AnaMiranda Combate

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33º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
GT 5 – CONFLITUALIDADE SOCIAL, ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA E
SEGURANÇA PÚBLICA
Combate à intolerância ou defesa da liberdade religiosa: paradigmas em conflito na
construção de uma política pública de enfrentamento ao crime de discriminação étnicoracial-religiosa
Ana Paula Mendes de Miranda
Professora do Departamento de Antropologia (UFF), Pesquisadora do Núcleo
Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP-UFF), Dra. Antropologia (USP)
Julie Barrozo Goulart
Bacharelanda em Ciências Sociais (UFF), Bolsista PIBIC, Pesquisadora do Núcleo
Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP-UFF)
Introdução
Este paper apresenta resultados preliminares da pesquisa de campo sobre formas
de administração institucional de conflitos que tem como lócus as atividades da
Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. Nosso objetivo é analisar o modo pelo
qual as denúncias de agressão e discriminação sofridas por praticantes de religiões de
matriz afro-brasileira têm sido encaminhadas à Polícia. Nesse primeiro momento, optouse por acompanhar o recebimento das denúncias no âmbito da Comissão, tendo em vista
que a Polícia Civil designou um delegado exclusivamente para realizar esse atendimento,
cuja função inicial era fazer um levantamento de casos para uma avaliação posterior
sobre a possibilidade de criação de uma “delegacia especializada para repressão ao crime
de discriminação étnico-racial-religiosa”. Embora a delegacia seja uma demanda da
Comissão observa-se que não há consenso sobre a proposta entre os diferentes segmentos
que participam do debate.
Esta pesquisa é parte integrante do projeto “A crença na igualdade e a produção
da desigualdade nos processos de administração institucional dos conflitos no espaço
público fluminense: religião, direito e sociedade, em uma perspectiva comparada”,
coordenado pelo Professor Roberto Kant de Lima, que conta com financiamento da
FAPERJ e com uma bolsa de iniciação científica do CNPq.
Ressalta-se que a pesquisa não tem como objeto o estudo das religiões, mas sim
a manifestação de conflitos de natureza étnico-religiosa no espaço público a partir da
instalação da Comissão, em 2008.
A Comissão
Em março de 2008, representantes de religiões de matriz afro-brasileira criaram
a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, no Rio de Janeiro 1 , como forma de
reação ao fato de traficantes neopentecostais da Ilha do Governador terem expulsado
casas de umbanda e candomblé do local. Foram noticiados na imprensa vários “ataques”2
1
Movimentos semelhantes também ocorreram na Bahia, em São Paulo e no Rio Grande do Sul nos últimos
anos (SILVA, 2007).
2
O termo ataque está sendo utilizado, pois representa a forma pela qual as investidas públicas de
neopentecostais são designadas pelos grupos atingidos. Sabemos que do ponto de vista dos neopentecostais
esses atos podem ser considerados como “evangelização”, “libertação” etc.
2
aos templos, o que provocou a indignação de candomblecistas e umbandistas, levando-os
a organizar uma manifestação pública na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro (ALERJ). Fátima Damas 3 , presidente da Congregação Espírita Umbandista do
Brasil (CEUB), foi uma das principais responsáveis pela criação da Comissão, que se
reúne até hoje na sede da CEUB, no bairro do Estácio, na região do Centro. De acordo
com um dos membros, a formação se deu com o objetivo de combater o preconceito
religioso utilizando os meios legais para fazer com que fosse cumprida a Constituição no
que diz respeito à liberdade de credo.
Também fizeram parte da formação da Comissão entidades do movimento negro
cujos responsáveis são religiosos, como o Centro de Tradições Afro-Brasileiras
(CETRAB), o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), Centro de
Integração da Cultura Afro-brasileira (CIAFRO), Associação Movimento Afro-religioso
(IRMAFRO) e Coletivo de Entidades Negras (CEN).
A Comissão surgiu então para combater atitudes discriminatórias contra os
cultos de matriz afro-brasileira, entendidas como formas de manifestação de “intolerância
religiosa”, bem como pressionar às autoridades a tomar medidas em relação aos ataques.
A primeira atividade da Comissão foi a realização de uma audiência pública na
Assembléia Legislativa. No entanto, como os deputados e demais autoridades não
compareceram, estando presente apenas um representante do Secretário de Segurança, os
religiosos presentes decidiram realizar um protesto na escadaria da Assembléia, de onde
saíram em caminhada pelas ruas do Centro da cidade.
A partir dessa manifestação espontânea surgiu a ideia de criação de uma
Caminhada pela “liberdade religiosa”, que se tornou uma passeata realizada na orla da
Praia de Copacabana, na qual as pessoas levam cartazes e faixas com suas reivindicações
de “liberdade religiosa” ou de “combate à intolerância”. Os participantes são convidados
a usar roupas brancas ou as roupas características de sua religião, o que possibilita a
identificação de vários outros segmentos religiosos e étnicos. Segundo os organizadores,
a data da Caminhada foi escolhida através de uma consulta ao Ifá, um oráculo do
candomblé através do qual os orixás se manifestam. A I Caminhada foi realizada no dia
20 de setembro de 2008 e reuniu aproximadamente 20 mil pessoas. Já a II Caminhada
ocorreu esse ano, na mesma data, e reuniu cerca de 80 mil pessoas segundo os
3
Como se trata de um debate público optou-se por manter os nomes dos integrantes da Comissão.
3
organizadores.
