no mundo académico luso-brasileiro, pois não só foi a base da sua regência da
cadeira de Direito Natural até 1858, sendo ainda por referência ao seu magistério
que se situaram os seus imediatos sucessores Joaquim Maria Rodrigues de Brito
(1858-1861 e 1866-1873) e José Dias Ferreira (1862-1866 e 1873-1881), como foi
adoptado nas Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda-Recife logo na
segunda metade do séc. XIX, naquela por Amaral Gurgel (1797-1864) e, na pernambucana, por iniciativa da respectiva congregação, prolongando a sua vigência,
no Largo de S. Francisco, até meados da década de 70, quando João Teodoro
Xavier de Matos (1828-1878)15 e Carlos Mariano Galvão Bueno (1834-1883)16,
seguindo o exemplo dos seus colegas de Coimbra, contrapuseram ao seu individualismo jurídico uma concepção eminentemente social do direito, e, no nordeste,
até 1862, ano em que foi decidido voltar a adoptar o velho compêndio de Pedro
Autran de Albuquerque, que, em 1832, substituíra o manual do conimbricense José
Fernandes Álvares Fortuna, seguido no ensino de Direito Natural nos primeiros
anos da escola de Olinda17.
Refira-se, contudo, que na obra dos discípulos e continuadores de Ferrer, a
escassa presença que Kant encontrara no pensamento do mestre praticamente desapareceu, tanto no plano gnosiológico e metafísico como no estrito domínio filosó——————————————
14
Elementos de Dir. Nat., §§ 27 e segts. e Princípios gerais Fil. Dir., pp. 168 e segts. Sobre o
pensamento filosófico-jurídico de Ferrer, ver L. Cabral de Moncada, Subsídios para a História da Filosofia
do Direito em Portugal, Lisboa, INCM, 2003, pp. 62-72 e 211-279, Mário Reis Marques, «O krausismo de
Vicente Ferrer Neto Paiva». Boletim da Fac. Dir. Coimbra, vol. XVI, 1990, A. Castanheira Neves, Digesta,
vol. I, Coimbra, 1995, pp. 337-342, A. Simões Dias, A filosofia do direito de Vicente Ferrer Neto Paiva,
Lousã, 1999, Maria Clara Calheiros de Carvalho, A filosofia jurídico-política do krausismo português,
Lisboa, INCM, 2006 e A. Braz Teixeira, Caminhos e figuras da filosofia do direito luso-brasileira, 2ª ed.,
Lisboa, Novo Imbondeiro, 2002, pp. 67-101.
15
Teoria transcendental do direito, São Paulo, 1876.
16
Noções de filosofia acomodadas ao sistema de Krause e extraídas das obras filosóficas de G.
Tiberghien e Ahrens, São Paulo, 1877.
17
Cfr. Clóvis Bevilaqua, História da Faculdade de Direito do Recife, 2ª ed., Brasília, 1977, p. 103,
António Paim, «O krausismo brasileiro», Nomos. Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado,
nº 5-6, 1988 e A. Braz Teixeira, ob. cit., pp. 102-133.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
187
fico-jurídico, em que a ideia de condicionalidade ou é substituída pela de sistema
de princípios (Dias Ferreira) ou passa a referir-se ao «complexo de condições que
os homens mutuamente devem prestar-se, necessárias ao desenvolvimento da personalidade de cada um, em harmonia com o bem geral da humanidade» (Rodrigues
de Brito), ao mesmo tempo que a separação radical que Ferrer estabelecera entre o
direito e a moral cede o lugar à doutrina do mínimo ético (Dias Ferreira) ou a uma
concepção decididamente ética e social do direito, que conferia o primeiro lugar à
igualdade e submetia a liberdade ao imperativo do dever de cada um perante os
outros e perante si próprio18.
4. O segundo momento da recepção da doutrina kantiana do direito no
mundo jurídico luso-brasileiro é protagonizado pela chamada “Escola do Recife” e
em especial pelo seu incontestado iniciador e chefe, o sergipano Tobias Barreto
(1839-1889).
A interpretação tobiática do pensamento “kantesco”, como o denominava,
vinha a reduzi-lo a uma teoria do conhecimento, segundo a qual os objectos cognoscíveis são determinados ou condicionados pela natureza do sujeito cognoscente,
não logrando os conhecimentos assim obtidos representar a verdadeira e absoluta
realidade. No pensamento de Tobias Barreto, esta doutrina gnosiológica estava
associada a uma concepção metafísica e ontológica de declarada feição monista e
evolucionista, dinâmica e teleológica, que, se, por um lado, recusava um acanhado
e limitado naturalismo, por outro, se apresentava como um insuperável dualismo,
ao admitir dois princípios antagónicos e entre si inconvertíveis, a causalidade e a
finalidade, e ao conter em si duas realidades substantivamente diferentes, a natureza, domínio do mecanismo e a cultura, reino da liberdade.
É, precisamente, a noção de cultura como criação espiritual do homem,
contraposta à natureza, com o intuito de a tornar cada vez melhor e mais bela, que
constitui o aspecto mais pessoal e inovador do pensamento do mestre pernambucano, cuja reflexão vem, assim, a convergir com a que, pela mesma época, estavam
fazendo os neo-kantianos de Baden, e aquele que mais duradouro e fecundo se veio
a revelar, como o demonstra a corrente culturalista, iniciada por Miguel Reale na
década de 40 do século passado e ainda hoje com destacada presença na especulação brasileira.
——————————————
18
José Dias Ferreira, Noções fundamentais de Filosofia do Direito, Coimbra, 1864, Joaquim Maria
Rodrigues de Brito, Filosofia do Direito, Coimbra, 1869. Cfr. L. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 80-85 e
119-131, Mário Reis Marques, «Do “Direito Natural” à “Filosofia do Direito”: José Dias Ferreira», Nomos.
Rev. Port. Fil. Dir. e do Est., nº 3-4, 1987, pp. 38-55, Maria Clara Calheiros de Carvalho, ob. cit., VVAA,
Vicente Ferrer Neto Paiva. No segundo centenário do seu nascimento a convocação do krausismo, Coimbra, 1999 e A. Braz Teixeira, ob e ed. cits., pp. 76 e segts. e História da Filosofia do Direito Portuguesa,
Lisboa, Caminho, 2005, pp. 124-131.
188
António Braz Teixeira
Note-se, contudo, que a noção de cultura de Tobias Barreto, devido ao insuperável naturalismo que definia o seu pensamento, não só não lhe permitiu atender,
como convinha, ao seu elemento essencial, o elemento axiológico e apreender a
essencial distinção epistemológica entre as ciências da natureza e as ciências do
espírito, como era a fonte de duas outras dificuldades com que aquela se defrontava, as relativas ao problema da liberdade e à ideia de desenvolvimento.
Com efeito, para o iniciador da Escola do Recife, a liberdade seria um facto
de ordem natural, a mera liberdade empírica, que, no seu pensamento, se identificava ou confundia com a vontade, entendida esta como a capacidade que o homem
tem de realizar um plano por si próprio delineado e de atingir um objectivo que a si
mesmo se propõe.
Quanto à ideia de desenvolvimento, base da sua concepção da historicidade
da cultura, era, para ele, também uma noção naturalista, pois seria o produto de
duas propriedades fundamentais dos átomos, uma interna, o sentimento e outra
externa, o movimento. Daí que, para Tobias Barreto, todo e qualquer desenvolvimento fosse sempre redutível a uma modificação do sentimento e a uma modificação do movimento, embora entendesse que era diversa a parte de uma e de outra
dessas duas propriedades dos átomos nos vários níveis da realidade, cujo caminho
ascendente, do mundo inorgânico aos organismos sociais, seria definido pela crescente importância e decisivo papel desempenhado pelo sentimento em detrimento
do movimento.
Se bem que tenha sido, precisamente, a propósito do conceito do direito que
o filósofo sergipano chegou à sua noção de cultura, sustentando, contra as pretensões do jusnaturalismo, que aquele era obra do homem e produto da cultura
humana e não uma entidade metafísica, no entanto, não soube ou não teve tempo
ou oportunidade para desta intuição deduzir uma completa e adequada concepção
cultural ou culturalista do direito.
Na verdade, no pensamento que o malogrado filósofo deixou expresso nos
seus ensaios de filosofia jurídica19, a sua visão do direito como criação cultural
serviu-lhe mais para recusar qualquer elemento a priori no direito ou qualquer
fundamento meta-empírico da realidade jurídica e para afirmar a sua essencial
positividade do que para nela basear um entendimento do mundo jurídico diverso
do sustentado pelo positivismo ou para chegar a uma compreensão da especificidade epistemológica da ciência do direito, incompatível com a unidade metodológica propugnada pelo naturalismo.
Definindo o direito como «conjunto das condições existenciais e evolucionais da sociedade coactivamente asseguradas ou complexo de princípios reguladores da vida social, coactivamente assegurados, ou estabelecidos ou assegurados
——————————————
19
«Algumas ideias sobre o fundamento do direito de punir» (1881), «Sobre uma nova intuição do
direito» (1881), «Dissertação de concurso» (1882) e «Introdução ao estudo do direito» (1887-1888).
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
189
pelo Estado»20, o jusfilósofo brasileiro advertia que, na base do direito, como de
tudo, se encontra a luta natural pela existência, pois no «princípio era a força e a
força estava no homem e o homem era a força», de cuja conservação e desenvolvimento tudo se tem produzido, incluindo o próprio direito, que mais não seria,
então, do que transformação da própria sociedade, sendo, por isso, «a força que
matou a própria força», «a pacificação dos antagonismos das forças sociais», «a
vida pela coacção, até onde não é possível a vida pelo amor»21.
Para o pensador, o direito viria, assim, a ser uma realidade social, visto a
sociedade ser a condição formal, apriorística, de todos os fenómenos éticos e jurídicos, tal como seria também a categoria ou condição a priori do homem, o qual,
por isso, só poderia ser pensado como membro de uma sociedade. Daqui a frontal
oposição de Tobias Barreto à ideia de contrato social e à paralela noção de direitos
naturais e originários, por entender que nenhum direito existe ou existiu fora da
sociedade, dado ser ela que os instituiu e consagrou a todos. Para o jusfilósofo, a
sociedade, porque é um sistema de forças em combate contra o próprio combate
pela vida, vinha a consistir num sistema de regras, numa rede de normas que, do
direito à moral, não se circunscrevem à acção e à conduta exterior mas alcançam
também o foro íntimo e o próprio pensamento22.
Aqui se fundava a ideia do jusfilósofo recifense de que a moral e o direito
compreendiam três momentos, a regra, a luta e a paz. Enquanto, porém, na moral,
que é o reino da autonomia, a regra é estabelecida pelo próprio sujeito, a luta é a
que trava no seu íntimo e a paz é o acordo entre a regra que cada um a si mesmo se
impõe e o seu agir de acordo com ela, no direito, a regra é heterónoma, porque
imposta pelo Estado, a luta se processa no domínio social e a paz se alcança com a
harmonia da vida em comum23.
5. Assim como, em Portugal, o mitigado e equívoco kantismo jurídico de
Ferrer, nos seus discípulos e imediatos sucessores, veio a dar lugar a um krausismo
mais puro e pouco ou nada kantiano, também, no Brasil, um quarto de século mais
tarde, o neo-kantismo de Tobias Barreto, nos seus mais próximos discípulos, viria a
ceder perante os elementos positivistas, monistas, evolucionistas e historicistas que
o seu pensamento também acolhia, sendo esta ultima tendência que define o pensamento filosófico-juridico do cearense Clóvis Bevilaqua (1859-1944), que lhe sucedeu no ensino da cadeira de Filosofia do Direito (1888), e o do seu mais próximo e
——————————————
20
«Sobre uma nova intuição do direito», Estudos de Filosofia, ed. Paulo Mercadante e António
Paim, São Paulo, Grijalbo, 1977, p. 259.
21
Idem, p. 258 e «Uns ligeiros traços sobre a vida religiosa no Brasil» (1881), ed. cit., p. 287.
22
«Dissertação de concurso», «Glosas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações anti-sociológicas» (1887) e «Introdução ao estudo do direito», ed. cit., pp. 286, 329, 331 e 425.
23
«Glosas heterodoxas», ed. cit., p. 334, Cfr. A. Braz Teixeira, Caminhos e figuras, ed. cit.,
pp. 143-153.
190
António Braz Teixeira
fiel discípulo, o sergipano Sílvio Romero (1851-1914), acabando por vir a encontrar também significativo e prolongado eco na capital paulista, no magistério de
Pedro Lessa (1859-1921) e João Arruda (1861-1943), nas primeiras décadas do
séc. XX24.
Pensando, como o mestre, que o direito é um produto cultural e um facto
humano sujeito à lei da evolução, cujo factor principal é a luta, Clóvis Bevilaqua
apresenta dele uma definição análoga à de Tobias Barreto, inspirada, como a deste,
na de Jhering, entendendo-o como «o conjunto das condições existenciais da sociedade coactivamente asseguradas pelo poder político», aditando que o fenómeno
jurídico se revela à consciência humana sob a tripla forma de emoção, ideia e volição25.
O jusfilósofo cearense acolhia, igualmente, a concepção tobiática acerca dos
três momentos da vida jurídica, se bem que nela introduzisse algumas significativas
modificações. Assim, o primeiro momento seria, para ele, a norma, i. e., uma regra
pela qual os homens devem pautar os seus actos na convivência humana, enquanto
o segundo consistiria na acção dos indivíduos, pelo exercício das suas faculdades
ou pela defesa dos seus direitos, e na acção do poder público, pela coacção, que
impõe o respeito pela lei, assegurando a efectividade do direito, e o terceiro viria a
ser a paz resultante do equilíbrio das forças e dos interesses26.
Também no que se referia à distinção entre o direito e a moral Clóvis Bevilaqua se afastava de Tobias Barreto e do que nele havia de kantiano, ao afirmar ser
a existência ou não de coacção que distinguiria o primeiro da segunda27.
Afirmando-se seguidor da comtiana lei dos três estados, que Tobias sempre
recusara28, o seu jovem sucessor declarar-se-á, como ele, evolucionista e monista,
sustentando ser a teoria monista, apoiada nas conclusões do darwinismo e da filosofia spenceriana e segundo a qual tudo são modalidades do movimento, que deveria constituir a base para a adequada compreensão da evolução do direito, que,
segundo ele, se haveria efectuado pelo reconhecimento de um número cada vez
maior de direitos atribuídos a cada pessoa, pelo alargamento progressivo das
garantias jurídicas concedidas a um maior número de pessoas e pela crescente
segurança dos direitos reconhecidos29.
——————————————
24
Cfr. Miguel Reale, Filosofia em São Paulo, 2º ed., São Paulo, 1976, pp. 129-165 e Estudos de
filosofia brasileira, Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, pp. 131-173.
25
«O direito» (1886) e «Da concepção do direito como reflectora da concepção do mundo» (1887),
Obra filosófica, São Paulo, Edusp-Grijalbo, vol. II, 1975, pp. 43-52 e 68-71.
26
«O direito», ed. cit., pp. 52-54.
27
Idem, p. 55.
28
Cfr. «Sobre a religião natural de Jules Simon» (1869).
29
«A fórmula da evolução jurídica» (1894), ed. cit., p. 85.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
191
6. Por seu turno, Sílvio Romero, se, como Tobias Barreto, atribuía assinalável relevância à filosofia de Kant, que frequentemente é convocado na sua obra
reflexiva, acabou, no entanto, por encaminhar o seu culturalismo do inicial plano
filosófico para o domínio sociológico.
Considerava Sílvio Romero que Kant influenciara a sua reflexão em dois
pontos fundamentais, a crítica geral do conhecimento e a intuição peculiar da filosofia. Para o pensador sergipano, a filosofia vinha a identificar-se com a metafísica,
enquanto «disposição natural do espírito humano a sondar razões últimas e a natureza intrínseca das coisas», pelo que teria por objecto das suas indagações aquele
conjunto de «problemas reais, iniludíveis e inegáveis» que se acham na base de
todas as ciências, por decorrerem da organização mental do homem e por se
encontrarem no fundo do próprio conhecimento30.
Declarando-se, como o seu mestre recifense, «um sequaz do monismo
teleológico contra o monismo mecanicista», Sílvio Romero sustentava que ele, na
sua versão spenceriana, constituía a actualização do pensamento de Kant, apresentando-se o Incognoscível do filósofo inglês como a expressão mais moderna do
noumenon kantiano. Assim, para o pensador brasileiro, o naturalismo evolucionista, porque inteiramente conforme com os factos e a ciência do seu tempo, era «o
kantismo rejuvenescido pelo órgão de Spencer», cujas ideias definidoras essenciais
seriam a de submeter a inteligência a uma crítica e determinar as condições do
conhecimento, a distinção entre elementos objectivos e subjectivos do pensamento
e a consciência de que todos os juízos envolvem certos dados inerentes à constituição intelectual do homem e a distinção entre o rigorosamente cognoscível, que é
objecto da ciência, e o problemático e indeterminado, que constitui a matéria da
metafísica (que preferia designar por metaempiria) e das religiões31.
Era esta sua convicção de que «o conceito de evolução spenceriana fecunda
a doutrina kantesca» que levava o jusfilósofo sergipano a entender que a definição
de direito contida na Metafísica dos Costumes era demasiado formal e assente,
exclusivamente, na autonomia da vontade, carecendo, por isso, de ser corrigida ou
completada. Assim, para Sílvio Romero, o direito deveria definir-se como «o complexo das condições, criadas pelo espírito das várias épocas, que servem para,
limitando o conflito das liberdades, tornar possível a coexistência social»32. O
direito apresentava-se-lhe, pois, como uma disciplina da liberdade, modelando-se
no conflito com a liberdade dos outros, disciplina que visa a sociedade, cuja existência garante e regula pela pena e pela coacção, pelo que o seu princípio funda——————————————
30
Prefácio à 2ª ed. do Ensaio de Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, 1907.
31
Doutrina contra doutrina, Rio de Janeiro, 1894, em Obra filosófica, ed. Luís Washington Vita,
idem, 1969, pp. 477-478 e Ensaio de Filosofia do Direito, 2ª ed., idem, pp. 499 e 525-526.
32
Ensaio Fil. Dir., ed. cit., pp. 647-648.
192
António Braz Teixeira
mental seria o seguinte: «põe em movimento a tua vontade até onde ela não impossibilite a acção dos outros».
Deste modo, para o polígrafo brasileiro, o direito, como norma da vida dos
homens entre si, é uma criação cultural resultante do trabalho espiritual, da produção consciente, do esforço voluntário do homem, por meio do qual a sua liberdade
é limitada para assegurar e realizar a existência, a disciplina e a harmonia social,
pelo que o direito, tendo a sua causa na necessidade de disciplinar a vontade e a
liberdade de cada um em prol da vontade e da liberdade alheias, teria o seu fundamento na consciência da identidade dos destinos humanos33.
Quanto à distinção entre o direito e a moral, Sílvio Romero entendia que,
tratando-se embora de duas realidades normativas idênticas, por ambas regularem
as acções dos homens na sociedade, não deixavam de possuir, cada uma delas, uma
esfera própria: enquanto o direito compreenderia os actos da vida pública, visando
a realização do justo e fundando-se na liberdade que se limita para alcançar a harmonia e a disciplina social, a moral referir-se-ia aos actos que constituem obrigações impostas ao homem por ele próprio, tendo em vista a prática do bem e encontram o seu fundamento na consciência da identidade dos destinos humanos e não
no interesse, na utilidade, na simpatia ou no prazer e cujo cumprimento, por isso,
não pode ser exigido por uma coacção exterior34.
7. Um outro discípulo de Tobias Barreto, Raimundo de Farias Brito (1862-1917), havendo começado por acolher as suas principais posições filosóficas, com
especial destaque para o relativismo gnosiológico de matriz kantiana, o monismo, o
naturalismo, o evolucionismo e o teleologismo, a breve trecho dele veio a afastar-se, não poupando a severas críticas a filosofia do mestre de Königsberg, que não
hesitou em considerar, ao lado do positivismo, a expressão moderna do cepticismo.
Concordando com Kant em que a teoria da intuição que fornece os dados
naturais do conhecimento tem de ser completada por uma teoria da experiência que
explique as condições de elaboração do mesmo conhecimento35, o pensador cearense considerava, porém, que o erro do grande especulativo germânico fora o de
negar a possibilidade da metafísica como interpretação racional da natureza, erro
que, segundo ele, proviria de aquele ter pretendido aplicar ao estudo da realidade
objectiva o método dedutivo, o qual se lhe afigurava totalmente inadequado para
esse efeito. Na verdade, porque tal método parte de definições e axiomas, de conceitos devidamente limitados, com vista a explicar os casos particulares, seria um
método de verificação e de prova e não de descoberta e de busca inovadora. Deste
——————————————
33
Ob. e ed. cits., pp. 600-601, 633-634, 633-635, 638-640 e 647-648.
34
Doutrina contra doutrina, ed. cit., p. 340 e Ensaio, id., p. 637. Cfr. A. Braz Teixeira, ob. e ed.
cits., pp. 154-171.
