GERAR CAPITAL SOCIAL: TAREFA DA “EDUCAÇÃO PERIFÉRICA

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GERAR CAPITAL SOCIAL: TAREFA DA “EDUCAÇÃO PERIFÉRICA”
SEGUNDO BANCO MUNDIAL
Vânia Cardoso da Motta1
Introdução
Em meados de 1990, contrapondo a tese difundida pelos entusiastas da
globalização econômica de que o mercado uma vez “livre” das amarras do Estado os
benefícios do crescimento econômico seriam “derramados” por osmose aos setores
desfavorecidos e os tiraria da pobreza, constatou-se que: a polarização entre países
intensificou; a pobreza e a miséria não só aumentaram nos paises periféricos como
também foram globalizadas (Chossudovsky, 1999); o mundo do trabalho foi
precarizado, com perdas de direitos conquistados, aumento do desemprego estrutural e
da informalidade. Com isso, criou-se um quadro de crises, tensões e uma onda crescente
antiglobalização que se estendeu em vários países, centrais e periféricos. Setores
dominantes chegaram a conclusão de que o fracasso da “teoria do derrame” estava
colocando em risco o triunfo da ideologia neoliberal.
A partir de então, vários encontros foram realizados entre setores políticos e
econômicos dominantes para discutirem sobre a possível ameaça de ruptura da coesão
social, nos planos nacional e internacional, e a necessidade de redefinir ações voltadas
para administrar este risco. Do encontro da “Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Social” (Copenhague, 1995) ao encontro de “Cúpula do Milênio da Organização das
Nações Unidas”, realizado em 2000, em Nova York, definiu-se um conjunto de políticas
que foi denominado de “Políticas de Desenvolvimento do Milênio” (PDMs). Neste
conjunto de políticas as bases ideológicas de orientação são renovadas com a idéia de
gerar “capital social”.
Este artigo parte de duas premissas: 1- as PDMs foram estabelecidas como
mecanismo de alívio das conseqüências perversas resultantes das determinações do
1
Mestre em Educação (UFF). Doutora em Serviço Social (UFRJ). Bolsista Recém-Doutor pela FAPERJ
no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected].
Fundo Monetário Internacional (FMI) para assegurar a continuidade e a legitimidade
das políticas econômicas neoliberais na virada do milênio; 2- ao incorporar elementos
da “teoria do capital social”, na abordagem de Robert Putnam, opera-se uma nova etapa
de “rejuvenescimento” da “teoria do capital humano”. E defende-se a tese de que ao
estabelecer relação entre pobreza e educação, as PDMs visam a “educar o
conformismo” da grande massa de trabalhadores que foram excluídos pelo atual regime
de acumulação do capital. O problema fundamental que orienta este estudo é a “batalha
das idéias”, mais especificamente o processo pelo qual a classe dominante desenvolve
mecanismos de conservação da unidade ideológica, criando novos terrenos ideológicos
em conformidade com as reformas estruturais ou resultantes do próprio confronto com a
classe dominada, tomando como base de fundamentação teórica o materialismo
histórico.
Tem como objetivos analisar a relação entre pobreza e educação baseando-se
nos debates sobre “questão social” e indicar elementos da “teoria do capital social”
visando a reflexão das implicações da tarefa da escola pública brasileira administrar a
pobreza na condição de país dependente do capital externo.
Na primeira parte do trabalho, apresentam-se elementos que indicam a relação
entre pobreza e educação no decorrer do desenvolvimento da sociedade capitalista para,
numa segunda parte, discorrer sobre as etapas da “teoria do capital humano”, sendo que,
na atualidade, adicionada com elementos da “teoria do capital social”.
1 A relação entre pobreza e educação na sociedade capitalista
A relação entre pobreza e educação foi estabelecida desde a formação das
sociedades capitalistas como mecanismo de estabilidade política, visando a conter
ameaças de ruptura da coesão social e instaurar a ordem necessária à reprodução do
capital, e como fator de superação das condições de pobreza (não só de renda, mas
também da pobreza moral e cultural) da classe trabalhadora.