Em junho de 2008, quatro jovens integrantes da Igreja Geração de Jesus Cristo
invadiram e depredaram o Centro Espírita Cruz de Oxalá, no bairro do Catete. A
depredação do templo foi noticiada em vários jornais e virou tema de debate, o que deu
visibilidade à Comissão. Nesse momento, o babalawo Ivanir dos Santos havia se tornado
interlocutor 4 da Comissão por meio de uma escolha dos membros da Comissão em uma
de suas reuniões. Desde então a Comissão tem promovido manifestações visando à
discussão de propostas de políticas públicas. A ampliação do debate se deu com a
inclusão de representantes de outras religiões levando a constituição do Fórum de
Diálogo Interreligioso, em novembro de 2008, após a I Caminhada. O objetivo era
proporcionar a discussão de propostas de “políticas públicas de Estado” reunindo os
membros da Comissão, representantes de outros grupos religiosos, da sociedade civil,
convidados pela Comissão, e do poder público 5 .
Neste encontro foi instituído um grupo para redigir uma Carta de Princípios do
Fórum de Diálogo Interreligioso, que definiu seu objetivo como sendo o de proporcionar
um espaço de discussão de propostas de políticas públicas voltadas para a garantia da
“liberdade religiosa” dos vários segmentos religiosos.
A partir desse momento passou a ser cada vez mais claro que a agenda política
oscilava entre dois eixos: o combate à intolerância e a defesa da liberdade religiosa, o que
será discutido posteriormente.
Em 20 de novembro de 2008, Dia da Consciência Negra, representantes do
Fórum e da Comissão tiveram uma reunião com o Presidente Luís Inácio Lula da Silva,
no Rio de Janeiro. Neste encontro, foi entregue ao Presidente uma carta pedindo para que
ele intercedesse junto aos Poderes Judiciário e Legislativo para “fazer valer as leis que
garantem a liberdade religiosa”, em face aos frequentes atos de “intolerância religiosa”.
A carta entregue ao Presidente também solicitava a promoção de algumas ações
como a construção de um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa; a
4
O termo interlocutor é utilizado pelos membros da Comissão para reforçar que não há um presidente, mas
alguém que fala em nome da Comissão.
5
O Delegado Henrique Pessôa, da Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil, e Alexandro Reis,
Subsecretário de Políticas para Comunidades Tradicionais, que representava a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
4
aplicação efetiva da Lei 10.639 6 em todas as escolas do Brasil, com punição àquelas que
não se enquadrarem na Lei imediatamente; e a realização do censo nacional das casas de
religião de matriz africana, através das Secretarias Especiais de Inclusão Racial e Direitos
Humanos e Ministério de Assistência Social, em parceria com universidades em cada
estado. A carta foi assinada pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, pela
Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro e pela Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil.
Dando continuidade à discussão do Plano Nacional de Combate à Intolerância
religiosa foi realizado um evento no dia 3 de abril de 2009, no Rio de Janeiro, organizado
pela SEPPIR. A reunião contou com representantes de diferentes religiões 7 e de vários
estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pará., que levantaram
alguns eixos para serem os norteadores na construção do plano, a saber:
•
a formação da sociedade brasileira;
•
os marcos legais (legislação nacional e internacional);
•
a informação e o respeito à liberdade de crença;
•
a garantia dos direitos à liberdade de crença (direitos civis,
previdenciários, etc);
•
justiça e segurança pública (acesso à justiça, proteção e defesa);
•
educação e cultura religiosa;
•
a contribuição da sociedade civil;
•
o papel do Poder Executivo;
•
a relação entre a discriminação religiosa à noção de violência psíquica;
•
a inclusão da defesa da liberdade de crença e/ou religião (com a
finalidade de contemplar os ateus);
•
os meios de comunicação.
A incorporação de representantes da SEPPIR deu ao debate um caráter oficial.
Assim, a proposta de construção de um “plano de política nacional de combate à
intolerância religiosa” incluiria, entre outras propostas, demandas ao poder público, em
6
Alterou a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelecia as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”.
7
Estavam presentes representantes de mulçumanos, candomblecistas, umbandistas, kardecistas, católicos,
presbiterianos, judeus e da comunidade Bahá’i.
5
especial, à Polícia Civil, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário por reconhecimento
de direitos e pela criminalização dos ataques e agressões étnicas e raciais. Na ocasião foi
apresentada a proposta de uma delegacia especializada em crimes étnicos e raciais,
tomando como modelo as delegacias da mulher, com o objetivo de não ser apenas um
órgão “que acolha o crime e puna o agressor, mas que também trabalhe no sentido da
prevenção e educação”, segundo as palavras do Ministro Edson Santos, durante a
abertura do Fórum. Para tanto deveria contar com “especialistas” da antropologia,
psicologia e serviço social, que atuariam para orientar as pessoas, sejam elas vítimas ou
agressores.
O Ministro defendeu a criação da delegacia especializada alegando que a falta
de agentes públicos qualificados e treinados para acolher as denúncias de racismo, acaba
fazendo com que não haja punição para os autores dessa agressão. A ideia é que os casos
deveriam ser enfrentados de modo a contemplar o princípio constitucional que tipifica o
racismo como crime inafiançável e imprescritível. Assim, a ação que antes era uma
demanda local passaria a ser tratada como um problema nacional e o plano seria
discutido por representantes de várias religiões em todos estados do país. Atualmente,
também fazem parte da Comissão a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro,
representada pelo Delegado Henrique Pessôa e, mais recentemente, o Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, com a Juíza Sandra Kayat, e a Procuradoria-Geral de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, com o Promotor Marcos Kac.
Pelo que se pode observar no âmbito da Comissão há uma relação entre o
“movimento negro” e as “religiões de matriz africana”, de modo que estas religiões sejam
vinculadas a uma herança cultural. A Comissão caracteriza a umbanda, as várias nações do
candomblé e as demais “comunidades de terreiro” como religiões cuja origem é africana,
tendo sido edificadas pelos negros africanos escravizados no Brasil e reproduzidas pelos
seus descendentes. Essas religiões são consideradas como uma forma de resistência da
cultura dos negros e seus descendentes, que sempre estiveram à margem da população no
Brasil e à margem das políticas públicas. Pode-se perceber que estão presentes as idéias de
“busca por raízes” e retorno a uma ancestralidade, que são produzidas por meio de
narrativas identitárias.