35
Finalidade do mundo, vol. III (1905), 2ª ed., Rio de Janeiro, 1957, p. 338.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
193
modo, o método dedutivo, se pode garantir a correcção do raciocínio, não assegura
a sua validade objectiva, pois, para que as conclusões de um raciocínio sejam verdadeiras, é necessário que haja acordo do pensamento com o seu objecto, o que
unicamente poderá ser assegurado pela observação e pela experiência. Ora, dado
que a consciência era o verdadeiro órgão do conhecimento, o critério supremo da
verdade só poderia ser o «testemunho normal e permanente da consciência», do
que concluía Farias Brito que, não sendo possível conceber nenhum limite para o
espaço e para o tempo, nem para a actividade que num e noutro se desenvolve,
seria imperioso admitir que o mundo era infinito e constituía uma actividade intelectual36.
O anti-kantismo do pensador cearense não se limitava ao domínio gnosiológico, alargando-se também ao campo da razão prática e à doutrina do direito do
filósofo alemão.
Pensando que a filosofia, que concebia como sendo o próprio espírito em sua
actividade permanente, explorando e interrogando incessantemente a natureza,
tinha uma dupla função, constituir a ciência e criar a moral, Farias Brito entendia
que desta última decorriam normas éticas, que tinham por fim o domínio do
homem sobre si próprio, pelo estabelecimento do conjunto de princípios pelos
quais deve regular a sua conduta para realizar o bem. Mas esta função prática da
filosofia só é possível por ser da essência da natureza humana o ter consciência de
si, podendo formular normas da sua conduta, nisto consistindo a liberdade, que,
para o especulativo nordestino, era a «consciência da acção e o império da razão».
Duas decisivas conclusões retirava daqui o pensador brasileiro: a de que a
inteligência era a actividade e a essência do espírito, só ela sendo livre e princípio
criador, e a de que, para o espírito, todo o ser e toda a realidade é o conhecimento,
obra da inteligência37.
A norma de conduta moral, formulada pela razão e reconhecida pela consciência, impõe deveres, o primeiro dos quais é de o homem proceder sempre de
acordo com a verdade, pelo que ser verdadeiro é a regra suprema das acções humanas. Dado que, na ordem moral, a verdade é o bem, aquele supremo princípio vem,
então, a resolver-se em duas fundamentais fórmulas éticas: fazer o bem, não fazer o
mal38.
No entanto, porque os homens, em geral não são bons e bem intencionados
mas têm uma tendência natural para o mal, o dever moral, para ter valor prático e
ser eficaz, carece de uma sanção que não seja apenas a condenação da consciência
——————————————
36
Ob. e ed. cits., pp. 251-384.
37
Finalidade do mundo, vol. I, (1895), 2ª ed., Rio de Janeiro, 1957, pp. 42-43 e 76-78, vol. II
(1899), idem pp. 12 e 155, A verdade como regra das acção (1905), 2ª ed., idem, 1953, pp. 17-20 e 74, A
base física do espírito (1912), 2ª ed., idem, pp. 58 e segts. e O mundo interior, idem, 1914, pp. 29-30, 421-423, 441-453 e 464.
38
A verdade, ed. cit., pp. 23-24 e 37-38.
194
António Braz Teixeira
individual pela consciência dos demais, i. e., de uma sanção material que, pelo
emprego da força, garanta o cumprimento dos deveres morais cuja violação ou não
acatamento espontâneo ponha em perigo a ordem social.
Deste modo, para Farias Brito, a lei moral constituía a suprema lei, sendo o
fim de toda a organização, moral ou jurídica, conseguir que a vida fosse regida pela
razão, vindo o direito a constituir um complemento da lei moral, destinado a impedir, pelo emprego da força, que os homens façam o mal. O filósofo vinha, assim, a
perfilhar a doutrina do mínimo ético, sustentando que a lei que o direito estabelece
é a mesma lei moral, com duas particularidades: no direito, o cumprimento da lei
moral é garantido, coactivamente, pelo uso da força e dele fazem parte unicamente
as leis morais cuja violação põe em risco a ordem social, sendo as restantes desprovidas deste tipo de sanção.
Para o lente da Faculdade de Direito do Pará, não seria, contudo, a coacção o
elemento fundamental que permitiria distinguir o direito da moral, já que outras
diferenças, de maior significado, separavam as duas ordens normativas. Assim,
para Farias Brito, a moral tem por fim o bem absoluto, independentemente das
circunstâncias, considera a acção no plano da consciência individual e estuda as
leis da conduta quando deduzidas unicamente pela autoridade da razão e impostas
pela consciência, ao passo que o direito tem por fim o bem relativo que consiste no
respeito recíproco da liberdade de todos os que convivem na sociedade, considera a
conduta no domínio da consciência colectiva e estuda as leis da conduta quando
estabelecidas pela autoridade do poder político e asseguradas, coactivamente, por
uma sanção material39.
Aqui se fundava o conceito de direito do autor de A verdade como regra das
acções, que o definia como «norma de conduta imposta por autoridade do poder
político», advertindo, porém, que tal definição era apenas a descrição de um facto e
não a determinação de um conceito, já que este, em sentido próprio, deveria compreender o direito em todas as suas formas possíveis, de qualquer povo e de qualquer época e a sua, como todas as outras, estava, inevitavelmente, condicionada
pela sua pessoal concepção do mundo, nada lhe garantindo que, num longínquo
porvir, o poder político não viesse a desaparecer e a cumprir-se o ideal anarquista40.
Estas mesmas considerações levavam o jusfilósofo cearense a recusar a ideia
de direito natural, por entender não ser dado à razão definir ou apreender uma lei
imutável e eterna que fosse modelo invariável e permanente para todo e qualquer
legislador, em qualquer tempo e lugar, sendo, por isso, todas as visões ou concepções jusnaturalistas, inevitável e insuperavelmente, condicionadas pelas concepções do mundo dos seus autores. Acresce que, para Farias Brito, a moral, como lei
essencial, e o direito, como lei complementar, esgotariam o campo normativo,
nenhum terceiro género nele sendo admissível.
——————————————
39
Ob. e ed. cits., pp. 24-26, 33 e 79-81.
40
Idem, pp. 60-79.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
195
Recusando, embora, a ideia de direito natural, o especulativo brasileiro não
deixava de admitir um fundamento axiológico e um princípio superior para o
direito, princípio que, no seu pensamento, seria a justiça, a qual fazia do direito «a
síntese da vida espiritual» e da ciência jurídica uma «ciência sagrada», porque
«ciência do amor e da justiça».
Se não deixava de reconhecer que, para o homem, a justiça é sempre relativa, porque fundada necessariamente em variáveis, fragmentárias e imperfeitas
convicções, o filósofo não se esquecia de advertir dever ser a justiça absoluta a
suprema aspiração e o ideal permanente de toda a acção moral e jurídica, sustentando que a justiça plena é harmonia, amor e verdade, por representar «o acordo
das vontades e a paz das consciências», por significar «a organização da sociedade
pela confraternização dos interesses» e por ser «a legítima compreensão da organização social e a consagração dos direitos do homem»41.
8. Enquanto, no Brasil, o neo-kantismo jurídico de Tobias Barreto era frontalmente criticado e recusado (Farias Brito), sociologicamente deturpado (Sílvio
Romero) ou pura e simplesmente ignorado (Clóvis Bevilaqua), para dar lugar a
uma concepção positivisto-sociológica do direito (Alberto Sales, Pedro Lessa, João
Arruda) ou a um novo espiritualismo ético (Farias Brito), em Portugal, um jovem
diplomado pelo Curso Superior de Letras, Manuel António Ferreira-Deusdado
(1858-1918), inspirando-se no neo-criticismo francês de Renouvier e Lachelier,
enfrentava com denodo o positivismo jurídico-sociológico de Teófilo Braga (1843-1924), Manuel Emídio Garcia (1838-1904) e António Henriques da Silva (1850-1906) e do psiquiatra Miguel Bombarda (1851-1910) que dominava os estabelecimentos de ensino, modelava as elites e encontrava decisivo eco na mais activa
propaganda republicana.
Partindo, embora, de pressupostos filosóficos gerais significativamente distintos dos de Farias Brito, Ferreira-Deusdado aproximava-se dele no que toca ao
modo de conceber o direito e a moral e as relações entre ambos.
Admitia o moço pensador português que a filosofia tinha como núcleo
essencial a metafísica e a ética, entendendo que o objecto da primeira era o absoluto, concebido como ideia simples da razão e lei objectiva do pensamento, compreendida esta última como conjunto dos princípios irredutíveis do espaço, tempo,
número, substância e causalidade, os quais se impõem ao espírito como condição
do pensamento e razão suficiente da existência das coisas. Quanto à ética, no pen-
——————————————
41
Idem, p. 82 e «Sobre o valor dos estudos jurídicos», Pará, 1904, Inéditos e dispersos, org. Carlos
Lopes de Matos, São Paulo, 1966. Cfr. A. Braz Teixeira Caminhos e figuras, ed. cit., pp. 172-182, «Kant e
a reflexão filosófica», loc. cit. e Ética, filosofia e religião, Évora, Pendor, 1997, pp. 137-151.
196
António Braz Teixeira
samento de Ferreira-Deusdado, teria como ideias essenciais as de liberdade, dever
e progresso.
No pensamento neocriticista do reflexivo português, o direito e a moral
tinham uma base ou origem comum e visavam o mesmo fim, o destino da humanidade, considerado no seu conjunto e em cada um dos seus membros, não devendo,
porém, essa comunidade de origem e de fim das duas ordens normativas fazer
esquecer que há entre elas uma hierarquia, pois não só a liberdade moral é condição essencial da existência do direito como acima da ordem jurídica, que o pensador, coincidindo aqui com Ferrer Neto Paiva, considerava puramente negativa, se
encontra a ordem moral, o bem moral positivo.
Assim, a distinção fundamental entre estes dois domínios normativos diria
respeito ao sentido que a liberdade tinha em cada um deles, pois a liberdade moral
seria o poder que o homem tem de se autodeterminar e a liberdade jurídica seria o
direito de desenvolver as próprias faculdades numa medida que não exclua o
desenvolvimento da liberdade ou do direito de outrem, constituindo os seus limites
a base e o objecto do direito como regra das relações sociais. Por outro lado, a lei
moral revela-se na consciência, assumindo, por isso, um essencial carácter autónomo, ao passo que o direito tem por objecto o homem exterior e social e por missão garantir a cada um o que lhe deve pertencer, criar e manter a ordem necessária
ao seu desenvolvimento físico, intelectual e moral e prevenir e reparar o mal resultante de ataques ou de infracções contra essa mesma ordem, na medida em que isso
seja possível.
Esta natureza social e heterónoma do direito, contraposta ao carácter individual e autónomo da moral, explicaria, segundo o pensador português, que aquele
tivesse de fundar-se em princípios abstractos que se projectavam em regras gerais,
contrariamente à moral que, frequentemente, depende de «convicções individuais
que transfiguram algumas vezes as regras sociais em fórmulas mais ou menos
importunas, cuja conveniência se não justifica suficientemente, quer em si mesma e
de um modo geral quer em atenção a circunstâncias particulares». Daqui decorria o
conceito de direito acolhido por Ferreira-Deusdado, segundo o qual ele seria um
princípio puramente humano, deduzido da liberdade e da sociabilidade, que garante
o reconhecimento e a protecção da pessoa, pelo recurso ao constrangimento físico
exercido por meios materiais.
Advertia, contudo, o pensador que da supremacia axiológica da moral sobre
o direito resultava que, para além do direito positivo, diverso e variável no tempo e
no espaço, há um direito ideal, inviolável, absoluto e universal, cujo princípio fundamental é a liberdade moral, a autonomia da pessoa42.
——————————————
42
Ensaios de filosofia actual, Lisboa, 1888 e Estudos sobre criminalidade e educação. Filosofia e
antropologia, idem, 1889, pp. 9 e 39-94. Cfr. A. Braz Teixeira, História cit., pp. 162-165 e «Ferreira-Deusdado: da psicologia à ética», História do pensamento filosófico português, vol. IV, tomo I, Lisboa,
Ed. Caminho, 2004, pp. 187-193.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
197
9. Se o primeiro momento da recepção da doutrina jurídica de Kant no
mundo de língua portuguesa teve a sua origem em Portugal, através da obra de
Vicente Ferrer Neto Paiva, numa ecléctica e não inteiramente conseguida síntese de
kantismo e krausismo e se o segundo foi, fundamentalmente, brasileiro e se ficou
devendo, acima de tudo, a Tobias Barreto, integrada, agora, a lição do filósofo
germânico numa síntese, igualmente ecléctica e não isenta também de contradições
internas, de cariz dominantemente monista e evolucionista que, num caso e noutro,
cedo cederia, aqui, ao krausismo organicista e, ali, ao sociologismo positivista, o
terceiro ciclo dessa recepção, iniciado no final da década de 30 da passada centúria,
foi, verdadeiramente, luso-brasileiro, tendo como decisivos e incontestados protagonistas Luís Cabral de Moncada (1888-1974) e Miguel Reale (1910).
Havendo feito a sua formação jurídica num ambiente profundamente marcado pela noção positivista e sociológica do direito que imperava nas escolas jurídicas de Coimbra e de São Paulo, os dois jusfilósofos procuraram nas correntes
doutrinárias mais divulgadas na década de 30 do século XX os fundamentos para
um regresso à consideração filosófica do direito, tendo encontrado no neo-kantismo, na expressão que lhe haviam dado ou estavam dando Rudolf Stammler,
Gustav Radbruch e Giorgio Del Vecchio a via que melhor correspondia aos seus
anseios especulativos, vindo, contudo, a combinar o seu formalismo axiológico
com aspectos essenciais da fenomenologia de Husserl e com a ontologia de N.
Hartmann, bem como com a atenção ao concreto humano propugnado pelas filosofias de sinal vitalista e existencial.
Esta comum inspiração no neo-kantismo jurídico alemão explica as profundas afinidades e convergências que é possível surpreender no pensamento dos dois
jusfilósofos, desde o modo de entender a natureza e o âmbito da filosofia do
direito, até à importância atribuída à experiência jurídica, ao conceito de direito e à
visão, eminentemente formal, do direito natural e da justiça e da essencial historicidade do respectivo conteúdo material.
Assim, coincidem ambos, desde logo, em atribuir natureza filosófica e não
jurídica à filosofia do direito, divergindo, contudo, algum tanto no modo de concebê-la, pois, enquanto o mestre paulista, aqui mais fielmente kantiano, pensa
dever ser ela compreendida como o estudo crítico-sistemático dos pressupostos
axiológicos, factuais e lógico-normativos da experiência jurídica, tendo, por isso,
como tarefa primeira a crítica dessa mesma experiência e a determinação das condições que a tornam possível e como problema fundamentais os relativos ao conceito de direito e ao modo da sua determinação, à ideia de justiça e à sua integração
no plano social e histórico43, o jusfilósofo português, se concordava com o seu
colega brasileiro em que há uma incindível relação entre gnosiologia e ontologia
——————————————
43
Filosofia do Direito, 18ª ed., São Paulo, 1998, pp. 285 e segts. e Introdução à filosofia, idem,
1988, p. 210.
198
António Braz Teixeira
jurídicas, que mutuamente se pressupõem, considerava de forma parcialmente
diversa os problemas fundamentais da reflexão filosófica sobre o direito, os quais,
em seu entender, se reconduziriam aos do conhecimento jurídico (gnosiologia jurídica), do ser do direito (ontologia jurídica) e do seu valor (axiologia jurídica),
excluindo do seu âmbito as reflexões atinentes à sua integração histórico-social44.
Quanto ao modo de conceber o direito e de considerar os problemas essenciais da ontologia jurídica, os dois autores coincidem em compreender o direito
como objecto ou criação cultural, recusando, por isso, qualquer concepção meramente normativista, legalista ou sociologista do mundo jurídico e afirmando o seu
sentido ou conteúdo axiológico e a sua referência constitutiva e fundante a valores,
princípios ou ideais e acolhendo um conceito de direito como algo que se insere ou
se projecta em mais de uma região da realidade.
Se, desde a sua tese Fundamentos do direito (1940), Miguel Reale perfilha
uma concepção tridimensional do direito como facto, valor e norma, que desenvolverá, primeiro, a partir de 1955, nas sucessivas edições da sua Filosofia do direito
e, depois, de forma acabadamente sistemática, na Teoria tridimensional do direito,
cuja primeira versão data de 1968, já Cabral de Moncada, que, logo em 1933, afirmava ser o direito tridimensional, por ser, simultaneamente, uma realidade social,
uma realidade objectiva e um valor ou um complexo de valores jurídicos45, irá
tomando sobre este problema diferentes posições, seja admitindo quatro dimensões
na realidade jurídica – a empírico-natural, a histórico-cultural, a lógico-construtiva
e a ético-valorativa46 – seja afirmando a tridimensionalidade do direito positivo,
quer, seguindo a lição de Carl Schmitt, entenda ser ele, simultaneamente, norma,
ordenamento e decisão47, quer faça coincidir essas suas três dimensões com a lei, o
costume e a jurisprudência48, para, na última reflexão filosófico-jurídica que nos
deixou, acentuando a componente criticista neo-kantiana que sempre estivera presente no seu pensamento, vir a pôr sérias reservas à expressão “dimensões do
direito” por pensar ser o termo dimensão inadequado para expressar o mundo da
existência e a essência de uma realidade tão subtil e polivalente como a do direito
positivo, afirmando, ao mesmo tempo, que a pretensa tridimensionalidade dos
objectos do mundo do dever-ser é mais categoria do sujeito pensante do que do
objecto pensado, possuindo, por isso, mais valor semântico do que ôntico——————————————
44
Filosofia do Direito e do Estado, Coimbra, vol. I, 1947, pp. 4 e segts. e vol. II, 1966, pp. 1
e segts.
45
Prefácio à trad. port. da Filosofia do direito, de Gustav Radbruch, pp. 20 e segts., recolhido em
Estudos de Filosofia do Direito e do Estado, Lisboa, INCM, vol. II, 2004, pp. 267-286.
46
«O ensino da Filosofia do Direito», Boletim da Fac. Dir. Coimbra, vol. XIV, 1937-1938, pp. 163
e segts., recolhido nos Est. cits. na nota anterior, vol. II, pp. 355-358.
47
«Direito positivo e ciência do direito» (1944), Estudos de Fil. Dir. e do Est., vol. II, pp. 11-43.
48
Filosofia do Direito e do Estado, vol. II, pp. 115 e segts.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
199
-objectivo49. Assim, ao remeter para o domínio gnosiológico uma noção a que,
durante mais de três décadas, atribuíra sentido ontológico, o mestre conimbricense
veio a fazer uma evidente opção final a favor do idealismo gnosiológico que, desde
os anos 30, havia procurado conciliar com um certo realismo ontológico de inspiração hartmanniana.
10. Divergindo, inicialmente, nas soluções que davam ao problema axiológico do direito e no modo como entendiam o direito natural, Cabral de Moncada e
Miguel Reale acabaram por adoptar posições relativamente próximas quer quanto
ao direito natural quer relativamente à justiça.
O mestre conimbricense, de início, parecia propender para uma solução que,
partindo da moderna filosofia dos valores e da fenomenologia, possibilitasse superar o empirismo e o formalismo neo-kantiano e chegar a uma concepção segundo a
qual os valores seriam algo de absoluto, que antecede o homem e é superior e anterior ao fluxo das contingências temporais, se bem que a historicidade do homem o
impeça de apreender um tipo paradigmático único, de valor absoluto e eterno, para
qualquer lei positiva em concreto, pelo que apenas nos seria dado afirmar como
primeiro princípio do direito natural a personalidade humana individual e a sua
liberdade50.
A posterior evolução do pensamento jusfilosófico moncadiano, acentuando a
crescente presença que nele veio assumindo a sua inultrapassada origem neo-kantiana, acabou por conduzi-lo a uma concepção meramente formal de um direito
natural de conteúdo variável. Assim, no seu modo final de pensar o direito natural,
este não seria nem poderia ser «um tipo único, natural e eterno de instituições jurídicas, de contornos definidos ou de conteúdo material preciso, perfeitamente deduzível da razão e que se imponha ao legislador como modelo ou paradigma das suas
construções normativas, válidas para todos os tempos e lugares», porquanto nem a
razão humana, abstraindo das suas leis lógicas mais gerais, é tão universal como se
pensa, «nem a natureza das coisas, afora aquilo que o próprio espírito nestas
imprime, condicionando a sua compreensão por parte dele, é tão constante e imutável como se tem dito», o que seria patente na infindável diversidade de formas
como foi interpretada e compreendida ao longo dos tempos.
Deste modo, para Moncada, o direito natural seria constituído por um reduzido número de ideais éticos, de princípios morais de valor universal existentes a
priori na consciência, bem como pela ideia e sentimento inato de justiça existentes
desde sempre no espírito humano e que se revelam todas as vezes que entre a reali——————————————
49
«O direito como objecto do conhecimento» (1969), Est. Fil. Dir. e do Estado, vol. II, pp. 109-
-123.
50
«A caminho de um novo direito natural» (1945) e «O problema do direito natural no pensamento
contemporâneo» (1949), nos Estudos Fil. Dir. e do Estado, vol. II, pp. 125-166.
