d ossiê Beirute catapultada para a Idade Média I NCRÍVEL! Nunca na tumultuosa História do Líbano se produziu semelhante agressão, semelhante atentado à paz civil, semelhante intrusão quase medieval e bárbara no coração do sector cristão de Beirute. Os que destruíram e saquearam bens de cidadãos pacatos e aterrorizaram transeuntes, conspurcaram os lugares de culto, cometeram um crime, ainda mais imperdoável do que o perpetrado pelo autor das caricaturas de Maomé. Molestaram a religião que pretendiam defender, tornaram-se cúmplices dos que blasfemaram contra o Profeta. Prendê-los, julgá-los, condená-los, não basta. Tomar medidas para impedir a repetição de tais acontecimentos, não chega. Contentar-se com sanções administrativas, bodes expiatórios, a demissão do ministro do Interior, condenações lamuriosas da parte de dirigentes políticos e religiosos, é inaceitável. O que se pede, o que se exige, é a revisão total do discurso político e religioso, portador dos germes do fanatismo, que incita à violência, às «guerras santas» contra os «infiéis». O verbo mata, incendeia, cria situações sem retorno. Há que tomar consciência, controlar os antros que destilam ódio e veneno confessional. Mas há pior: o aparecimento, entre os manifestantes, de provocadores vindos do outro lado da fronteira, «uma subversão iniciada em Damasco e exportada para Beirute», citando Saad Hariri [deputado libanês]. Os acontecimentos de sábado em Damasco, onde as embaixadas da Dinamarca e da Noruega foram incendiadas sem que as autoridades interviessem, constituíram um ensaio geral, prelúdio para os incidentes de domingo em Beirute. Submetida a fortes pressões desde o assassínio de Rafik Hariri [primeiro-ministro libanês alegadamente morto por um comando sírio], a Síria enviou uma dupla mensagem à comunidade internacional. Em suma: «A movimentação islamita anti-ocidental está presente na Síria e pode tornar-se muito activa; só um poder forte (do Baas, claro) é capaz de controlar a situação e impedir derrapagens. Caso contrário, o caos é garantido e as chamas estender-se-ão forçosamente ao Líbano». Foi o aviso que Bashar al-Assad [Presidente sírio] lançou há três meses. Desde o assassínio de Rafik Hariri, a Revolução do Cedro e a saída dos sírios, forças mais ou menos ocultas fazem tudo para paralisar o funcionamento das instituições: uma brecha é colmatada aqui e logo outra se abre ali; um incêndio é circunscrito deste lado, outro acende-se e é atiçado de seguida. Assim vai o Líbano, aberto aos ventos que trazem a borrasca do Irão ao Iraque, passando pela Palestina e pela Síria. Assim vai o Médio Oriente, balançando entre aspirações legítimas e pulsões suicidárias, entre regimes corruptos, totalitários, e movimentos integristas em expansão. Ontem, os habitantes de Achrafieh, Saifi e Medawar [bairros cristãos de Beirute] viram-se catapultados, no espaço de um dia, para a Idade Média. Viram hordas a invadir a sua tranquilidade e vândalos a assaltar os seus bens, com toda a impunidade. Mantiveram o sangue-frio, deixaram passar a tempestade e evitaram, assim, ao país uma nova descida aos infernos. Possa esse civismo, essa exemplaridade servir de lição, acordar as consciências adormecidas e pôr termo ao aventureirismo de uns e outros. Nagib Aun, L'Orient-Le Jour (excertos), Beirute l Presos e exonerados Pouco notados em 2005, os «cartoons» foram reproduzidos na Escandinávia em Janeiro, seguindo-se a Alemanha, a Bélgica e a França. Quando a contestação disparou, reapareceram em jornais de todo o mundo. Excepções significativas foram os EUA e o Reino Unido. «Vários editores foram exonerados devido à decisão ou intenção de reproduzir as ilustrações», lembra a enciclopédia digital Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Mahomet_cartoons). O primeiro foi o director do «France Soir», Jacques Lefranc. Seguiu-se Momani, editor do semanário jordano «Shehane», despedido e preso após ter publicado três dos «cartoons», que surgiram também no jordano «Al-Mehwar», causando a detenção do editor Hisham Khalidi. No Iémen, o «Al-Hurreya» foi encerrado e o seu proprietário e director, Abdul-Karim Sabra, detido. Na Malásia, Lester Melanyi, editor do «Sarawak Tribune», demitiu-se e foi chamado ao Ministério de Segurança Interna. Na África do Sul, uma organização muçulmana conseguiu que o Supremo Tribunal de Joanesburgo proibisse vários jornais de reproduzir os «cartoons» Î Ilustração de Simanca, Brasil É feio cuspir no prato de quem nos ajudou S EREMOS incapazes de defender as nossas causas de forma civilizada? Mais uma vez, caímos nos piores exageros e deixámo-nos arrastar para a barbárie. Nos territórios palestinianos libertados pelos acordos de paz de Oslo, foi queimada a bandeira da Noruega, país amigo dos árabes e que tanto ajudou os palestinianos, financeira e politicamente. Foi a Noruega que lançou as negociações de paz, quando a Fatah e Arafat estavam isolados na cena internacional, devido ao estúpido apoio à invasão iraquiana do Kuwait [1990]. Foi este país que fez Arafat sair do seu refúgio na Tunísia e do asilo no Iémen, depois do apoio à catastrófica aventura de Saddam Hussein. Claro que protestamos com veemência contra as ofensas ao Profeta ou a qualquer convicção espiritual ou religiosa. Mas temos de repudiar as ofensas à identidade dos povos, à sua dignidade e aos seus símbolos nacionais. Poderíamos ter-nos portado de maneira