1 JESUS CRISTO NO EVANGELHO DE MARCOS SEGREDO MESSIÂNICO – mola dramática do evangelho "Evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus". Como Jesus manifestou que ele era o Cristo, o Filho de Deus ? Lançemos um olhar sobre o itinerário que percorremos. É somente a partir da cruz que temos o direito de dizer que ele é o Cristo. Até lá isso é um segredo. Quando lemos a vida de Jesus, temos uma surpresa: por que não aproveitou ele as declarações dos demônios? No seu lugar, diríamos: "Vede, meus irmãos, o próprio demônio é obrigado a reconhecer que eu sou o Filho de Deus !" É assim que se procedeu muitas vezes no catecismo: "Jesus provou que era Filho de Deus". Provou? Justamente o contrário: ele o ocultou! Talvez o catecismo não seja muito ortodoxo! ... Ou Marcos, diriam alguns. Hoje, um livro como o seu não poderia ser escrito! Jesus oculta que é Filho de Deus. As revelações dos demônios I proclamando-o "Filho de Deus" eram justamente o maior perigo: a revelação antecipada era o melhor meio para lançar a confusão. Em Marcos, o segredo messiânico não é, em primeiro lugar, uma teoria sobre o modo como nasceu a fé, mas a mola dramática do livro. É uma certa teologia: o modo como Marcos vê o desenrolar da revelação de Jesus como Cristo, como Filho de Deus. Este modo de ver é próprio dele. Mateus e Lucas não o seguiram neste ponto. Não se pode, por isso, colocar este problema antes de tudo no terreno dos acontecimentos, perguntando-se, por exemplo: "Por que Jesus quis ocultar sua identidade ?" É necessário perguntar-se primeiro por que Marcos apresenta assim a revelação de Jesus como Cristo e como Filho de Deus. Isso é tanto mais necessário quanto é certo que Marcos insiste no fato de que, muitas vezes, Jesus proibiu que se falasse de seus milagres, e sobre o fato de que também suas palavras ocultavam um segredo. Lemos mal evangelho de Marcos também por causa do hábito. As leituras de pequenos trechos dão uma idéia do que se passa em tal ou tal episódio; esta idéia é mais forte do que o texto que é lido e inconscientemente é projetada nele. É o que acontece muitas vezes é que esta idéia projetada nos veio do evangelho de Mateus, que conhecemos melhor. Por isso, quando se procura seguir o fio do evangelho de Marcos, o resultado é certa desorientação. E quando isto não acontece, provavelmente é porque a leitura não foi feita com muita atenção. Vejamos um exemplo. Temos uma idéia preestabelecida do retrato de Jesus em Marcos. Ouvimos dizer: "Marcos é maravilhoso, suas narrações são sempre vivas, seu evangelho é uma série de 'flashes' de Jesus. Vede-o deitado e cochilando, durante a tempestade. Reparai que ele ressuscita a filha de Jairo, tomando-a pela mão; só ele pensa que ela deve estar com fome: quem volta de uma viagem tão longa como a da morte deve estar faminto. Marcos é assim: suas narrações são feitas com vivacidade, como que à vista dos fatos". Mas, nem tudo é assim! Feitas as contas, constatamos que as "narrações vivas", em cima dos fatos, são poucas em comparação com as outras, esquemáticas e secas. Quando queremos minúcias e um pouco de sentimento para esclarecermos um texto, ele é 2 desencorajante! A fama de Marcos é devida a alguns trechos: se procurarmos em seu evangelho um retrato mais vivo de Jesus, ficaremos desiludi- dos. Porque o Jesus de Marcos é enigmático. Ele tem às vezes atitudes que nos espantam. Diante de não poucos atos e palavras de Jesus, vem-nos a pergunta: que é que ele quer dizer? que é que ele nos quer fazer pensar? Ele nos repete à saciedade que os discípulos não compreenderam nada. Mas quase nunca diz o que eles deviam ter compreendido! O Jesus de Marcos é muito desconcertante e será talvez por isso que ele é tão atraente. Lucas nos dá a impressão de ter compreendido muitas