História, memória e sofrimento Aula 3 Na aula de hoje, daremos

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História, memória e sofrimento
Aula 3
Na aula de hoje, daremos sequência à nossa discussão a respeito das relações
entre memória e consciência através do comentário de certos textos de Freud. O
primeiro deles é Rememorar, repetir, perlaborar¸ de 1914. Este deslocamento em
direção a Freud, isto após uma aula sobre as relações entre consciência e memória em
Descartes visa mostrar o tamanho do caminho trilhado entre um momento e outro da
experiência moderna. Se vimos como consciência e memória são dissociadas em
Descartes devido, entre outras coisas, ao impacto de uma noção instantaneista de tempo,
em Freud veremos as consequências da definição da memória como a própria essência
do psiquismo. Em Freud, a consciência está em luta constante para unificar sua
experiência no tempo através da capacidade de síntese da memória. Daí porque a
operação fundamental do processo analítico será, para Freud, a rememoração. Pois
rememorar, como veremos, não será apenas lembrar, coligir imagens de eventos
passados como quem abre um arquivo. Rememorar será reinscrever continuamente um
passado que nunca passa por completo, que interfere no presente e no futuro. Que tal
operação torne-se o eixo fundamental da vida psíquica só pode ser compreendido se
lembrarmos que:
Para a psicanálise, a memória não é apenas uma faculdade ou função do
intelecto através da qual a mente registra, retém e deve lembrar-se de
experiências, eventos e objetos. Para ela, a memória tem algo a ver com
separação, perda, luto e restituição, trazendo geralmente consigo um sentido de
nostalgia, especialmente quando envelhecemos1.
Ou seja, a memória tem a ver com a elaboração de experiências de forte característica
dissociativa, como a perda, a separação e as formas de luto. Experiências que não
podem ser simplesmente esquecidas por estarem marcadas com forte carga de
investimento afetivo em objetos não mais presentes. No entanto, há de se perguntar
sobre o tipo de unidade temporal que a memória é capaz de compor, o que ela produz
em nossa experiência do tempo para que separações e perdas possam ser integradas sem
serem completamente esquecidas. O que significa, neste contexto, exatamente
“elaborar”?
Rememorar
Tentemos compreender este ponto através da leitura do nosso texto. Freud inicia
o texto lembrando o desenvolvimento do método psicanalítico: da catarse e da hipnose à
associação livre. Com a catarse, a rememoração e a abreação eram os dois processos
fundamentais de cura. Já através da associação de idéias, tratava-se de vencer as
resistências à rememoração através do trabalho de interpretação analítica e sua
comunicação ao paciente. O desdobramento da técnica de associação de idéias levará
Freud a não centrar a interpretação no desvelamento de “momentos ou problemas
determinados” ligados à situações traumáticas, mas em analisar a atual “superfície
psíquica” do paciente centrando a ação do analista na análise das resistências.
LOEWALD, Hans; “Pespectives on memory”, In: Colected Papers and monographs, Hagerstown:
University Publishing Group, 2000, p. 148
1
Trabalhadas as resistências, o próprio analisando traria os incidentes e associações
esquecidas.
Se o trabalho de preencher as lacunas da memória permanece o mesmo, algo
muda na concepção de rememoração. No interior do método catártico e da hipnose,
rememorar era colocar-se novamente em um passado que não se confundia com a
situação presente. Passado que podia ter sido realmente vivido ou que podia ser este
“passado sem vivência” da fantasia. Já na técnica baseada na interpretação e na
transferência, rememorar será outra coisa.