E, no decorrer do
desenvolvimento do modo de produção e civilizatório capitalista, sofre vários ajustes
operacionais e interventivos, conforme a conjuntura econômica e política.
1.1 Educação como mecanismo disciplinador e civilizatório e “questão social”:
No início da formação da sociedade capitalista, o papel da educação-escolar foi
2
disciplinador e civilizatório e estava diretamente relacionado à questão social, isto é, à
condição de miséria e de degradação moral e social da nascente classe trabalhadora
urbana e industrial e seu ingresso na política.
Na perspectiva da intelectualidade burguesa da época, segundo Cambi (1999),
havia um tipo de reconhecimento de que o povo estava “fora da história” – uma massa
de trabalhadores rurais dissocializados, “populações flutuantes que saturam os antigos
bairros pobres e povoam os arredores”2 - e, com isso, “reclama-se para ele
educação/instrução que o liberte das condições de atraso e marginalidade psicológica
e cognitiva e que o recoloque como elemento produtivo no âmbito da sociedade atual”.3
A “profunda degradação moral”4 advinda da formação industrial, contrastava
com o otimismo liberal do século XVIII, segundo o qual “um homem não é pobre
porque nada tem, mas é pobre porque não trabalha”5 e
desafiava a modernidade
enquanto “efeito direto da nova organização do trabalho, fator permanente de
insegurança social”(Buret, 1840).6 Buret aponta três fatores característicos da nova
ordem: a instabilidade no emprego, a ausência de qualificação para o exercício da
atividade e a degradação moral.
A condição de pobreza moral e intelectual do, ainda em formação, proletariado
do início do século XIX, compreendida como um risco iminente de fratura social,
provocou a necessidade de reforçar as políticas de instrução popular. Conforme expõe
Chevalier (Apud Castel, 2003): “O povo deve ser educado para evitar desordens
sociais, formando-se pelos valores burgueses da laboriosidade, da poupança, do
sacrifício” (p.408).
A questão social, segundo Castel (2003), foi explicitada pela primeira vez no
século XIX, por volta de 1830, quando se observa que essa população de miseráveis
ameaçava a ordem social “seja pela violência revolucionária, seja como uma gangrena
(...), uma espécie de contaminação da miséria, da desgraça que infectaria
progressivamente todo o corpo social” (p.239).
Para Castel (2003), o pauperismo originado do desenvolvimento industrial
capitalista representou “uma espécie de imoralidade que se faz natureza a partir da
2
Chevalier, L. Apud Castel (2003, p.288).
Apud Motta (2007, p.152).
4
Augusto Comte (por volta de 1830) Apud Castel (2003, p.382).
5
Montesquieu Apud Castel (2003, p.126).
3
3
degradação completa dos modos de vida dos operários e de suas famílias” (p.287) e
uma ameaça à ordem política social: “Classes laboriosas, classes perigosas”.7
A questão social surge, então, a partir da preocupação de um determinado setor
da sociedade que via na pobreza acentuada e generalizada – no pauperismo - advinda do
processo de industrialização, da “nova organização do trabalho”, o risco ou a “ameaça
de fratura” das instituições sociais existentes, tendo em vista o ingresso da classe
operária no cenário político.
Segundo Netto (2004): “Foi a partir da perspectiva efetiva de uma eversão da
ordem burguesa que o pauperismo designou-se como ‘questão social’” (p.43) e que,
segundo Iamamoto (2004) passa a ser tratada sob o ângulo do poder (p.11).
O debate sobre a questão social8 tem sido revigorado nas análises atuais,
principalmente nos estudos sobre “exclusão social”, tendo em vista a intensificação da
miséria e da pobreza e as novas expressões da questão social, que emergem em
conseqüência do predomínio do regime de acumulação baseado na hipertrofia do capital
financeiro e na “doutrina” neoliberal,9 mas é permeado por embates teórico-analíticos.