coisas e de no-las sugerir. Marcos nos deixa diante do incompreensível; ele nos apresenta as questões deixando as respostas por nossa conta. Se quisermos familiarizar-nos com ele, devemos estudá-Io como um todo, procurando descobrir qual é a idéia fundamental que dirige o conjunto. Ele reemprega materiais colhidos na comunidade, mas dispondo-os de um modo próprio e é isto que devemos descobrir. Para isso, anotaremos os pequenos pontos nos quais ele insiste e que reaparecem com certa freqüência e leremos seu evangelho do começo ao fim, procurando o que faz a sua unidade. Não é possível estudar uma passagem sem situá-Ia em seu contexto, no conjunto do livro. “Jesus, Cristo, Filho de Deus" Começo do evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus". É assim que começa o livro; não é seu título, mas sua primeira frase. O que co- meça é o Evangelho. Naquele tempo, o Evangelho não era um livro, mas a Boa Nova pregada e acolhida com fé pelos cristãos. Pensemos em Paulo escrevendo aos romanos: "Eu não me envergonho do Evangelho: ele é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê" (Rm 1,16). Isto nos coloca imediatamente numa perspectiva de pregação e de fé. A Boa Nova é pregada e recebida com fé. Trata-se, portanto, da Boa Nova de Jesus, Cristo, Filho de Deus. Deve-se separar Jesus de Cristo porque aqui Cristo e Filho de Deus são dois títulos atribuídos a Jesus. Ainda não nos perguntamos qual é o seu conteúdo. Para o momento, basta-nos saber que se trata de títulos conhecidos de Marcos e de seus leitores. É nesses termos que os cristãos exprimem sua fé em Jesus. Se Marcos coloca estes dois títulos no começo é porque eles são importantes para ele, e será instrutivo marcar onde e como eles reaparecem em seu livro. Notemos desde já um termo: Cristo: uma só vez Jesus é reconhecido como Cristo por um homem, Pedro, logo obrigado ao silêncio (8,29-30); Jesus aprovará esse título somente no decorrer de seu processo ( 14,61-62 ). Filho de Deus: revelado por Deus no batismo ( 1 ,11 ) e na transfiguração (9,7), divulgado pelos demônios (3,11; 5,7), esse título deve permanecer em segredo. Mas, durante seu processo, Jesus o aceita ( 14,61-62), e, aos pés da cruz ele é afirmado por um homem, um pagão (15,39). No batismo, a voz se dirigiu só a Jesus 'Tu és meu Filho amado", em Marcos; não havia nem assistentes nem testemunhos; era uma revelação secreta, só para Jesus. Na transfiguração a palavra divina se dirige aos três discípulos: é uma revelação privada, concedida somente a três testemunhas, ainda uma revelação secreta portanto. Com efeito, ao descerem da montanha, Jesus "ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto até que O Filho do homem tivesse ressuscitado dos mortos" (9,9). Trata-se de um 3 segredo que deve ser mantido até que esteja realizado o programa paixão-ressurreição. O segredo se refere à sua qualidade de Filho de Deus. Debate em torno do titulo “Filho de Davi” No capítulo 10 começa uma nova etapa. Em Jericó (10,46-50), um cego grita: "Filho de Davi, tem compaixão de mim". É outra resposta humana. "Filho de Davi" significa praticamente "Messias", porque ele era esperado da descendência de Davi, pelo menos em certa linha da esperança judaica. É o reconhecimento de Jesus como o descendente de Davi prometido à realeza em Israel. Ele sobe para Jerusalém: alguns poderiam pensar que vai tomar o poder. Por duas vezes o cego o proclama "Filho de Davi"; Jesus não protesta nem impõe silêncio. A entrada em Jerusalém (c. 11) é descrita como uma entrada triunfal, embora talvez bastante modesta; ele demonstra, no entanto, a vontade de certo triunfo; as aclamações estão nesta linha: "Bendito o Reino que vem, o Reino de nosso pai Davi!" Por duas vezes Jesus é reconhecido como o rei davídico que vem tomar posse