ATUALIZAÇÃO | Ana L. C. Martinelli Desafios e tratamento atual da Hepatite C Crônica Ana L. C. Martinelli Professora Associada do Departamento de Clínica Médica – Divisão de Gastroenterologia Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP) hepatite | gastroSP | volume 4 | números 3 e 4 | ano 2015 n 16 cau- casos, e a evolução para infecção crôni- sada pelo vírus ca ocorre em 50-90% dos casos. A evo- C (HCV) é um lução da doença hepática pode ocorrer grave problema lentamente, durante várias décadas após de saúde públi- a infecção, com pouco ou nenhum sinto- ca no mundo, com cerca de ma. E quando se manifesta já se encontra, 170 milhões de infectados. muitas vezes, em fase avançada. A cirrose Constitui uma das princi- ocorre em cerca de 10-40% dos casos e a pais causas de doença he- incidência de Carcinoma Hepatocelular pática crônica. A maioria (CHC) é de 1-5% por ano. dos infectados desco- Na infecção crônica pelo HCV a lesão nhece sua condição, hepática pode ter graus variáveis, desde o que torna o pro- formas leves até graves como cirrose e blema ainda mais CHC. O curso da lesão hepática pode ser sério. Estratégias acelerado pelo consumo de álcool, coin- diagnosticar fecção com vírus B ou HIV, diabetes, os portadores da in- imunossupressão, sobrecarga de ferro e para fecção são discutidas idade avançada. e a testagem de todos A principal via de transmissão do HCV é os indivíduos nascidos a parenteral. A transfusão de sangue, o uso entre 1945 e 1965 foi de drogas endovenosas e de medicamentos proposta recentemente injetáveis com material não descartável nos Estados Unidos. constituíram as principais formas de con- Características peculiares da taminação antes de 1990. Estas vias dimi- infecção pelo HCV justificam essa situa- nuíram de importância após a introdução ção. Até recentemente não se dispunha de testes específicos para o HCV e medidas de testes para o seu diagnóstico, o que visando diminuir a contaminação. Entre- possibilitou a disseminação. A infecção tanto, novos casos continuam ocorrendo e, aguda é assintomática, na maioria dos atualmente, as principais vias de contágio Ana L. C. Martinelli | atualização são pelo uso de drogas endovenosas e ina- drogas com ação antiviral direta (DAA, do inglês direct-acting an- latórias, procedimentos médicos e não mé- tiviral) e drogas host targeted agents (HTA) estão aprovadas ou dicos com material contaminado, e, menos em vias de aprovação para o tratamento da hepatite C. O enten- frequentemente, via sexual, tatuagem, acu- dimento do ciclo de vida do HCV permitiu o desenvolvimento puntura e via perinatal. e estudo de diferentes drogas que atuam na replicação do vírus. vez mais sensíveis de detecção do HCVR- Algumas dessas novas drogas já estão aprovadas NA permite o diagnóstico da infecção em para uso e inúmeras outras estão em fases II ou III de um maior número de casos, além de ter estudo. Os novos esquemas com diferentes combi- relevante papel na avaliação de resposta nações de drogas mostram ótimos resultados com ao tratamento. taxas de cura maiores que 90%-95%. Têm ainda Sete genótipos do HCV e vários sub- a vantagem de permitir menor duração do trata- tipos são descritos. O genótipo 1 é o mento, ser de fácil uso (via oral), dispensar o uso de mais prevalente no mundo, enquanto IFN (esquemas IFN free), e ser bem tolerados e com o genótipo 3 é altamente prevalente em poucos efeitos colaterais. usuários de drogas. Genotipagem e sub- Dentre as novas drogas, as que estão em fases de es- genotipagem são importantes, particu- tudo mais adiantadas são os inibidores da maturação de po- larmente para a decisão do esquema de