Castel (2000), analisando a atual conjuntura, defende a tese de que a questão
social hoje não é a mesma da primeira metade do século XIX. Trata-se de uma “nova
questão social”, pois a ameaça de fratura social foi afastada, uma vez que esse “primeiro
proletariado miserável e subversivo passou a ser uma classe operária relativamente
integrada” (p.239). Para o autor, o caráter problematizador da questão social, de
construção de uma contra-hegemonia, é esvaziado.
Na visão de Castel, a questão social hoje está relacionada à desmontagem do
sistema de proteções e garantias trabalhistas e à “desestabilização” na ordem do trabalho
com repercussões em diferentes setores da vida social, isto é, ao desmantelamento da
sociedade do “pleno emprego”. Na sua concepção, houve uma ruptura entre trabalho e
proteção (sociedade salarial), instalando-se um tipo de sociedade inteiramente regida
6
Apud Castel (2003, p.262).
Exemplo de expressão de um tipo de “racismo antioperário”, que, segundo Castel (2003, p.288), foi uma
concepção amplamente difundida entre a burguesia do século XIX. Chevalier, L. Classes laborieuses et
classes dangeuses à Paris pendant la première moitié du XIXème siècle, 2ª ed., Paris, Hachette, 1984.
8
As análises e os debates sobre “questão social” são centrais na formação do Assistente Social brasileiro,
conforme expresso nas Diretrizes gerais para o Curso de Serviço Social: “O Serviço Social se
particulariza nas relações sociais de produção e reprodução da vida social como uma profissão
interventiva no âmbito da questão social expressa pelas contradições do desenvolvimento do capitalismo
monopolista” (In: Netto, 2004, p.41).
7
4
pelas leis do mercado (sociedade do mercado) e, nesse sentido, “a nova questão social”
seria o questionamento desta “função integradora” do trabalho na sociedade (Castel,
2000, p.245).
Castel (2000) aponta ainda que a perda da condição salarial da massa
trabalhadora na atual conjuntura política e econômica insere a perda da possibilidade
desse trabalhador controlar o futuro. Ao perder a possibilidade de controlar o futuro, à
massa trabalhadora só lhe resta o ajuste e a adaptação à atual condição de precariedade
do trabalho, pois perdeu força política.
Trata-se de uma posição questionada por alguns pesquisadores brasileiros,
conforme exposto em seguida.10
Citando Fleury, Wanderley (2000)11 destaca que “a emergência de uma questão
pressupõe (...) uma nova correlação de forças, a criação de um tecido social em torno de
sua problemática, com capacidade de inserí-la no debate político” (p.60). Sendo a
questão social uma problemática constitutiva do desenvolvimento do capitalismo,
emergente de tensões e conflitos entre classes antagônicas e que gera demandas
políticas, a questão social implica: “questões de integração e inserção, reformas sociais
ou revolução, e correntes de idéias as mais diversas que buscam diagnosticar, explicar,
solucionar ou eliminar as suas manifestações” (p.61).
O ponto central do debate sobre questão social e suas expressões e variações de
intensidade conforme conjuntura política e econômica encontra-se na contradição
fundamental da sociedade capitalista. Nas palavras de Iamamoto (2003):
(...) está na origem do fato de que o desenvolvimento nesta sociedade redunda, de
um lado, em uma enorme possibilidade de o homem ter acesso à natureza, à
cultura, à ciência, enfim, desenvolver as forças produtivas do trabalho social;
porém, de outro lado e na sua contraface, faz crescer a distância entre a
concentração/ acumulação de capital e a produção crescente da miséria, da
pauperização que atinge a maioria da população nos vários países, inclusive
naqueles considerados ‘primeiro mundo’ (p.27).
Marx, n’O Capital (2002), sintetizou numa frase as contradições que inserem o
modo de produção capitalista: “nas mesmas condições em que se produz a riqueza,
9
Ver Paulani (In: Lima e Neves, 2006); Harvey (2004);
Pastorini (2004); Pereira (2004); Iamamoto (2003; 2004); Netto (2004).
10
5
produz-se também a miséria” (p.749).
