O preto e o branco na música A relação dialética entre dois ritmos e sua importância na história da música ANA CAROLINA REIS, BRUNO ARRAES, EVELYN DELGADO s músicas negra e branca compõem as raízes de muitos gêneros musicais existentes até hoje. A interação entre elementos negros e brancos permeia a evolução da música, tornando possível a análise de um contexto comportamental e sócio-econômico a partir desse processo. A música contribui na criação de inúmeras identidades, estabelecendo relação com indivíduos e grupos relativamente extensos. Segundo o mestre em musicologia Vincenzo Cambria, a música pode assumir um papel extremamente importante nos processos de elaboração e negociação de uma identidade étnica ou racial. Para o estudante de música Gabriel Vabo, a análise da antropologia da música decorre da inclusão da música nas atividades sociais e os significados múltiplos desse processo. O contexto no qual determinada música está inserida ajuda a compreender seu significado. Os resultados da mistura entre música negra e música branca são as várias manifestações híbridas que mesclam características promovendo um produto miscigenado, único e mais democrático. São considerados como estilos originados dessa fusão da música negra e branca o jazz, o rock’n roll, o blues, o rhythm’n blues(R&B), o soul, o country, o samba, o chorinho e o rap, entre outros. Estes gêneros musicais apresentam elementos negros e brancos em sua origem, além de terem gerado outros tipos de música. O rock, que virou um sucesso na década de 1950, unia um ritmo rápido com toques de música negra do sul dos Estados Unidos e de música country, além disso, unia dança P&B E MYLENE CINTRA Ray Charles negra com a música branca de origem européia. Sua vertente negra produziu o soul na América e influenciou o reggae. Por sua vez, o ritmo imortalizado por Bob Marley atingiu seu auge na década de 1970, misturando ritmos africanos, músicas folclóricas da Jamaica, ska e calipso. Por ter origem africana e ser cantado na maioria das vezes por pessoas negras, nas duas décadas anteriores, o reggae não estava muito presente nas rádios, já que a maior parte era de propriedade de brancos que se recusavam a tocar o ritmo. O rap é outro exemplo de som híbrido. Criado nos EUA, mais especificamente nos bairros pobre s de Nova Iorque, jovens de origem negra e hispânica buscavam uma sonoridade nova. No Brasil, também há a presença da associação entre músicas negra e branca. O f u n k, por exemplo, nasceu nos EUA, oriundo do rap n o v a i o rquino, e aqui foi 15 O guitarrista Paulo Henrique Pereira afirma que “o R&B, um derivado do blues, e o country and western são os pais do rock”, uma vez que esses dois ritmos se misturaram durante os anos 1950. Pode se dizer também que os cantos gospel das igrejas negras protestantes norte-americanas, as harmonias da música branca (européia) e os estilos derivados de ambos representam as raízes do rock. Pixinguinha e sua banda influenciado pela cultura afro-americana. Ganhou força no Rio de Janeiro, onde era produzido e cantado por moradores de morros e favelas, negros em sua maioria. Hoje, ele atinge a “cultura branca”, que habita a Zona Sul da cidade e de bairros “elitizados”. Há ainda a própria MPB, que entre os séculos XVI e XVIII misturou sons africanos, cantigas populares e músicas eruditas européias. “Posteriormente, a MPB foi marcada pelo ritmo africano lundu e pela modinha portuguesa. E o chorinho foi a mistura desses dois com a dança de salão européia”, acrescentou Gabriel Vabo. O rock’n roll: um híbrido por excelência O rock nasceu do abraço das raças negra e branca. A origem do ro c k está na África, mas sua primeira transformação foi nos EUA, uma vez que os escravos, proibidos de usarem seus tambores, tiveram que assimilar o instrumental da música branca dos colonizadores. Por meio dessa interação de elementos, eles construíram uma relação dialética entre ambas as músicas, dando a origem a produtos musicais híbridos como o blues, que, em geral, expressa a melancolia e é um dos gêneros mais presentes na gênese do rock. Novos elementos foram incorporados aos ritmos híbridos, dando continuidade a uma cadeia de out ros estilos. Um dos sons derivados dessa miscigenação musical migrou para o norte dos EUA e lá se t r a n s f o rmou, ganhando uma batida simples e tensa que deu origem ao rhythm’n