de seu reino. A discussão sobre o título de "Filho de Davi" se estende por toa permanência de Jesus em Jerusalém, até o anúncio da ruína da cidade. Aqui se manifesta o drama: Jesus entra em Jerusalém como Filho de Davi - e que acontece? Não é recebido! Retira-se então do templo e, na encosta que fica defronte o monte das Oliveiras, anuncia aos quatro primeiros discípulos a ruína de Jerusalém. Revelação privada sobre a sorte da cidade: "a realeza davídica ...não se deve mais contar com ela!" (cap. 13). Toda a sua permanência em Jerusalém é uma espécie de debate em torno do Filho de Davi. A resposta de Jesus Eis agora a pergunta oficial: o interrogatório de Jesus diante do sinédrio. O sumo sacerdote põe a questão de forma solene: 'És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?" (14,61). Encontramos aqui os dois títulos importantes; o de "Filho de Davi", entretanto, desapareceu; a questão está liquidada. "És tu o Cristo, o Filho de Deus?" Em que sentido o sumo sacerdote fez esta pergunta ? Para nós isto não tem importância; o que nos interessa é como ela se situa no andamento do livro. Ela é realmente a questão fundamental, uma vez que emprega os dois títulos da primeira frase do evangelho, esta frase que nos dava antecipadamente a resposta: "Boa Nova de Jesus, Cristo, Filho de Deus".: Aqui está, nesta afirmação da fé cristã, a resposta ao que o sumo sacerdote quer saber. Qual é a resposta de Jesus? Pela primeira vez ele assume claramente esse título: "Eu o sou". Pelo menos em Marcos; em Mateus a sua resposta é menos clara: "És tu que o dizes". Jesus, Cristo, Filho de Deus Jesus aceita, pois, o título de Cristo, de Filho de Deus para designar a si mesmo. Mas se apressa em acrescentar: "Vereis o Filho do homem sentado à direita do Poderoso e vindo com as nuvens do céu” ( 14,62). Recordemos os anúncios da paixão-ressurreição: "É necessário que o Filho do homem sofra muito, seja rejeitado e seja morto, e, depois de três dias, ressuscite”. Agora o processo está em andamento; Jesus está diante de seus juízes; a condenação está próxima. Mas Jesus anuncia o que virá depois. Até onde esse processo vai chegar? “Vereis o Filho do homem sentado à direita do Pai, glorificado junto de Deus, dispondo do poder de Deus e vindo sobre as nuvens do céu para o juízo, para desempenhar o ato que, segundo a teologia judaica, é reservado a Deus". De fato, quem julga é Deus, e Jesus atribui a si as 4 prerrogativas divinas. A palavra que forma um povo O nexo que Marcos estabelece entre o ensinamento e a formação de um povo não é artificial. Estamos diante de um rebanho sem pastor, rebanho disperso; o que vai fazer dele um rebanho organizado é o chamamento que ele vai ouvir. E a primeira atividade que corresponde às necessidades desta multidão é o ensinamento, a palavra capaz de reunir, de congregar este povo. O tema do PASTOR e seus harmônicos A imagem do pastor e do rebanho aparece freqüentemente no Antigo Testamento. Vejamos alguns textos mais significativos. Ezequiel, no começo do exílio na Babilônia (587-538 a.C.) monta um processo contra os responsáveis que guiaram o povo, ou melhor, que o guiaram mal: foram maus pastores que deixaram o rebanho solto. Deus anuncia que ele mesmo vai cuidar das ovelhas: vai tratar das mal nutridas, cuidar das feridas, estabelecer a ordem para impedir que as ovelhas gordas oprimam as fracas. Ezequiel conclui: "Deus as levará para boas pastagens". São associados assim vários temas: o pastor cuida do rebanho, alimenta-o e proporciona-lhe repouso (Ez 34). Os mesmos temas estão no SI 23: "Vós sois meu pastor, ó Senhor; levaisme a descansar em pastagens de relva saudável; conduzis-me para as águas do repouso. ..Preparais para mim uma mesa ..." Os mesmos temas aparecem ainda no cântico de Moisés, quando