A relação da pobreza com a educação como mecanismo civilizatório pode ser
pensada a partir de Marx quando sintetiza as condições de vida do trabalhador da
indústria na nova divisão do trabalho: “A acumulação de riqueza num pólo e, ao mesmo
tempo, acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância,
brutalização e degradação moral, no pólo oposto, constituído pela classe cujo produto
vira capital” (Marx, 2002, p. 749).
Na concepção da burguesia da época, esta condição podia ser amenizada
educando este trabalhador dentro dos valores burgueses, conseqüentemente, evitando
desordens e conflitos.
O Estado burguês é, na concepção de Gramsci (2000), um “Estado educador”,
porque traz para si a tarefa de criar um novo tipo civilizatório, dirigindo e organizando a
sociedade para uma determinada vontade política, isto é, transformando sua “vontade
particular” em “vontade geral”, dando caráter universal aos interesses privados.
Enquanto tal, no decorrer de seu processo histórico, expandiu sua esfera de
domínio desenvolvendo capacidades estratégicas, cada vez mais refinadas, de impor a
adesão à sua forma particular de ver o mundo. E esta função educadora do Estado
burguês pode ser identificada ao longo do processo de desenvolvimento histórico do
modo de produção e civilizatório capitalista.
1.2 Teoria do capital humano: educação como mecanismo de aumentar a
produtividade dos pobres
Nas tensões do início do século XX, não vai ser a condição de pobreza moral e
intelectual dos trabalhadores a ameaça de fratura social, mas o avanço do fascismo e do
comunismo no contexto de uma classe operária já organizada. No II pós-guerra, sob a
hegemonia dos EUA, ascenderam políticas de segurança que extrapolaram as fronteiras
do Estado, nascendo uma proposta de se criar um “sistema mundial de segurança e uma
cruzada pela democracia” (Roosevelt e Churchil) que gerou os organismos multilaterais.
Nas décadas de 1950-60, a “teoria do capital humano” foi incorporada e
popularizada na teoria econômica moderna. A idéia fundamental da teoria é que o
trabalho, mais do que um fator de produção, é um tipo de capital: capital humano. Esse
11
In: Castel; Wanderley; Belfiori- Wanderley, 2000.
6
capital é tão mais produtivo quanto maior for sua qualidade, que é dada pela intensidade
de treinamento científico-tecnológico e gerencial que cada trabalhador adquire ao longo
de sua vida. Nesta perspectiva, a qualidade do capital humano não apenas melhora o
desempenho individual do trabalhador – tornando-o mais produtivo – como também
melhora sua remuneração, em conseqüência do aumento da produtividade. É um fator
decisivo para gerar riqueza e crescimento econômico e, “naturalmente”, promove a
equalização social.12
Esta concepção criou um “vínculo direto entre educação e produção”13 e foi
difundida num contexto14 em que o Banco Mundial inovou sua abordagem política com
a gestão de McNamara (em 1977), de caráter “estrategista internacional”, pautada na
segurança e na pobreza absoluta. Na concepção de McNamara, ajudar governos pobres
a superarem as necessidades humanas básicas, “que são sempre críticas”, não seria
“questão de filantropia”, mas de prudência. E apontou como uma “péssima economia”
aquela que permitia cultivar e difundir a pobreza “a tal ponto que comece a infectar e
erodir todo o tecido social. A pobreza (....) é como um vírus que contagia a amargura, o
cinismo, a frustração e o desespero” (Leher, 1998, Apud Motta, 2007, p.174).
No contexto das idéias desenvolvimentistas e da “teoria do capital humano”, a
educação era compreendida como um instrumento de modernização e competitividade,
pois promovia a modernização dos fatores de produção, especialmente pela qualificação
da mão-de-obra, e um instrumento de equalização entre países e regiões e entre classes;
um recurso básico de mobilidade e equalização social e de justiça social. Entendia-se
que a passagem do “subdesenvolvimento” ao “desenvolvimento” era uma questão de
tempo e de adequação de fatores.