200
António Braz Teixeira
dade e aqueles ideais se depara qualquer antagonismo. Notava, porém, o mestre
conimbricense que esses ideais éticos, como o neminem laedere, o pacta sunt servanda e o summ cuique tribuere, porque são mais formais do que materiais, na sua
projecção sobre a multíplice diversidade da vida, recebem conteúdos concretos
diversos, dando, por isso, origem a “direitos naturais” diferentes, do que resultaria,
então, que o direito natural se apresentava com um conteúdo material múltiplo e
variável, de acordo com as diversas situações históricas.
Era, assim, nesta essencial historicidade do direito natural que Cabral de
Moncada encontrava a explicação para o relativismo do respectivo conteúdo, pois
se a sua forma lhe é dada pelos valores espirituais formais – cujo conhecimento o
homem alcança ao elaborar racionalmente os dados obtidos através da experiência
axiológica – a sua matéria ou conteúdo é representado pelos valores vitais mais
concretos, em especial pela ética e moral dominantes numa determinada sociedade
em determinada época. Deste modo, no pensamento jusfilosófico moncadiano da
maturidade, vinha a ser na moral que o direito encontrava o fundamento da sua
obrigatoriedade, sendo, por isso, os valores que a ele presidem, por um lado, a
ideia formal de Justiça, e, por outro, o respeito pela personalidade humana e a
ideia, igualmente formal, de mínimo ético51.
11. A uma solução próxima desta chegou desde cedo Miguel Reale, no que
denomina o seu historicismo axiológico, segundo o qual os valores não constituem
objectos ideais e modelos estáticos, mas algo que se insere na nossa experiência
histórica, através de um nexo de implicação e polaridade. Para o mestre paulista, os
valores não têm uma realidade ontológica, não existem em si e por si, mas sempre
com referência a um sujeito, sendo, por isso relativa a sua objectividade, pois são
algo que o homem realiza na história. Por outro lado, porque o homem é o único
ente cujo ser consiste no seu dever-ser, o valor é dimensão do espírito humano,
assim como a pessoa, como auto-consciência do espírito como valor, é o valor primordial ou o valor-fonte de todos os valores52.
Embora sejam constitutivamente históricos e resultem de opções individuais
ou subjectivas, os valores, ao serem acolhidos ou reconhecidos pela consciência
colectiva, convertem-se em entidades ontológicas, assumindo carácter permanente
e definitivo, tornam-se o que o filósofo brasileiro denomina invariantes axiológicas
que, referidas ao mundo jurídico, constituem o que poderá designar-se por direito
natural, que, para Miguel Reale, constitui uma realidade axiológica dinâmica, de
fundamental conteúdo valorativo.
——————————————
51
Filosofia do Direito e do Estado, vol. II, pp. 137 e 288-293 e Lições de Direito Civil, 2ª ed., vol.
I, Coimbra, 1954, pp. 27 e segts.
52
Cfr. A. Braz Teixeira, Ética, filosofia e religião, 1997, pp. 219-224.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
201
Assim, para Miguel Reale, o direito natural apresenta um carácter problemático-conjectural, constitui uma objectividade de tipo histórico, fundada na historicidade radical do homem e formada por um conjunto de normas decorrentes
daquelas constantes axiológicas, as quais, ao serem acolhidas como ideias directoras universais da conduta ética e jurídica, vêm a estabelecer os limites da acção
legislativa e a contribuir, de modo decisivo, para a configuração do direito positivo
de cada sociedade e de cada época53.
12. Idêntico formalismo historicista caracteriza a teoria da justiça dos nossos
dois jusfilósofos. Assim, para Cabral de Moncada, na consideração filosófica da
justiça e para uma adequada exegese fenomenológica da sua essência eidética, seria
necessário distinguir entre a justiça como ideia e a justiça como valor, ou seja,
entre uma vivência transcendental necessária e absoluta da justiça e uma sua
vivência contingente e relativa.
Segundo o mestre conimbricense, a justiça como ideia seria um dos pensamentos contidos no conceito de direito54, o de equilíbrio e perfectibilidade ideal, o
de ordem ideal e perfeita, o mesmo é dizer proporção e igualdade, pelo que justa
seria, por isso, «a ordem que consista na igual atribuição a cada um, no seu ser e no
seu fazer, daquilo que especificamente lhe couber ter ou fazer, qualquer que seja o
critério, em concreto, para tal atribuição ser feita». Deste modo, a justiça como
ideia, abstraindo do seu conteúdo axiológico, seria aquela máxima ordem inspirada
no respeito dos fins próprios de cada um e do fim universal de todos, de forma que
cada um e todos, todos e cada um possam ser e permanecer «centros de actos
livres, convivendo e colaborando na edificação duma superior unidade de sentido e
harmonia»55.
No que respeita à justiça como valor, pensava Moncada que, se era inegável
que, abstractamente considerada, a personalidade constituía a condição e fonte de
todos os valores e se a justiça era o valor formal mais alto ou mais valioso dos
contidos na ideia de direito, excedia, no entanto, a capacidade da razão humana
determinar a priori, de uma forma absoluta e válida para todos os tempos e lugares,
o conteúdo material da justiça e dos demais valores jurídicos, sendo-lhe unicamente possível sugerir, ou adivinhar, esse mesmo conteúdo, tendo em conta as
verdades e os valores jurídicos formais susceptíveis de orientar a vontade do
homem, cabendo depois, em concreto, à moral reinante em cada época e em cada
——————————————
53
Fundamentos do direito, São Paulo, 1940, cap. VIII, Teoria tridimensional do direito, São Paulo,
1968, cap. 5 e Direito natural/Direito positivo, São Paulo, 1984.
54
Para Moncada, o conceito de direito seria o «dum dever-ser valioso, como apelo dirigido às
personalidades livres, para a realização dos fins individuais e sociais destas, dentro duma ordem objectiva,
justa, de relações de interdependência entre elas». Filosofia do Direito e do Estado, vol. II, p. 44.
55
Ob. e vol. cits., pp. 43-44.
202
António Braz Teixeira
sociedade e «à vida nas diferentes situações históricas» preencher o efectivo conteúdo material do valor justiça, a qual, portanto, se apresentaria sempre, necessariamente, com um conteúdo variável no tempo e no espaço, tal como o direito
natural56.
13. Partindo do historicismo axiológico que é um dos elementos caracterizadores do seu pensamento filosófico, Miguel Reale sustenta, como o seu colega de
Coimbra, que não é possível alcançar uma ideia absoluta de justiça, independente
das conjunturas históricas, relativamente às quais actua «como valor básico condicionante, em irrenunciável conversibilidade dialéctica». Para o filósofo brasileiro, a
essência da justiça consiste em possibilitar que os outros valores valham, apresentando-se, por isso, como algo inseparável das diversas experiências axiológicas da
sociedade humana ao longo do tempo.
Porque tem em vista assegurar uma composição a um tempo isenta e harmónica de interesses, a justiça está na base da convivência entre os homens, como
condição de reciprocidade, compreendida esta como a igualdade possível entre os
indivíduos e os grupos sociais, em função das diversas conjunturas históricas.
Deste modo, a justiça é sempre expressão de igualdade, não absoluta e abstracta,
mas de uma igualdade que, para o mestre paulista, consiste em tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais, procurando que as desigualdades vão progressivamente diminuindo, pois que, na sua antropologia filosófica, o «ser do homem
consiste no seu “dever-ser”».
Daqui decorreria, então, na teoria realeana da justiça, que esta teria uma tripla dimensão, dado que, além de ser uma ideia transcendental, que condiciona
universalmente a experiência jurídica enquanto tentativa incessante de realizar fins
individuais e colectivos, seria também uma ideia cultural ou histórico-axiológica e
uma ideia existencial, pois se correlaciona, essencialmente, com a ideia de pessoa,
entendida não como um valor absoluto e incondicionado, mas como o valor-fonte
de todos os valores, cuja existência subjectiva pressupõe a subjectividade alheia,
realizando-se como intersubjectividade de que a justiça constitui a medida social.
Assim, para Miguel Reale, convergindo novamente aqui com Cabral de
Moncada, é impossível encontrar uma ideia universal e absoluta de justiça ou tentar
reduzi-la a um conjunto de perspectivas ou requisitos formais, visto ela ser sempre
inseparável da sua concreta projecção existencial na experiência histórico-social,
marcando, nessa medida, a perene correlação entre liberdade e igualdade no processo dialógico da história, «visando realizar a plenitude da pessoa humana em
——————————————
56
Idem, pp. 290-292. Cfr. A. Braz Teixeira, Caminhos, ed. cit., pp. 183-201 e 232-253 e História
da Fil. Dir. Port., pp. 186-196.
Ecos da Doutrina Kantiana do Direito no Pensamento Luso-brasileiro
203
sincronia com uma comunidade cada vez mais formal e substancialmente democrática»57.
14. Tal como vimos ter acontecido com o incompleto kantismo de Ferrer e
Tobias Barreto, também o neo-kantismo de Moncada e Reale não encontrou sucessores nem directos continuadores58, havendo os seus mais próximos e relevantes
discípulos preferido prosseguir a sua reflexão filosófico-jurídica no âmbito do neo-idealismo, seja de directa inspiração neo-hegeliana (Afonso Queiró), seja em diálogo criador com o pensamento de Giovanni Gentile (Renato Cirell Czerna e António José de Brito), enquanto os sequazes do tridimensionalismo jurídico e do historicismo axiológico do mestre paulista têm acolhido ou desenvolvido, acima de
tudo, os elementos culturalistas e historicistas do seu pensamento, deixando na
sombra os aspectos mais reconhecivelmente neo-kantianos da sua filosofia, como a
sua ontognosiologia, a teoria da experiência jurídica ou a concepção acerca da
natureza conjectural da metafísica, assim como outros aspectos igualmente individualizadores da contribuição especulativa realeana, como a dialéctica de implicação-polaridade, a ideia de autonomia da axiologia, a noção de invariantes axiológicas ou a sua antropologia filosófica59.
——————————————
57
Nova fase do direito moderno, São Paulo, 1990, pp. 37-42 e Teoria tridimensional do direito.
Teoria da justiça, Fontes e modelos do direito, Lisboa, INCM, 2003, pp. 157-206. Cfr. A. Braz Teixeira,
Caminhos cits., p. 232-253 e Ética, filosofia e religião, pp. 219-224.
58
A única excepção é o modesto ensaio de A. Brito Lhamas, O problema da justiça, Coimbra,
1939, que é mera glosa do ensaio de Del Vecchio sobre o mesmo tema, publicado em 1923.
59
Miguel Reale, Experiência e cultura, São Paulo, 1977, O direito como experiência, idem, 1968 e
Verdade e conjectura, São Paulo, 1983 e Lisboa, Fundação Lusíada, 1996. Cfr. A. Braz Teixeira, Caminhos, ed. cit., pp. 183-201 e 232-253 e História, pp. 186-198.
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
à Arqueologia da Razão Prática
Leonel Ribeiro dos Santos
UNIVERSIDADE DE LISBOA
Numa obra publicada há já mais de um quarto de século, Susan Meld Shell
formulava esta declaração: «Eu considero a teoria kantiana do direito enquanto ela
informa tanto a sua política como a sua filosofia como um todo. Um estudo do
direito kantiano no contexto mais amplo do seu pensamento é necessário para clarificar a conexão essencial que existe entre a sua filosofia política e a sua filosofia
como um todo, uma conexão que os críticos sentiram mas nunca exploraram adequadamente.»1
Já anteriormente alguns raros intérpretes haviam chamado a atenção para a
importância que a política e o direito têm no pensamento kantiano, independentemente das páginas que a esses domínios foram expressamente dedicadas pelo filósofo. Num ensaio publicado em 1921, Bruno Bauch, contrariando a geral tendência
da hermenêutica neokantiana da época, fazia notar que o direito não é para Kant
meramente um domínio regional de reflexão, mas está indissoluvelmente ligado ao
conceito kantiano de razão e à problematização crítica2. Mais de três décadas
depois, na monografia que dedicou a Kant na série dos “Grandes Filósofos”, Karl
Jaspers escrevia: «Tem de ser política a essência de uma filosofia cuja primeira e
——————————————
1
The Rights of Reason. A Study of Kant’s Philosophy and Politics, Toronto, 1980, p. 9.
Retomo neste ensaio e explicito, de forma mais documentada, um tópico que já abordei em forma
condensada na minha dissertação de doutoramento, Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar
Kantiano (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1989), F.C.Gulbenkian/JNICT, Lisboa,
1994, pp. 591-599.
2
Bruno Bauch, «Das Rechtsproblem in der Kantischen Philosophie», Zeitschrift für Rechtsphilosophie, 3 (1921), pp. 1-26.
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 205-223
206
Leonel Ribeiro dos Santos
última questão é a questão do homem»3. E Jean Lacroix declarava, em 1973:
«Kant, no mais íntimo do seu ser e do seu génio, é o homem do direito»4.
Característico nestas apreciações é, por um lado, o facto de elas não virem
imbuídas de uma carga negativa e, por outro, o facto de elas obrigarem a uma reapreciação da totalidade da obra kantiana a partir de uma nova perspectiva. De
facto, no âmbito das interpretações dominantes da obra de Kant o pensamento
político e jurídico fora geralmente tido por secundário, ou mesmo como algo exterior ao projecto e realização da filosofia transcendental, não faltando até quem considerasse isso um domínio em que o pensamento kantiano teria permanecido irremediavelmente preso na sua fase dogmática e que seria ferido de insuficiente fundação transcendental5.
É bem conhecido o desprezo que Schopenhauer manifestava pela obra tardia
em que Kant expôs a sua doutrina do direito, considerando-a uma espécie de
«paródia satírica da maneira kantiana de pensar» (eine satyrische Parodie der Kantischen Manier), tão fraca que não valia o desperdício de uma refutação (obgleich
ich sie gänzlich missbillige, ich eine Polemik gegen dieselbe für überflüssig halte)6.
Na melhor das hipóteses, considerava-se a filosofia kantiana do direito e da política
como um corolário ou como a aplicação da parte prática da filosofia crítica. Não se
suspeitava que pudesse dar-se a situação inversa, isto é, que fosse antes o direito o
——————————————
3
Kant. Leben, Werk, Wirkung, Piper, Wien/München/Zürich, 1956, p. 146.
4
Kant et le Kantisme, PUF, Paris, 1973, p. 12.
5
Assim acontecia em geral entre os neokantianos, como mostrou Gerd-Walter Küsters, Kants
Rechtsphilosophie, WBG, Darsmtadt, 1988, p. 19: «Im Neukantianismus kaum direkte Untersuchungen zur
Rechtslehre [Kants] angestellt worden sind. Vielmehr hat der Neukantianismus die negative Einschätzung
der Rechtslehre dadurch vollendet, dass er das Argument des unkritischen Charakters der Rechtslehre, der
ungenügenden transzendentalen Fundierung u.s.w. entscheidend verschärft hat. Der Neukantianismus
entwarf seine Rechtsphilosophie ohne den Rekurs auf die Rechtslehre [Kants].» Sobre este tópico, veja-se
também: José Lamego, «’Facticidade’ e ‘validade’ do Direito: a matriz da filosofia do Direito crítico-transcendental», in Leonel Ribeiro dos Santos (coord.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa,
2007, pp. 601-609.
Ao debate em torno do carácter crítico ou dogmático da filosofia do direito de Kant andava associado o debate acerca da importância dessa parte da obra kantiana e do respectivo desenvolvimento. Veja-se: Hariolf Oberer, «Ist Kants Rechtslehre kritische Philosophie? Zu Werner Buschs Untersuchung der
Kantischen Reschtsphilosophie», Kant-Studien, 74, 1983, pp. 217-224. Trata-se de uma recensão crítica da
obra de Werner Busch, Die Entstehung der kritischen Rechtsphilosophie Kants 1762-1780 (Kant-Studien-Ergänzungsheft Nr. 110, Walter de Gruyter, Berlin/New York, 1979), mas faz referência também às obras
de Christian Ritter, Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen (1971) e Josef Schmucker, Die
Ursprünge der Ethik Kants in seinen vorkritischen Schriften und Reflexionen (Meisenheim am Glan, 1961)
e ainda à obra de Friedrich Kaulbach, Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants und ihrer transzendentalen Methode (Würzburg, 1982) e, por fim, ao ensaio de K.-H. Ilting, «Gibt es eine kritische Ethik und
Rechtsphilosophie Kants?», Archiv für Geschichte der Philosophie, 63, 1981, pp. 325-345.
6
A. Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, Anhang: Kritik der Kantischen Philosophie, ed. Ph. Reclam, Leipzig, 1892, vol. I, p. 669.
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
207
verdadeiro lugar de origem e a fonte de inspiração de todo o idealismo crítico e da
filosofia transcendental e de algum modo o seu molde.
Nas últimas quatro décadas a situação alterou-se completamente e a filosofia
kantiana do direito viu por fim reconhecida a sua importância e pode mesmo dizer-se que se deu uma verdadeira redescoberta dessa área por parte dos intérpretes da
obra kantiana. E esta redescoberta não conduziu apenas ao reconhecimento da inscrição desse domínio no programa global da revolução do modo de pensar proposto
pela filosofia transcendental, como veio igualmente pôr em evidência a profunda e
essencial determinação jurídica e até política do pensamento kantiano no seu conjunto. A filosofia kantiana do direito deixou de ser vista como um domínio secundário onde veio a ser tardiamente aplicado o método da filosofia crítica. Ela revela-se antes como o domínio onde a filosofia kantiana tem o seu ambiente natural e de
onde colhe os princípios e pressupostos que desde o início dirigem o seu próprio
trabalho de reflexão.
Os que a partir dos anos 60 do século passado se aplicaram a estudar a filosofia política e jurídica de Kant libertos dos pressupostos do neokantismo foram os
primeiros a dar-se conta da importância que esse domínio tinha para se aceder a
uma compreensão de todo o programa da filosofia kantiana. Georges Vlachos, na
sua obra sobre o pensamento político de Kant, punha em destaque o papel das
ideias morais e políticas na elaboração da filosofia crítica, e escrevia: «Pensa-se
geralmente que o idealismo kantiano assenta no seu conjunto sobre a distinção
entre o entendimento e a razão, distinção anunciada na Dissertação e executada na
Crítica da Razão Pura. O próprio Kant apresenta o seu idealismo político como um
aspecto particular do seu idealismo noológico. Mas o percurso do pensamento kantiano parece-nos ser o inverso.»7 E o mesmo autor sugere que o pensamento político e jurídico de Kant se constituiu muito antes que estivessem apuradas as noções
básicas da filosofia transcendental (nomeadamente a idealidade do espaço e do
tempo) e cita Gerhard Lehmann, segundo o qual, «no domínio da filosofia do
direito, Kant tinha já atingido entre 1760 e 1770 as concepções que viriam a ser
incorporadas mais tarde no seu sistema sob a forma de consequências da sua crítica
da razão teórica, mas que seria impossível deduzir partindo unicamente desta.»8.
Por sua vez, Simone Goyard-Fabre, numa obra dedicada ao estudo da filosofia
kantiana do direito, concluía que «o fim da metafísica ontológica e a formulação do
problema crítico correspondem a uma inspiração profundamente jurídica.»9
——————————————
7
Georges Vlachos, La Pensée Politique de Kant, Paris, 1962, pp. 19-20.
8
Ibidem. Segundo Werner Busch, por volta de 1772 dar-se-ia a fundação crítica da filosofia kantiana do direito sobre o conceito de liberdade, conceito sobre que assentam também as doutrinas centrais da
Crítica da Razão Pura e também a Doutrina do Direito da tardia Metafísica dos Costumes.
9
Kant et le problème du droit, Paris, 1972, p. 9.
208
Leonel Ribeiro dos Santos
Aquilo que nestes intérpretes era ainda uma vaga percepção torna-se cada
vez mais uma evidência. E, assim, sobretudo a partir da década de 80, ao mesmo
tempo que se ia descobrindo a filosofia kantiana do direito e do Estado10, advertia-se também a importância que têm os procedimentos jurídicos e a linguagem metafórica jurídica e jurídico-política em todo o âmbito do pensar kantiano, onde quer
que este se exercesse: na filosofia teorética, na filosofia prática, na filosofia da
religião, na filosofia estética. Depois dos escritos kantianos de Friedrich Kaulbach
já quase não haveria necessidade de chamar a atenção para a importância da linguagem e metafórica jurídicas na filosofia kantiana11. Não seria mesmo necessário
insistir no facto de que o conceito kantiano de razão e de filosofia está cunhado
num molde jurídico. Resta, porém, ainda amplo campo de investigação, não só para
determinar o contexto filosófico e o modo exacto como tal cunhagem se deu, mas
também para tentar averiguar a eficácia desse molde noutros domínios do pensamento, nomeadamente na filosofia da religião. O paradigma jurídico (com tudo o
que ele implica de conceitos, de linguagem, de procedimentos, de cenários) revelar-se-ia então melhor como um dos elementos estruturais e estruturantes que asseguram a unidade de inspiração e de expressão do pensamento kantiano e apareceria
como a marca inconfundível do modo kantiano de pensar.
Num outro momento tentei identificar o modelo político e jurídico que preside assim tão profusa e profundamente à construção e exposição do pensamento
kantiano12. Tentei mostrar que não é o direito em geral, nem o sistema jurídico
——————————————
10
Veja-se: Wolfgang Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Recht- und Staatsphilosophie, Berlin, 1983; Georg Geismann, Freiheit und Herrschaft. Die Prinzipien des Vernunftrechts,
Würzburg, 1983; Reinhard Brandt, «Das Erlaubnisgesetz, oder: Vernunft und Geschichte in Kants
Rechtslehre», in Idem (ed.), Rechtsphilosophie der Aufklärung, Berlin, 1984.