liproteínas do HCV (inibidores de protease NS3/4A) e inibi- tratamento, sendo fundamental o uso dores da síntese de RNA viral (inibidores da replicação viral de testes precisos. Para a terapia dupla incluindo DAAs e HTAs). As DAAs incluem inibidores (interferon peguilado e ribavirina: PEG-IFN/Ribav) o esquema para genótipo 1 de protease NS3/4A de primeira geração, é, regra geral, mais longo que para os ge- de primeira onda (Telaprevir e Bocepre- nótipos 2 ou 3. O genótipo 2 é mais sen- vir) e de segunda onda (Simeprevir, Fal- sível ao tratamento duplo que o genótipo daprevir, Asunaprevir, ABT-450/r); ini- 3. Reconhece–se um subgrupo de infectados genótipo 3, os cirróticos, como um dos mais difíceis de tratamento, representando um desafio aos hepatologistas. A biópsia hepática, utilizada até recentemente como rotina na avaliação do grau de fibrose e de necro-inflamação na hepatite C crônica, atualmente, pode ser substituída por métodos não invasivos de avaliação da fibrose, na maioria dos casos. Dentre esses métodos destacam-se a elastografia hepática e os biomarcadores séricos. Ressalta-se, entretanto, a limitação desses testes no diagnóstico de fases intermediárias da fibrose. Com a combinação PEG-IFN/Ribav por 24-48 semanas, as taxas de resposta virológica sustentada nos genótipos 1, 3 e 2 são de 40-50%, 70% e 80-90%, respectivamente. O tratamento da hepatite C está sofrendo um grande avanço. Após quase 25 anos de uso de esquemas contendo IFN, novas … as principais vias de contágio são uso de drogas endovenosas e inalatórias, procedimentos médicos e não médicos com material contaminado, e, menos frequentemente, via sexual, tatuagem, acupuntura e via perinatal. bidores de protease NS3/4A de segunda geração (MK-5172, ACH-2684); inibidores nucleotídeos da RNA polimerase (Sofosbuvir) e inibidores nucleosídeos da RNA polimerase (Mericitabina); inibidores não nucleosídeos da RNA polimerase (BMS791325, TM-C647055, GS-9669, ABT-333, ABT-072); inibidores da proteína não estrutural NS5A de primeira geração (Daclatasvir, Ledipasvir, ABT-267, ACH-2928) e de segunda geração (MK-8742, ACH-3102, GS-5816) e compostos hosted-targeted (inibidores da ciclofilina: Alisporivir, SCY-635). O espectro de ação dessas novas drogas difere em relação aos genótipos e sugenótipos do HCV, além de terem diferentes barreiras genéticas. As de baixa barreira podem selecionar cepas resistentes, especialmente se usadas em monoterapia, o que, portanto, não se recomenda. Por outro lado, essas drogas têm efeitos adi- 17 | gastroSP | volume 4 | números 3 e 4 | ano 2015 n O desenvolvimento de métodos cada Ana L. C. Martinelli | atualização | gastroSP | volume 4 | números 3 e 4 | ano 2015 n de esquemas IFN free. Por outro lado, a segunda onda e os de segunda geração, ribavirina pode ainda ser usada com bene- assim como as novas classes de DAAs, fício em alguns esquemas de tratamento, podem ser usados em esquemas conten- possibilitando o encurtamento de tempo do ou não interferon (IFN free) e com dos mesmos. ou sem ribavirina. O papel da ribaviri- Em resumo, a hepatite C constitui im- na em aumentar a taxa de resposta ou portante problema de saúde pública no permitir o encurtamento do tempo de mundo, com grande número de indivíduos tratamento em diferentes esquemas está contaminados, a maioria sem diagnóstico. em investigação. É a principal causa de doença hepática crô- A grande questão, no momento, é re- nica e suas complicações. O esquema du- lacionada a quem deve ser tratado e qual plo com PEG-IFN/Ribav está sendo substi- esquema deve ser usado. O tratamento tem tuído por esquemas com DAAs e HTAs. Os por objetivo erradicar