6
Alguns membros da Comissão vão às reuniões utilizando as “guias” 8 ou roupas
características do candomblé ou de umbanda. Quando não há a identificação pela
vestimenta, pode-se observar como outra forma de construção de identidade religiosa o
uso de expressões em yorubá. Essa atitude os identifica como candomblecistas ou
umbandistas que, por sua vez, remete a uma ideia de africanidade. As referências à
religião e a uma africanidade se misturam no que diz respeito à construção tanto das
identidades individuais quanto da identidade da Comissão como grupo.
A referência à negritude, à escravidão, à africanidade aparecem, portanto, como
recursos discursivos de que lançam mão os atores sociais para legitimar perante o Estado
suas reivindicações por direitos. Tal estratégia pode ser influenciada por diversos fatores,
que não serão aqui explorados, mas julgamos relevante destacar a legitimação que os
documentos oficiais podem ter nesse processo. Nesse sentido, lembramos que o
reconhecimento de uma dívida do Estado para com os africanos e afro-descendentes está
presente na Declaração da Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em 2001, em Durban:
“Reconhecemos
que
o
colonialismo
levou
ao
racismo,
discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e que
os Africanos e afro-descendentes, os povos de origem asiática e
os povos indígenas foram vítimas do colonialismo e continuam a
ser vítimas de suas conseqüências. [..] Ainda lamentamos que os
efeitos e a persistência dessas estruturas e práticas estejam entre
os
fatores
que
contribuem
para
a
continuidade
das
desigualdades sociais e econômicas em muitas partes do mundo
ainda hoje” (apud SILVA, 2009).
Assim, o discurso construído pela Comissão reafirma que as religiões de matriz
africana foram historicamente perseguidas no Brasil, tendo sofrido com proibição de
culto, prisões de adeptos e apreensão de objetos. Outro ponto importante é que a
8
É uma forma de designação dos colares de contas, ou fio de contas, que representam objetos de
identificação dos fiéis aos orixás e o seu uso como manifestação importante nessa vinculação. As guias
não são, portanto, adornos corporais, mas símbolos religiosos, já que um iniciado no candomblé ou
umbanda o tomará como um objeto pleno de significados, que pode ser “lido”, possibilitando identificar a
raiz, o orixá da cabeça e o tempo de iniciação, entre outros dados da vida espiritual de quem o usa.
7
Comissão propõe a adesão de outras religiões ao movimento, mas defende a necessidade
de um protagonismo das “religiões de matriz africana” na luta, baseada nessa idéia de
que as religiões de matriz africana foram sempre perseguidas no Brasil e são mais
suscetíveis aos ataques. Tal perspectiva tem sido questionada por representantes de
outras religiões, no entanto não tem havido até o momento uma pressão ou mobilização
explícita para disputar esse lugar.
A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa acusa as Igrejas
neopentecostais, em especial, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de atentar
contra a liberdade religiosa, ameaçar a democracia e de estar “enterrando a possibilidade
das comunidades de terreiro, estabelecidas nas favelas e comunidades carentes,
garantirem o mínimo de dignidade em sua prática religiosa que a Constituição Federal
lhes faculta” 9 . Segundo representantes da Comissão, membros dessas igrejas perseguem,
ameaçam, agridem e demonizam as “religiões de matriz africana” e também outras
religiões.
Para justificar suas críticas, a Comissão utiliza-se das leis brasileiras, enfocando
o direito constitucional à liberdade de crença e de culto e a lei Nº 7.716, de cinco de
janeiro de 1989, conhecida como Lei Caó 10 , que define os crimes resultantes de
preconceito de raça ou de cor 11 , especialmente seu artigo 20:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.” (apud SILVA, 2009).
De acordo com a Comissão, sua luta é “constitucional em defesa da democracia”
e se baseia em leis brasileiras e tratados internacionais assinados pelo Governo do Brasil,
9
Relatório de Casos Assistidos e Monitorados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa no
Estado do Rio de Janeiro e no Brasil enviado à Comissão de Direitos Humanos da ONU (2009).
10
Caó é o apelido do deputado Carlos Alberto de Oliveira, do PDT-RJ, que integrou a Assembléia
Nacional Constituinte de 1988. O jornalista foi autor do inciso 42, do Artigo 5º, que tipificou o racismo
como crime inafiançável e imprescritível. O item foi aprovado em separado e contou com mais votos que
toda a Constituição. Até então, o racismo era uma contravenção, com constava da Lei Afonso Arinos, de
1951.
11
A lei Caó foi alterada posteriormente pelas Leis nº 8.081/90 e 9.459/97, que inseriram os crimes de
discriminação por etnia, religião ou procedência nacional.
8
como o Pacto de San José da Costa Rica 12 . Um dos argumentos utilizados pela
Comissão é o de que as ações de “intolerância religiosa” praticadas por igrejas
neopentecostais são uma ameaça à democracia, ao Estado democrático de direito e um
ponto de partida para o fascismo.
De acordo com o interlocutor da Comissão, babalawo Ivanir dos Santos, tudo
começou na África, a população mundial nasceu na África e mesmo a figura do Criador é
africana. De modo que as religiões seriam oriundas do mesmo lugar, por isso não haveria
nenhum motivo para discriminação, a diferença entre as religiões seria a forma como
cada uma se relaciona com este Criador. Dessa forma, não haveria motivos para a
“intolerância religiosa”.
A proposta da Comissão é lutar contra a “intolerância religiosa”, relacionar as
atitudes de intolerância ao fascismo, aos atos antidemocráticos. Em paralelo a isso, o
outro argumento utilizado é a luta pela “liberdade religiosa”, que, ao contrário da
intolerância, é abordada como parte dos princípios da democracia. A “liberdade
religiosa” é também relacionada à “liberdade de expressão”, como forma de mobilizar
mesmo as pessoas que não são religiosas, a reivindicação é pelo “direito de acreditar e de
não acreditar”. Segundo a Comissão, a proposta não é a de uma “guerra santa”, mas pela
possibilidade de optar por uma crença (ou optar por não crer) e não ser desrespeitado ou
perseguido por isso.