11
Veja-se, nomeadamente: Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants (Das transzendental-juridische Grundverhältnis in Vernunftbegriff Kants», pp. 111 sgs: «Die von Kants praktizierte Vernunft
wie auch sein Begriff von Vernunft in theorethischer und praktischer Gestalt von Grund aus einen
Charakter tragen, der durch juridische Kategorien zu beschreiben ist. … Es ist bemerkenswert, dass an
mehreren Knotenpunkten des Kantischen Gedankengeflechts Wendungen der Rechtssprache begegnen….
Das Auftreten juridischer Denk-und Sprechfiguren an den Punkten des praktischen Gedankenganges, an
denen wesentliche Begriffe des transzendentalen Konzepts zur Sprache gebracht werden, legt die
Vermutung nahe, dass diese für die Entwicklung und Darstellung der Transzendentalphilosophie nicht nur
metaphorische Funktion haben, dass sich in ihnen vielmehr die Figuren gedanklichen Handelns darstellen,
die den transzendental-philosophischen Ansatz von seinem Ursprung her eigentümlich sind (p. 112) … eine
gemeinsame und identische Wurzel von Erkenntnisvernunft und Rechtvernunft (p. 113) nicht die Identität
von theoretischer Vernunft und Rechtsvernunft behauptet wird: vielmehr hat die Behauptung den Inhalt,
dass sich bei der transzendental-philosophischen Fundierung beider eine gemeinsame Wurzel zeigt.»
(pp. 113-114) e Philosophie als Wissenschaft. Eine Einleitung zum Studium von Kants «Kritik der reinen
Vernunf»t in Vorlesungen, Gerstenberg Verlag, Hildesheim, 1981, 10. Vorlesung: «Juridischer Vernunftbegriff».
12
Veja-se: Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, pp. 605-631: «A
instauração republicana da razão»; e também o meu ensaio «A ‘Revolução da Razão’ ou o Paradigma
Político do Pensamento Kantiano», in Leonel Ribeiro dos Santos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos,
Colibri, Lisboa, 1994, pp. 69-84.
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
209
prussiano, como por vezes o insinuaram alguns dos que foram sensíveis à recorrente linguagem jurídica de Kant, mas a liam apenas como sintoma de um vício. O
paradigma jurídico que preside à filosofia kantiana, ao ponto de toda ela, mesmo a
teorética, estar construída no ambiente de uma grande alegoria político-jurídica, é
aquele mesmo que vem a ser exposto na tardia Doutrina do Direito (1797). Ou
seja, antes de expor a sua concepção da vida política regida pelos princípios do
republicanismo – por certo, os de uma respublica noumenon – Kant desenvolveu
toda a sua filosofia teorética na Crítica da Razão Pura no elemento de uma complexa alegoria expondo a natureza e o funcionamento da razão como se efectivamente de um estado republicano ideal se tratasse. Os elementos dessa alegoria,
dispersos por toda a obra, encontram-se organicamente expostos sobretudo no
capítulo da Segunda Parte da obra intitulado «A disciplina da razão pura no que
respeita ao seu uso polémico», o qual nos dá uma chave para a leitura da própria
Crítica e de todo o empreendimento filosófico de Kant.
Também a tardia Doutrina do Direito constitui uma espécie de chave de
código de todo o seu pensamento que o filósofo só no fim do seu percurso filosófico nos entrega. É como se Kant não necessitasse realmente de escrever expressamente a sua filosofia do direito, nem de delinear em alguns pequenos ensaios os
contornos da sua filosofia política e jurídica, pois tanto uma como a outra estavam
já inscritas suficientemente na letra e no espírito da sua filosofia da razão pura.
Tantas são na verdade as homologias existentes entre a filosofia kantiana do direito
e da política e a filosofia transcendental que somos levados a concluir que uma e
outra decorrem de uma mesma estrutura mental e exprimem um mesmo modo de
pensar. Tal como não tem já cabimento considerar a filosofia do direito apenas
como mera aplicação do método transcendental a um campo específico de problemas, assim também não tem sentido falar de uma transferência de modelos políticos ou jurídicos para o domínio da filosofia lógica transcendental. Uma e a mesma
é a fonte da razão e do direito. Com mais razão do que de qualquer outra, se pode
dizer da metafórica jurídico-política que, sendo metáfora, ela é simultaneamente
muito mais do que metáfora. Pois em nenhum outro caso a metáfora diz tanto a
coisa ou a causa mesma da razão como o faz aqui. Aqui verdadeiramente a forma é
conteúdo e o conteúdo é forma.
Com alguma frequência, mesmo os que advertem a presença da linguagem
jurídica ou política na filosofia kantiana são levados a pensar que o que o filósofo
faz é transferir para a sua filosofia um determinado modelo que se encontrava disponível no seu contexto histórico-filosófico de pensamento. Assim, a recorrência
da linguagem política seria devida à importância que a política assumira nas últimas décadas do século XVIII, generalizando-se o uso de categorias tiradas do
campo político para falar de qualquer assunto relevante e até mesmo de assuntos
210
Leonel Ribeiro dos Santos
filosóficos, estéticos e literários13. O paradigma republicano seria, por sua vez,
devido à decisiva influência que sobre Kant exerceram os escritos de Rousseau. A
tão estrategicamente importante noção de autonomia, em torno da qual gira toda a
filosofia moral kantiana, seria importada do contexto da concepção do estado autonómico moderno, embora recentemente Jerome Schneewind tenha contrariado um
pouco esta interpretação na sua obra sobre a moral kantiana, declarando que se
trata nisso de uma verdadeira «invenção» por parte de Kant: «a moral como autonomia é inteiramente nova na história da filosofia»14. A doutrina da tripartição dos
poderes seria tomada de Montesquieu. E assim por diante.
Não se trata, evidentemente, de negar essas dívidas, algumas delas bem
documentáveis pelos próprios textos. Trata-se sim de tentar compreendê-las
melhor. E parece-me que a hermenêutica da dívida ou da influência não explica
suficientemente o que está realmente em causa. A via que quero aqui propor é diferente. Trata-se de tentar captar, por assim dizer, in nido o que poderia explicar o
alcance e a amplitude da recorrência da metafórica e das categorias jurídicas e
políticas na filosofia kantiana. Segundo me parece e tentarei mostrar, essa amplitude de uso não ocorre por mera transferência de um paradigma exterior à razão
para expor o trabalho próprio desta, ou por um aproveitamento oportunista colhido
na literatura filosófica de uma época em que os problemas políticos se impuseram
poderosamente também à reflexão dos filósofos, mas deve-se antes a um aprofundamento da própria natureza da razão, a qual, escavando até às suas fontes e fundamentos, aí se surpreende configurada como tal. Para mostrar isso acompanharei
Kant nalguns dos momentos da sua obra onde ele procede ao que se poderia chamar uma explanação fenomenológica da génese da razão prática, explanação essa
mediante a qual se chega também à arqueologia da razão – ao seu ponto ou estrato
mais fundo – e, ao fazê-lo, encontra-se aí o que se poderia considerar como o fundo
arqueológico comum da racionalidade humana, pelo menos tal como ele se objectivou nas mais importantes instituições dos povos europeus ou indo-europeus15.
Seguirei, em primeiro lugar, o fio condutor da etimologia. Em Leis IV, 714a
(mas também em Leis XII, 957c e noutros lugares de outras suas obras), Platão
sugere expressamente a comum origem e o parentesco dos vocábulos gregos nous
ou noos (intelecto ou razão) e nomos (lei), de que a proximidade gráfica e fónica
ainda guardaria o vestígio e a memória: uma razão, portanto, que se exprime quali——————————————
13
Veja-se Hans-Wolf Jäger, Politische Kategorien in Poetik und Rhetorik der zweiten Hälfte des
18. Jahrhunderts, J.B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, Stuttgart, 1970.
14
Jerome B. Schneewind, The Invention of Autonomy. A History of Modern Moral Philosophy,
Cambridge University Press, 1998; trad. franc.: L’invention de l’autonomie. Une histoire de la philosophie
morale moderne, Gallimard, Paris, 2001, p. 543.
15
Das Ende aller Dinge, Ak VIII, 328-329; Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen
Vernunft, Ak VI, 140-141; Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 359-360.
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
211
ficadamente como ordem política e jurídica. O mesmo se passa na língua latina,
onde ratio (do verbo reor) diz a regra, a ordem, a justa proporção, e também o
juízo e o bom senso. A língua alemã guarda igualmente memória desse originário
parentesco entre a razão e a lei. Já advertido isto por Giambatista Vico16, foi Herder
quem lhe deu voz e, significativamente, no contexto da sua agressiva meta-crítica
da crítica kantiana da razão, discutindo precisamente a falta de pertinência da célebre metáfora kantiana do «tribunal da razão», que ocorre no Prefácio à primeira
edição da Crítica da Razão Pura. Segundo o meta-crítico, é a razão que é a instância crítica, e não a Crítica que se pode arvorar em instância crítica da razão! Só que
Herder não se dá conta de que o verdadeiro autor da obra não é Kant mas a própria
razão, e que nela se trata verdadeiramente de uma auto-crítica da razão em que esta
é simultaneamente objecto e sujeito da crítica. Quanto à parte que nisso tem o filósofo enquanto tal, vale a epígrafe baconiana posta à cabeça da obra: «De nobis
ipsis silemus…». No seguimento da sua crítica à Crítica, escreve Herder: «A língua alemã dispõe de pregnantes palavras tomadas do domínio forense, muitas das
quais são pertinentemente aplicadas às nossas faculdades da alma.». E cita, designadamente, o termo Vernunft, que significaria, no alemão antigo, o «exame ou o
interrogatório judicial» (in der alten Sprache hiess das gerichtliche Vornehmen und
Verhor, Vornunft, Vernunft). E por isso se pode dizer que «a razão é o nosso tribunal supremo» (Vernunft ist unser höchstes Gericht). Da mesma forma, urtheilen
(julgar) teria significado originariamente ertheilen: dar a cada um a sua parte, após
ponderação justa (Urtheilen ist ertheilen, nach richtiger Abwägung jedem seinen
Theil geben); por conseguinte, no mesmo sentido da ratio latina como proportio. O
mesmo Herder refere ainda o originário significado forense de outras expressões de
amplo uso em filosofia, como Sache (coisa/causa), Ding e seus derivados (bedingen, bedingt, unbedingt), e faz notar que da correcta compreensão jurídica destes
termos depende a compreensão daquilo que no uso da razão se designa por «condicionado» (bedingt) ou «incondicionado» (unbedingt). Aparentemente sem conhecer
estas observações de Herder, a mesma originária significação jurídica, não já da
Vernunft, mas do Verstand, foi também mais recentemente apontada por Hans-Georg Gadamer17.
Não sabemos se Kant teria tido de facto presente este sentido originário de
termos dos quais fez amplo uso mesmo na sua filosofia teorética. A julgar, porém,
pela consciência que revelou ter das potencialidades e particularidades da língua
alemã, pela sensibilidade que em tantos outros casos demonstrou ter para apreender
o sentido originário dos conceitos filosóficos e pelo consequente esforço por restaurá-los na sua primeira e genuína significação, podemos presumir que também
——————————————
16
17
La Scienza Nuova, Rizzoli, Milano, 1963, vol. I, p. 112.
«Der juristische Sinn von Verstehen, d. h. das Vertreten einer causa vor Gericht, scheint die
Urbedeutung zu sein.» Wahrheit und Methode, Tübingen, 1975, p. 246.
212
Leonel Ribeiro dos Santos
não lhe terá passado despercebido o significado primeiro do próprio conceito de
razão, do qual a sua filosofia pretende ser, ao fim de contas, a mais cabal explicitação18. Mas apreciada a partir deste ponto de vista, a linguagem e a metafórica
jurídicas da filosofia kantiana ganhariam um alcance hermenêutico inesperado, na
medida em que, pela identificação de alguns vestígios, poderíamos chegar a
reconstruir o que se poderia chamar a arqueologia da razão. O fio condutor de
algumas etimologias poderia assim conduzir-nos às primeiras sedimentações da
razão em instituições e formas de representação, nas quais podemos, em particular,
captar a génese, a estrutura e o funcionamento originariamente jurídicos da razão
prática. De resto, o próprio Kant ensaiou esta estratégia de arqueologia linguística a
propósito dos conceitos morais presentes nas mais antigas tradições sapienciais e
religiosas conhecidas, interpretando essa comunidade como reveladora de uma
comum origem da civilização humana e, em última instância, uma prova da unidade da razão humana naquele domínio que lhe é verdadeiramente essencial19.
Giambatista Vico, para quem a língua dos povos antigos, nomeadamente dos
itálicos, constituía o texto mais autêntico da sua sabedoria, o sedimento da sua
experiência e o testemunho fiel dos seus costumes, reputava por muito sérias as
provas filológicas extraídas da língua latina, designadamente as respeitantes aos
conceitos jurídicos20. Era assim que lia, na identidade de raiz de ius (direito) e de
Ious (Júpiter), a originária coalescência da justiça e da piedade, do direito e da religião, como base da concepção romana da existência21. Esta cumplicidade de origem entre o direito e a religião, também sugerida no final do século XIV pelo
humanista florentino Coluccio Salutati22, e que viria a ser confirmada e reforçada,
na segunda metade do século XX, pela etimologia comparada das línguas indo-europeias23, era bem presente aos antigos escritores latinos. Assim, Cícero, ao
——————————————
18
Sobre este ponto veja-se o meu ensaio: «Kant e a filosofia como análise e reinvenção da linguagem metafísica», in Nuno Nabais (org.), Vieira de Almeida (1888-1988). Colóquio do Centenário, Lisboa,
1991, pp. 199-223, retomado in Leonel Ribeiro dos Santos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri,
Lisboa, 1994, pp. 39-67.
19
Veja-se o meu ensaio «O eurocentrismo crítico de Kant», in A Ideia Romântica de Europa –
novos rumos, antigos caminhos, Colibri, Lisboa, 2002, pp. 168-170.
20
Giambatista Vico, Scienza nuova, vol. I, p. 112.
21
Ibidem, vol. I, p. 33: «Giove (dal quale, appo i latini chiamato Ious, ne fu anticamente detto ious il gius,
che poi, contratto, si disse “ius”, onde la giustizia appo tutte le nazioni s’insegna naturalmente con la pietà».
22
Coluccio Salutati, De nobilitate legum et medicine, ed. bilingue Latim-Alemão, trad. de
P.M.Schenkel, Wilhelm Fink, München, 1990, p. 160: «Ius igitur, quod a iuvando dicitur vel forsitan a Iove.»
23
Veja-se nomeadamente Émile Benveniste, Le Vocabulaire des Institutions Indo-européennes,
Minuit, Paris, 1969, vol.2, p. 119. Depois de ter reconstituído a arqueologia comparativa dos termos ius e
iurare, Benveniste conclui: «En restituant à ius sa valeur pleine telle que la précisent à la fois les correspondances étymologiques et la dérivation latine, nous remontons au-delà du “droit”. C’est d’un concept qui
n’est plus seulement moral, mais d’abord religieux que le mot tire sa valeur: la notion indo-européenne de
conformité à une règle, de conditions à remplir pour que l’objet (chose ou personne) soit agréé, qu’il rem-
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
213
esclarecer o que se entende por juramento (ius iurandum), diz: «O juramento é uma
afirmação religiosa; o que prometeres afirmativamente como se Deus fosse testemunha, deve ser mantido…. Aquele que viola o juramento, esse viola a Fé, que e
os nossos maiores quiseram que estivesse ao lado de Júpiter no Capitólio.»24
Também Kant está consciente desta comum origem do direito, da moral e da
religião. E apoia a informação, colhida provavelmente na leitura directa da citada
obra de Cícero, com sugestivas analogias linguísticas. Procedendo como um
genuíno comparatista do século XX (um Émile Benveniste ou um Georges Dumézil), faz notar que a raiz da palavra mediante a qual se designa no latim o direito –
ius – e o juramento – iurare – se encontra também nas palavras por meio das quais
vários povos antigos nomearam Deus. Assim se lê numa passagem do Opus postumum: «Juro, i. é, afirmo tomando Deus por testemunha. Com isso eu não sei se
Deus existe [;] pura e simplesmente: eu aceito na minha consciência que se falto à
verdade sou um mentiroso. Jurare é Ju orare (Ju é Jehova, Jahi, Júpiter, perante o
qual o íntimo é descoberto [,] o perscrutador do coração).»25
Como já noutra ocasião referi26, esta passagem permite-nos reconhecer o
contexto de onde recebe o seu significado o tópico kantiano da veracidade, como
condição sem a qual nem há contratos, nem direito, nem moralidade, nem religião,
nem filosofia – numa palavra, sem a qual não há razão que subsista. Mas nesta
passagem surpreende-se também a mais genuína noção kantiana de Deus: «Deus é
o perscrutador universal do coração e, ao mesmo tempo, o todo-poderoso que, na
cadeira de juiz, recompensa e castiga», como se lê num outro passo do Opus postumum 27.
——————————————
plisse son office et qu’il ait toute son efficace: yoh en védique, yaožda – en avestique, sont imprégnés de
cette valeur. D’autre part, nous avons constaté la liaison, dans le vocabulaire latin, par l’intermédiaire de
iurare, entre ius et sacramentum. Ainsi, les origines religieuses et morales du droit se marquent clairement
dans les termes fondamentaux.». Noutro passo da mesma obra (vol. 1, p. 121), a investigação conduzida a
propósito da fides vem confirmar a indicação ciceroniana acima citada. «Dans ces deux termes (fides/credo)
on rejoint des notions où le juridique ne diffère pas du réligieux: tout le vieux droit n’est qu’un domaine
particulier régi par les pratiques et les règles qui baignent encore dans le mystique.»
24
«Est enim ius iurandum affirmatio religiosa; quod autem affirmate quasi Deo teste promiseris, id
tenendum est… Qui ius igitur violat, is Fidem violat quam in Capitolio vicinam Iovis… maiores nostri esse
voluerunt.» De Officiis, III, 28-29.
25
«Juro: i.e. per deum testem affirmo. Dadurch weiss ich nicht dass Gott sey schlechthin: Ich
nehme es auf mein Gewissen, wenn ich unwahr spreche ein Lügner zu heissen…. Jurare ist Ju orare (Ju ist
Jehova, Jahi Jupiter, vor dem das Innere aufgedeckt ist der Herzens Kündiger).» Opus postumum, Ak XXI,
p. 148. Veja-se a confirmação desta intuição kantiana por Émile Benveniste, ob.cit,, vol. 2, p. 111.
26
Veja-se o meu ensaio «Kant e a ética da linguagem», in M. J. do Carmo Ferreira (coord.), A
Génese do Idealismo Alemão, CFUL, Lisboa, 2000, p. 81.
27
«Gott ist der allgemeine Herzenskündiger und zugleich der allgewältig vor dem höchsten
Richterstuhl belohnt u. bestraft.» Opus postumum, Ak XXI, p. 147.
214
Leonel Ribeiro dos Santos
Compreenderemos melhor este ponto verdadeiramente nuclear do pensamento kantiano se atendermos ao desenvolvimento que o filósofo faz do tema da
consciência moral (Gewissen) como sendo um «juiz inato» (angeborne Richter), «a
consciência de um tribunal interior no homem» (das Bewusstsein eines inneren
Gerichtsfoffes im Menschen… ist das Gewissen)28. Poderia tomar-se isso apenas
como resíduo de um motivo tradicional da teologia e filosofia moral, sobretudo
daquela que assenta na experiência da consciência da culpa e, por conseguinte, na
consciência da lei e da sua transgressão, como é o caso na moral judaica e cristã,
mas, para além da recorrência do tema, significativa é a explicitação a que Kant o
submete. Trata-se verdadeiramente da experiência mais originária da razão, aquela
onde ela precisamente se surpreende como prática, aquela de onde promana,
depois, toda a arquitectura da filosofia crítica, se levarmos a sério a declaração do
filósofo numa das suas reflexões segundo a qual «a origem da filosofia crítica é a
moral» (Ursprung der critischen Philosophie ist moral)29. É a consciência do dever
(ou do imperativo categórico) que constitui realmente o Faktum der Vernunft, o
Faktum realmente originarium. E esse Faktum desencadeia um processo ou revela-se como um processo íntimo que tem a sua expressão externa no processo judicial.
Se há na obra de Kant domínio onde a metáfora do tribunal seja abundante e pregnante de significado é sem dúvida este e sobretudo aqui vale dizer que a metáfora é
muito mais do que metáfora, que não é o tribunal interior que é pensado por analogia com o exterior, mas que, ao contrário, é o tribunal exterior que é moldado à
imagem do forum que é a consciência moral30.
Podemos acompanhar o explícito desenvolvimento deste tema por parte de
Kant pelo menos desde as Lições de Ética, proferidas entre os anos 1775 e 1785,
até às páginas do Opus postumum, com ecos também em muitas páginas de A Religião nos limites da mera razão (1793). Mas há um lugar onde toda a substância do
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28
Metaphysik der Sitten, Tugendlehre, Ak VI, p. 438.
29
Lose Blätter zu den Fortschritten der Metaphysik, Ak XX, 335.