civilizada, encarregando um escritório de advogados de levar o caso aos tribunais. O único efeito das ameaças proferidas por alguns grupos terroristas foi prestar um serviço ao Governo israelita. Este queria vingar-se do Executivo norueguês desde que alguns dos seus membros apelaram ao boicote aos produtos israelitas, em protesto contra a situação dos palestinianos. Meu Deus! Vemo-los cuspir no prato e a ignorância varrer tudo quanto foi construído. Vamos deixar que, mais uma vez, a estupidez dite o nosso futuro? Os palestinianos não aprenderam nada com as amargas lições do passado. Ainda não estamos fartos de batalhas à Dom Quixote? Dawood Al-Basri, Elaph (excertos), Londres A conspiração contra o Islão continua N ÃO me espanta que cerca de 50 dinamarqueses se tenham convertido ao Islão nos últimos dias. Basta ver 1500 milhões de muçulmanos cerrar fileiras em torno de Maomé, que a oração e a salvação estejam com ele, para se perceber que ele é extraordinário. Na medida em que penso que a História não é casual e que há uma conspiração sionista contra árabes e muçulmanos, cultivo a dúvida — que, segundo Descartes, conduz à verdade. Duvido que a difusão dos desenhos seja obra do acaso. Julgo que se inscreve na campanha há muito organizada contra o Islão, que tem retransmissores a nível oficial, desde que a extrema-direita tomou o poder nos EUA, que Sharon tomou de assalto a mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, e que por todo o lado se observa a ascensão dos extremistas. Não acredito que tenham sido os muçulmanos a cometer os atentados do 11 de Setembro, à míngua de provas irrefutáveis. Também não estou convencido de que tenham cometido os atentados de Londres, Madrid, no Iraque, em Amã, etc. Mas a hipótese existe e prejudica a imagem do Islão; permite aos que procuram argumentos contra o Islão dizer que esta religião preconiza a violência. Não excluo que aqueles atentados possam ter sido cometidos por muçulmanos, mas nem por isso desculpo os inimigos do Islão, como não excluo que possam ter sido eles a organizá-los, para acusarem os muçulmanos, justificando as suas agressões. Riyadh Niâssan Agha, Al-Ittihad (excertos), Abu Dhabi COURRIER INTERNACIONAL 27 EDIÇÃO PORTUGUESA TODO-O-TERRENO Fazer o jogo... ARA mim, ateia, religião é ópio. Poderia ridicularizar crentes, deuses ou profetas de qualquer religião, valendo-me da liberdade de expressão. Mas não o faço. Porque a tolerância democrática me impõe respeito por quem não pensa como eu. E por simples bom ANA GOMES senso: a História mostra que a religião incendeia, porquê atiçar mais conflitualidade? Marcada, mesmo sem querer, pela matriz judaico-cristã, vivi laicamente na Genebra calvinista, na Londres anglicana, no shinto-budismo de Tóquio, na babilónia nova-iorquina e no maior país muçulmano. E foi na Indonésia que mais respeito ganhei por quem se assumia como crente: percebi como é muito séria e consequente a devoção, como são mais apertados os laços familiares e de entreajuda social prescritos religiosamente. Percebi também como a ignorância do Islão, a insensibilidade e preconceitos de superioridade ocidentais tinham perversas consequências, transformando em agravos de fé ressentimentos políticos e culturais contra colonizadores e apoios externos de regimes opressivos. Indignei-me com líderes incapazes de demarcarem a sua religião de actos terroristas perpetrados em nome dela; e admirei a coragem de outros que denunciavam o anti-islamismo da AlQaeda e Bin Laden e o seu principal exportador, o «wahabismo» saudita. Foi também na Indonésia que apreendi como é injusto e contraproducente estigmatizar todos os muçulmanos e o Islão pelas interpretações mais reaccionárias deste. Por isso, há meses, no Parlamento Europeu, empenhei-me (e consegui, com apoio socialista) em combater uma tentativa da direita espanhola para incluir num relatório sobre o combate ao terrorismo na UE a noção de «terrorismo islâmico». Que não existe, assim como não existe «terrorismo católico» na Irlanda. Existem, sim, terroristas que se proclamam defensores de religiões e causas respeitáveis para perpetrar ignominiosos crimes. Os «cartoons» publicados num jornal da extrema-direita racista e xenófoba da Dinamarca lembraram-me as caricaturas nazis contra judeus. Arrepiou-me a displicência do Governo de direita daquele país, invocando pretensa neutralidade para recusar distanciar-se de propósitos insultuosos, tornando assim cidadãos e empresas alvo da revolta no mundo islâmico (veja-se, em contraste, o exemplo de demarcacação dos rabinos-chefes de França e Reino Unido). Uma revolta de que ainda não conhecemos todas as consequências — e já está a morrer gente. Porque a Dinamarca se tornou a face duma Europa ultrajante para milhões de muçulmanos. Muitos europeus desmemoriados (portugueses incluidos), a pretexto da liberdade de expressão e do laicismo, trataram de empolar o insulto generalizado e fazê-lo galgar fronteiras. Em ominosa sinergia com fundamentalistas a quem, nesta conjuntura política, convem cavalgar a indignação, extremar a violência e aprestar a próxima vaga de ataques terroristas. Quem se empenha em concretizar a profecia do «choque de civilizações», como os fundamentalistas de todos os quadrantes, deita mão à xenofobia e à ofensa de sentimentos religiosos. Quem o justifica, a qualquer pretexto, inclusive o da liberdade de expressão, faz o jogo dos terroristas. P