da saída do Egito: Deus é o pastor que conduz seu povo (Ex 15,13), que lhe fornece a água e o pão, o alimento miraculoso do deserto, que o conduz para o repouso da terra prometida. Assim a figura do pastor atrai facilmente os temas do repouso, do alimento e do chefe que conduz. Esses três temas se reencontram na narrativa de Marcos. Primeiro o do repouso. Ele aparece de modo inesperado, por- que, na verdade, não há descanso! Para os missionários, pelo menos. Ao regressarem da missão, Jesus Ihes diz: “'Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco'". mas, quando chegam ..é para trabalharem afim de proporcionarem descanso à multidão! Humor de Marcos: o descanso, diz ele aos missionários, é para os outros ou para mais tarde. Talvez o descanso escatológico. Manifestação messiânica e segredo messiânico Abordamos agora outro tipo de leitura: não se trata mais, como nos dois parágrafos anteriores, de uma leitura ao nível do meio de origem das narrativas; mas de uma leitura, ao nível da redação de Marcos, do contexto global de seu evangelho. Há quatro milagres, e somente quatro, para os quais Jesus exige o silêncio: o do leproso ( 1,44), o da menina ressuscitada (5,43), o do surdo-gago (7,36) e o do cego de Betsaida (8,26):. Ora, são precisamente estes, com o anúncio da Boa Nova aos pobres, os sinais que Mateus apresenta como prova de que Jesus é o Cristo: "João ouviu falar, na prisão, a respeito das obras de Cristo (isto é, do Messias)" (Mt 11,2). Ele quer saber, por isso, se Jesus é realmente o Messias que deve vir. E Jesus lhe responde afirmativamente, mencionando os 5 sinais considerados pelos judeus como sinais messiânicos, segundo Isaías (Is 26,19; 29, 1819; 35,5-6): "Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam". Jesus acrescenta: "e a Boa nova é anunciada aos pobres" (Mt 11,5). O anúncio da Boa Nova se refere a lsaías 29, 19 e 61,1. Ora, enquanto em Mateus esses milagres, nos quais os cristãos vêem a prova de que Jesus é o Messias, são realizados abertamente, em Marcos não se tem permissão para falar deles. Marcos não quer que se possa saber que Jesus é o Messias. Apesar disso, ele diz claramente que os beneficiários de dois desses milagres (o leproso e o surdo-gago) desobedeceram à ordem de silêncio e que os milagres foram divulgados. Marcos assinala isso certa- mente por respeito às suas fontes e também porque faz questão de mostrar a popularidade de Jesus. Há nele um conflito entre duas tendências: quer manifestar que em Jesus o Reino de Deus se aproximou, mas, ao mesmo tempo, a multidão não deve concluir que Jesus é o Messias, porque esse título é muito ambíguo; ele deve ser purificado, demitizado, pela morte na cruz: o Messias é o Crucificado. Nota-se que mesmo quando a ordem de silêncio não é observada, a multidão não chega a concluir, em Marcos, que Jesus é o Cristo; ela admira suas obras, mas não dá a ele o título que corresponde a elas: a teoria do segredo messiânico fica assim preservada. Notemos finalmente que há uma progressão entre a cura do surdo-gago e a do cego de Betsaida. A ordem de silêncio, de 7,36, não é respeitada, segundo a narrativa, mas a multidão nada conclui sobre a pessoa de Jesus; apenas admira a sua obra (7,37). Em 8,26, a ordem de silêncio é respeitada, mas os discípulos chegam a uma conclusão sobre a pessoa de Jesus: "Tu és o Cristo" (8,29). Não é a multidão que chega a esta conclusão, mas :mente os discípulos. e logo recebem a ordem de não falarem a outros sobre isso (8,30). De certo modo. a confissão de fé de Pedro serve de conclusão à cura do cego, substituindo a reação da multidão mencionada em outras narrativas de milagres. Incompreensão e iluminação , dos discípulos Os milagres do surdo-gado e do cego de Betsaida têm muita semelhança. Em ambos há gestos e