CARTA AOS ESCROQUES DA ISLAMOFOBIA QUE FAZEM O JOGO DOS RACISTAS CHARB CARTA AOS ESCROQUES DA ISLAMOFOBIA QUE FAZEM O JOGO DOS RACISTAS Tradução de JOSÉ VALA ROBERTO/JOÃO QUINA EDIÇÕES Nota do editor Este texto ficou concluído em 5 de janeiro de 2015, dois dias antes do ataque terrorista contra o Charlie Hebdo, no qual Charb perdeu a vida. Se pensas que a crítica das religiões é a expressão de um racismo, Se pensas que o «islão» é o nome de um povo, Se pensas que podemos rir de tudo exceto do que é sagrado para ti, Se pensas que condenar quem blasfema te abrirá as portas do paraíso, Se pensas que o humor é incompatível com o islão, Se pensas que um desenho é mais perigoso do que um drone americano, Se pensas que os muçulmanos são incapazes de compreender o implícito, 9 CHARB Se pensas que os ateus de esquerda agem de acordo com as conveniências dos fachos e dos xenófobos, Se pensas que uma pessoa de pais muçulmanos só pode ser muçulmana, Se pensas saber quantos muçulmanos há em França, Se pensas que é essencial catalogar os cidadãos conforme a sua religião, Se pensas que popularizar o conceito da islamofobia é o melhor meio de defender o islão, Se pensas que defender o islão é o melhor meio de defender os muçulmanos, Se pensas que está escrito no Corão que é proibido desenhar o profeta Maomé, Se pensas que caricaturar um jihadista numa pose ridícula constitui um insulto ao islão, Se pensas que os fachos atacam sobretudo o islão sempre que têm em mira um árabe, Se pensas que cada comunidade deveria ter uma devota associação antirracista, Se pensas que a islamofobia faz parelha com o antissemitismo, Se pensas que os sionistas que dirigem o mundo pagaram a um escritor-fantasma para escrever este livro, Então, boa leitura, porque esta carta foi escrita para ti. 10 O racismo destronado pela islamofobia Na verdade, «islamofobia» é um termo mal escolhido se pretendermos classificar o ódio que certos tolos têm aos muçulmanos. E não é somente mal escolhido, é perigoso. Se a abordamos de um ponto de vista puramente etimológico, a islamofobia devia designar «o medo do islão». Ora, os inventores, promotores e utilizadores deste termo aplicam-no para denunciar o ódio aos muçulmanos. É curioso que não tenha sido a «muçulmanofobia», e mais abrangentemente o «racismo», a prevalecer sobre a «islamofobia», não é? De um ponto de vista etimológico, seria apenas um pouco menos vacilante. Então, por que razão o termo «islamofobia» se impôs? 13 CHARB Por ignorância, por indolência, por erro, para alguns, mas também porque muitos dos que militam contra a islamofobia, na realidade, não o fazem para defender os muçulmanos enquanto indivíduos, mas para defender a religião do profeta Maomé. O racismo existe em todos os países desde a invenção do bode expiatório. Provavelmente, haverá sempre racistas. A solução não é a de perquirir o cérebro de todos os cidadãos, em busca da mais pequena centelha de racismo; trata-se de impedir os racistas de expressarem os seus pensamentos nauseabundos, de reivindicarem o «direito» de serem racistas, de exprimirem o seu ódio. Em França, a palavra «racista» foi «libertada» por Sarkozy, e aquando do seu debate sobre a identidade nacional. Quando a mais alta autoridade do Estado se dirige aos parvos e aos patifes dizendo-lhes «soltem-se, rapazes», o que julga que fazem os parvos e os patifes? Desatam a dizer em público aquilo que eles se contentavam, até então, a gritar no final das refeições familiares 14 CARTA AOS ESCROQUES DA ISLAMOFOBIA QUE FAZEM O JOGO DOS RACISTAS com muito álcool. A palavra «racista», que as associações, os políticos e os intelectuais tinham conseguido confinar a um espaço compreendido entre a boca de um xenófobo e a porta da sua cozinha, saiu à rua, inundou os meios de comunicação, sujou um pouco mais os canais das redes sociais. Sim, assistimos a uma explosão de manifestações racistas. Porém, o termo «racismo» já só é empregado timidamente. O termo «racismo» está tão-só em vias de ser substituído pelo da «islamofobia». Quando uma mulher é insultada e violentada porque está a usar o véu segundo os costumes muçulmanos (o insensível agressor é geralmente descrito como um skinhead), o anti-islamófobo apoia a vítima enquanto representante do islão, não porque se trate de uma cidadã acusada por um fascista devido às suas crenças. Para o seu defensor, o mais grave é ela ter sido atacada, não como cidadã, que tem o direito de se vestir conforme entende, mas como mulher muçulmana. A verdadeira vítima é o islão. Deus, deste modo, 15 CHARB encontra-se bem acima da fiel, mas, ao se ofender a dita mulher, foi a Deus que se procurou atingir. Para o militante anti-islamófobo, é isso que é realmente intolerável. Eis então porque os anti-islamófobos de que aqui falaremos não são proclamados antimuçulmanófobos: para eles, os muçulmanos que defendem são apenas instrumentos de Deus. E isto a ponto de podermos ter a impressão