O combate à intolerância
Embora a Comissão afirme que não pretende entrar numa “guerra santa”, é
possível identificar no discurso dos seus componentes uma preocupação em reagir aos
“ataques” dos neopentecostais, o que é considerado uma reação aos “casos de
intolerância”. Esses casos não constituem o foco de nossa análise nesse paper, porém
12
Refere-se à Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) que corresponde a um tratado
internacional entre os países-membros da Organização de Estados Americanos, que foi subscrita durante a
Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, na cidade
de San José da Costa Rica, e entrou em vigência a 18 de julho de 1978. Os Estados ao assinarem a
Convenção se “comprometem a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre
e pleno exercício a toda pessoa que está sujeita à sua jurisdição, sem qualquer discriminação”,
estabelecendo como meios de proteção dos direitos e liberdades dois órgãos: a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil ratificou o Pacto em 1992.
9
julgamos ser importante classificá-los a partir de alguns dos critérios sugeridos por
Vagner Gonçalves da Silva (2007: 10), a saber:
1)
agressões realizadas no âmbito de cultos das igrejas neopentecostais e
seus meios de divulgação;
2)
agressões físicas contra terreiros e/ou seus membros;
3)
ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras em espaços públicos.
Assim, os “ataques” têm sido direcionados a atingir a imagem pública das
religiões de matriz afro-brasileira, o que tem como consequência uma dupla reação: o
desejo de não aceitar as ofensas e reagir, seja denunciando os casos individualmente, seja
buscando apoio jurídico de forma organizada 13 .
Nesse sentido, é preciso analisar o que significa a tolerância? Será admitir que o
outro está numa situação totalmente assimétrica? Como é possível tolerar a fé de outrem
quando o grupo que ataca tem a intenção de afirmar uma superioridade?
“A palavra ‘tolerância’ vincula-se à raiz indo-europeia tol.tel.tla do que derivam
tollere e tolerare. Tollere significa levantar, retirar, às vezes, destruir; tolerare significa
levar, suportar, às vezes combater. Assim, a ideia de guerra e de esforço subjazem à
noção de tolerância” (SAHEL:1993: 12).
O tema da tolerância faz parte da construção simbólica da modernidade
ocidental, representando uma tentativa de tratar por meio de acordos públicos a cisão e a
diferença que os grupos sociais exibem por meio de seus conflitos. Portanto, a tolerância
representa apenas a concordância provisória no reconhecimento tácito de uma questão
objetiva, a diferença, sem que, no entanto, isto represente uma alteração das preferências
subjetivas, ou seja, o reconhecimento legítimo da diferença.
A consagração do tema no mundo ocidental pode ser exemplificada por John
14
Locke , para quem o “problema da intolerância” resultava da confusão entre os
domínios civil e religioso. De modo que caberia à força política intervir no seu
funcionamento ou regulamentar os cultos apenas quando estes se revelassem atentatórios
ao direito das pessoas ou ao funcionamento da sociedade. Em sua obra Carta a respeito
da tolerância [1689], Locke estabelece as bases para o princípio da laicidade do Estado
13
Segundo Vagner Silva (2007), essas religiões não têm uma tradição de organização em torno de
representações coletivas, mas sim de dissidências e contraposições.
14
A obra do filosofo inglês teve como marca a contestação do absolutismo e a defesa de uma autoridade
limitada pelo consentimento do povo, para eliminar o risco do despotismo e suprimir a doutrina do direito
divino.
10
ao indagar “até onde se estende o dever de tolerância, e o que se exige de cada um por
este dever?” (1964:17) e afirmar que “pessoa alguma tem o direito de prejudicar de
qualquer maneira a outrem nos seus direitos civis por se de outra igreja ou religião”
(1964:18).
Para ele, a questão não poderia ser tratada do ponto de vista das religiões, já que
todas seriam ortodoxas com respeito a si próprias e considerariam as outras errôneas e
hereges. Nesse sentido, o poder civil não deveria conceder autoridade a nenhuma religião
e do mesmo modo não poderia permitir sua interferência nos assuntos civis. Porém, para
Locke não era suficiente que os religiosos se abstessem de qualquer forma de
perseguição. Seria necessário o reconhecimento da plena liberdade.
Assim, se aspiração de um grupo a ter sua diferença reconhecida muitas vezes
pode estar relacionada a uma opressão sofrida no passado e/ou no presente, tolerar a fé de
outrem significaria uma atitude política, pois se trata de assegurar as garantias
individuais. E a questão das garantias para Locke nada teria a ver com a religião, mas sim
com a definição do bem público, que deveria ser a medida de toda legislação.
Ressalta-se que o próprio Locke deixa claro como é difícil lidar com o tema na
prática. Na Carta, ele afirmou que não se poderia tolerar “de modo algum os que negam
a existência de Deus. Para o ateu não têm autoridade, promessas, acordos, juramentos,
que são os laços da sociedade humana” (1964:53). Assim, apesar da doutrina da
tolerância postular que a liberdade de consciência seria um direito natural do homem, o
ateísmo não era aceito como argumento para a defesa da tolerância, pois não se poderia
duvidar da existência de Deus.
“Não é a diversidade de opiniões (que é inevitável) mas a recusa
de tolerância para com os que professam opinião diversa (que se
poderia permitir) que deu origem a todas as bulhas e guerras que
se têm manifestado no mundo cristão por causa da religião”
(1964: 61).