toques e em ambos a cura parece ser difícil de obter. Se nos lembrarmos de que, na citação de Isaías 35,5, os cegos e os surdos estavam juntos, concluiremos sem dificuldade que, na origem, esses dois milagres faziam parte de uma catequese destinada a ilustrar a realização desse anúncio messiânico em Jesus. Marcos vai mais longe. No contexto das duas narrativas, os discípulos são censurados por “não verem" e "não entenderem" (8, 18), o que é um modo de dizer que eles 'não compreendem nada" dos desígnios de Deus (8,21 ). Depois do primeiro milagre dos pães, Marcos já dizia que "seus corações estavam endurecidos" (6,52). Esta expressão hebraica significa: estão em disposições tais que não podem compreender, são impermeáveis à compreensão da vontade divina. O mesmo termo se encontra no ensinamento sobre a indissolubilidade do casamento (10,5): foi "por causa da dureza de seus corações" que Moisés Ihes permitiu repudiar suas esposas. Em 7,18, a expressão um pouco diferente "nem vós tendes inteligência?" tem o mesmo sentido. Na linguagem bíblica, os olhos, os ouvidos e o coração andam juntos. Os olhos permitem ver o acontecimento. os ouvidos ouvem a palavra que é pronunciada sobre o acontecimento, e o coração permite entender a vontade de Deus. Os discípulos são, pois, acusados em toda esta seção (e examinamos apenas os textos mais importantes) de não entenderem. Parece que se tornaram como "os de fora", que ouvem as parábolas, sem entendê-Ias (4, 11-12). Mas, enquanto os censura, Jesus cura um surdo e um cego, o que se torna sinal da cura espiritual dos discípulos. Realmente, eles se tornam capazes de dizer: “Tu és o Messias". Mas a cura deles não foi total, uma vez que vão mostrar-se tão fechados ao novo ensinamento que Jesus Ihes dará sobre "o caminho do Filho do homem" (que será o tema da etapa seguinte). Jesus encontra seus ouvidos tapados e seus olhos fechados. e a dificuldade na cura de um surdo e de um cego ilustra a 6 dificuldade para curar o coração dos discípulos. Vemos como Marcos usa materiais tradicionais (as práticas dos taumaturgos) num sentido totalmente novo, graças ao simbolismo. Quem sou? É a primeira vez que Jesus provoca seus discípulos a exprimirem claramente seus sentimentos a seu respeito. Pedro o faz em nome de todos. Profissão de fé de Pedro Aqui Pedro atribui a Jesus o primeiro dos dois títulos que encontramos na confissão de fé cristã, no início do livro: "Evangelho de Jesus, Cristo; Filho de Deus". Trata-se, pois, de uma etapa muito importante nesse debate sobre a pessoa e a missão de Cristo que é o evangelho de Marcos. As opiniões da multidão não são destituídas de valor: elas colocam Jesus, do ponto de vista da fé judaica, entre os maiores: João Batista, Elias, os profetas. Colocar Jesus entre os profetas significa atribuir-Ihe uma missão divina. Ver nele Elias é considerá-lo o maior dos profetas, aquele que deve anteceder imediatamente o fim dos tempos para restaurar tudo. As multidões chegaram então a uma conclusão importante que não deve ser minimizada. Mas a confissão de fé de Pedro vai muito mais longe, e somente os discípulos estavam em condições de emiti-Ia: "Vós que me acompanhastes desde o começo, vós a quem foi dado o mistério do Reino de Deus, quem sou eu para vós?" -"Tu és o Cristo". Então "proibiu-os severamente" de falarem a alguém a seu respeito. A verdade desse título só se revelará através da paixão e da ressurreição. Em Marcos, ordem de silêncio é sinal de revelação importante que ainda não deve ser divulgada; será necessário esperar a Páscoa para que ela encontre seu sentido pleno. Para que a identidade de Jesus se manifeste será necessário que ele passe pela morte". Um Messias que deve morrer É por isso que Jesus começa então a ensinar aos discípulos o que diz respeito