Para entendermos melhor este ponto, lembremos como Freud estabelece, no
texto, uma dicotomia fundamental entre repetir e rememorar. Dicotomia que se justifica
se levarmos em conta que, neste contexto, para Freud, repetir é basicamente uma forma
de esquecer (tal com os atos falhos, lapsos, lembranças encobridoras etc.). Esta forma
de esquecer própria à repetição estaria, à sua maneira, vinculada à transferência. Tudo
se passa como se estas imagens que colonizam a relação médico-paciente presentes na
relação transferencial acabassem por encobrir, marcar com o selo do esquecimento algo
de fundamental para a própria compreensão da doença. Pois, neste caso, ao invés de se
lembrar de certos complexos patogênicos e traços patológicos, o sujeitos os repetia sob
a forma de ação. “Ele não o reproduz como lembrança (Erinnerung), mas como ação,
ele repete isto, naturalmente sem saber que ele repete”2. Tudo se passa como se,
parafraseando Marx, o paciente não soubesse o que faz. Por exemplo, ele não diz que se
lembra ter sido insolente diante da autoridade paterna, mas ele age desta forma no
interior da transferência e diante de seu analista. Na verdade, ele se encontra diante de
uma “compulsão de repetição” que será trabalhada de maneira mais detalhada no texto
Para além do princípio do prazer, de 1921.
Isto permite a Freud afirmar que a transferência é, na verdade, um fragmento da
repetição e que a repetição não é outra coisa que a transferência de um passado
esquecido, seja transferência para a figura do analista, seja em qualquer outro domínio
da situação presente. Desta forma, a repetição aparece como um mecanismo psíquico de
fixação em uma situação passada que impede a verdadeira elaboração do passado. O
neurótico não é, assim, aquele preso nas armadilhas da memória. Na verdade, ele é
alguém incapaz de rememorar. Neste sentido, o manejo da transferência estará
intimamente ligado à análise das resistências do paciente a rememorar. Isto leva
psicanalistas como Otto Fenichel a afirmar que: “as resistências distorcem as conexões
verdadeiras. O paciente entende mal o presente em função do passado; e então, em vez
de recordar o passado, esforça-se sem reconhecer a natureza da forma por que atua, por
reviver o passado e vivê-lo mais satisfatoriamente do que viveu na infância”3.
Tudo se passa assim como se valesse para Freud a afirmação crítica de Deleuze:
"Repete-se mais seu passado na medida em que dele menos se lembra, que se tem
menos consciência de dele se lembrar – Lembrem, elaborem a lembrança para não
repetir”4. Esta é uma das razões pelas quais Freud exortava seus pacientes, por exemplo,
a não tomarem nenhuma decisão importante, ou seja, a não agirem enquanto estivessem
em análise. Pois em situação de análise, toda ação seria uma repetição transferencial
(seja dentro da análise ou fora dela). Freud sabe que a repetição transferencial não é
desprovida de riscos. Ela normalmente significa a agravação dos sintomas no interior do
tratamento. Mas esta agravação deve ser acompanhada de uma modificação na relação à
doença. Até então, ela fora vista como algo a ser esquecido ou combatido sem demora.
Agora, ela se transformou em um parte do próprio doente que deve ser ouvida por
2
FREUD, GW XIII, p. 129FENICHEL, Otto; Teoria psicanalítica das neuroses, São Paulo : Atheneu, 2004, p. 25
4
DELEUZE, Difference et répétition, Paris: PUF, 1969,
3
conter elementos fundamentais para o redirecionamento de sua vida ulterior. Há uma
dimensão de mensagem nas repetições. Na verdade, a psicanálise reconheceria três
formas de acesso ao passado: a repetição, os sonhos – com suas deformações de
materiais de vivências e a associação livre. Nos três casos o acesso se confronta com
resistências que devem ser vencidas pela interpretação.
Freud apela então à transformação da repetição em rememoração através da
liquidação da transferência. Isto exige outra transformação, esta que permite ao paciente
passar da neurose ordinária à neurose de transferência, ou seja, um estado intermediário
entre a saúde e a vida real que permite a constituição de uma espécie de “doença
artificial” mais acessível à intervenção médica. Esta doença artificial é o resultado da
atualização transferencial das situações passadas.