11
O que estava em jogo na construção de uma “doutrina da tolerância” era a
perseguição 15 às religiões e a tentativa de construção de um acordo entre Igreja e Estado
onde cada um deveria se restringir dentro de seus limites. A igreja deveria cuidar da
salvação das almas e o Estado deveria atender o bem-estar mundano. A partir da reforma
protestante consolidou-se a ideia da separação entre Estado e Igreja como um marco
importante para a definição e exercício de direitos. Constituiu-se, assim, uma forma de
pensar a relação entre religião e política que, mesmo nunca tendo sido plenamente
realizada, levou à construção do princípio da liberdade de consciência como base do
Estado de Direito e da democracia na Europa.
Assim, a separação entre Estado e Igreja teria contribuído como uma das
diferenciações mais importantes para pensar a modernidade porque resultou na distinção
entre a esfera pública do Estado e a esfera privada da sociedade (HABERMAS, 1984).
Nesse sentido, a secularização significou a perda de poder e de validade das visões
tradicionais de mundo, que ao serem questionadas pelos novos critérios de racionalidade
instrumental, foram transformadas em convicções éticas e reestruradas segundo o direito,
correspondendo à exterioridade da coerção dos comportamentos, enquanto a religião
atuaria num nível interno de orientações, baseada na moral.
A liberdade religiosa
A temática da liberdade religiosa tem sido considerada um dos pontos
fundamentais da constituição da democracia no mundo ocidental. Historicamente, a
liberdade religiosa é abordada como o primeiro direito civil reconhecido a partir dos
séculos XVI e XVII, na Europa (GIUMBELLI, 2003). Dele decorre o direito à
privacidade, fundamento do liberalismo moderno.
Para Paula Montero (2006), a religião se tornou uma questão privada porque foi
excluída da esfera do Estado, mas segundo ela esse processo não é suficiente para
explicar o problema das relações entre Igreja e Estado, já que não se pode reduzi-lo a
uma questão jurídico-institucional. Ela ressalta que é preciso analisar como esse processo
resultou efetivamente numa privatização da religião na esfera doméstica, tendo em vista
15
A ideia de perseguição pode ser associada a diversas práticas: incomodar alguém, oprimir intensamente,
tomar providencias judiciais, injuriar, restringir sua liberdade, banimento, prisão, ameaçar à vida, etc.
(MALEK, 2004).
12
que esse processo não teria ocorrido no caso brasileiro, onde na constituição de nosso
Estado moderno como esfera política
“houve um retraimento do catolicismo para o espaço social, produziu-se
um intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações
culturais de matriz não-cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se
publicamente. Assim, no processo de constituição do Estado brasileiro
como esfera separada da Igreja Católica, manifestações variadas de
“feitiçaria”,
“curandeirismo”
e
“batuques”
só
puderam
ser
descriminalizadas quando, em nome do direito à liberdade de culto,
passaram a se constituir institucionalmente como religiões” (MONTERO,
2006: 49-50).
Assim, a separação entre Estado e Igreja no Brasil não teria resultado na retirada
das religiões do espaço público, mas sim numa “expressão pública variável conforme o
contexto e as suas formas específicas de organização institucional” (MONTERO, 2006:
50). Ressalta ainda que a conformação das práticas religiosas teve relação direta “com o
processo de constituição do Estado Republicano e às leis penais e sanitárias que visavam
disciplinar o espaço público” (op. cit. 51).
Como demonstrou Yvonne Maggie (1992), os processos são instrumentos bons
para pensar a regulamentação da acusação e do aprisionamento dos "feiticeiros" e, como
processos inquisitoriais, socializadores de práticas individualizantes e particularizantes.
Os processos analisados pela autora foram movidos contra aqueles acusados de praticar
ilegalmente a medicina ou o curandeirismo, no início do século XX, considerando os
artigos 157 (espiritismo) e 158 (curandeirismo) do primeiro código penal brasileiro
republicano (1890) 16 . Assim, Maggie conclui argumentando que, como o totemismo, o
feitiço possibilita a classificação, operando categorias de pensamento, mas,
diferentemente do totemismo, é um operador lógico que constrói classes, posicionandoas num sistema desigual e hierárquico, quando se cria um campo em que grupos sociais
são colocados em relação e hierarquizados.
Na prática, a liberdade religiosa no Brasil teve que conviver com um modelo
16
O Código Penal de 1940 menciona os delitos de charlatanismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284).
13
jurídico que necessitava distinguir , a partir das práticas da população, quais teriam
direito à proteção legal – a religião – e quais eram práticas consideradas anti-sociais, que
deveriam ser perseguidas. Outra característica importante desse momento foi a de separar
os atos civis dos atos religiosos católicos (matrimônio, batismo, sepultamento, educação),
originando uma disputa em torno de privilégios constitucionais que beneficiavam
exclusivamente a Igreja Católica. Aliás, a Igreja Católica no Brasil nunca se posicionou
contra a laicidade do Estado e nem se negou a conviver com outros cultos, desde que não
fossem colocados no mesmo patamar (GIUMBELLI, 2003).
Para Giumbelli (2002), o debate político que vigorou no Brasil em torno da
liberdade religiosa girava em torno de qual liberdade a Igreja Católica desfrutaria e não
sobre a possibilidade de expressão de cultos. Assim, o processo de institucionalização
que se desencadeou a partir daí foi marcado pela necessidade dos diferentes grupos
religiosos de demonstrar ao Estado que não representavam ameaças à saúde e à ordem
pública.
Foi no Estado Novo 17 que as práticas repressivas tornaram-se mais intensas e
dirigidas aos grupos de matriz afro, tendo sido associadas ao crime e ao uso de drogas,
que reforçaram a vinculação da discriminação étnica à perseguição religiosa.
Nesse sentido, pode-se concluir que:
“o pluralismo religioso, convencionalmente compreendido como
tolerância à diversidade de cultos e como respeito à liberdade de
consciência, se constituiu às avessas no Brasil: não foi fundamento
do Estado moderno, mas seu produto” (MONTERO, 2006: 63).