de que os estrangeiros ou os cidadãos de origem estrangeira só são agredidos em França se forem muçulmanos... As vítimas de racismo que são de origem indiana, asiática, romena, negro-africana, antilhana, etc., em breve terão todo o interesse de encontrar uma religião se quiserem ser defendidas. Os militantes comunitaristas que procuram impor às autoridades judiciárias e políticas a noção da «islamofobia» não têm outro objetivo que não seja o de levar as vítimas de racismo a afirmarem-se muçulmanas. Que os racistas sejam também islamófobos, desculpem, mas é quase anedótico. Eles são em primeiro lugar racistas e 16 CARTA AOS ESCROQUES DA ISLAMOFOBIA QUE FAZEM O JOGO DOS RACISTAS é, através do islão, sobretudo o estrangeiro, ou a pessoa de origem estrangeira, que eles visam. Ao deixarmos de ter em consideração a islamofobia no racista, estamos a minimizar o perigo do racismo. O militante antirracista de outrora está prestes a transformar-se num comerciante hiperespecializado numa forma minoritária de discriminação. Lutar contra o racismo é lutar contra todos os racismos; lutar contra a islamofobia é lutar contra o quê? Contra a crítica de uma religião ou contra a aversão aos seus praticantes porque são de origem estrangeira? Enquanto nós discutimos se constitui ou não uma forma de racismo afirmar que o Corão é um livro nulo, os racistas riem-se. Se amanhã os muçulmanos de França se convertessem ao catolicismo ou renunciassem a qualquer religião, isso em nada mudaria o discurso dos racistas: esses estrangeiros ou esses franceses de origem estrangeira serão sempre considerados responsáveis por todos os males. Vejamos, Mouloud e Gérard são muçulmanos. Mouloud é de origem magrebina e provém de uma família muçulmana; Gérard é de origem europeia e oriundo de uma família católica. Gérard 17 CHARB converteu-se ao islão. Os dois candidatam-se ao aluguer de um apartamento. Com um rendimento igual, qual dos dois muçulmanos tem mais hipóteses de conseguir alugar o apartamento? O que tem feições árabes ou o que tem feições de francês? Não é ao muçulmano que se nega o aluguer; é ao árabe. E o facto de o árabe não apresentar quaisquer sinais exteriores de pertença à religião muçulmana nada mudará. O que fará neste contexto o militante anti-islamófobo? Clamará contra a discriminação religiosa, em vez de se insurgir contra o racismo. Recordemos aqui o que diz o Código Penal francês: «Qualquer distinção exercida entre as pessoas físicas em função da sua origem, sexo, situação familiar, gravidez, aparência física, patronímia, estado de saúde, deficiência, características genéticas, usos e costumes, orientação ou identidade sexual, idade, opiniões políticas, atividades sindicais, filiação ou não filiação, verdadeira ou não, a uma etnia, uma nação, uma raça ou a uma determinada religião, constitui um ato de discriminação.» 18 CARTA AOS ESCROQUES DA ISLAMOFOBIA QUE FAZEM O JOGO DOS RACISTAS No entanto, a discriminação social, da qual se fala bastante menos do que da discriminação religiosa, por a sua expressão ser mais dissimulada e discreta, é mais dominante em França. Os patrões selecionam os seus futuros empregados muito mais em função, por exemplo, do seu local de residência do que da sua verdadeira religião. Entre um Mouloud que vive em Neuilly-sur-Seine e um Mouloud que vive em Argenteuil, qual dos dois, com competências equivalentes, tem mais hipóteses de conseguir o emprego? Mas quem fala deste tipo de discriminação? Discriminamos massivamente as pessoas em função da sua origem social, mas — como os pobres que não queremos ver na nossa empresa, no nosso bairro, no seu prédio — se há um número bem significativo de pessoas de origem estrangeira e, entre estas, um número importante de pessoas de origem muçulmana, então o militante do islão dirá que o problema é a islamofobia. Tomemos agora como exemplo Mouloud e Abdelkader. Os dois são muçulmanos, ambos de origem estrangeira e mais bronzeados do que Gérard. Mouloud não tem um cêntimo, Abdelkader é milionário. A qual deles recusaremos o aluguer 19 CHARB de um apartamento? Ao muçulmano Mouloud ou ao milionário Abdelkader? Se for necessário não utilizar os termos «islamofobia» ou «cristianofobia» — a eles voltaremos mais adiante —, o que acontecerá às noções tão modernas como a da «homofobia» ou a da «negrofobia»? Pela simples razão de que o significado destes dois termos não é ambíguo, mesmo que a moda de acrescentar «-fobia» no fim de cada palavra seja perfeitamente grotesca, «homofobia» e «negrofobia» não são utilizados para descrever o ódio que certas pessoas podem ter face a uma ideologia ou a uma religião, mas sim e inteiramente face a seres humanos. A homofobia não é condenável por ser uma crítica à homossexualidade, mas por exprimir o ódio aos homossexuais. De igual modo, quando falamos de negrofobia, falamos de facto do ódio que alguns sentem para com as pessoas negras, para com os indivíduos. 20