à paixão e à ressurreição do Filho do homem. Mas este ensinamento não é aceito. E não somente por Pedro, porque, no caso, ele é porta-voz dos discípulos: quando Jesus chama a atenção de Pedro, volta-se para os discípulos. Na pessoa de Pedro, lembra-Ihes sua condição de discípulos: “Afasta-te". Em vez de erguerem um obstáculo no caminho ("Satã'"), o que eles devem fazer é seguir a Jesus no caminho que Deus lhe traça. Jesus mostra qual é a fonte da oposição deles ao seu ensinamento: eles pensam como homens, não se colocam na perspectiva da vontade de Deus que define a obra do Messias. O Messias que eles esperam é humano, e eles o vêem com olhos de homens. Inicia-se assim o debate central do livro. O que está em causa não é nada menos do que a correta interpretação da missão de Jesus segundo o desígnio de Deus. "Filho do homem" 7 Aqui "Filho do homem" está em lugar de Messias. Isso não significa que Jesus prefira o primeiro título, como se dissesse: "Dizeis que eu sou o Messias? Não, eu sou o Filho do homem". Esta seria uma interpretação errônea. O problema é que o título de Messias é prematuro. Não pode ainda ser-Ihe atribuído o que a fé cristã verá nele mais tarde. Jesus se designa então, segundo Marcos, com um título que não tem grande significado para seus leitores. Ele, Marcos, evita os títulos carregados de sentido da confissão de fé cristã de seu tempo: Cristo, Filho de Deus. Para seus leitores, "Filho do homem" é uma denominação arcaica de Jesus que já soa como ultrapassada. Esse título era empregado nos começos do cristianismo, quando a única comunidade existente era a dos judeu-cristãos. No tempo de Marcos, esta designação já tinha perdido muito de seu significado. Ela era entendida como a maneira de Jesus designar-se a si mesmo. No começo do cristianismo, os judeu-cristãos refletiram sobre a obra de Jesus a partir do título de Filho do homem. Para eles esta denominação era muito significativa porque se lembravam do Filho do homem do livro de Daniel (7,13-14). Reconhecia-se assim, no Crucificado, aquele pelo qual seria realizado o julgamento dos homens. Isto era ir muito longe. Traços desse modo primitivo de ver ainda se encontram em algumas passagens dos Atos dos Apóstolos (p. ex., 3.20-21; 7,55-56; cf. 1Tm 1,10; 4,16-17). Mas depois, nas comunidades cristãs helenísticas, o título perdeu seu interesse e foi substituído por outros, principalmente pelo de "Filho de Deus". Paulo contribuiu muito para esta evolução. Mais tarde, os Padres da Igreja não compreenderam mais nada dele, interpretando-o à maneira grega de pensar. Para eles, o Filho do homem é o homem verdadeiro, o representante da humanidade. Mas não era esse o sentido desse título quando empregado por Jesus e pelos primeiros cristãos de Jerusalém. O que eles viam nele era a origem celeste do Filho do homem e a obra divina que ele devia realizar. O título de Filho do homem na tradição sinótica é, pois, um indício de arcaísmo das palavras relatadas: trata-se de uma tradição que remonta às origens da fé cristã e, o mais das vezes, às próprias palavras de Jesus. Jesus, O Juiz do fim dos tempos Jesus se apresenta as condições para aqueles que quiserem segui-lo no cap. 8, 34-38, já dentro de um contexto de perseguição. Porém, no versículo 38, ele mostra o que acontecerá àqueles que quiserem segui-lo sem cumprir as exigências dos versículos anteriores: “Aquele que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e de minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele quando vier na glória do seu Pai com os santos anjos". Jesus é o Filho do homem escatológico, aquele ao qual foi entregue o julgamento de todos os homens. Encontramos aqui a fé arcaica da comunidade primitiva na qual a obra de Jesus é pensada em função do livro de Daniel. Jesus se