De modo que a regulação do espaço “religioso” no Brasil se deu no contexto da
instauração da República, formalmente vinculada a um arranjo liberal, segundo o qual o
Estado não teria vínculos oficiais e formais com nenhuma religião e que permitiria total
autonomia de criação e funcionamento às igrejas. Porém, na prática, esse período
correspondeu a uma série de controvérsias que questionavam o estatuto religioso de
certos grupos, que passaram a depender de dispositivos específicos de regulação, em
17
Nesse momento surge no Rio de Janeiro a Inspetoria de Entorpecentes e Mistificação, voltada à
repressão ao uso de tóxicos e à prática de sortilégios (MONTERO, 2006: 54). Na Bahia, uma lei estadual,
n. 3.079 de 29/12/1972, obrigou os cultos afro-brasileiros a se registrar na Delegacia de Polícia da
circunscrição até 1976 (SILVA JR, 2007: 310).
14
especial, as intervenções policiais e legais, bem como as abordagens intelectuais e
jornalísticas (GIUMBELLI, 2003).
Portanto, é necessário compreender como a demanda por liberdade religiosa tem
se delineado no âmbito da Comissão e do Fórum, a partir das formas tradicionais de
administração institucional de conflitos pela polícia e pela justiça, em especial, no que se
refere ao tratamento recebido pelas as religiões de matriz afro-brasileira, que
historicamente foram alvo de perseguições e denúncias de práticas criminosas.
Tal perspectiva tem como objetivo problematizar como as manifestações de
reclamos por direitos de cidadania se dão frente às instituições representativas da
segurança e justiça num Estado que se proclama laico.
Consideramos como hipótese que a crença, ou a descrença, na eficácia de uma
delegacia especializada para lidar com os conflitos interreligiosos necessita ser analisada
considerando que as instituições estatais se estabelecem como mais um entre os atores,
tornando-se parte do conflito e não uma instância que possibilita a regulação da ordem e
do espaço público de forma consensualizada (KANT DE LIMA, 2008). Tal fato impede a
constituição de um espaço público, que deveria abrigar as diferentes disputas de
interesses de acordo com regras explícitas e universais.
Neste sentido, a demanda pela criação de uma delegacia especializada nos
parece um caso importante para refletir como as instituições que buscam controlar os
usos e recursos presentes no espaço público dialogam com as diferenças observáveis na
sociedade, do mesmo modo que possibilita discutir como o confronto de identidades
sociais, constituídas no domínio da religião, articulam a projeção de uma identidade
pública que possa ser assumida por todos, como sujeitos de direito, possibilitando a
incorporação de uma ética comum de convivência em meio aos conflitos de interesses
inerentes às disputas do campo religioso.
A luta por direitos começa na polícia?
Após o ataque ao Centro Espírita Cruz de Oxalá, a Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa procurou a Chefia de Polícia, na época representada pelo Delegado
Gilberto Cruz, que após ouvir as questões apresentadas pela Comissão, designou,
15
informalmente, o Delegado Henrique Pessôa 18 para atuar junto à Comissão e acompanhar
as denúncias de agressão, perseguição, coação ou qualquer ameaça por motivo religioso.
Diante da designação do Chefe de Polícia, o Delegado passou a acompanhar as reuniões
semanais da Comissão. Na primeira reunião, o Delegado percebeu que a imagem da
Polícia Civil era “a pior possível”, pois ela era vista como órgão repressor que, até a
década de 1940, atacava legalmente os cultos de religiões afro-brasileiras. Ele então
percebeu que a imagem negativa da Polícia vinha de uma conduta histórica de
perseguição aos candomblés, ao samba e à capoeira.
Dessa forma, a proposta inicial de trabalho do Delegado foi direcionada a
melhorar a imagem da Polícia e reverter o reconhecido “débito histórico” em relação às
religiões de matriz africana, que lideravam o movimento contra a intolerância religiosa.
O Delegado passou a pensar como a Polícia como instituição poderia contribuir,
mas notou duas dificuldades que o impediam de avançar no trabalho. Em primeiro lugar,
percebeu que os policiais tendem a minimizar o problema da discriminação religiosa.
Como acreditam que crimes, tais como o tráfico, os homicídios e os roubos deveriam
receber maior atenção, acabam tratando as queixas de intolerância religiosa que chegam
às delegacias, como algo a “ser resolvido em casa”. Consequentemente, não é raro que
essas ocorrências sejam “bicadas” 19 .
“Não foram poucos os casos em que, estando na delegacia vítimas
de
intolerância
religiosa,
restaram
estes
simplesmente
convencidos pelo plantonista de que aquilo não passava de
besteira, que a instituição policial tem tanta coisa mais relevante
para tratar que isso não poderia sequer ser registrado!”
((PESSÔA, 2009: 223)
Outro obstáculo está relacionado à aceitação do respaldo jurídico no que se
refere ao enquadramento dos casos na Lei 7.716 (Lei Caó), que mesmo sendo federal, há
várias polícias estaduais que se recusam a utilizá-la, alegando que o artigo 208 do Código
Penal não se encontra revogado em face da Lei Caó (PESSÔA, 2009).
18
19
Na época o delegado era chefe da Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil (CINPOL).
“Bicar” a ocorrência significa que o policial se recusou a fazer o registro.
16
De acordo com o Delegado Henrique Pessôa, a Lei Caó apesar de ser um
instrumento legal apropriado, vem sofrendo forte resistência, é algo que marcou época,
que marcou um posicionamento do Estado em relação à discriminação racial e que é mal
recebida no interior da instituição. Segundo ele, a discriminação é um “problema que
resiste, persiste...”