blues, o R&B. Outro descendente do blues é o jazz, que trazia a bossa da simplicidade rítmica e a experimentação melódica e h a rmônica, conquistando seu espaço tanto na cultura negra quanto na cultura branca. Ao mesmo tempo, criava-se o country and western, música mais ritmada, originalmente branca, na qual os violões ganhavam captadores para aumentar o som. 16 No ritmo do funk, rap e hip hop Outro ritmo oriundo da cultura negra e influenciado pela cultura branca é o funk – berço de diversos outros estilos rítmicos atuais. O funk nasceu nos EUA, na década de 1960, através da união do jazz com a soul music e se tornou realmente difundido pelo sucesso de James Brown (cantor negro da época, recentemente falecido). Foi também nesse momento que surgiu o rap (rhythm and poetry) nos anos 1970, como expressão musical dos guetos norte-americanos, sob influência direta dos imigrantes jamaicanos da época. Desses conceitos se desenvolveu o hip hop – ritmo que toca nas pistas de dança em diversos lugares do mundo. De uma maneira geral, esses ritmos são expressões da cultura negra, misturando raízes norte americanas, jamaicanas e africanas. A função social desses sons afro-americanos, tão forte na época do seu surgimento, vem se diluindo à medida em que se popularizam. Atualmente, esses ritmos negros tornaram-se moda para grandes contingentes da população jovem em todo mundo, que dançam e cantam funk, rap e hip hop sem saberem o significado daquelas marcações rítmicas nem o contexto que envolve a black music. Mas essa abertura de horizontes possibilita, por exemplo, que brancos façam “música de negros” – tal como o rapper n o rte-americano Eminem. Entretanto, é relevante frisar que o cantor, embora seja branco e de olhos claros, adota a postura e o comportamento dos rappers negros, explicitando a impossibilidade de dissociar o ritmo da cor. Samba: do morro para o asfalto O samba tem origem afro-baiana com tempero carioca. O ritmo, descendente do lundu, veio para o Brasil no início do século XX, e se instalou na Bahia e em São Paulo (Vale do Paraíba). Ele teve grande Julho/Dezembro 2006 desenvolvimento no Rio de Janeiro, onde ganhou novos contornos e instrumentos. Já no início do crescimento do samba no Rio, se percebia a fusão do negro com o branco. A popularidade do gênero está na identificação de seus dizeres com o cotidiano da gente que ocupou os morros cariocas e as áreas mais simples das grandes cidades, sendo fortemente marcado pela oralidade e suas implicações. Tal fato valoriza os modelos hierárquicos, a família, a religiosidade, mistura de raças, o senso comum e o contexto de onde se vive. Sua linguagem busca a compreensão imediata, a memorização e a participação da platéia. A música Pelo telefone, assinada por Donga, fundou o gênero em 1917. Numa proximidade com o aparentado maxixe, outras composições aparecem mais tarde e estabelecem os primeiros fundamentos do ritmo. Segundo o autor do livro O mistério do samba, Hermano Vianna, nos anos 1930 e 40, o samba e a marcha, antes praticamente confinados aos morros e subúrbios do Rio, conquistaram o país e todas as classes sociais. A corrente formada pelos “malandros” Alcebíades Barcellos, Newton Bastos e Ismael Silva e por sambistas como Baiaco, Brancura e Mano Edgar, redimensiona o estilo do samba, junto com os jovens de classe média Noel Rosa e Ary Barroso. Com a explosão da era do rádio a partir dos anos 1930, o ritmo ganha enorme difusão, conseguindo até projeção internacional com a música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso e também com Carmem Miranda. O samba é tocado com instrumentos de percussão (tambores, surdos, timbau) e acompanhado por violão e cavaquinho. O gênero é o marco central do carnaval, momento de comemoração da história do povo brasileiro, de miscigenação cultural, artística e racial. “Eu me orgulho de ter contribuído com Elvis: a majestade híbrida do rock Quando Elvis Presley cantou no rádio pela primeira vez em 1954, houve um congestionamento nas linhas telefônicas da rádio porque todos queriam saber quem era o negro que estava cantando That’s Allright. A voz de negro contrastava com a aparência de garotão branco, de olhos azuis e cabelos naturalmente loiros que foram tingidos de negros mais t a rde. Elvis sempre foi ligado à música negra, tinha como influência os intérpretes negros do Mississipi