a infecção e preve- novos esquemas estão cada vez mais efica- nir o desenvolvimento de complicações zes e com maior tolerabilidade, entretanto, como a cirrose, o CHC e a morte. Desse ainda são de alto custo. Considerando que modo, todo paciente com infecção pelo o tratamento é curativo, a disponibilidade HCV deveria ser considerado candidato de drogas altamente potentes e de fácil uso a tratamento, desde que não tenha con- constitui um importante passo para que a tivos ou sinér- traindicações e que manifeste desejo de hepatite C seja definitivamente erradicada gicos, o que ser tratado. Se o tratamento com as novas do planeta. aumenta seu drogas tiver que ser priorizado, é razoável potencial an- considerar que os pacientes com doença Bibliografia tiviral 18 Os inibidores de proteases NS3/4A de quando hepática mais avançada e aqueles com ma- 1. EASL Clinical Practice Guidelines: Man- usadas em combina- nifestações extra-hepáticas clinicamente agement of hepatitis C virus infection. ção. Ressalta-se, entretanto, que significativas sejam os primeiros candi- as drogas da mesma classe podem apre- datos. Por outro lado, o tratamento dos 2. CDC. Recommendations for the Identification of sentar resistência cruzada e, portanto, pacientes com fibrose moderada também Chronic Hepatitis C Virus Infection Among Per- para aumentar a barreira à resistência, é é justificado, uma vez que podem evoluir sons Born During 1945–1965. MMWR 2012; 1-18. mandatória a combinação de drogas de para formas mais graves, particularmente 3. Lange CM, Zeuzem S. Perspectives and chal- diferentes classes. se tiverem fatores que acelerem a evolução lenges of interferon-free therapy for chronic J Hepatology 2011; 55:245–264. Dentre os inibidores de proteases NS3-4A da doença, além de que são os que mais to- de primeira geração e de primeira onda estão leram o tratamento e são potenciais candi- 4. Pawlotsky JM. New Hepatitis C Thera- o Telaprevir e o Boceprevir, ambos com datos para esquemas mais simples. Para os pies: The Toolbox, Strategies, and Chal- baixa barreira genética. Foram aprovados pacientes com doença hepática mínima o lenges. Gastroenterology 2014. para uso em combinação com PEG-IFN/ tratamento pode ser discutível e deve ser 5. EASL Recommendations on Treatment Ribav em pacientes com HCV genótipo individualizado. A decisão de tratamento of Hepatitis C. J Hepatology 2014. 1 nos Estados Unidos e Europa em 2011 será definida, basicamente, pela disponi- 6. Chan J. Hepatitis C. Disease-a-Month e no Brasil em 2013. As taxas de resposta bilidade e custo das medicações, podendo virológica sustentada com a terapia tripla ser indicada para todo indivíduo que dese- (Telaprevir ou Boceprevir mais PEG-IFN/ jar o tratamento. hepatitis C. J Hepatology 2013; 58:583–592. 60 (2014) 201–212.yles D L. 7. Gutierrez JA. Importance of HCV genotype 1 subtypes for drug resistance and Ribav) aumentaram em cerca de 30% em Vale considerar que o uso do PEG-IFN relação à dupla. Entretanto, os efeitos co- ainda será importante nas estratégias de laterais com a terapia tripla são comuns, o tratamento da hepatite C, pelo menos até tratamento é longo e não pode ser usado 2015, mas com a perspectiva de ser elimi- tions for testing, managing, and treating em pacientes com doença hepática avança- nado dos esquemas novos. Uma das maio- hepatitis C. http://www.hcvguidelines. da ou com contraindicação ao uso de IFN res limitações dos novos esquemas é o alto org. Accessed April 24, 2014. e/ou ribavirina. preço, o que pode retardar a implantação response to therapy. Journal of Viral Hepatitis, 2014, 21:229–240. 8. AASLD/IDSA/IAS–USA. Recommenda-