30
É a esta conclusão que chega também o único estudo que conheço directamente dedicado a este
tópico, o ensaio de Fumiyasu Ishikawa, «Das Gerichtshof-Modell des Gewissens», Aufkärung 7 (1992),
pp. 43-55: «…tritt das Gerichtshof-Modell des Gewissens in Wahrheit gar nicht als Gleichnis auf, wie man
üblicherweise annimmt… Umgekehrt kann man sich hier gegen das übliche Verständnis des Gewissens als
eines Gerichtshofes, das es als ein blosses Gleichnis ansieht, sogar auf ein Beispiel berufen, das dazu fähig
ist, zu erweisen, dass gerade der innere Gerichtshof der Ursprung des äusseren sein kann… dies bekündet
ausdrücklich, dass der Anhaltspunkt des äusseren, weltlichen Gerichtshofs letzten Endes nichts anderes als
das Gewissen als innerer Gerichtshof ist. Insofern kann man mit Recht sagen, dass der äussere Gerichtshof,
als Entäusserungsform des inneren analog zu diesem betrieben wird und zumindest nicht umgekehrt.»
(p. 48). Veja-se também: Nestore Pirillo, «Il giuramento e il tribunale della coscienza», in Idem (ed.), Kant
e la Filosofia della Religione, Istituto di Scienze Religiose in Trento, Trento, 1996, pp. 81-111; Johannes
Strangas, «I rapporti tra fondamentalismo religioso ed esperienza giuridica in quanto modo di emergenza
del problema dei rapporti tra morale e diritto», Rivista Internazionale della Filosofia del Diritto (Milano), 5,
1998, pp. 418-461.
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
215
tópico se explana e em toda a sua dimensão. Trata-se do parágrafo 13 da Doutrina
da Virtude, a Segunda Parte da Metafísica dos Costumes, publicada em 1797. O
contexto de inscrição e a linguagem variam nessas obras que correspondem a épocas e a programas diferentes, mas o problema é o mesmo. Nas Lições de Ética, ele
surge sob a epígrafe do tópico da imputação das acções e da consciência moral e o
contexto em que se expõe é o de um forum ou tribunal que tem competência para
julgar as acções com força jurídica. Segundo o filósofo, para além do forum externum (o tribunal civil que julga as acções exteriores dos homens), há o forum internum ou forum conscientiae, ao qual está ligado o forum divinum, e a tal ponto que
o forum divinum não é outra coisa senão o próprio forum conscientiae. O mote
pode tê-lo colhido de Alexander Gottlieb Baumgarten, cuja obra Initia philosophiae practicae primae Kant usava como manual para os seus cursos universitários
de filosofia moral31. Mas aquilo que no texto do professor de Halle era um breve
parágrafo sofre no professor de Königsberg um desenvolvimento considerável32. A
consciência moral é apresentada por Kant não apenas como uma faculdade que o
homem pode usar ao sabor da sua vontade, mas é descrita como um instinto (Instinkt) ou impulso (Trieb), com o que se pretende sublinhar o seu carácter originário, imediato e absoluto. É aqui bem audível o eco das convicções que Rousseau
coloca na boca do seu Vigário de Sabóia: «Conscience! Conscience! Instinct divin,
immortelle et céleste voix; guide assuré d’un être ignorant et borné, mais intelligent
et libre; juge infaillible du bien et du mal, qui rends l’homme semblable à Dieu,
c’est toi qui fais l’excellence de sa nature et la moralité de ses actions; sans toi je
——————————————
31
Alexander Gottlieb Baumgarten, Initia philosophiae practicae primae, Halle 1760, § 182
(reimpressão in: Kant’s gesammelte Schriften, Ak XIX, p. 121 sgs.). Uma outra fonte do tema, porventura
muito mais importante ainda do que Baumgarten, é Rousseau e o desenvolvimento que ao tópico da conscience ele dá, nomeadamente na Parte IV do Émile (Profession de Foi du Vicaire Savoyard) mas também
noutras obras, contrapondo a conscience às lumières de la raison e interpretando-a como um «sentimento
inato», um «instinto divino» (v. infra).
32
Há quem considere estranho que o tópico da consciência (Gewissen) não mereça especial
desenvolvimento nos principais escritos kantianos de filosofia moral, a Fundamentação da Metafísica dos
Costumes e a Crítica da Razão Prática. A razão dessa ausência explica-se, a meu ver, pelo facto de a consciência moral (Gewissen) ser para Kant um outro modo de dizer o «sentimento moral» e a «razão prática»
no seu aspecto subjectivo, ou a consciência subjectiva da lei e do dever, como se pode ver nesta passagem
da Introdução aos Fundamentos Metafísicos da Doutrina da Virtude: «A consciência moral é a razão prática
mostrando ao homem o seu dever em cada caso concreto de uma lei, absolvendo-o ou condenando-o»
(Gewissen ist die dem Menschen in jedem Fall eines Gesetzes seine Pflicht zum Lossprechen oder Verurtheilen vorhaltende praktische Vernunft.) (Ak VI, 400). No mesmo contexto se afirma o carácter «originário» (não «adquirido») da consciência moral: «A consciência moral não é algo que possa adquirir-se… mas
todo o homem, como ser moral, tem-na originariamente em si.» (Eben so ist das Gewissen nicht etwas
Erwerbliches…; sondern jeder Mensch, als sittliches Wesen, hat ein solches ursprünglich in sich). Esse
carácter originário e não adquirido da consciência moral era sublinhado nas Lições de Ética chamando à
consciência um «instinto» ou um «impulso». Da relativamente escassa literatura sobre o tema, veja-se:
Rudolph Hofmann, Die Lehre von dem Gewissen, Leipzig, 1866; Wilhelm Wohlrabe, Kants Lehre vom
Gewissen, Gotha, 1880.
216
Leonel Ribeiro dos Santos
ne sens rien en moi qui m’élève au-dessus des bêtes, que le triste privilège de
m’égarer d’erreurs en erreurs à l’aide d’un entendement sans règle et d’une raison
sans principe.»33. Mas ao atribuir a consciência ao entendimento (prático), ao
mesmo tempo que a considera um instinto ou um impulso – e mais tarde um «facto
incontornável» que «originariamente» todo o homem tem em si –, Kant realiza a
fusão (aparentemente impossível) da matriz racionalista da escola wolfiana com a
matriz rousseauana, a qual, precisamente, contrapunha a imediatez e certeza da
consciência (moral) à razão e às luzes incertas desta, concebendo aquela como um
«instinto» ou um «sentimento inato», dotada de um «princípio imediato e independente da razão»34.
Lê-se, com efeito, nas Lições de Ética: «Temos um poder de julgar se algo é
correcto ou incorrecto, e isso refere-se tanto às nossas acções como às dos outros.
Este poder reside no entendimento. Possuímos também um poder de prazer e desprazer, na medida em que julgamos acerca de nós ou dos outros sobre o que agrada
ou desagrada, e isto é o sentimento moral. Se nós, porém, pressupusermos o juízo
moral e a lei moral, então encontramos em nós ainda um terceiro instinto, um
involuntário e irresistível impulso na nossa natureza, que nos obriga [zwingt] a
julgar acerca das nossas acções com força jurídica [rechtkräftig]… A consciência é
o instinto [Instinkt] que nos leva a apreciar e a julgar as nossas acções. Não é
nenhum poder, mas instinto [Es ist kein Vermögen, sondern Instinkt]. Se ela fosse
um poder voluntário, não seria nenhum tribunal, pois não nos poderia obrigar. Se
tem de haver um tribunal íntimo então ele tem de ter poder para, independentemente da nossa vontade, nos obrigar a apreciar e a julgar [zu urteilen und zu richten] as nossas acções e para absolver-nos ou condenar-nos intimamente. Cada qual
tem um poder de apreciar [urteilen] especulativamente, o qual está em poder da
nossa vontade; mas há em nós algo que nos obriga a julgar as nossas acções, que
nos coloca perante a lei e nos compele a comparecer perante o juiz, que nos julga
contra a nossa vontade, e que por isso é um verdadeiro juiz. Este forum internum é
um forum divinum, na medida em que ele mesmo nos julga segundo as nossas
intenções; e não podemos fazer outro conceito do forum divinum a não ser este que
nós mesmos nos julgamos segundo as nossas intenções. Por conseguinte, a consciência é o representante do forum divinum.»35
——————————————
33
Veja-se a edição autónoma desta peça em: Jean-Jacques Rousseau, Profession de Foi du Vicaire
Savoyard, Présentation, notes, bibliographie et chronologie par Bruno Bernardi, Garnier-Flammarion, Paris,
1996, p. 90.
34
«le principe immédiat de la conscience, indépendant de la raison même… le témoignage intérieur, et la voix de la conscience qui dépose pour elle-même». Ibidem.
35
I. Kant, Eine Vorlesung über Ethik, ed. de Gerd Gerhardt, Fischer, Frankfurt a. M., 1990, pp. 77-78. Numa outra formulação da tese, no mesmo contexto, lê-se: «Das Forum ist zweierlei: forum externum,
welches das forum humanum ist, und forum internum, welches das forum conscientiae ist. Mit diesem foro
interno verbinden wir zugleich das forum divinum; denn unsere Facta können nicht anders in diesem Leben
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
217
A versão do parágrafo 13 da Doutrina da Virtude traz explicitações muito
significativas ao tema, o qual agora se inscreve sob a epígrafe «Do dever do
homem para consigo próprio, enquanto juiz inato de si mesmo». Cai a referência à
consciência moral como um «instinto» ou um «impulso», mas não ao seu carácter
absoluto e incondicional, apontando-se o seu carácter «originário» – «disposição
originária (ursprüngliche Anlage) – e a sua realidade de «facto incontornável»
(unausbleibliche Thatsache)36. Cada homem, escreve Kant, se vê como sendo
«observado por um juiz interior» (durch einen inneren Richter beobachtet), que por
toda a parte o segue «como a sua sombra» (wie sein Schatten), e cuja «voz temível» (furchtbare Stimme) não pode impedir-se de ouvir (sie zu horen, kann er doch
nicht vermeiden).»
Prosseguindo a análise da consciência moral, que se diz sob estas imagens da
sombra, da voz, do escrutinador e juiz íntimo, Kant chega ao que pode considerar-se uma descrição fenomenológica da génese da consciência moral e religiosa,
expondo o processo de surgimento de Deus na consciência do homem como sendo
o Outro do próprio homem na auto-consciência de si; por conseguinte, como sendo
uma criação hipostasiada da razão moral em resposta a uma sua imanente necessidade. O homem põe fora de si o legislador e o juiz que, na verdade, residem apenas
na sua própria consciência e são verdadeiramente uma criação desta37. Fá-lo não só
para escapar a uma contradição interna da consciência consigo mesma, mas também para assegurar a eficácia da legislação moral e, no fundo, para garantir a eficá——————————————
vor dem göttlichen foro imputiert werden als per conscientiam, demnach ist das forum internum in diesem
Leben ein forum divinum. Ein Forum soll Zwang ausüben, sein Urteil soll rechtskräftig sein, es soll die
consectaria des Gesetzen auszuführen zwingen können.» (ib., p. 77).
36
37
Tugendlehre, Ak VI, 400, 438.
Não posso deixar de estabelecer um confronto – por proximidade e também por diferença – com
a explicação que o sofista Crítias (Diels-Kranz: Fragm. B 25) apresentava para a génese das leis e do seu
carácter absoluto e dos deuses como garantia das mesmas – enfim, para a génese da consciência moral e
religiosa –, por interiorização de uma necessidade da razão social. Transcrevo excertos dessa notável fábula
da invenção das leis e dos deuses: «Outrora, houve um tempo em que o homem vivia sem leis como um
fauno, respeitando apenas a força; em que os bons não obtinham qualquer recompensa e em que os maus
também ficavam impunes. Só depois os homens estabeleceram leis de repressão – pelo menos essa é a
minha opinião – para que a lei reinasse como senhora soberana, e desse modo dominasse a sua louca desmesura. A partir de então era possível castigar os faltosos. Seguidamente, como as leis reprimiam os delitos
proibindo que se realizassem às claras os crimes, mas não em segredo, foi então, creio eu, que um sábio,
que sabia por sabedoria profunda, forjou para os mortais os Deuses para inspirar o temor aos maus que se
escondem para agir, ou falar, ou mesmo para pensar. Essa é a razão por que introduziu Deus dizendo-lhes
que goza de uma vida eterna e que pelo entendimento entende e vê e julga todos os actos cometidos; que a
sua natureza é divina, que ele perscruta todas as intenções dos mortais e que tem meios para ver tudo o que
eles fazem. Mesmo quando calasses o golpe que preparas os Deuses dar-se-iam conta, pois neles existe o
Pensamento. Proferindo tais palavras, o sábio envolveu a lição na agradável forma do mito, velando a
verdade com um discurso de ficção. O brilho do seu discurso atribuiu morada condigna à divindade e
mediante as leis ele pôs fim à desigualdade… Assim, creio eu, houve alguém que foi o primeiro a persuadir
os mortais de que existem Deuses.».
218
Leonel Ribeiro dos Santos
cia e a coerência da moralidade como um todo. Mas, ao fugir de uma contradição,
incorre, senão noutra, pelo menos no paradoxo, que só não será contradição porque
a consciência é capaz de se colocar ela própria, sendo a mesma, em diferentes
pontos de vista.
Dou a palavra ao velho filósofo: «Esta originária disposição [ursprüngliche
Anlage] intelectual e moral chamada consciência [Gewissen], sendo embora a sua
ocupação uma ocupação do homem consigo mesmo, tem em si a particularidade de
este se ver todavia obrigado pela sua razão a executá-la como se fosse à ordem de
uma outra pessoa. Pois o assunto é aqui a condução de uma causa (causa) perante o
tribunal. Mas se se representasse numa e mesma pessoa aquele que é acusado pela
sua consciência e o juiz, isso seria uma absurda maneira de representar um tribunal;
pois, nesse caso, o acusador perderia sempre. – Por conseguinte, a consciência do
homem tem de pensar para si um Outro diferente dela própria, como juiz das suas
acções, se não quer estar em contradição consigo mesma. Este Outro pode ser uma
pessoa real, ou uma meramente ideal, que a razão para si mesma cria. Uma tal pessoa ideal (o autorizado juiz da consciência) tem de ser um perscrutador do coração;
pois o tribunal está instalado no interior do homem, mas ao mesmo tempo tem de
impor-se universalmente, isto é, tem de ser uma pessoa (ou como tal pensada) em
relação à qual todos os deveres em geral sejam considerados como mandamentos:
pois a consciência é o juiz interior sobre todas as acções livres.»38
Ora, conclui Kant, um tal ser ideal é o que chamamos Deus. E, segundo o
filósofo, o conceito deste, como supremo legislador e juiz, está sempre incluído na
autoconsciência moral do homem, mesmo que por vezes de um modo confuso.
Religião e Moral são assim as duas faces de uma mesma vivência, a imputabilidade
moral é outro nome para aquilo a que se chama religião. Se «a religião consiste
toda em considerar Deus como o legislador universal para todos os nossos deveres»39, de igual modo, a consciência moral, que é «a voz do juiz interior» (die
Stimme des inneren Richters)40, «do incorruptível juiz que existe em nós» (dieser
unbestechliche Richter in uns)41, deve considerar-se como sendo a representante na
terra do juízo de Deus: «Deus julga-nos mediante a nossa consciência; esta é aqui
na terra o seu representante.»42. As Lições sobre Filosofia da Religião secundam a
tese que encontrámos nas Lições de Ética e que serão aprofundadas na Doutrina da
Virtude, a Segunda Parte da tardia Metafísica dos Costumes.
——————————————
38
Tugendlehre, Ak VI, 438-439. Veja-se a tradução portuguesa por José Lamego, em I. Kant, A
Metafísica dos Costumes, F.C.Gulbenkian, Lisboa, 2005, pp. 373-374.
39
Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, Ak VI, 103.
40
Tugendlehre, Ak VI,401; trad. port. citada, pp. 314-315.
41
Vorlesungen über philosophische Religionslehre, ed. de K.H.L.Pölitz, reimpr. WBG, Darmstadt,
1982, p. 167.
42
Ibidem, p. 170.
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
219
Mas voltemos ao parágrafo 13 da Doutrina da Virtude e vejamos como Kant
explica aí o funcionamento desse tribunal íntimo e qual é, no juízo moral, a função
respectiva de cada uma das faculdades práticas nele envolvidas. Prossegue o filósofo:
«Todo o conceito do dever inclui coacção objectiva mediante a lei (enquanto
imperativo moral que limita a nossa liberdade) e compete ao entendimento prático, o
qual dá a regra; mas a íntima imputação de um acto, como de um caso que está sob a
alçada da lei…. cabe ao juízo (iudicium), o qual, enquanto princípio subjectivo da
imputação da acção, julga com força jurídica [rechtskräftig] se ela aconteceu ou não
como acto (como acção submetida a uma lei); ao que segue então a conclusão da
razão (a sentença), i. é, a ligação do efeito jurídico com a acção (a condenação ou
absolvição): tudo isto acontece perante o juízo (coram iudicio), como perante uma
pessoa moral que torna efectiva a lei, e a que se chama tribunal [Gerichtshof]
(forum). A consciência de um tribunal interior no homem (perante o qual os seus
pensamentos se acusam ou desculpam entre si) é a consciência moral [Gewissen].»43
Tanto se pode dizer que o genuíno processo judicial civil executa um raciocínio prático da consciência moral como dizer que o raciocínio prático da consciência moral funciona à semelhança de um tribunal civil. Numa versão mais sintética do tema, lê-se esta formulação: «A consciência é um tribunal, no qual o
entendimento é o legislador, o juízo é o acusador e advogado, e a razão é o juiz.»44.
E, numa nota ao parágrafo 13, Kant explicita este desdobramento da consciência do
homem enquanto acusado, acusador e juiz, tentando mostrar que não se incorre aí
numa contradição. Escreve Kant: «Esta dupla personalidade [zwiefache Persönlichkeit], na qual tem de se pensar o homem que se acusa e julga na consciência
moral, este duplo eu [doppelte Selbst], que tem de, por um lado, comparecer tremendo perante a barra de um tribunal [vor den Schranken eines Gerichtshofes],
que, todavia, lhe está a ele próprio confiado, e que, por outro lado, tem ele mesmo
nas suas mãos o cargo de juiz por autoridade inata [Richteramt aus angeborener
Autorität], necessita de um esclarecimento, para que a razão não caia em contradição consigo mesma. – Eu, o acusador, e, no entanto, também acusado, sou o
mesmo homem (numero idem); mas, como sujeito da legislação moral procedente
do conceito de liberdade, onde o homem está submetido a uma lei que ele a si próprio se dá (homo noumenon), há-de considerar-se como um outro (specie diversus)
em relação ao homem sensível dotado de razão, mas apenas sob o ponto de vista
prático. […] O primeiro é o acusador, frente ao qual se concede ao acusado uma
defesa jurídica (o seu advogado). Depois de concluída a discussão, o juiz interior
[der innere Richter], como pessoa com poder [als machthabende Person], profere o
veredicto sobre a felicidade ou miséria como consequências morais da acção.»45
——————————————
43
Tugendlehre, Ak VI,438; trad. port. citada, p. 372.
44
Reflexion 6815, Ak XIX, 170.
45
Tugendlehre, Ak VI, 439; trad. port. cit., p. 374.
220
Leonel Ribeiro dos Santos
O que neste processo forense se surpreende é igualmente a génese moral da
Religião. Direito, Moral e Religião têm, por conseguinte, a mesma génese no seio
da consciência subjectiva, que é levada a objectivar, como se fosse diferente dela
mesma, a fonte da lei a que se sente submetida e a instância que intimamente a
julga segundo essa lei. Kant move-se aqui num equilíbrio perigoso, tentando evitar
sair da imanência da consciência para a suposição da existência transcendente de
um ser absolutamente santo, omnipotente e justo, que fosse exterior à consciência
humana, a qual, por outro lado, se reconhece como subordinada à lei (ou mandamento) e sempre limitada no cumprimento dos seus deveres. Escreve Kant: «Dado
que um tal ser moral – o legislador e o juiz – tem de ter simultaneamente todo o
poder (no céu e na terra), pois que, caso contrário, não poderia proporcionar às suas
leis a eficácia que lhe corresponde (o que compete, pois, necessariamente à judicatura), e, dado que se chama Deus a um ser moral omnipotente, a consciência
moral terá, deste modo, de ser concebida como princípio subjectivo de uma responsabilidade dos próprios actos perante Deus; mais: este último conceito estará sempre contido (se bem que apenas de um modo obscuro) naquela consciência moral
de si próprio. Ora, isto não equivale a dizer que o homem se encontra autorizado,
nem, muito menos ainda, obrigado por esta ideia a que o conduz inevitavelmente a
sua consciência moral a admitir um tal ser supremo como existência real fora de si;
pois que esta ideia não lhe é dada objectivamente pela razão teórica, mas tão-somente subjectivamente pela razão prática, que se obriga a si mesma a agir em
conformidade com ela; e, por intermédio desta ideia, unicamente por analogia com
um legislador de todos os seres racionais do mundo, o homem recebe uma simples
orientação, que consiste em se representar a imputabilidade moral (que também se
chama religio) como responsabilidade perante um ser santo (a razão moralmente
legisladora) distinto de nós próprios, mas, no entanto, intimamente presente em
nós, e submeter a sua vontade às regras da justiça. O conceito de religião em geral
é aqui para o homem unicamente “um princípio de apreciação de todos os seus
deveres como mandados divinos”»46. Kant de modo algum concede que se saia da
imanência da consciência ou da razão: o ser que é pensado como diferente de nós,
está em nós, e é testemunhado apenas pela voz subjectiva da consciência moral e
não por qualquer evidência objectiva exterior.