e os cânticos g o s p e l que P&B entoava na igreja e mesclava tudo isso com o ritmo country de brancos como Roy Acuff . A grande originalidade de Elvis foi o poder de fusão dos elementos da música negra e branca. As gravadoras e o showbizz americano encontraram nele uma mina de ouro: cantor branco com trejeitos corporais e potência vocal de negros. Isto acontecia de tal forma, que muitos juravam se tratar de um cantor negro apenas ao ouvir as músicas de Elvis, assim como hoje temos o exemplo das cantoras pop Joss Stone e Anastácia, que são brancas, mas se destacam por possuírem a potência vocal de cantoras negras. O hibridismo musical, que consagrou Elvis e que fez com que ele se tornasse uma unanimidade e n t re negros e brancos, explica-se a partir da questão da pobreza, que acabou por unir as duas raças também na América do Norte, fazendo com que ambos convivessem no mesmo espaço, como acontece atualmente nas favelas do Rio de Janeiro. 17 este espetáculo com começo, meio e fim, bem organizado e bem disciplinado, que não tem atraso e que nem pode se adiar, um espetáculo onde o público se sente à vontade e a alegria é de arrepiar”, diz o carnavalesco Joãozinho Trinta. A cultura africana já se espalhava por diversos morros e favelas do Rio de Janeiro – Mangueira, Império Serrano, Portela – de onde brotavam nomes como Cartola, Carlos Cachaça, Paulo da Portela, entre muitos outros. O samba ganhou status de identidade nacional através do reconhecimento de intelectuais como o músico e maestro Villa-Lobos. Após a Segunda Guerra, a influência cultural americana motiva o aparecimento da bossa nova, tocada pela classe média branca carioca, que divide o fraseado do samba e agrega influências do impressionismo erudito e do jazz. Surge com força no final da década de 1950 por meio de composit o res e intérpretes como João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, após precursores como Johnny Alf e João Donato. O gênero também teria toda uma geração de discípulos-cultores como Carlos Lyra, Roberto Menescal e os pioneiros vocais Os C a r i o c a s. Dissidências internas na bossa geraram os afrosambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Além disso, parte do movimento aproximou-se do samba tradicional, revalorizando sambistas ditos “de morro” como Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho e mais adiante Candeia, Monarco e o, então iniciante, Paulinho da Viola. No final da década de 1960, aparece Martinho da Vila, que fez muito sucesso ao popularizar o partido-alto e lançar em disco o samba-enredo – ampliando sua potencialidade no mercado. A partir daí, a fusão do negro com o branco fica mais evidente. Artistas negros passam a compor músicas para artistas brancos cantarem, e os brancos se infiltram nessa cultura antes praticada apenas pelos negro s. O funk no Rio de Janeiro Divulgação DJ Marlboro em ação A questão da música híbrida na realidade brasileira é muito evidente ao se pensar a posição do funk na sociedade carioca, por exemplo. Essa influência da música afro-americana no Brasil ocorre desde a década de 1960, mas foi nos anos 1980 que as versões brasileiras surgiram com força. Esses novos ritmos nasceram 18 como expressões da cultura marginal, sendo feitos por moradores das favelas cariocas e discriminados pela grande maioria da sociedade. “O que eu acho mais relevante é a importância social, as oportunidades que o funk dá para essa galera marginalizada, a chance de ser alguém, de se integrar na sociedade, é uma opção. O funk é a voz dessa galera, uma maneira de eles se expressarem”, explica DJ Marlboro em batepapo promovido pelo site UOL. Entretanto, assim como no âmbito mundial, esses ritmos marginais cresceram e obtiveram importância social suficiente para que a elite começasse a ouvir e gostar, proporcionando a mistura das raízes brancas e negras em mais esse aspecto da cultura brasileira. A estudante da PUC-Rio, Lissa Lemos, acredita que o funk é forte na cultura carioca devido aos temas, independente do local onde seja feito. “O funk é tão consumido pelos jovens de todas as áreas da cidade, porque diz muito s o b re a realidade do carioca, não apenas da vida nas favelas”, arg umenta Lissa. Hoje, existem diversos artistas brancos que trabalham esses ritmos negros, evidenciando a mistura de raízes que constrói esse cenário. Julho/Dezembro 2006