atribui então um poder extraordinário, e isto sem dar nenhuma prova, nenhum sinal. Deve-se acreditar nele, em sua palavra. Além de arcaica, a cristologia que emana desse trecho é muito precisa, pois Jesus fala de seu Pai. Foi por causa do poder extraordinário que Jesus reivindica como Filho do homem que os cristãos puderam atribuir-Ihe o título de Filho de Deus. Como pudemos ver, este conjunto é muito bem construído, mas a sua lógica supõe um contexto preciso: o de uma catequese pós-pascal em tempo de perseguição. O fim dos tempos muito próximo Esta passagem termina em 9, 1: "E disse ainda: 'Em verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o Reino de Deus chegando com poder' ': Esta palavra é estranha para nós. A interpretação que o contexto favorece é a seguinte: Jesus fala da vinda do Filho do homem na glória de seu Pai com seus santos 8 anjos. A própria construção ("e disse ainda") mostra que esta palavra de Jesus foi tirada de outro lugar e colocada aqui em ligação com o que precede. Trata-se, no contexto, da proximidade da parusia; alguns podem esperar ver a volta do Cristo sem passarem pela morte. Isto nos obriga a considerar com seriedade a espera de alguns meios cristãos primitivos, espera da qual o próprio Paulo partilhou (cf. 1Epístola aos tessalonicenses). Depois PauIo evoluiu até afirmar: "Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro". O meu desejo é partir e ir estar com Cristo"' (FI 1,22-23). Jesus foi verdadeiro homem, não só aparente Nós perdemos o sentido da dimensão "tempo", tornamo-nos irreais e intemporais. Escandalizamo-nos ao verificarmos que não foi dito tudo desde o começo, que certos aspectos da revelação só foram descobertos aos poucos, em decorrência da experiência espiritual da primeira e, depois, da segunda geração cristã. Isto é, contudo, muito normal: Jesus devia dirigir-se aos homens de seu tempo, em função da espera deles. Estranhável seria se ele tivesse falado naquele tempo para ouvintes de hoje, que somos nós. Dir-se-á: mas então Jesus se enganou! Em primeiro lugar, nós não sabemos quais foram as circunstâncias nas quais ele pronunciou a palavra que Marcos relata neste contexto. Por outro lado, se ele fala em conformidade com a espera de certos meios judaicos que tinham como próxima a vinda do Reino de Deus, não foi engano de sua parte afirmar uma esperança certa. A esperança se afirma sempre em função do presente e sua expressão se modifica no decorrer da experiência. De esperança provisória em esperança provisória, o homem se põe em marcha e avança. O mesmo se dá com a fé (cf. Hb 11 ). Aliás, afirmando a impossibilidade de fixar uma data precisa para a vinda do Filho do homem (Mc 13,32), Jesus mesmo mostrava que era possível distinguir entre a certeza da esperança do Reino de Deus e os prazos possíveis de sua realização. Isso mostra, em todo caso, que a humanidade de Jesus era real e não aparente. O tempo deixou sua marca nas palavras que ele pronunciou e que são, apesar disso, a luz de nossa fé e de nossa esperança. A situação das mulheres no episódio da ressurreição Maria Madalena e Maria, mãe de José, são duas das mulheres presentes no episódio da crucifixão de Jesus. Por isso, decidem ir ao túmulo no primeiro dia da semana para preparem melhor o corpo de Jesus sepultado. Porém, o que elas pretendiam fazer está ultrapassado pelo acontecimento. Pensaram em tudo, menos no que aconteceu. Fixaram-se na morte de Jesus. Ele ressuscitou. Elas não têm mais nada a fazer no sepulcro. A ação de Deus confunde o homem; elas foram ultrapassadas pelo acontecido e ficaram confusas porque sua lógica humana falhou. Mas a mensagem do anjo, em 16,7, orienta-as em outra direção: se Jesus ressuscitou, não foi só para causar surpresa. Há algo a fazer, e isto será na Galiléia. Elas