Nessa perspectiva, desenvolveu-se a crença de que a desigualdade social seja ela
entre classes, países e regiões, não era uma questão orgânica do sistema capitalista em
seu conjunto, isto é, não era vista como uma questão estrutural, mas algo conjuntural
que podia ser corrigido mediante a alteração de fatores tais como a qualificação de
trabalhadores e modernização da produção. Conforme discorre Frigotto (1986): “O
problema da desigualdade tende a reduzir-se a um problema de não-qualificação”
12
Para uma análise mais aprofundada ver Frigotto (1986; 1998).
Frigotto, 1986.
14
Deve-se lembrar que a década de 70 é marcada pela crise do petróleo (1973) que enfraqueceu o
domínio internacional dos EUA, e a Guerra do Vietnã que levou à desmoralização e ao isolamento dos
13
7
(p.136).
Na passagem da “ideologia do desenvolvimento” para a “ideologia da
globalização” (Leher, 1998), período de acomodação das polaridades ideológicas e de
intensificação do avanço tecnológico, os argumentos passam a residir no aumento da
competitividade dos mercados em desenvolvimento para o ingresso no mercado "livre"
e mundializado.
Entretanto, o ingresso no mercado globalizado não se estabeleceria somente com
ajustes nos âmbitos político e econômico. Era necessário operar uma reforma intelectual
e moral para introduzir uma outra lógica sobre trabalho e educação. A partir de então, o
Brasil segue sendo monitorado pelo FMI e produzindo “contra-reformas” sobre as bases
ideológicas construídas pelo Banco Mundial. Conforme colocação de Octávio Ianni, o
Brasil perde sua capacidade de decidir seu destino – não expressa a soberania de um
projeto nacional – e se torna “província do capital mundial”.15
Gentili (2002) disserta que com o desmoronamento das condições econômicas e
políticas que sustentavam as argumentações tecnocráticas e desenvolvimentistas da
"teoria do capital humano”, processa-se uma alteração em seu “corpus teórico”, que vai
conduzir a “uma radicalização das premissas individualistas e meritocráticas que
sustentam a teoria (....) e a perda definitiva do seu substrato liberal-democrático”
(p.48).16 Essa alteração na “teoria do capital humano” promove o deslocamento da, em
tese, “função econômica integradora” atribuída à escola - mecanismo de integração dos
indivíduos à vida produtiva" (Idem, p.53) enfatizada no contexto do “pleno emprego” para a “função econômica de inserção”, no contexto da mundialização.
Conforme explica o autor, sem negar a contribuição econômica da escolaridade,
a promessa integradora da escola foi desintegrada e substituída por uma outra promessa,
“de caráter estritamente privado: - a promessa da empregabilidade” (Ibidem, p.51).
Posto dissociado do direito à educação, o termo “empregabilidade” articulou e
deu coerência a um conjunto de orientação técnica do quadro de especialistas do Banco
Mundial, que foi apresentado como fundamental na superação da crise do desemprego
dos anos 1980-1990,17 e que resultou em ações efetivas no campo da educação.
EUA (ver Hobsbawm, “Era dos Extremos: o breve século XX”, referente ao capítulo da “Guerra Fria”).
15
Programa Roda Viva, TVEducativa.
16
Frigotto (2000) vai identificar essas alterações como "rejuvenescimento" da "teoria do capital humano".
17
Pregava-se a necessidade de dinamizar o mercado, através da redução dos encargos patronais, da
8
No entanto, em pouco tempo os dados da realidade iriam denunciar o caráter
ideológico desse conjunto de orientação do Banco Mundial para os países dependentes.