Em um levantamento preliminar das ocorrências de “intolerância religiosa”
havia praticamente incidência zero. A partir disso, o Delegado Henrique Pessoa fez uma
pesquisa com os registros de ocorrência e identificou que, geralmente, apesar de haver
motivação religiosa, a discriminação religiosa normalmente era tipificada como ameaça,
dano ou injúria. Quando um Centro Espírita era invadido e as imagens quebradas, por
exemplo, era considerado apenas o dano material e não se levava em conta o aspecto
religioso do crime, como ocorreu no caso do Centro Espírita Cruz de Oxalá.
Ao aprofundar seu levantamento descobriu que no Sistema Delegacia Legal 20 ,
onde basta selecionar o crime numa lista de títulos para o registro de ocorrência, não
havia referência nenhuma à discriminação religiosa. Isso porque o texto da Lei Caó era o
original de 1989, sem as alterações sofridas posteriormente, referentes à questão
religiosa, acrescentado em 1990. Como a Lei atualizada não havia sido colocada no
sistema da Polícia, não era possível registrar um crime de discriminação religiosa com
base na Lei Caó.
Uma das medidas adotadas foi solicitar a correção do Sistema, o que ocorreu em
novembro de 2008. Após isso, a Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil realizou
um workshop para cento e setenta policiais civis com o objetivo de falar sobre a
discriminação religiosa e sobre a Lei Caó.
O Delegado Henrique Pessôa tem se posicionado contra a criação de uma
delegacia especializada, por acreditar que isso poderia enfraquecer a delegacia de bairro e
servir de argumento para o policial “bicar a ocorrência”. Optou por acompanhar as
ocorrências que fossem devidamente encaminhadas e intervir quando houvesse um
problema de registro inadequado. Atualmente, toda vez que uma pessoa não consegue
registrar um caso de “intolerância religiosa”, procura a Comissão que repassa o caso para
20
Trata-se de um sistema informatizado no qual os crimes existentes no Código Penal e na legislação
extravagante já estão capitulados, foi criado em 1999 como parte de um conjunto de reformas realizadas
na Polícia Civil do Rio de Janeiro (PAES, 2006; MIRANDA, PAES & OLIVEIRA, 2007).
17
o delegado. Então, ele procura a autoridade policial, pessoalmente, para “conversar”
sobre a discriminação religiosa, sobre a Lei Caó.
De acordo com o Delegado, normalmente, os policiais procurados por causa de
um registro inadequado de um crime de “intolerância religiosa” eram receptivos e
demonstravam desconhecimento sobre o assunto. Mas o delegado reforça que seu
objetivo não era impor sua visão, a proposta era de dialogar com os policiais, devido ao
fato de que a hierarquia policial não poder interferir na análise do fato que será
registrado. O policial que recebe o relato da ocorrência tem liberdade para analisá-lo e
tipificá-lo, enquadrando-o na lei cabível, de acordo com sua interpretação.
O Delegado Henrique Pessôa orientou a que, primeiramente, se buscasse
acompanhar os registros dos casos, porque isso seria importante até para poder pleitear a
construção de uma delegacia especializada. Segundo ele, “antes de qualquer coisa,
devemos permitir que o tema, de tamanha complexidade, seja objeto de conhecimento
geral para que, depois, caso a incidência assim determine, venha a ser enfrentada por
uma unidade especializada, que surgirá num momento de maturidade institucional para
com o tema” (PESSÔA, 2009: 244).
Atualmente, a Comissão encaminha para Delegado Henrique Pessôa os casos
de “intolerância religiosa” que chegam a ela, no entanto a delegacia especializada ainda é
um pleito da Comissão, apesar de não ter estado na pauta de discussões das reuniões
ordinárias nos últimos meses.
Embora a Comissão não esteja, momentaneamente, discutindo a implantação
da delegacia, é possível perceber que há discordâncias com relação ao assunto. Alguns
membros da Comissão acreditam que a existência de uma delegacia especializada
dificultaria ainda mais o registro das ocorrências de discriminação religiosa, pois sua
existência seria uma justificativa para outras delegacias não registrarem os casos. De
modo que ocorrências em locais distantes da delegacia especializada não seriam
registradas.
Em abril de 2009, houve a mudança da Chefia de Polícia, por causa disso, o
Delegado Henrique Pessôa deixou de ser chefe da CINPOL e representante informal da
Polícia Civil na Comissão. Isso desencadeou uma crise na Comissão. Um de seus
membros chegou a dizer que Polícia Civil nunca havia sido parceira da Comissão, que o
apoio era dado pelo Delegado Henrique Pessôa, apenas uma pessoa dentro da instituição.
18
A preocupação da Comissão nesse momento era com o acompanhamento dos casos já
registrados e com o registro dos outros que viessem a acontecer.
A Comissão decidiu procurar pelo novo Chefe de Polícia, Allan Turnowsky,
para conversar sobre a Comissão e o trabalho que era realizado por Henrique Pessôa, mas
conseguiu falar apenas com seu Chefe de Gabinete, Fernando Paes de Albuquerque,
reafirmando que o objetivo era defender o diálogo da instituição com a Comissão.
Posteriormente, o Chefe de Polícia, nomeou o Delegado Henrique Pessôa como
representante da Polícia Civil na Comissão, oficializando essa participação.
Neste ano, o Delegado Henrique Pessôa participou do curso de formação de
inspetores da Polícia Civil, ministrando aulas específicas sobre “intolerância religiosa”.
No curso foi abordada a legislação vigente sobre o tema e foram qualificados 500 futuros
policiais.
O Delegado continua recebendo os casos de “intolerância” através da Comissão,
acompanhando os registros, dialogando com os policiais sobre a “intolerância religiosa”
e sobre a Lei Caó, agora oficialmente designado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, a
qual foi a primeira instituição pública a vincular-se formalmente à Comissão.