Assim, se a repetição transferencial é um processo importante, ela não deixa de
fazer apelo a uma elaboração reflexiva suplementar que apenas a noção de
rememoração parece poder garantir. Elaboração que realiza o desejo freudiano de: “ter
uma visão de conjunto (überblicken) conseqüente, compreensível e completa da história
da doença”. Pois: “se o objetivo prático do tratamento consiste em suprimir todos os
sintomas possíveis substituindo-os por pensamentos conscientes, há ainda um outro, o
objetivo teórico que é a tarefa de curar o doente de todos os males da memória
(Gedächtnisschäden)”5. Objetivo teórico que nos lembrar como: “a memória não é uma
propriedade entre outras do psiquismo, ela é a própria essência do psiquismo”6.
Por fim, Freud lembrará que a tomada de consciência das resistências não
implica, necessariamente, em mudança no padrão de comportamento. Por isto, ele
insiste em acrescentar um terceiro processo à repetição e à rememoração, a saber, a
perlaboração (durcharbeiten). Tal perlaboração implica a repetição reiterada do mesmo
processo de tomada de consciência, como se fosse questão de reconstruir
paulatinamente os processos e situações apresentados pela rememoração.
Em um texto de 1937, Construções em análise, Freud complementa sua teoria da
rememoração insistindo que o trabalho da memória é feito tanto pelo analisando quanto
pelo analista. Reconhecendo limites ao trabalho da memória operado pelo analisando,
Freud dirá que cabe ao analista operar como um arqueólogo, reconstruindo um passado
“pré-histórico” cuja memória do analisando não é capaz de alcançar. Estas construções
criadas pelo analista devem ser validadas através da convicção do analisando e da
possibilidade de induzir novas associações graças a novas lembranças, mesmo que se
tratem de lembranças encobridoras. Normalmente, tais construções estão vinculadas ao
esquema geral de experiências fornecido pela teoria psicanalítica com Complexo de
Édipo e da sexualidade infantil.
O que significa rememorar?
Mas até aqui não temos clareza da razão pela qual a constituição narrativa de
uma história poderia ter a força de desencadear processos de cura. Tentemos
compreender melhor este ponto. Sabemos como Freud afirma que, no interior do
processo analítico: “O desejado é uma imagem (Bild) fiel e completa em suas partes
essenciais dos anos esquecidos pelo paciente”7. Esta imagem fiel seria importante não
exatamente por permitir a totalização da história subjetiva, mas por desvelar as
conexões causais que fizeram, de certos acontecimentos aparentemente banais,
acontecimentos traumáticos. Acontecimentos impossíveis de serem simbolizados,
5
FREUD, Fragmentos de um caso de histeria, p. 175
DERRIDA, Jacques ; L’écriture et la différence, Paris: Seuil, p. 299
7
FREUD, Construções em análise, p. 44
6
impossíveis de serem integrados à consciência. Pois a compreensão (no sentido de
integração à consciência, internalização presente no termo alemão Erinnerung) da rede
causal à qual o sintoma pertenceria seria a condição para a suspensão de seu efeito.
Sobre tais acontecimentos traumáticos, Freud utiliza constantemente uma
linguagem fisicalista a fim de falar a respeito de quantidades de excitação, de energia
libidinal que o sujeito não teria condição de dominar através da ligação em
representações. Conhecemos, por exemplo, o que Freud diz a respeito deste
acontecimento traumático em um de seus casos célebres: O homem dos lobos. Neste
caso de neurose obsessiva, Freud crê identificar uma cena primitiva (Urszene) vista pelo
paciente quando na idade de um ano e meio: a cena de seus pais transando três vezes
como lobos, ou seja, com sua mãe de quatro. Esta cena não pode ser simbolizada (por
ser incompreensível ao bebê). No entanto, devido àquilo que ela envolve (respiração
ofegante, gemidos, aparência de violência, etc.), ela mobiliza uma quantidade de
energia libidinal que não fica ligada a representação alguma e que só será integrada a
posteriori. O que fica são traços mnésicos fragmentados que, de uma certa forma, serão
posteriormente reinscritos.