Este é, pois, o estranho – e até aparentemente contraditório ou pelo menos
paradoxal – paradigma processual que preside à representação kantiana da vivência
moral: há na unidade orgânica da razão prática ou da consciência moral uma diferenciação tripartida de faculdades cujas funções são descritas como sendo de natureza forense. Antes de se compreender o alcance da filosofia crítica como tribunal
da razão pura para julgar todas as suas causas acerca dos assuntos supremos de que
a razão pode alguma vez ocupar-se, há que reconhecer a primazia e a pregnância
——————————————
46
Tugendlehre, Ak VI, 439; trad. port. cit., pp. 374-375.
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
221
que tem na filosofia de Kant este tribunal da razão prática, sobre que se funda também a genuína experiência religiosa: «a lei santa permanece sempre diante dos
nossos olhos e representa-nos continuamente cada mais pequeno desvio em relação
à vontade divina como condenado por um juiz severo e justo»47. Kant, de resto,
poderia encontrar sobeja confirmação desta sua versão na mais genuína tradição do
pensamento ocidental e na religião da maior parte dos povos que lhe eram conhecidos, merecendo realce, sob este aspecto, e antes de mais, a própria representação
bíblica do carácter absoluto da Lei e de Deus como legislador e juiz, concepção
que veio a ter, na neo-testamentária teologia paulina, decisivo aprofundamento
num sentido imanente e subjectivo48, mas que se encontrava já admiravelmente
compendiada e até filosoficamente problematizada sob a forma de uma teodiceia
representada na consciência moral do homem, naquele que Kant considerava «o
mais filosófico dos livros vetero-testamentários»49, o livro de Job50.
Mais surpreendente ainda é que esse mesmo paradigma e processo se replique no modo como Kant concebe a economia trinitária da ideia moral de Deus51.
Segundo o filósofo, a trindade divina é o «documento de uma antiga concepção
moral» da razão humana (trinitas probat conceptum antiquum moralem)52, «o símbolo sagrado da teologia moral, o monograma da sua misteriosa essência»53, o qual
constitui o substracto de todas as religiões e que corresponde igualmente às três
funções políticas (trias politica) de um Estado bem organizado. A representação
——————————————
47
«…das heilige Gesetz uns jederzeit vor Augen liege und uns jede auch die kleinste Abweichung
von dem göttlichen Willen als verurteilt von einem unnachsichtlichen und gerechten Richter unaufhörlich
vor halte.», Carta a Lavater, 28.04.1775, Ak X, 179.
48
Rom 2,12-15: «Quando os que não são judeus, sem terem a lei de Moisés, cumprem naturalmente
a lei, eles são a lei para si mesmos. Mostram pelo seu proceder que trazem escrito no coração aquilo que a
lei ordena. A voz da sua consciência ensina-lhes o que devem fazer e acusa-os ou defende-os, conforme os
casos.»
49
I. Kant, Danziger Rationaltheologie, Ak XXVIII, 1287: «Leibnitzens Theodizee ist in der
Absicht geschrieben, um diese Einwürfe [wider die Eigenschaften Gottes: Heiligkeit, Gütigkeit,
Gerechtigkeit] zu widerlegen. Das Buch Hiob im A.T. zwect dahin ab, und das ist das philosophischeste
Buch im A.T.»
50
Job 23: «Quem me dera saber onde encontrá-lo e poder chegar até ao seu tribunal! Apresentaria
diante dele a minha causa; eu mesmo discutiria as questões… Se eu pudesse discutir lealmente com ele,
conseguiria fazer vencer a minha causa.». Todo este singular livro bíblico, como bem o advertiu Kant, está
escrito como um processo judicial em que Job apresenta perante Deus a causa da sua justiça, uma causa que
é também a causa de Deus (uma teodiceia), cuja justiça é posta em causa. Sobre a interpretação kantiana da
personagem Job e do significado do drama exposto nesse livro bíblico, veja-se o meu ensaio «A teologia de
Job, segundo Kant: ou a experiência ético-religiosa entre o discurso teodiceico e a estética do sublime»,
Convergências & Afinidades, Homenagem a António Braz Teixeira (no prelo).
51
Veja-se o desenvolvimento que fizemos deste tópico em Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, pp. 661-666.
52
Reflexion 5658, Ak XVIII, 318.
53
Reflexion 6093, Ak XVIII, 449.
222
Leonel Ribeiro dos Santos
trinitária da divindade ou do Estado obedecem assim à mesma exigência de coerência que levou a consciência moral a hipostasiar-se em três instâncias diferentes
na unidade orgânica de si mesma. Nas Lições sobre a filosofia da religião, lê-se:
«A razão conduz-nos a Deus, como um legislador santo, a nossa inclinação para a
felicidade deseja-se nele como um governador do mundo bondoso, e a nossa consciência moral representa-no-lo diante dos olhos como um juiz justo.»54 Noutros
lugares são apresentadas como sendo homólogas a trindade prática da consciência
moral, a trindade teológica (ou representação moral de Deus) e a trindade política,
com a diferença de que em Deus ou na consciência moral as três funções são pensadas como reunidas num único ser (ideia) ou consciência, enquanto num Estado
bem ordenado elas são cometidas a pessoas diferentes. E assim, a trias politica ou a
divisão tripartida dos poderes (potestas legislatoria, rectoria et iudiciaria), característica de um estado republicano, é vista não só como um símbolo da trindade de
funções e dos atributos divinos, mas igualmente comparada com um raciocínio
prático (gleich den drei Sätzen in einem praktischen Vernunftschluss)55.
Em A Religião nos limites da mera razão, Kant desenvolve a sua teologia
trinitária, associando expressamente a consciência moral (Gewissen), enquanto
função de julgar, à terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, ao mesmo tempo
que mostra a possível coerência das aparentemente contraditórias fórmulas bíblicas
neotestamentárias, as quais ora atribuem essa função de julgar ao Filho ora ao
Espírito Santo. Escreve Kant: «Este Espírito – pelo qual o amor de Deus como
beatificante (propriamente o nosso amor de resposta a Ele) se une ao temor como
legislador, i. é, o condicionado à condição – pode representar-se «como procedente
de ambos»; além de «conduzir a toda a verdade (observância do dever)», ele é ao
mesmo tempo o genuíno juiz dos homens (perante a sua consciência). Com efeito,
julgar pode tomar-se em dois sentidos: ou como julgar sobre o mérito e a falta de
mérito, ou sobre a culpa e a inocência. Deus considerado como o amor (no seu
Filho) julga os homens na medida em que, para além da sua obrigação, lhes pode
ainda corresponder um mérito, e então a sua sentença é: digno ou indigno….
Separa como seus aqueles a quem tal mérito pode ser imputado. Os outros vão com
as mãos vazias. Pelo contrário, a sentença do juiz de acordo com a justiça (do que
em rigor se deve chamar juiz, sob o nome de Espírito Santo) sobre aqueles a quem
nenhum mérito pode caber é: culpado ou inocente, i. é, condenação ou absolvição.
Julgar significa, no primeiro caso, separar os merecedores dos não merecedores,
que aspiram reciprocamente a um prémio (o da beatitude). Mas por mérito não se
entende aqui uma vantagem da moralidade em relação à lei (a cujo respeito não
——————————————
54
«Die Vernunft leitet uns auf Got, als einen heiligen Gesetzgeber, unsere Neigung für
Glückseligkeit wünscht sie in ihm einen gütigen Weltregierer, und unser Gewissen stellet uns ihm als ein
gerechten Richter vor Augen.» (Vorlesungen über philosophische Religionslehre, ed. cit., p. 145).
55
Rechtslehre § 45 (Ak VI, 313-314).
Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica
223
pode caber-nos nenhum excedente da observância do dever sobre a nossa
obrigação), mas em comparação com outros homens, no tocante à sua disposição
de ânimo moral. […] Portanto, quem julga na primeira qualidade (como brabeuta)
pronuncia o juízo de eleição entre duas pessoas (ou partidos) que aspiram ao
prémio (da beatitude); mas quem julga na segunda qualidade (o verdadeiro juiz)
pronuncia a sentença sobre uma e a mesma pessoa perante um tribunal (a
consciência moral) que decide entre o acusador e o advogado.»56
Estes testemunhos textuais revelam a que ponto não só a filosofia moral
kantiana mas também a filosofia kantiana da religião e a filosofia kantiana da
política estão determinadas no seu próprio cerne pelo paradigma forense. Julgo ter
dado suficientes razões para apoiar a ideia de que isso não acontece propriamente
por transferência do exterior para o interior da razão ou da consciência do procedimento que ocorre num tribunal civil, mas sim que é o esforço de fidelidade da
razão às suas próprias fontes e o auto-conhecimento que alcança de si própria
quando reflecte sobre o seu modo de proceder, seja na sua experiência moral e nos
juízos morais ou na sua vivência religiosa, o que, em última instância, explica a
omnienvolvência daquele paradigma. O que ocorre aí é o funcionamento sintético
de uma razão finita, a qual não procede por um movimento analítico-dedutivo, mas
só pode partir do condicionado para a sua condição e ligar um e outro pela mediação de um terceiro termo57. É nesse movimento imanente em que um mesmo espírito ou razão se desdobra em diferentes instâncias que se expõe a fenomenologia da
razão humana. Uma derradeira tentativa de formulação desse processo, inexplicável e todavia incontornável, encontra-se numa página quase cifrada do Opus postumum, nestes termos: «Existe um ser em mim, distinto de mim, que tem poder
sobre mim (agit, facit, operatur) na relação causal de eficácia (nexus effectivus),
que, sendo ele mesmo livre, isto é sem ser dependente da lei da natureza no espaço
e no tempo, me julga interiormente (justifica ou condena); e eu, o homem, eu sou
eu próprio este ser, e aquele outro não é, por exemplo, uma substância fora de mim,
e o que é mais estranho: a causalidade é todavia na determinação para a acção em
liberdade (não como necessidade da natureza). – Esta disposição interior inexplicável descobre-se por um facto, o imperativo categórico do dever (nexus finalis),
Deus; effectivus o mundo, seja ele afirmativo ou negativo (ordem ou interdito). O
espírito do homem (mens) numa coacção que não é possível a não ser por meio da
liberdade.»58
——————————————
56
Die Religion, Ak VI, 145-146 (trad. port.: A Religião nos limites da simples razão, Edições 70,
Lisboa, pp. 151-152).
57
KU, Einleitung, Ak V, 197.
58
Opus postumum Ak XXI, 25.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
como Lei permissiva
Aylton Barbieri Durão
UNIVERSIDADE DE LONDRINA
A relação entre direito privado e direito público representa um problema
recorrente na filosofia do direito, como atesta a disputa entre direito natural e
direito positivo na teoria do direito natural teológico, depois na teoria do direito
natural racional e, por fim, entre direito subjetivo e direito objetivo, na história da
dogmática do direito civil alemão. Kant começa a expor a sua solução para este
problema no final da “Introdução à doutrina do direito”1, onde apresenta a divisão
suprema do direito natural e afirma que este não pode ser dividido em direito natural e social, porque já existe sociedade no estado de natureza. O direito natural
racional deve ser dividido em direito natural e civil, de maneira que o direito natural corresponde ao direito privado, enquanto o direito civil representa o direito
público. Isso significa que, para Kant, há um direito privado que vale no estado de
natureza, mas que todo direito positivo existente do estado civil, é direito público,
dado que necessita da sanção da justiça distributiva.
A teoria do direito privado, que investiga o direito ao meu e ao teu exteriores
ou o direito à propriedade privada, é uma novidade de A metafísica dos costumes,
porque a doutrina do direito público já havia sido antecipada em Teoria e práxis e
em Sobre a paz perpétua, embora Kant tivesse ensaiado fundamentar o direito à
propriedade nos escritos pré-críticos. Baynes analisa os textos pré-críticos de Kant
e assinala que a fundamentação kantiana do direito de propriedade na “Doutrina do
direito“, nega que a posse externa seja analiticamente contida no conceito de liberdade externa e representa uma mudança com relação a suas considerações anteriores nas quais extraia o direito de propriedade diretamente da liberdade externa2. Em
——————————————
1
I. Kant, Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. p. 242.
2
K. Baynes, The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls, and Habermas. p. 32.
FILOSOFIA KANTIANA DO DIREITO E DA POLÍTICA, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 225-242
226
Aylton Barbieri Durão
Considerações acerca das observações sobre o sentimento do belo e do sublime,
escrito em 1765, Kant considera que o direito de propriedade provém da liberdade
em seu uso externo na medida em que o sujeito pode estender seu suum interno (ou
a propriedade inata da vida, do corpo e dos braços, inclusive de sua reputação e
ação pessoal) para tornar-se dono dos objetos externos e modificá-los através de
sua liberdade3, uma vez que ninguém pode chamar seu o que eu fiz, pois, do
contrário, teria que dizer que sua vontade pode mover meu corpo.
«O corpo é meu porque é uma parte do meu eu e é movido por minha
vontade. Todo o mundo animado e inanimado que não tem vontade própria é
meu na medida em que eu posso dominá-lo e influenciá-lo por minha vontade…
Supõe-se que uma boa vontade não pode invalidar a si própria por ser universal
e atual; por esta razão, alguém não chamaria de seu o que eu fiz, pois, de outro
modo, ele pressuporia que sua vontade moveu meu corpo»4.
Contudo, a leitura do parágrafo acima citado parece demonstrar que Kant,
longe de deduzir analiticamente o direito de propriedade privada da liberdade em
seu uso externo, como interpreta Baynes, considera que a vontade enquanto princípio da ação é o fundamento da propriedade privada, pois o corpo é meu na medida
que é uma parte do meu eu que pode ser movida por minha vontade, assim como os
objetos externos podem ser meus porque minha vontade pode dominá-los e influir
sobre eles, por isso, eu posso impedir todos os demais de usar tanto o meu corpo
como os objetos externos submetidos à minha vontade, pois se outro usasse estes
objetos, isso seria equivalente a que a sua vontade estaria movendo meu corpo.
Posteriormente, nas notas recolhidas por Feyerabend das lições de Kant
sobre direito natural, tomadas nas aulas do curso de 1784-85, já no período crítico,
Baynes afirma que Kant aceitou a teoria de Locke e fundamentou a propriedade
privada no trabalho. Locke considera que o corpo do sujeito é sua propriedade e, ao
trabalhar sobre algum objeto da natureza que se possui inicialmente em comum
com os demais, o indivíduo acrescenta algo que é exclusivamente seu, o trabalho,
razão pela qual o objeto deixa de pertencer ao domínio comum, pois passa a ter a
marca de seu dono. Alguém que se apodere do objeto estará se apropriando do
trabalho do primeiro trabalhador e, portanto, usurpando algo que não pertence em
comum a todos:
«Um produto da liberdade é um produto da natureza que é modificada
através de minha liberdade com respeito a sua forma, por exemplo, uma árvore
que eu tenha podado… Apreensão não é todo uso de uma coisa, mas somente
——————————————
3
Ibid., p. 32.
4
Ibid., p. 190.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
227
aquele no qual a forma da coisa tenha sido modificada pela liberdade. Se alguém
é o primeiro descobridor de uma terra, finca sua bandeira e toma posse, ainda
não tem direito a ela. Mas, se trabalha a terra e aplica sua energia a ela, então, a
apreende»5.
Uma vez mais, contra a interpretação de Baynes, que considera que Kant
adotou a teoria do trabalho de Locke como fundamento do direito de propriedade
privada, o texto citado de Kant justifica o direito de propriedade no uso exterior da
liberdade do sujeito. A liberdade é capaz de modificar a forma dos objetos da natureza mediante o trabalho; somente o trabalho, enquanto manifestação da liberdade,
e não a simples delimitação do terreno pelo primeiro ocupante que o descobre e
finca sua bandeira, pode produzir a verdadeira apreensão.
Pois, como se sabe, Locke começa o seu argumento para justificar a teoria
do trabalho ridicularizando a teoria do consentimento de Grócio e Pufendorf, já que
considera impossível o homem esperar até ao contrato social para possuir o direito
à propriedade. Locke observa que é inadmissível que o homem, no estado de natureza, tenha todas as coisas da natureza a sua disposição, mas esteja impossibilitado
de usá-las, porque tem que esperar o fato do contrato social6. Poder-se-ia contestar-lhe simplesmente dizendo que o homem se apoderava das coisas e as usava no
estado de natureza sem nenhum direito a elas e que o direito surge posteriormente
com o contrato social. Mas, isso seria romper o nó górdio a golpes de espada, pois
os pensadores dos séculos XVII e XVIII, em geral, consideram que o estado de
natureza é um estado jurídico, o que implica que não é possível usar as coisas da
natureza sem um direito. O uso das coisas no estado de natureza já tem que pressupor o direito de propriedade. Portanto, segundo a lógica do período histórico, a
crítica de Locke à teoria do consentimento é demolidora.
Contudo, somente em A metafísica dos costumes, de 1797, Kant chega à versão definitiva sobre o direito de propriedade precisamente retomando a teoria do
consentimento de Grócio e Pufendorf. Para tanto, ele demonstra, em primeiro
lugar, nos §11 e §17, dois argumentos que comprovam o erro da fundamentação da
propriedade privada no trabalho como pretenderam Locke e também, parcialmente,
Rousseau. O §11, intitulado “O Que é um direito real?”, tem como finalidade
explicar que o direito real não é o direito com relação a uma coisa, mas um direito
com relação à outras pessoas na medida que se pode obrigar os outros a se abster
do uso de uma coisa externa do meu arbítrio. Kant entende que a teoria do trabalho
cai em uma espécie de fetichismo, pois termina por dizer que o direito concerne a
uma relação entre pessoas e coisas, o que é um absurdo porque gera uma lógica
——————————————
5
6
Ibid., p. 38.
«Se tal consentimento fosse necessário, o homem teria morrido de fome, apesar da abundância
que Deus lhe deu», J. Locke, Two treatises of government. § 28. p. 330.
228
Aylton Barbieri Durão
estanha, pensável somente de modo confuso como conseqüência da própria teoria
do trabalho. Dado que a todo direito corresponde um dever, então, se o possuidor
tem um direito com relação a um objeto exterior do arbítrio, o objeto teria um
dever com relação ao possuidor. A teoria do trabalho sustenta que o direito à propriedade implica que o objeto exterior sobre o que se trabalha, deixa de fazer parte
do que é inicialmente possuído em comum por todos, porque uma maçã que se
colhe da árvore, ou um peixe pescado no rio têm, além do que a natureza oferece a
todos, uma parte que é propriedade exclusiva do que a colheu ou pescou, o trabalho
que ele executou. O objeto tem em si uma parte que lhe agregou o trabalhador com
seu trabalho; Locke afirma que o trabalho é responsável por 99% do valor da terra7,
antecipando as teorias do valor-trabalho de Adam Smith; por isso, se alguém lhe
tira o objeto, estará levando não somente o que se possui em comum, mas algo que
é exclusivo do possuidor. Contudo, Kant questiona esta teoria com base na observação de que se o objeto possui algo que pertence exclusivamente ao primeiro possuidor, ou seja, o trabalho realizado, então, tem uma obrigação para com o primeiro
possuidor, sua marca indica que o objeto tem que resistir a qualquer outro e, por
isso, não pode ser alienado por seu possuidor, o que torna impossível o intercâmbio
de mercadorias. A teoria do trabalho conduz a uma concepção muito antiga que
consiste em pessoalizar ou animar à natureza dotando-a de vida própria. Portanto, o
direito do possuidor parece constituir um gênio que acompanha os objetos externos
e lhes preserva de qualquer ataque estranho, obrigando a qualquer outro que o restitua ao seu dono original8.
No §17, Kant repete este argumento essencial e introduz outro menos
importante. Afirma que a aquisição originária somente pode surgir da posse da
substância, ou seja, do solo, e nunca da posse do acidente, ou seja, dos objetos do
trabalho, pois se alguém trabalha sobre um terreno que não é seu, perde seu tempo
e não garante nenhum direito9.
Poder-se-ia considerar, por outro lado, que embora Kant tenha rechaçado a
tese da ocupação nas notas de Feyerabend, entendida como detenção física, ou seja,
o descobrimento de uma terra ou a simples colocação de uma bandeira não podem
gerar o direito à propriedade, pois é necessário o trabalho como manifestação da
liberdade, sua negação da teoria moderna do trabalho de Locke e, parcialmente, de
Rousseau, representa um retorno à teoria da ocupação, originária do direito
romano, como fonte do direito de propriedade, o que poderia ser confirmado em A
metafísica dos costumes, quando afirma que a ocupação é o ato jurídico da aquisição (§14).