chegaram a pensar que estava tudo terminado, mas o “caso Jesus continua". Ressuscitado. ele vai reunir novamente seus discípulos na Galiléia, para um novo início. o final da ( narrativa surpreende: "Elas saíram e fugiram do túmulo, pois um tremor e um estupor se apossaram delas. E nada contaram a ninguém, pois tinham medo" ( 16,8). O fio da narrativa parece truncado: a mensagem que elas foram encarregadas de levar aos discípulos não foi transmitida. Isso se complica pelo fato de que o texto de Marcos termina aqui. A continuação (vv 9-20) não foi escrita por ele e é omitida em vários manuscritos. Ela data do século II e foi acrescentada para corrigir a impressão de narrativa inacabada, deixada pelo v. 8. Nunca saberemos se Marcos previu ou escreveu uma continuação, continuação que falta por uma razão qualquer, ou se ele pensou que, com o túmulo aberto e com a mensagem da ressurreição, o seu livro estava terminado. Esta última possibilidade deve ser 9 tomada seriamente em consideração, uma vez que, em seu livro, não é necessário que as mulheres transmitam aos discípulos a mensagem do anjo. porque Jesus já os tinha avisado na última Ceia (14,28). Elas deviam apenas lembrar-Ihes o que eles já sabiam. Assim, o silêncio das mulheres teria uma dupla função no texto. De um lado mostraria até que ponto elas se assustaram: esqueceram-se completamente de transmitir a mensagem do anjo. Esta reação se enquadra bem na lógica da narrativa, que destaca o susto delas e o caráter divino do acontecimento. Deus fez o que elas não esperavam. Seus pensamentos humanos não deram em nada. Por outro lado, o silêncio delas faz com que o reagrupamento dos discípulos na Galiléia e o novo início do Evangelho depois da ressurreição não sejam devidos às mulheres. mas à iniciativa do Ressuscitado: "Depois que eu ressurgir, eu vos precederei na Galiléia" (14,28). É, pois, pouco indicado falar de misoginia a propósito do que Marcos diz das mulheres no sepulcro. Sua presença no Calvário e no sepultamento de Jesus põe em destaque a ausência dos discípulos. Eles fugiram diante do perigo. mas essas mulheres, nas quais os autores da crucifixão e do sepultamento não prestam atenção, estavam presentes e seu testemunho é suposto pela narrativa. Quanto à sua desorientação diante da manifestação e da mensagem do anjo, ela ressalta a transcendência da ação de Deus, tanto no ato da ressurreição de Jesus quanto na origem da mensagem pascal. Nem uma nem outra foram obra do homem. A desorientação de Maria Madalena, da outra Maria e de Salomé não deve ser atribuída simplesmente à fragilidade feminina. Como a falta de compreensão e a fuga dos discípulos, ela mostra o quanto o homem é ultrapassado pelo que Deus faz e revela através da vida, da morte e da ressurreição de Jesus. Deveríamos lembrar-nos disso quando procuramos prender Deus aos nossos projetos ou aos nossos ideais humanos. O evangelho de Marcos é difícil para nós: gostamos das preparações subjetivas, dos sinais humanos da ação de Deus em nós. Marcos é, ao contrário, o homem do escândalo da fé. Quando, guiados por ele, refazemos o itinerário de nossa própria fé, somos levados a nos perguntarmos se compreendemos bem a mensagem. O retrato do homem, pintado por Marcos, não é retocado: o projeto das mulheres falha, os projetos dos discípulos não levam a nada. Mas essa visão é profundamente otimista porque nos leva a pormos nossa confiança em Deus no tocante aos acontecimentos que vão seguir-se: é o próprio Deus que nos impele para o futuro. Por fim, o Ressuscitado não deixa o mundo dos homens; manifestando-se aos discípulos, ele faz suas as palavras deles e, por meio deles, a sua ação se estende “a toda parte”. Texto extraído de DELORME, J, Leitura do Evangelho segundo Marcos, São Paulo: Paulinas, 1982.