De fato, sabemos que o sentido do caráter traumático da cena é, na verdade, uma
construção a posteriori. É através da associação da cena a acontecimentos posteriores (a
escuta de contos onde lobos devoram crianças, a ameaça de castração enunciada quando
o paciente se excita vendo uma empregada limpando o chão de quatro etc.) que o
sentido de seu caráter traumático é construído à ocasião de um sonho angustiante, feito
quando o paciente tinha quatro anos de idade. Sonho onde lobos observam o paciente na
cama. Freud faz questão de lembrar que, neste caso, a cena primitiva é ativada
(Aktivierung), e não rememorada8. Sua ativação estaria agora vinculada ao trabalho de
ligação entre a cena primitiva e a ameaça de castração. Neste sentido, a fantasia da cena
primitiva tem, agora e de maneira retroativa, o sentido de testemunho da introjeção do
erotismo adulto pela criança9.
Na verdade, a rememoração propriamente dita ocorre no momento em que o
paciente narra a cena do sonho em situação transferencial de análise. Há assim três
momentos distintos : o fato tal como se apresenta à idade de um ano de meio com sua
inscrição fragmentária, a ativação traumática através de um sonho feito com quatro anos
que fornece à percepção um contexto a posteriori de significação e a rememoração no
interior da análise, quando o paciente tem 29 anos. Esta temporalidade retroativa é
fundamental para mostrar como o trauma ocorre quando o acontecimento se repete uma
segunda vez. Ele é um acontecimento em dois tempos. No entanto, tal acontecimento se
repete na dimensão onírica, mostrando assim seu caráter eminentemente fantasmático.
Não escapa a Freud o paradoxo que consiste em dizer que o sentido do
acontecimento traumático só pode ser posto à ocasião da rememoração no interior da
análise. Pois tudo se passa como se fosse possível negligenciar a distância entre a
segunda e a terceira fase temporal. Esta negligência é, no entanto, o resultado de uma
idéia fundamental de Freud. Ela consiste em afirmar que a memória e o ato de
rememorar não são o desvelamento de situações originárias, primitivas, mas a
Vale aqui o que dizem Laplanche e Pontalis: “De um lado – primeiro tempo – a sexualidade literalmente
irrompe de fora, penetrando por difração em um ‘mundo de infância’ presumido inocente no qual ela vem
se enquistar como um acontecimento bruto sem provocar reação de defesa. O acontecimento não é em si
patogênico. Por outro lado, no segundo tempo, o impulso pubertário, tendo desencadeado o despertar
fisiológico da sexualidade, produz desprazer e a origem deste desprazer é procurado na lembrança do
acontecimento primeiro, acontecimento de fora transformado em acontecimento de dentro, ‘corpo
estranho’ que desta vez irrompe no seio mesmo do sujeito” (LAPLANCHE, Jean et PONTALIS, J-B;
Fantasme originaire, fantasmes dês origines, origines du fantasme, Paris: Hachette, 1985, pp. 32-33).
9
Ver LAPLANCHE e PONTALIS, ibidem, p. 37
8
reinscrição de processos passados a partir das pressões do presente. Na verdade, a
rememoração já é uma forma de cura porque é maneira de reorganizar o presente a
partir da integração das opacidades do passado (e muito há ainda a ser dito a respeito do
que pode significar, neste contexto, “integração”).