No Brasil, por exemplo, contrapondo a “teoria do capital humano” e a tese da
“empregabilidade”, verificou-se nos anos finais da década de 1990 que ao mesmo
tempo em que reduziu a taxa de analfabetismo, ampliou o acesso à educação em todos
os segmentos e elevou o nível de escolaridade da população, intensificou a pobreza de
parcela significativa da classe trabalhadora, aumentaram os índices de desemprego e de
trabalho informal e os índices de “desenvolvimento humano” (IDH) e de crescimento
econômico mantiveram-se praticamente inalterados.18
A conclusão que se chega é que o FMI conduziu as políticas econômicas
neoliberais de modo impositivo, sem considerar as especificidades políticas,
institucionais e culturais dos países tomadores de empréstimos.19 Formou-se, então, um
consenso entre os “intelectuais orgânicos do capital” sobre a forma dogmática pela qual
o FMI e o Banco Mundial impuseram a ideologia do “livre” mercado aos países
periféricos. E que o FMI, ao determinar que os países “em desenvolvimento” abrissem
seus mercados e ao provê-los de recursos para resolver suas crises de curto prazo,
tornou-se parte do problema, mais do que sua solução (Schwartzman, 2004).
2 Da ideologia do capital humano à ideologia do capital social
Na virada do novo milênio a pobreza ganhou o status de ameaça em nível
mundial. O pauperismo passa a ser apresentado como “o pivô de uma série de outros
problemas que reforçam a interdependência de todos os países e de todos os seres
humanos” (Mestrum, 2005, p.248), tais como a Aids, as migrações, o crescimento
demográfico, a degradação do meio ambiente, e mais tarde como “pivô” do terrorismo,
como identificou Fukuyama (2005).
Segundo o Banco Mundial (2004), “as lições dos programas de ajuste da década
de 1980”, com a promessa que não foi cumprida, removeram “as vendas dos olhos dos
flexibilização trabalhista e da formação profissional permanente.
18
Os dados do IBGE indicavam que houve o aumento da “Média de Anos de Estudos de Instrução
Formal” dos brasileiros entre 1992-1999, mas ao mesmo tempo encontravam-se desempregados ou
“desocupados” os jovens e os trabalhadores com maiores níveis de escolaridade (Microdados Pnad; Ipea,
Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise - Anexo Estatístico, nº5, agosto de 2002).
19
Fukuyama (2005); Stiglitz (2003).
9
países doadores (Estados Unidos e seus aliados), que eles próprios haviam colocado”
para evitar investigações sobre os “fracassos de governança”.
A partir de então, os debates emergem em torno da ampliação das
oportunidades, “porque cada vez são maiores as evidências de que a excessiva
desigualdade provoca o conflito social” (Kliksberg, 2002, p.43) e da necessidade de
fortalecer os Estados “fracos”20 como tarefa vital para a segurança internacional,
construindo um “Estado Inteligente” - “orientado para superar as graves iniqüidades,
capaz de impulsionar a harmonia entre o econômico e o social, promotor da sociedade
civil, com um papel sinergizante permanente” (Kliksberg, 2002, p.48) e “Ativo” “eficiente e competente” na tarefa de impulsionar um modelo de desenvolvimento em
parceria com o mercado e as organizações da sociedade civil, administrando os riscos e
a pobreza (BIRD, 2004. Apud Motta, 2007, p.311).
Nesta perspectiva, no conjunto de “políticas para o desenvolvimento do milênio”
foram definidos novos ajustes na função do Estado, visando a construir uma harmonia
entre Estado-mercado-sociedade civil para atingir as metas e ações estabelecidas para
reduzir a pobreza no mundo pela metade até 2015. Ao sistema educacional público foi
atribuída uma nova função - investir no “capital social” - e a tarefa de universalizar o
ensino fundamental também até 2015.
As PDMs reforçam as teses da “teoria do capital humano” como base essencial
de aumento da capacidade produtiva e competitiva das sociedades mais pobres ou “em
desenvolvimento” para o ingresso no “livre-mercado” globalizado, mas realiza novos
ajustes com a inclusão de outras bases “conceituais” pautadas na “teoria do capital
social” com estratégias focadas nas “zonas de pobreza”.
A “teoria do capital social” de Putnam (2002) defende a tese de que sociedades
com elevados graus de consciência cívica, de solidariedade e de confiança entre seus
membros e instituições atingem níveis de bem-estar social superiores. Na concepção do
pesquisador, o problema da diferença de desenvolvimento econômico e social em
qualquer formação histórico-social pode ser superado pondo no centro a questão da
“cultura cívica”.