Atualmente, o delegado afirma que a instituição se orgulha de ser “referência
nacional no combate à intolerância religiosa”. Acredita que a instituição é a única no país
que utiliza a Lei Caó para fazer os registros desse tipo de ocorrência, tendo em vista uma
Recomendação da Secretaria de Segurança Pública, de 13 de junho de 2008, o que teria
colocado a Polícia Civil do Rio na “dianteira da abordagem adequada às questões
relativas à intolerância”.
Considerações finais
Por enquanto a Comissão parece estar satisfeita com o atendimento personalizado
que tem recebido por parte da Polícia Civil nos últimos meses e pela atenção que as
autoridades do Judiciário têm dedicado à Comissão. Isto se deve ao fato de ter ocorrido
mudanças em relação ao registro dos casos, como a própria correção do Sistema Delegacia
Legal, embora ainda não haja uma política institucional em relação ao crime de
discriminação étnico-racial-religiosa. De modo que a prática policial rotineira permanece
inalterada, com os policiais julgando quais casos devem ou não ser registrados.
19
Todavia alguns integrantes do grupo têm clareza de que a demanda por
reconhecimento de direitos não se esgota aí. É possível se observar diversas
manifestações que expressam que o reconhecimento legal não é considerado suficiente
para lidar com os “ataques”, já que não dão conta da dimensão do insulto moral
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002: 31), ou seja, reconhecem que as agressões sofridas
não são facilmente definidas pela linguagem tradicional do direito e tampouco expressam
o ressentimento das vítimas.
O debate em torno da criação da delegacia especializada revela-se, portanto,
mais como um importante elemento político no sentido de dar visibilidade ao tema do
que uma crença na capacidade da instituição policial de atender adequadamente aos
“casos de intolerância”.
Assim, a própria temática da tolerância torna-se um problema, tendo em vista
que expressa uma ideia de aceitação supostamente harmoniosa da diferença, quando na
realidade oculta a possibilidade de constituição de um espaço democrático onde o direito
de exercer ou não uma opção religiosa seja efetivamente respeitado. Na realidade, o
debate em torno do “combate à intolerância” está intimamente associado ao pleito pela
atuação da Polícia, no que se refere ao registro das ocorrências segundo a Lei Caó, aos
“ataques” deixarem de ser tratados como irrelevantes e à punição dos agressores. Ao
mesmo tempo em que a noção de tolerância coloca na discussão a ideia de que os
neopentecostais deveriam aceitar a diferença e cessar as agressões
Dessa forma, é preciso esclarecer que a tolerância não tem relação direta com a
demanda por liberdade religiosa, cujo paradigma está associado à secularização do
Estado e ao reconhecimento da pluralidade de manifestação de expressão, o que inclui o
direito a não ter religião.
Nesse sentido, a constituição de um espaço público fica comprometida quando
se percebe que a crítica ao Estado é seguida de demandas por acesso aos mesmos
privilégios de que se beneficiariam os católicos e evangélicos.
“Eles [os evangélicos] têm concessão de TV, mas nós não temos.
Também não há doação do Estado para construir candomblé”.
Portanto, o que se vê no caso do Estado brasileiro não é um processo de
secularização, ou seja, a subtração da dominação de símbolos religiosos do espaço
20
público, mas sim uma competição entre os grupos religiosos para ver quem conseguirá
obter mais vantagens do Estado. Tal comportamento se insere numa prática tradicional
no Brasil de buscar a expansão de privilégios, enquanto supostamente se discutem os
direitos (KANT DE LIMA, 2008).
Apesar disso julgamos importante destacar que a estratégia de mobilização
popular que a Comissão desempenhou ao longo de quase dois anos representa uma
inovação no debate sobre liberdade religiosa, na medida em que traz a população para o
debate público o que, segundo Augusto Kirchhein (apud ORO, 2005: 439), jamais
aconteceu no país, posto que a discussão sobre laicidade e liberdade religiosa ficou
sempre restrita às elites eclesiásticas, políticas e intelectuais.
A mobilização é importante também se considerarmos que as “perseguições”
que atualmente as religiões de matriz africana têm sofrido são formas de reação fascistas,
tal como sugere o babalawo Ivanir dos Santos. Para ele, se não houver reação, a
perseguição atingirá a todos os grupos religiosos. A construção de uma relação da
“intolerância religiosa” com o fascismo representa a ideia de que a democracia é o
principal alvo da intolerância religiosa
Ressalta-se que a associação da intolerância ao fascismo significa nesse
contexto sua caracterização como um fenômeno político, marcado pela humilhação e
vitimização dos grupos perseguidos. A mobilização para a realização da Caminhada na
Praia de Copacabana tem funcionado como um meio de visibilidade para religiões afro
de modo a reagir contra os ataques e tentar desconstruir a imagem de grupo ameaçado ou
que cultua demônios. A Caminhada tem funcionado, portanto, como uma estratégia de
afirmação da identidade desses grupos e de demanda por reconhecimento de direitos.
Acontece que esse argumento também tem sido utilizado por grupos
evangélicos, em especial, os integrantes da Igreja Universal (IURD), que também se
consideram afetados pela ausência de liberdade religiosa no Brasil. Segundo Giumbelli
(2002), a IURD foi quem reacendeu o debate sobre liberdade religiosa ao assumir um
discurso de vitimização e denunciar privilégios de outras religiões. Porém, essas
denúncias foram contrapostas às acusações de uso da atividade religiosa para esconder
atividades econômicas ilícitas.
Desse modo, as controvérsias em torno do combate à intolerância e a defesa da
liberdade religiosa devem ser analisadas não pela disputa em torno do lugar de “vítima”,
já que a história das religiões é marcada por disputas e perseguições, mas sim a partir da
21
perspectiva de explicitação do confronto entre identidades sociais, constituídas no
domínio das religiões, que acabam por negar a condição de sujeitos de direito ao
confundir os conflitos de interesses inerentes às disputas do campo religioso com a busca
por reconhecimento de direitos no espaço público.
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