——————————————
7
J. Locke, Two treatises of government. § 40. p. 338.
8
I. Kant, Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. § 11. p. 64.
9
Ibid., § 17. p. 74.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
229
Contudo, isto ocorre por um erro de interpretação do sentido da palavra
“ocupação” (Bemächtigung ou occupatio). Kant usa o termo “detenção” (Inhabung
ou detentio) para se referir ao simples domínio físico de um objeto externo do
arbítrio, como, por exemplo, a mera presença física do primeiro ocupante em um
terreno e, em múltiplas ocasiões, afirma que a detenção física, como posse empírica, não pode gerar direito algum e, em uma citação essencial do §17, que recorda
as notas de Feyerabend, nega explicitamente que a mera detenção seja fundamento
do direito de propriedade, utilizando a palavra “delimitação” (Begrenzung).
«É tão evidente por si mesmo que o primeiro trabalho, a delimitação ou a
conformação em geral de um terreno não pode proporcionar nenhum título de
aquisição do mesmo…»10.
O termo “ocupação”, que normalmente é acompanhado da tradução ao latim
occupatio, corresponde somente ao primeiro passo de um ato jurídico que ocorre
em três etapas. Em primeiro lugar, a ocupação é a aquisição de um objeto exterior
do arbítrio sob a condição da prioridade temporal do primeiro ocupante de um solo
facultado pela liberdade externa expressa em uma vontade unilateral. Mas a possibilidade desta aquisição originária depende do postulado jurídico da razão prática,
que garante provisoriamente a ocupação no estado de natureza. Contudo, a vontade
unilateral não pode gerar nenhuma obrigação por parte dos outros, a qual somente
pode ser obtida pela vontade unida de todos como vontade “omnilateral”11.
Portanto, os críticos, que consideram que a doutrina kantiana do direito de
propriedade retorna à teoria da ocupação do direito romano, confundem o significado do termo ocupação com o que ele denomina detenção ou delimitação. A compreensão correta do conceito de ocupação mostra que este não se resume simplesmente à primeira detenção física de um terreno.
Posteriormente, para tornar a teoria do consentimento aceitável contra a teoria dominante do trabalho, Kant lhe introduz uma série de modificações e começa
precisamente discordando dos demais autores contratualistas12, uma vez que
entende o estado de natureza como um estado não-jurídico13, no qual existe apenas
um único direito inato do homem a sua própria liberdade que permite uma posse
empírica do objeto externo de seu arbítrio, a qual vale provisoriamente como um
——————————————
10
Ibid., § 17. p. 72.
11
Ibid., § 14. p. 66.
12
Embora existam inequívocos elementos contratualistas na filosofia política e jurídica de Kant,
existem suspeitas sobre a natureza do seu contratualismo em virtude de sua insistência em considerar o
estado de natureza como um estado não-jurídico e de fundamentar o estado civil no postulado do direito
público e não no contrato social.
13
Ibid., § 41. p. 112-3.
230
Aylton Barbieri Durão
direito na esperança de sua confirmação pela entrada de todos os demais com os
quais se mantém relação no estado civil.
Kant fundamenta todos os deveres, sejam de virtude ou jurídicos, na liberdade, a qual consiste na determinação do arbítrio pela vontade, contudo, a vontade
pode determinar a matéria do arbítrio, dando origem à liberdade interna, que define
como ser dono de si mesmo ou dominar-se a si mesmo e que engendra os deveres
da doutrina da virtude, ou a vontade pode determinar a forma do arbítrio, ou seja, o
modo como os arbítrios se relacionam entre si, constituindo a liberdade externa, de
tal modo que o arbítrio de um possa concordar com o arbítrio de todos os demais
através de uma lei universal da liberdade, o que produz todos os deveres jurídicos.
A liberdade externa, por sua vez, se divide em duas, a liberdade externa inata
consiste no único direito inato que o homem possui tão só em virtude de sua humanidade e é definida como a independência em relação ao arbítrio constritivo dos
demais, o que garante a proteção do meu interior, pois qualquer um que afete a
minha liberdade externa inata por meio de uma coação ou retirando um objeto que
eu detenho fisicamente afeta o meu interior, ou seja, minha própria liberdade. Por
conseguinte, a liberdade externa inata me permite a posse empírica dos objetos
externos do meu arbítrio que eu detenho fisicamente em meu poder, pois qualquer
ato para me excluir desta posse empírica viola o meu interior, a minha própria
liberdade. Contudo, Kant afirma que, no contrato originário, devemos renunciar a
esta liberdade externa inata, selvagem e sem lei, para recuperá-la integralmente
mediante a dependência legal como a liberdade legal ou civil, definida como a
submissão à lei a qual se pode dar o consentimento, na medida em que esta dependência resulta de nossa própria vontade legisladora14.
O ato pelo qual o indivíduo se apropria fisicamente de um objeto externo de
seu arbítrio é um ato da vontade unilateral, o que explica a posse empírica do
objeto enquanto ele o detém, mas este ato não pode gerar a obrigação dos demais
de se abster de usar um objeto externo do meu arbítrio, pois somente a vontade
unida do povo pode gerar obrigações recíprocas e impedir o uso de um objeto de
meu arbítrio por outro, na medida que seu uso me lesa, por isso, a posse meramente
inteligível ou jurídica, que ocorre inclusive quando o indivíduo não detém fisicamente o objeto e que constitui o meu e o teu exteriores, somente é possível a partir
do consentimento de todos de permitir o uso privado de um objeto externo do arbítrio de alguém. Por conseguinte, no estado de natureza apenas pode existir a posse
empírica porque o direito à propriedade privada ou a posse meramente inteligível
ou jurídica unicamente pode surgir no estado civil. Contudo, esta posse empírica no
estado de natureza possui uma presunção de se tornar jurídica, definida por Kant
como um direito provisório, na espera da realização do estado civil e unicamente
——————————————
14
Ibid., § 47. p. 122.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
231
por comparação com este15 de que possa se tornar um direito peremptório
fundamentado pela vontade unida do povo.
Com outras palavras: o modo de ter algo exterior como seu no estado de
natureza é a posse física, que tem a presunção jurídica de poder ser convertida em
jurídica ao ser unida com a vontade de todos em uma legislação, a qual vale
durante a espera como jurídica por comparação16.
Isso fica comprovado na resposta que Kant apresenta às três perguntas sobre
a dedução do conceito de posse meramente jurídica de um objeto exterior: como é
possível um meu e teu exteriores?; como é possível uma posse meramente jurídica?; como é possível uma proposição jurídica sintética a priori? Todos os juízos
jurídicos são a priori porque são leis racionais, mas os juízos referentes à posse
empírica são analíticos, enquanto os juízos relativos à posse meramente jurídica
são sintéticos. Uma posse empírica só indica que o que eu tenho em meu poder é
meu. Se tenho uma maçã em minhas mãos, ela é fisicamente minha; então, um
juízo ligado à posse empírica afirma simplesmente que “o meu é meu” e não cabe
dúvida de que este é um juízo analítico, cujo predicado está contido no sujeito e
pode ser extraído através do princípio de contradição. Eu estou na posse empírica
de um objeto de meu arbítrio exclusivamente por causa de minha liberdade exterior
e, se tenho fisicamente o objeto, enquanto o possua, ele não pode ser tirado de
minhas mãos, assim como eu não posso ser expulso do solo que ocupo, porque isso
seria uma violência contra minha liberdade exterior de ter um objeto exterior como
objeto de meu arbítrio, pois a máxima de ação do transgressor estaria em contradição com o princípio do direito; por conseguinte, se alguém me impede o uso de
objetos externos me lesa em minha liberdade externa. De minha liberdade externa
só se pode concluir a posse empírica, que resulta em um juízo analítico e na definição nominal de posse: o meu exterior é algo fora de mim que não posso ser impedido de usar sem ser lesado, pois, caso contrário, eles me prejudicariam em minha
liberdade exterior que pode se conciliar com a liberdade de todos os outros
segundo uma lei universal17.
Contudo, o juízo relativo à posse meramente jurídica não pode ser analítico,
porque afirma que um objeto exterior do meu arbítrio é meu, inclusive se não tenho
nenhuma posse física dele, quer dizer, se prescindo das condições espaciais e temporais, por exemplo, se não ocupo o terreno ou somente tenho a promessa de outro
de que me entregará o objeto. Disto surge a definição real de posse: o meu exterior
——————————————
15
Na verdade, Kant afirma que o direito de propriedade só pode se tornar definitivo quando se
realizar a constituição republicana, a federação de estados e o direito cosmopolita.
16
Ibid., § 9. p. 60.
17
Ibid., §5 p. 51.
232
Aylton Barbieri Durão
é algo cujo uso não me podem impedir sem lesar-me, mesmo quando não esteja na
posse física do objeto18.
Por isso, depois de distinguir a posse empírica da posse meramente inteligível ou jurídica (§1), Kant defende a possibilidade de um direito provisório em três
etapas. Em primeiro lugar, introduz o postulado jurídico da razão prática como lei
permissiva que confere validade provisória à propriedade privada no estado de
natureza (§2) e descreve o significado de uma posse meramente jurídica (§ 3, 4 e
5); em seguida, deduz o conceito da posse meramente jurídica baseando-se no
postulado jurídico da razão prática, e a necessidade de demonstrar a possibilidade
de uma proposição jurídica sintética a priori (§6 e 7); e, por último, afirma que a
propriedade no estado de natureza só tem valor provisório e estabelece a exigência
de um poder legislativo público no estado civil como condição para se ter algo
exterior como seu (§8 e 9). Toda a argumentação de Kant neste capítulo se destina
a mostrar a existência de um direito provisório no estado de natureza, mas não tem
a intenção de provar a legitimidade do direito de propriedade, algo que somente
levará a cabo no segundo capítulo dedicado à aquisição definitiva.
Portanto, define o juridicamente meu como um objeto ao qual estou tão vinculado que seu uso por qualquer outro sem meu consentimento me lesa. Depois
define a posse como a condição subjetiva para a possibilidade do uso em geral19.
Kant entende por condição subjetiva os aspectos ligados ao sujeito, como os fatores
empíricos da constituição da subjetividade, circunstâncias históricas ou sociais,
assim como a motivação para a ação; enquanto considera condição objetiva, os
elementos a priori capazes de mostrar a validade objetiva do conhecimento teórico
ou prático. São as condições objetivas do conhecimento (as condições a priori da
sensibilidade e do entendimento) que explicam a possibilidade de juízos objetivos,
assim como a universalização das máximas. Sem as condições objetivas só teríamos juízos de percepção, do tipo “o mel me parece doce”, mas jamais juízos de
experiência com a forma “o mel é doce” ou, por outro lado, as máximas seriam
apenas regras subjetivas de ação, pois não existiriam princípios morais universalmente válidos. A condição objetiva não tem a ver com a relação entre um juízo e
um objeto, mas com a validade universal do enunciado ou da lei moral da ação.
Assim, as condições subjetivas da vontade, segundo a razão prática, são aquelas
relativas à natureza humana, quer dizer, as inclinações, que influem nas ações de
criaturas empiricamente condicionadas como nós, de tal modo que a lei moral aparece como um imperativo que nos obriga como um dever; enquanto a condição
objetiva da vontade é a própria lei moral resultante do imperativo categórico que
surge como um dever20. Disto se conclui que, para criaturas empiricamente
——————————————
18
Ibid., §5 p. 51.
19
Ibid.,.§1 p. 47.
20
Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. IKW VII. p. 412-3.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
233
condicionadas como nós, dado que temos que garantir a sobrevivência mediante o
uso de objetos a nossa disposição, a posse é a condição subjetiva para tal uso.
Portanto, Kant só pode estar falando da posse física ou empírica, ou seja, a
detenção de um objeto distinto de mim, que eu posso ter para meu uso e do qual
posso excluir a qualquer outro. Contudo, considera necessário introduzir outro
conceito de posse, a posse meramente inteligível ou jurídica. Kant não afirma,
embora induz a pensar, que a posse inteligível ou jurídica é a condição objetiva
para o uso dos objetos. A posse jurídica não depende da detenção do objeto, pois
pode consistir no desfrute de um objeto que se encontra situado em outro lugar
espacial ou temporal distinto do sujeito. A posse inteligível ou jurídica, diferentemente da posse física ou empírica que não gera obrigações universais, só pode ter
validade objetiva mediante a posse de um objeto por alguém universalmente aceita
por todos. Assim, devem ser distinguidos também dois tipos de lesão e de exclusão
do uso. Se me tiram um objeto que tenho fisicamente, me lesam em minha liberdade exterior e afetam o meu interior (ou seja, minha própria liberdade externa
inata), razão pela qual posso excluir o uso de qualquer outro, enquanto tenha o
objeto em meu poder; mas só a posse inteligível ou jurídica autoriza a excluir qualquer outro do uso de um objeto, inclusive se não o tenho, pois seu uso, sem meu
consentimento, lesa meu direito reconhecido universalmente, com validade objetiva para todos21.
No estado de natureza, evidentemente, não pode existir uma posse meramente jurídica22, mas Kant precisa mostrar que a posse empírica possui, ao menos,
a pretensão de se tornar jurídica com a entrada no estado civil, para tanto ele
recorre ao postulado jurídico da razão prática (§2): «é possível ter um objeto exterior do meu arbítrio como meu; quer dizer, se uma máxima que afirma que um
objeto exterior do arbítrio pudesse ser em si (objetivamente) sem dono (res nullius), fosse transformada em lei, seria contrária ao direito». Depois oferece uma
segunda versão do postulado (§6): «é um dever jurídico agir com relação aos
outros de tal modo que o exterior (útil) possa tornar-se o seu de alguém».
Kant justifica o postulado jurídico da razão prática a partir do princípio do
direito de acordo com o qual é conforme ao direito uma ação cuja máxima permite
que o livre arbítrio de um possa concordar com o livre arbítrio de todos os demais,
segundo uma lei universal da liberdade; portanto, conclui-se que um objeto do
arbítrio é algo que está fisicamente em poder de alguém para usá-lo segundo sua
liberdade exterior, que é conforme com a liberdade de todos os demais, mas, se o
objeto do arbítrio está fisicamente em poder de alguém e seu uso concorda com a
——————————————
21
22
Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. § 6. p. 52.
Recorde-se que a posse no estado de natureza é a posse empírica que constitui um direito
provisório na espera da realização do estado civil e por comparação com este, de modo que a posse meramente inteligível ou jurídica só pode ocorrer realmente no estado civil.
234
Aylton Barbieri Durão
liberdade exterior de todos os demais, então tem que estar também juridicamente,
pois, do contrário, um objeto, que pode ser usado fisicamente, não poderia ser
usado juridicamente e o arbítrio se privaria de usar coisas utilizáveis, fazendo com
que os objetos do arbítrio se convertessem em coisas em si nulas em sentido prático
ou res nullius. Por conseguinte, usar um objeto exterior do arbítrio como seu não
pode ser incompatível com a liberdade exterior de todos os demais, porque uma
proibição de usar este objeto seria uma contradição da liberdade externa consigo
mesma.
Esta argumentação seguida na exposição do postulado jurídico da razão prática (§2) parece ser uma prova da validade deste postulado. Contudo, entendê-la
como uma demonstração implica dizer que Kant deduz o postulado a partir da
liberdade exterior, posto que a liberdade exterior permite o uso físico de objetos
utilizáveis na medida em que isso é conforme com a liberdade exterior de todos os
demais e que, do uso físico facultado pela liberdade exterior, se obtém a necessidade da posse inteligível ou jurídica, pois, do contrário, a liberdade exterior estaria
em contradição consigo mesma, já que, ao mesmo tempo, permitiria e não permitiria o uso de coisas utilizáveis.
Contudo, a argumentação que Kant apresenta no §2 não constitui uma prova
do postulado jurídico da razão prática, porque termina com a afirmação de que este
postulado é uma lei permissiva da razão prática que nos confere uma atribuição que
não pode ser obtida a partir dos meros conceitos do direito em geral, ou seja, a de
impor a todos os demais a obrigação de se abster dos objetos de nosso arbítrio porque tomamos posse deles anteriormente, uma vez que este postulado representa
uma ampliação a priori da razão prática. Contudo, por definição, uma lei permissiva não pode ser demonstrada.
Kant introduziu o conceito de lei permissiva ao final da primeira seção de
Sobre a paz perpétua, intitulada “Sobre os artigos preliminares para a paz perpétua
entre os estados”23. Em uma nota, explica que o problema da lei permissiva foi
idealizado por um prêmio oferecido pelo Conde de Windischgrätz. Contudo, a
solução apontada pelos professores de direito natural não o satisfez, por isso,
desenvolveu outra explicação. Existem leis imperativas e leis permissivas; a lei
imperativa se subdivide em lei preceptiva, quando tem uma fórmula positiva do
tipo «é um dever entrar com os outros em uma constituição civil republicana», e lei
proibitiva, que é expressa negativamente tal como «é um dever não fazer a guerra».
Uma lei imperativa tem que conter uma obrigatoriedade prática objetiva, enquanto
uma lei permissiva é apenas uma autorização para uma determinada ação de caráter
temporal. Por essa razão uma lei imperativa não pode admitir em sua própria formulação nenhuma limitação, já que representa uma obrigação jurídica que não
admite alternativas, sob pena de por em dúvida toda a certeza jurídica, eliminando
——————————————
23
Zum ewigen Frieden. IKW VI. p. 432.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
235
a eficácia universal da lei e transformando-a em mera lei geral. Kant considera, não
obstante, que o próprio esforço de sistematização da razão exige o conceito de lei
permissiva, que não implica uma limitação da lei imperativa, mas a introdução de
algumas exceções casuais que atendam à experiência. É, por conseguinte, possível
acrescentar algumas exceções a uma lei preceptiva ou proibitiva sempre que as
circunstâncias o demandem, mas estas exceções não são determinadas pela razão e,
portanto, não podem ser objetivas, mas tão só subjetivas, pois só valem enquanto
sigam as condições que as originaram, pois não possuem caráter definitivo.
Kant desenvolve o conceito de lei permissiva em Sobre a paz perpétua porque se dá conta de que os artigos preliminares para a paz perpétua entre os estados
formulados como leis proibitivas, se opõem à práticas antigas e enraizadas na política internacional que somente podem deixar de ser seguidas gradualmente, pois
sua eliminação abrupta pode trazer inumeráveis problemas24. Então, apesar da validade objetiva em sentido prático dos artigos preliminares, sua realização pode ser
adiada até que surjam melhores condições para sua aplicação.
Considera que é uma prática comum na relação política entre os estados a
inclusão de cláusulas secretas nos tratados de paz, a intervenção, pela força, na
constituição e no governo de outros países ou, inclusive, contratar assassinos,
envenenadores, espiões ou usar outros meios que tornam insegura qualquer paz
futura entre os estados. Todas essas atividades devem ser eliminadas da política,
sempre que existam condições histórico-sociais para isto.
Contudo, existem outras leis proibitivas cuja aplicação imediata ocasiona
muitos problemas e que podem ser adiadas até um momento mais propício. Por
exemplo: um estado não é patrimônio de outro estado, mas muitos estados (especialmente nos finais do século XVIII) estão submetidos a outros ou a suas famílias
reais; a razão determina que somente o contrato originário pode gerar direitos sobre
um povo, mas é possível adiar a autonomia de um estado, para evitar uma ruptura
abrupta com o governo no poder, que pode ter como conseqüência uma revolução e
a volta ao estado de natureza como um estado de injustiça ainda maior; os exércitos
permanentes também devem ser suprimidos, uma vez que a sua simples presença já
é um motivo para a guerra, mas isso é impossível nas condições atuais da política
internacional, pelo menos para a maioria dos países, e sua supressão pode trazer
conseqüências desastrosas; ademais, os estados não devem recorrer ao sistema
financeiro internacional que aumenta o seu capital para financiar a guerra e produz
uma impagável dívida pública, mas isso tem que ser adiado para não gerar uma
bancarrota internacional capaz de trazer novos conflitos ou a injustiça da revolução, como ocorreu com a França.
Todas essas injustiças são fruto de uma injustiça mais fundamental, ou seja,
o fato de que os estados permanecem entre si em estado de natureza sem um direito
——————————————
24
Ibid., p. 431.
236
Aylton Barbieri Durão
de gentes e cosmopolita capazes de regular as ações recíprocas25. Por conseguinte,
é permitido manter a injustiça em que se encontram os estados entre si e se deve
temporariamente adiar a aplicação de algumas leis preceptivas ou proibitivas, como
a evacuação de estados, o fim dos exércitos permanentes e do endividamento para
propósitos de guerra, pois sua supressão imediata produziria injustiças ainda
maiores.
Das reflexões kantianas sobre a lei permissiva se conclui, indubitavelmente,
que sua filosofia não é insensível no que se refere ao problema da prudência política e jurídica. O que Kant recusa fazer é introduzir na lei jurídica uma fórmula que
torne o próprio direito inseguro; por isso, a permissão é introduzida como cláusula
de exceção, pois somente tem validade enquanto não existam condições favoráveis
para a aplicação da lei imperativa, a qual depende, em última instância, da constituição republicana, da federação de estados e do direito cosmopolita. Portanto, o
papel da lei permissiva é adiar a entrada no estado plenamente jurídico até que
surjam condições adequadas, pois sem uma situação favorável, a aplicação inflexível da lei imperativa pode resultar em uma injustiça ainda maior.