Memória e fantasia
Sobre a natureza desta opacidade, insistamos em alguns pontos suplementares,
para além do problema ligado à quantidade de excitação. Podemos dizer que uma das
fontes da opacidade dos acontecimentos traumáticos vem do fato deles nunca terem sido
completamente presentes. Já a simples ativação fantasmática da cena primitiva implica
saída da dimensão dos fatos presentes a uma consciência individual. Pois, para Freud,
fantasias são processos ligados à filogênese da espécie. O fato das fantasias repetirem-se
com os mesmo conteúdos em uma multiplicidade de indivíduos, ou seja, o fato das
fantasias não serem a dimensão da singularidade insubstituível, mas da repetição
constante, do “esquema”, demonstra, para Freud, que elas são marcas de
acontecimentos transmitidos através de gerações. Por isto, podemos mesmo dizer que
não existem fantasias individuais ou, se quisermos, não existem indivíduos no interior
das fantasias. Há apenas “fantasias sociais”, processos trans-individuais e supratemporais que insistem no interior de indivíduos. Através das fantasias, o sujeito se
confronta a camadas temporais que não se esgotam na dimensão da simples experiência
individual. Podemos mesmo dizer que fantasias são uma dimensão fundamental da
experiência da historicidade, pois elas são os espaços de atualização das promessas de
felicidade que mobilizaram aqueles que me antecederam, que mobilizaram a história
dos desejos desejados. Por isto, fantasias são camadas temporais que sempre serão
relativamente opacas por nos colocar diante do problema relativo à significação do
desejo de outros que nos precederam, mas que nos constituíram10. Como dirá Deleuze :
“e mesmo nosso amor de criança pela mãe repete outros amores de adultos diante de
outras mulheres, um pouco como o herói de Em busca do tempo perdido reencena, com
sua mãe, a paixao de Swann por Odette”11. Que a rememoração seja,
fundamentalmente, rememoração de traços mnésicos reinscritos no interior de fantasias,
eis algo que não pode nos deixar indiferentes.
Mesmo assim, há uma “questão de método” que permanece: um fato empírico
(ou ainda uma “verdade histórica”) capaz de provocar forte quantidade de excitação
deve estar na base da composição fantasmática, deixando-se inscrever como traços
mnésicos. Da mesma maneira, Freud afirmava, sobre as fantasias de ameaça de
castração, que muito provavelmente fatos desta natureza ocorreram no passado e
deixaram traços na herança filogenética da espécie. Para Freud, delírios e fantasias são
construções a partir de verdades históricas. No entanto, ao menos no primeiro caso, o
fato empírico não fornece princípio positivo algum de significação, mas apenas uma
espécie de questão aberta produzida pelo desvelamento da contingência de certos
acontecimentos e que deverá posteriormente ser integrada às construções simbólicas do
sujeito. Como se “fatos traumáticos” não tivessem, no fundo, peso determinista algum.
Eles apenas abrem questões.
Isto fica muito claro se lembrarmos que esta redução do fato a traços que devem
ser recompostos no interior de fantasias onde o peso de dramas sociais se faz sentir abre
as portas para Freud insistir em uma maneira peculiar, própria à análise, de reconquistar
10
Não por acaso, Lacan aproxima o tempo da fantasia ao tempo mítico. A este respeito, ver LACAN, O
mito individual do neurótico,
11
DELEUZE, Gilles; Différence et repetition, Parsi: PUF, 1969, p. 28
o passado. Pois, através da temática da construção da memória pelo analista, Freud
mostra como a rememoração deve ser compreendida como processo produtivo de
composição.
De fato, Israel Rosenfield mostrou como Freud havia reconhecido o caráter
fragmentário e ambíguo das imagens da memória. Pois elas não são arquivadas como
impressões de coisas. Seu caráter fragmentário é o que permite, inclusive, os processos
de deslocamento e de condensação presentes nas formações oníricas. Não é a ausência
de contexto que faz o sonho retrabalhar a lembrança, sobredeterminá-la. Antes, as
próprias lembranças foram armazenadas como fragmentos. Neste sentido, a atualização
de uma lembrança nunca poderá ser a mera apresentação de um conteúdo previamente
arquivado. Ela é a construção de um sentido a partir das exigências do presente.
Derrida, em um texto maior sobre o conceito freudiano de memória, alude a isto ao
afirmar:
O texto consciente não é uma transcrição porque ele não teve que transpor, que
transportar um texto presente em outro lugar, sob a forma do inconsciente (...)
Não há verdade inconsciente a encontrar como se ela estivesse escrita em outro
lugar. Não há texto presente e escrito em outro lugar, que daria lugar, sem ser
modificado, a um trabalho e a uma temporalização (esta pertencendo, se
seguimos a literalidade freudiana, à consciência) que lhes seria exterior e
flutuaria em sua superfície12.