Sua abordagem da teoria foi construída durante 20 anos de pesquisa, iniciada em
20
Estados fracos são países com instituições “frágeis” e “governança insuficiente”, segundo BIRD (2004
Apud Motta, 2007, p.306).
10
1970, acompanhando o processo de implantação da descentralização administrativa
daquele país e o desempenho institucional dos governos regionais. Seu objetivo era
avaliar o impacto da descentralização na redução da desigualdade entre as regiões norte
e sul. Como resultados positivos dessa estratégica administrativa, Putnam apontou que a
política italiana tornou-se menos polarizada ideologicamente e mais voltada para
problemas práticos da população e que as instituições do governo tornaram-se mais
tolerantes e próximas do povo. E observou que em regiões menos desenvolvidas esta
estratégia não alterou a qualidade do governo, mantendo comportamentos observáveis
no período da centralização, tais como: corrupção, burocracia, clientelismo, impasses
políticos, entre outros. E conclui afirmando que: a cultura cívica é um fator central para
o bom funcionamento das instituições; associada à confiança interpessoal forma um
recurso fundamental de poder para os indivíduos e para a sociedade – capital social.
D’Araújo (2003) faz uma boa síntese desta concepção: o “capital social”
funciona como uma “argamassa que mantém as instituições em contato entre si e as
vincula ao cidadão visando à produção do bem comum” (p.10).
A idéia de “renovação da cultura cívica” é capitaneada na esteira da “terceira
via”.21 Sua proposta é construir um “Estado sem inimigo” e uma “nova economia
mista” baseados na sinergia entre público-privado-sociedade civil, principalmente no
processo de superação do declínio cívico que foi sendo configurado no final de século,
como resultado da predominância da cultura de caráter individualista, pragmática e
produtivista, que estimulou a competitividade, o consumismo, o utilitarismo e resultou
no aumento da criminalidade. A “cultura cívica” seria renovada com mudanças de
valores morais voltados para o sentimento solidário e comunitário, principalmente nos
grupos mais pobres, no sentido de serem solidários com aqueles que têm preocupações
semelhantes para empreender juntos uma “jornada pela vida” (Motta, 2007, pp.81-83).
Nesse contexto, a educação exerce um papel fundamental, pois na concepção do
Banco Mundial (2002a): “Os investimentos em educação podem transmitir mensagens
culturais e construir a coesão social” (p.38). Em outro documento do Banco é
“sugerido” que se dê prioridade e “um maior impulso à educação fundamental e, em
particular, ao ensino médio; ao sistema de transferências sociais para reduzir a
21
A proposta da “terceira via” nasce associada à política de Blair e do Novo Trabalhismo (New Labor) na
Grã-Bretanha que Giddens (2005) pôs, segundo ele, “carne teórica no esqueleto” da prática política de
11
desigualdade e aumentar a produtividade” (p.17), mas essas prioridades implicam em:
Atribuir mais poder ao povo, em vez de adotar práticas de favorecimento;
direcionar os gastos sociais para os mais pobres, e não para grupos cujos interesses
são melhor representados; gerar crescimento mediante o aumento da produtividade
do setor privado, e não de recursos do setor público; e utilizar recursos naturais de
modo sustentável (BIRD, 2002b, pp.17-18).
Esse “novo paradigma”, altamente difundido pelos principais organismos
multilaterais, no geral, visa a superar a pobreza formando uma rede social de
colaboração e cooperação entre cidadãos, buscando um novo equilíbrio entre mercado e
interesse público, disseminando valores de “solidariedade”, de sentimento de
“prosperidade”, de forma a possibilitar a construção de uma “sociedade solidária” e
harmoniosa, sem conflitos; entende que é preciso elevar não só no âmbito da renda, mas
reciprocamente no âmbito “cultural” as camadas mais pobres, instituindo competências
emocionais e morais para o desenvolvimento do espírito de iniciativa e o cultivo do
“capital
social”
sustentabilidade,
como
meio
de
gerar
renovação
econômica
que
propicie
principalmente naqueles que já não se enquadram nas condições
específicas do trabalho globalizado – baixo nível de produtividade e competitividade.