Conseqüentemente, por definição, uma lei permissiva não pode ser fundamentada, pois constitui simplesmente uma exceção que permite a permanência de
um estado de injustiça (a ausência de um estado legal público), porque a aplicação
rigorosa da lei preceptiva ou proibitiva pode trazer mais problemas do que solucioná-los. Mas, Kant afirma que uma permissão não pode permanecer eternamente
ou ad calendas graecas, pois não é uma lei moral ou jurídica, mas uma autorização
para adiar a realização de um estado de justiça legal-público26. Portanto, em Sobre
a paz perpétua, uma lei permissiva concede uma autorização excepcional para
adiar a realização da constituição republicana, da federação de estados e do direito
cosmopolita e para que permaneça a injustiça do estado de natureza entre os estados, atrasando a evacuação de um estado estrangeiro, a supressão do exército e do
endividamento para o financiamento de guerra, pois sua eliminação geraria conflitos e, por conseguinte, também injustiças maiores, como a volta ao estado de natureza no interior do próprio estado, pelo menos, até que se possam alcançar as condições de uma justiça definitiva que depende de um autêntico estado jurídico com a
aplicação plena da lei jurídica. Pois a aplicação incondicional da lei imperativa e a
conseqüente negação da permissão podem resultar em uma volta ao estado de natureza sem nenhuma justiça positiva, sendo preferível, portanto, manter a injustiça
vigente do que gerar em uma ainda maior.
Em A metafísica dos costumes, a lei permissiva tem um papel distinto que no
projeto de paz perpétua. O projeto de paz considera que o estado de natureza foi
parcialmente superado no âmbito do estado civil, embora sobreviva nas relações
——————————————
25
Ibid., p. 431-2.
26
Ibid., p. 432.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
237
entre os estados pela insuficiência do direito internacional. Por isso, a lei permissiva permite adiar a realização da lei imperativa determinada pelo dever e a permanência temporária de práticas que fazem inviável a paz perpétua porque sua aplicação imediata pode resultar em uma injustiça ainda maior. Em A metafísica dos
costumes, contudo, a problemática da fundamentação do direito privado transcorre
totalmente no estado de natureza, que é por si mesmo um estado de injustiça,
mesmo que nenhum homem cometa uma violência efetiva com relação a outro27,
pois a ausência de um poder coativo garantido pela justiça distributiva do estado
civil torna inseguro o seu exterior de todos.
«Enquanto pretendem se manter no estado de liberdade exterior sem lei,
os homens não são injustos uns com os outros se lutam entre si, porque o que
vale para um vale também para o outro, como em um convênio; mas são injustos
em sumo grado por querer se manter em um estado que não é jurídico, quer
dizer, em um estado em que ninguém está seguro do que é seu por causa da
violência»28.
Por conseguinte, permanecer no estado de natureza, onde não se garante a
posse dos objetos externos do arbítrio pela justiça distributiva, já é cometer uma
injustiça em sumo grau contra todos aqueles com quem se mantém relação, pois
torna inseguro o direito ao meu e ao teu exteriores. Contudo, o postulado jurídico
da razão prática, enquanto lei permissiva, autoriza a posse jurídica provisória dos
objetos externos do arbítrio que já se encontram sob a posse empírica. Portanto, já
no estado de natureza existe um direito privado provisório que somente pode tornar-se definitivo por meio da entrada no estado civil que é o único que pode submeter a liberdade exterior inata (sem lei) ao poder coativo da justiça distributiva. A
permissão de posse jurídica provisória de objetos externos do arbítrio no estado de
natureza representa uma ampliação da razão prática que possibilita o surgimento de
um direito que não poderia existir de outro modo29.
O postulado jurídico da razão prática, não obstante, torna um dever a saída
do estado de natureza e a entrada no estado de justiça pública, na medida em que só
concede validade provisória aos direitos privados, os quais necessitam ser outorgados definitivamente pela vontade unida do povo.
Então, é um dever incondicionado da razão prática sair do estado de natureza, mas, enquanto este persista, deve ser possível aos homens ter algo exterior
como seu, porque têm que usar as coisas exteriores do arbítrio no estado de natureza e não podem esperar o estado civil para começar a desfrutar dos objetos do
——————————————
27
Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. §42. p. 114.
28
Ibid., §42. p. 114.
29
Ibid., §2. p. 49.
238
Aylton Barbieri Durão
arbítrio que já detêm fisicamente, pois somente a vontade unida do povo no estado
civil pode garantir um autêntico direito de propriedade. Permanecer no estado de
natureza é em si uma injustiça contra os homens e a permissão facultada pelo postulado jurídico da razão prática torna um dever sair deste estado de injustiça30.
Portanto, não tem sentido pensar que Kant está fundamentando o postulado
jurídico da razão prática a partir da liberdade exterior. Como lei permissiva, o
postulado é uma cláusula de exceção da lei jurídica «é um dever entrar com outros
em um estado civil sob uma constituição republicana, uma federação de estados e
um direito cosmopolita que garanta o meu e o teu exteriores», pois é uma injustiça
permanecer no estado de natureza sem uma justiça distributiva; mas, enquanto este
estado perdure, é necessário que os homens disponham juridicamente, embora com
validade provisória, da possibilidade de usar os objetos de seu arbítrio que detém
fisicamente, o que é conforme com a liberdade exterior, pois os homens não podem
manter sua vida sem o uso de objetos externos e me lesaria em minha liberdade
exterior se me impedissem de usar um objeto de meu arbítrio que tenho fisicamente. Mas, se, ao se manterem no estado de natureza sem violência, os homens
não cometem injustiça uns contra outros, eles cometem uma injustiça em sumo
grado contra o direito, ao meu e o teu exteriores de qualquer um, pois se mantêm
em um estado de liberdade exterior sem lei e impedem ter a posse jurídica definitiva de um objeto que eles têm fisicamente, porque, se recusando a entrar no estado
civil, onde há uma justiça distributiva capaz de garantir o seu exterior de cada uno,
os outros se privam do direito definitivo de propriedade.
O postulado é uma lei permissiva provisória que não gera nenhum direito de
propriedade em caso de que nunca se realize a entrada no estado civil e se permaneça no estado de injustiça, mas que gera um direito provisório de propriedade, que
permite obrigar os outros com que se mantêm relações recíprocas a entrar no
estado civil, o que possibilita a superação da injustiça de permanecer no estado de
natureza, pois autoriza a posse jurídica provisória que torna necessária a entrada no
estado civil como forma de garantir a posse jurídica definitiva31. Ademais, o direito
de propriedade no estado civil confirma o direito proveniente da lei permissiva, até
o ponto de que, sem o postulado jurídico da razão prática, também não existiria
direito de propriedade no estado civil.
«Em caso de que não houvesse no estado de natureza provisoriamente um
meu e teu externos, também não haveria deveres jurídicos com respeito a isto,
assim como mandato de sair daquele estado»32.
——————————————
30
Ibid., §41. p. 113.
31
Ibid., §16. p. 71.
32
Ibid., §44. p. 119.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
239
Portanto, o postulado não pode ser deduzido da liberdade externa por meio
do princípio do direito, pois é uma simples exceção à lei jurídica, na medida em
que concede a permissão para a posse inteligível no estado de natureza, enquanto
não se possa alcançar um estado jurídico no qual a vontade unida do povo garanta
definitivamente a cada um o seu exterior, mas cria um dever de entrar no estado
civil sob uma lei coativa e torna possível obrigar a qualquer um com quem se
mantenha relação a se submeter à justiça distributiva. O postulado jurídico da razão
prática é uma lei que permite usar de forma juridicamente provisória os objetos
externos do arbítrio disponíveis fisicamente para a liberdade exterior, o que implica
que oferece aos sujeitos o direito provisório ao meu e o teu exteriores. A partir
deste direito provisório à propriedade privada, se pode obter o postulado do direito
público que afirma que a coexistência inevitável entre todos torna um dever passar
ao estado jurídico sob a justiça distributiva.
Este postulado do direito público é deduzido analiticamente a partir do conceito de direito por oposição ao conceito de violência33. A permanência no estado
de natureza representa uma injustiça em sumo grado, pois este se constitui como
um estado não-jurídico34 que torna inseguro todo o direito; então, o postulado jurídico da razão prática é uma lei permissiva que autoriza à propriedade provisória
dos objetos externos do arbítrio, que torna um dever sair do estado de injustiça em
sumo grado do estado de natureza e obriga a entrar no estado civil, enquanto estado
jurídico, que resulta na supressão da injustiça.
Então, a argumentação de Kant no §2, que parece uma prova, somente pode
ser entendida como uma explicação de que o postulado não contradiz o princípio
do direito, quer dizer, que o postulado, ao permitir o uso jurídico de objetos exteriores do arbítrio usados fisicamente, não viola a liberdade exterior, condição sine
qua non para que haja conformidade com o direito. Conseqüentemente, Kant não
prova o postulado, mas mostra que é compatível ou não é contrário ao direito.
Se o postulado jurídico não é deduzido no §2 a partir da liberdade em seu
uso exterior, então, não fica ainda demonstrado o direito ao meu e ao teu exteriores, o que implica a necessidade de uma dedução da possibilidade do meu e o teu
exteriores ou da posse meramente jurídica. Como vimos, Kant considera que esta
questão pode ser formulada através da pergunta: como é possível um juízo jurídico
sintético a priori?35
Evidentemente que os juízos sintéticos na razão prática são distintos dos da
razão teórica. Na razão teórica um juízo sintético necessita das intuições que provêm da sensibilidade e, quando a razão pretende se ampliar além da experiência, se
——————————————
33
Ibid., §42. p. 113.
34
Ibid., §41. p. 112.
35
Ibid., §6. p. 52.
240
Aylton Barbieri Durão
vê envolvida na dialética transcendental; por isso, a Crítica da razão pura deve
começar pela estética e depois chegar à analítica transcendental. Na razão prática
não se deve apelar à intuição, pois a vontade é capaz de determinar seu próprio
objeto, o que explica porque a Crítica da razão prática começa pela analítica e não
dispõe de uma doutrina da sensibilidade. Contudo, a própria razão se amplia em
seu uso prático através do conceito de liberdade e fundamenta a validade da lei
moral e a necessidade de pensar o mundo inteligível (inclusive as idéias de Deus e
imortalidade, transcendentes à razão pura). Esta ampliação resultante da determinação da vontade pela razão prática constitui um mundo inteligível que Kant
denomina um fato da razão, que não pode ser conhecido pela razão teórica36. Esta
ampliação da razão pura em seu uso prático gera, inclusive, um sentimento moral
resultante do respeito pela lei moral37.
O mesmo ocorre com a razão prática em seu uso jurídico. Segundo Kant, a
razão prática produz a posse meramente jurídica como um fato da razão, a qual é
possível por meio do postulado jurídico da razão prática, que permite ampliá-la a
priori, sem recurso algum à intuição38. Do ponto de vista da razão teórica a
possibilidade de uma posse meramente jurídica não pode ser provada ou compreendida, pois implica a ampliação do conhecimento sem intuição correspondente
e, portanto, a sua perda no inteligível. Mas tal ampliação da razão prático-jurídica é
possível porque se fundamenta na liberdade, que, em sentido prático, pode determinar seu próprio objeto39. Contudo, por causa de tal ampliação ao inteligível surge
uma dialética na razão prático-jurídica, que implica dois juízos contraditórios. O
primeiro afirma que «é possível que eu tenha algo exterior como meu, embora não
esteja na posse dele», enquanto o segundo diz que «não é possível que eu tenha
algo exterior como meu, se não estou na posse dele». A dialética da razão prático-jurídica tem melhor sorte que a dialética da razão teórica e Kant afirma que tem
solução, já que os dois juízos são verdadeiros. O primeiro juízo é verdadeiro
quando se compreende a palavra posse como posse empírica e o segundo quando
se entende como posse jurídica40. Por conseguinte, o postulado jurídico da razão
prática, enquanto fato da razão, constitui um mundo inteligível, fundamenta a posse
inteligível provisória e permite uma ampliação da razão prático-jurídica, sem a
ajuda das intuições41.
——————————————
36
Kritik der praktischen Vernunft. p. 48-9.
37
Ibid., p. 82.
38
Die Metaphysik der Sitten. IKW VII. § 6. p. 55. Cf. também § 2. p. 49.
39
Ibid., § 6. p. 55.
40
Ibid., § 7. p. 57-8.
41
Ibid., § 2. p. 49.
O Postulado Jurídico da Razão Prática
241
Isto parece uma nova demonstração da posse inteligível, pois Kant pode
estar afirmando que a posse jurídica de um objeto externo constitui um fato da
razão prático-jurídica por meio do qual ela se amplia a partir da liberdade externa e
gera todo um mundo inteligível. Portanto, a prova da possibilidade do juízo jurídico sintético a priori radica no fato da razão da posse inteligível. Contudo, Kant
também não pensa que esta seja uma demonstração, pois afirma ao final do §7,
depois da dedução da posse meramente jurídica, que a prova dos juízos jurídicos
sintéticos a priori logo se mostrará de modo analítico desde uma perspectiva prática (a qual só é apresentada no §17, onde Kant pretende deduzir a posse inteligível
a partir do conceito de aquisição originária). A razão pela qual o postulado jurídico
da razão prática, como um fato da razão, que a amplia em seu uso prático-jurídico,
não pode ser uma solução para o problema da posse meramente jurídica, resulta da
circunstância de que o postulado só vale como uma lei permissiva. O postulado
jurídico é uma lei permissiva que autoriza a propriedade provisória no estado de
natureza, mas não tem nenhum significado sem a realização do estado civil que
torna a propriedade privada peremptória.
Então, tudo o que se demonstrou no primeiro capítulo da “Doutrina do
direito privado” foi que a razão prático-jurídica pode ampliar-se por meio do postulado jurídico e gerar provisoriamente a posse inteligível como um fato da razão
no estado de natureza, à espera de que a vontade unida do povo possa deduzir a
aquisição definitiva e comprovar o juízo jurídico sintético a priori. Os §8 e §9
representam a transição do primeiro capítulo ao segundo e confirmam que o primeiro capítulo só pretende provar a possibilidade da posse inteligível provisória no
estado de natureza. Inclusive esta ampliação da razão prático-jurídica pelo postulado só tem valor provisório em caso de que a vontade unida do povo se realize no
estado civil, na federação de povos e no direito cosmopolita.
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AUTORES
André Berten
Professor da Universidade Católica de Lovaina e Professor Visitante da Universidade Federal de Belo Horizonte.
Investigador e coordenador de investigação do Centro de Estudos de Filosofia do Direito da Universidade de
Lovaina. Autor de numerosos estudos sobre filosofia do direito e em particular (com Jacques Lenoble) da obra:
Dire la norme. Droit, politique et énonciation, L.G.D.J. – Bruylant, Paris, 1996.
António Braz Teixeira
Professor universitário, pensador e ensaísta. Exerceu funções docentes na Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, na Universidade de Évora e na Universidade Autónoma de Lisboa. Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, membro efectivo da Academia de Ciências de Lisboa, membro correspondente da Academia
Portuguesa da História, da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia (Rio de Janeiro),
membro efectivo da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. É autor de: A filosofia portuguesa
actual, 1959; O pensamento filosófico-jurídico português, 1983; Sentido e valor do direito. Introdução à filosofia
jurídica, 1990; Caminhos e figuras da filosofia do direito luso-brasileira, 1991; Deus, o mal e a saudade, 1993; O
pensamento filosófico de Gonçalves de Magalhães, 1994; O espelho da razão, 1997; Ética, filosofia e religião,
1997; Formas e percursos da Razão Atlântica, 2001; História da Filosofia do Direito Portuguesa, 2005.
António Manuel Martins
Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, é Director da Unidade de Investigação
LIF – Linguagem, Interpretação e Filosofia. Autor de uma dissertação sobre Pedro da Fonseca e o aristotelismo
quinhentista, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, de estudos sobre a filosofia antiga (Platão e Aristóteles), o pensamento dos Conimbricenses, o pensamento político de John Rawls e sobre a recepção do pensamento
jurídico e político de Kant na actualidade. Organizou na sua Universidade vários colóquios e seminários científicos e coordenou a publicação de várias obras colectivas: Da natureza ao sagrado (2 vol.), Fundação Engº António
de Almeida, Porto,1999; Sociedade civil. Entre miragem e oportunidade, Faculdade de Letras, Coimbra, 2004.
Aylton Barbieri Durão
Doutor em Filosofia Política e do Direito. Professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Direito da
Universidade Estadual de Londrina. Autor de: A Crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant (Editora
UEL, Londrina-Passo Fundo, 1996) e de cerca três dezenas de artigos e capítulos de livros publicados, entre os
quais «O conceito de opinião pública em Kant» (1995), «Kant e o suposto direito de mentir por filantropia» (Philosophica, 12, Lisboa, 1999), «La interpretación de Habermas sobre la tensión entre derechos humanos y soberanía popular en el pensamiento de Kant» (Cuadernos de Filosofía del Derecho, 26, 2003, 827-846), «O conceito de
autonomia na Doutrina do Direito de Kant» (Lisboa, 2004), «The history of Republic according to Kant» (São
Paulo, 2005). Ex-coordenador do Curso de Graduação em Filosofia e do Curso de Especialização em Filosofia
Política e Jurídica da Universidade Estadual de Londrina. Ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Javier García Medina
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Valladolid, onde lecciona Filosofia do Direito. Autor de
uma dissertação de doutoramento sobre A doutrina tridimensional do Direito de Miguel Reale (Valladolid) e de
vários estudos sobre o pensamento jurídico-político de Kant. Tem colaborado com a Universidade de Lisboa
(Faculdade de Direito e Faculdade de Letras), nomeadamente no âmbito do programa Erasmus.
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Autores
José Gomes André
Prepara, sob orientação do Prof. Viriato Soromenho-Marques, uma dissertação de Doutoramento dedicada ao
pensamento político de James Madison e ao federalismo americano. Sobre estes temas, publicou artigos e recensões em revistas da especialidade, entre os quais «James Madison e a protecção dos direitos individuais», Philosophica, nº22, Novembro 2003; e «O Federalista: uma edição oportuna», Nova Cidadania, Ano VI, nº22, Outubro/
Dezembro 2004. Apresentou ainda comunicações em congressos, das quais se destaca “Antropologia e Política no
horizonte da Revolução Americana” (Congresso Internacional de Filosofia “Pessoa e Sociedade”, Faculdade de
Filosofia, UCP, Braga, 17-19 de Novembro de 2005). É bolseiro de investigação científica da FCT e membro do
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.
José Luís Villacañas Berlanga
Professor Catedrático da Universidade de Múrcia desde 1997. Doutor em Filosofia pela Universidade de Valência
em 1981, com a dissertação Realismo Empírico e Idealismo Trascendental en la Filosofía Teórica de Kant. Los
níveles de su uso y de justificación. Investigador principal do Projecto “Biblioteca virtual de fuentes del pensamiento político español” (2002-2005). Entre as suas publicações contam-se 23 livros, mais de 180 artigos e capítulos de livros e participação em mais de 90 conferências.
Leonel Ribeiro dos Santos
Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, onde lecciona as disciplinas de Filosofia Moderna e Filosofia da
Educação e orienta seminários nos Programas de Estudos Pós-graduados em Estética e Filosofia da Arte, Filosofia
da Natureza e do Ambiente, Ética e Filosofia Política, História da Filosofia e Filosofia em Portugal. Desde 2000 é
Director da revista Philosophica, tendo sido Editor científico da mesma desde a sua fundação em 1993. Dirige no
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa um Projecto de Investigação sobre a filosofia kantiana, aprovado e
financiado pela FCT (Projecto POCTI/FIL/44903/2002 – «KANT 2004: POSTERIDADE E ACTUALIDADE»).
Principais publicações: Metáforas da Razão ou Economia poética do Pensar kantiano, JNICT/F-C.Gulbenkian,
Lisboa, 1994; A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Edições Colibri, Lisboa, 1994; Retórica da Evidência ou
Descartes segundo a Ordem das Imagens, Quarteto, Coimbra, 2001; Antero de Quental, Uma Visão Moral do
Mundo, INCM, Lisboa, 2002; Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento, Edições Colibri, Lisboa, 2004; O
Espírito da Letra. Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007.
Maximiliano Hernández Marcos
Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de Salamanca, onde lecciona Filosofia Política. Especialista
no pensamento político e jurídico de Kant sobre o qual tem publicado vários estudos e orientado vários cursos e
seminários na sua universidade. Colabora na revista Kant-Studien, tendo publicado num dos últimos números
desta importante revista uma resenha crítica acerca do estado actual das investigações sobre a filosofia Kantiana
do Direito, nomeadamente no espaço filosófico de língua alemã: Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit. Zur
Aktualität der Rechtsphilosophie Kants für die Gerechtigkeit in der modernen Gesellschaft (Kant-Studien 96,
2005, pp.116-124).
Pedro Alves
Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Director da revista Phainomenon. Foi
membro da Direcção do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e é Presidente da Associação Portuguesa
de Filosofia Fenomenológica. Tradutor de Sartre e de Husserl (Lições para uma fenomenologia da consciência
interna do tempo, tradução, introdução e notas, IN-CM, 1994). Autor de: Subjectividade e tempo na fenomenologia de Husserl (1999; publ. pelo CFUL, 2003); Os Princípios da Filosofia: Exposição e Comentário da Metafísica
Cartesiana (2002) e de várias dezenas de ensaios sobre a filosofia de Descartes, Husserl e Kant e sobre temática
do pensamento fenomenológico.
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