Sendo assim, se não há texto presente em outro lugar, é porque a memória não é
um arquivamento, mas uma contínua e incessante interpretação. Pois as lembranças não
são imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em contínuo
remanejamento. Não se trata de unidades discretas perpetuando-se através do tempo. O
que temos é um sistema dinâmico que, a partir do presente, integra traços mnésicos em
relações que se constituem a posteriori. Isto levou Ronselfield a afirmar, sobre Freud:
“Na verdade, nós todos recriamos o passado, e uma repetição não deve ser
compreendida como um ato simbolizando um acontecimento que já ocorreu, mas como
uma história global de esforços desdobrados para reaprender o passado, história situada
em um contexto dado, em um certo momento, que é este própria à repetição” 13. É com
isto em mente que podemos dizer que o passado nunca foi um “presente passado”. Ele
é, na verdade, a dimensão no interior da qual temos a experiência de sermos habitados
por questões abertas, questões que vem de um tempo virtual. Freud afirma que nunca
vivemos inteiramente no presente. A história do desejo de um sujeito mostra que essa
frase também vale para o passado (“O passado nunca foi completamente presente”).
No entanto, aqui se coloca a questão de saber em até que ponto a rememoração
não seria, no fundo, algo próximo de um processo de produção clínica de fantasias. Por
que não seria a construção, de uma certa forma, a fantasia do analista? Pois não seria
este caráter reconstrutivo da rememoração a prova mais clara do poder sugestivo da
cura analítica, tal como ela é pensada por Freud? Em seu texto sobre Construções na
análise, Freud lembra que, de uma certa forma, delírios e alucinações são construções a
partir de “verdades históricas” vividas pelo sujeito. E o que dizer das construções
analíticas?
De fato, o papel geral da construção na articulação da história do desejo nos
indica que a história individual já é um modo de participação em um universo
simbólico-social produtor de experiências de sentido. Como se a história do indivíduo
12
13
DERRIDA, ibidem, p. 313
ROSENFIELD, L´invention de la mémoire, p. 90
repetisse, à sua maneira, a história geral do símbolo. Neste sentido, a especificidade
freudiana consistiria em lembrar como tal história geral do símbolo só é legível como
modulação do complexo de Édipo e das teorias da sexualidade infantil O que poderia
nos levar a compreender a clínica freudiana como um modo de reorganização
disciplinar, a partir do complexo de Édipo, dos modos de relação do sujeito ao seu
próprio corpo e ao seu desejo.
De sua parte, Freud afirma que as construções em análise não seriam simples
sugestões, elas teriam verdade objetiva por serem capazes de levar o sujeito a produzir
novos processos de rememoração que desenvolvem a construção. Esta estratégia
argumentativa ligada à eficácia do processo de desenvolvimento de associações de
idéias pode parecer frágil. Afinal, não é apenas uma construção analítica que se
demonstra profícua no desenvolvimento de associações de idéias. Por outro lado, sua
eficácia poderia estar ligada simplesmente ao reforço de esquemas de socialização do
desejo que constituem sujeitos.
A não ser que seja possível mostrar como, no interior da experiência intelectual
freudiana, podemos encontrar a idéia de que a rememoração, ao atualizar fantasias e
complexos, abre o espaço para reinscrições singulares do que se inscreveu como traço
mnésico. Reinscrições singulares porque confrontam o sujeito com o caráter
radicalmente instável das significações presentes em fantasias e complexos. Uma
instabilidade que não poderia dissolver fantasias e complexos, mas desestabilizar suas
significações e efeitos. Neste sentido, a rememoração não seria exatamente o
desvelamento de estruturas causais que atuam previamente. Ela estaria muito mais
próxima da possibilidade de dissolução de causalidades fechadas através de reinscrições
contínuas. Há uma performatividade própria a todo ato de rememorar.
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