Assim, para a parte da classe trabalhadora que ainda dispõe de potencial
competitivo no mercado de trabalho, mantêm-se as ideologias do capital humano e da
empregabilidade; os trabalhadores que perderam a condição de vender sua força de
trabalho vão “vegetar” na base da caridade público-privada; para a camada da classe
trabalhadora que amarga a redução da demanda de sua força de trabalho, que se
encontra empobrecida, degradada moralmente, embrutecida com a condição de vida que
a atual etapa do capitalismo lhe tem imposto, mas que ainda possui condições, mesmo
que mínimas, de produzir, recomenda-se investir em “capital social” – isto é, ingressar
numa rede social solidária que possibilite capacitá-lo a sobreviver neste contexto.
A “novidade” está na idéia de fortalecer e estreitar o vínculo entre as esferas
política, econômica e social em prol de uma ação estratégica conjunta de enfrentamento
dos inevitáveis “problemas sociais” conseqüentes dos efeitos da globalização,
principalmente nos países que possuem fraca base institucional, dividindo com a classe
trabalhadora os riscos da governança num mundo altamente competitivo e desigual. A
“boa governança” é compreendida como ampliação e fortalecimento da democracia,
Blair (p.12).
12
uma forma de promover a “autonomia” das camadas mais pobres, dando voz e poder de
decisão sobre a definição de suas necessidades imediatas.
Em síntese, à dimensão econômica agregam-se as dimensões cultural e social e à
estabilidade econômica soma-se a estabilidade política. Estes seriam os mecanismos
necessários para garantir a reprodução do capital no novo milênio, mantendo o
predomínio do capital financeiro no regime de acumulação e sua perversidade.
3 Considerações finais
Conforme foi observado, a relação entre educação e pobreza ao longo da história
das sociedades capitalistas foi atravessada pelo receio de romper a coesão social. Neste
processo, a função educativa se revestiu de vários sentidos: educar para civilizar, educar
para o emprego, “educar para o desemprego”... E nessa última etapa, observa-se que a
função educativa está focada em “educar para sobrevivência”, mas para além das
necessidades imediatas dos indivíduos, identifica-se a construção de um aparato de
mecanismos de hegemonia de função de direção intelectual e moral voltado para
educar o conformismo.
Nesta perspectiva, observa-se a maximização da “função educadora” do Estado
e a continuidade da política de minimização do seu papel nas esferas sociais, uma vez
que os gastos do aparelho estatal nestas esferas devem manter-se reduzidos. No âmbito
da educação e de sua relação com a pobreza, observa-se que os sistemas educacionais
públicos passam a exercer uma dupla função: aprimorar o capital humano do indivíduo
visando ao aumento da competitividade e produtividade, necessário tanto à reprodução
do capital como para atender à demanda do trabalhador de inserção no mercado, e a
função de construir uma “cultura cívica” como mecanismo de consolidação de uma
sociedade solidária, harmônica e confiável, necessária para reduzir conflitos e tensões e
aliviar a pobreza.
Na especificidade da formação social brasileira que se deu por um longo
processo de colonização econômica, político-social e cultural, de base escravocrata, e
que mantém a condição de dependência e subordinação econômica e tecnológica, a
concepção de educação voltada para “educar o conformismo” nesta conjuntura
altamente excludente, esvaziada de sentido público, que despolitiza e precariza a escola
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pública ao reduzir investimentos e introduzir a limitada lógica de mercado, traz
implicações que além de intensificar essa condição, tende a aprofundar de forma aguda
o abismo da desigualdade social e educacional numa dimensão desmedida que dificulta
projetar sua recuperação num futuro próximo.
Nesta perspectiva, cabe indagar a quem interessa uma “educação periférica”
voltada para o conformismo e traçar nos poucos espaços que restam as ações possíveis
de reversão desse quadro. Enfim, é preciso combinar o pessimismo da inteligência com
o otimismo da vontade (Gramsci).
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