1 A PUNIÇÃO E OS SEUS SUBPRODUTOS

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A PUNIÇÃO E OS SEUS SUBPRODUTOS: uma análise comportamental da tortura
RESUMO
A punição é intensamente empregada para abolir comportamentos considerados “indesejáveis”.
Entretanto, será que esse método é eficaz? Para o behaviorismo radical não. E, além da sua
ineficiência, a punição gera subprodutos danosos aos seres humanos.
Durante séculos a punição - na modalidade da tortura - foi empregada para expurgar as
atividades que se contrapunham aos interesses dos dominantes. Durante a ditadura militar isto
não foi diferente: um Estado de terror foi instaurado e os direitos humanos e civis suprimidos.
Apesar da democratização, a tortura ainda é utilizada rotineiramente nas instituições penais,
contra os excluídos do sistema neoliberal.
Devido a sua intensa utilização, a presente pesquisa teve como objetivo principal analisar a
eficácia da punição e suas conseqüências – na modalidade da tortura - em ex-presos políticos
submetidos à tortura durante a ditadura militar. A análise foi orientada pelo Behaviorismo
Radical. A pesquisa constou de seis participantes que militaram em organizações políticas, e por
isso foram submetidos à punição. Mediante a entrevista semi-estruturada, foi possível coletar
dados e verificá-los a partir da proposta da análise de contingências.
Com base nos resultados, todos os sujeitos - após serem submetidos à tortura e à prisãoretornaram a militância política. Verificou-se a importância dos valores para a manutenção dos
comportamentos de contracontrole a agência governamental e a resistência à tortura. Também se
constatou que a punição gera conseqüências desastrosas para o sujeito e sociedade, como a
contra-agressão, o que reforça a teoria skinneriana.
PALAVRAS-CHAVE: tortura; punição; Psicologia.
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A PUNIÇÃO E OS SEUS SUBPRODUTOS: uma análise comportamental da tortura
AUTORA: Dora Teixeira Diamantino
PROFESSOR ORIENTADOR: Anamélia Lins e Silva Franco
BANCA DE EXAMINADORES: Mercedes Cunha Chaves de Carvalho e Stella Sarmento
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1 INTRODUÇÃO
O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura,
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora.
(Geraldo Vandré)
1.1 A punição sob a ótica de B. F. Skinner
A agressão física, a censura, o castigo e a ameaça são comumente empregados a fim de suprimir
comportamentos considerados “perigosos” ou “indesejáveis”. Desta forma, durante a ditadura
militar, a tortura foi largamente empregada para abolir comportamentos que se opunham aos
interesses do Estado autoritário, se constituindo, à luz da teoria skinneriana, como uma prática
punitiva. Mas, por que a punição é utilizada intensamente como método de controle? (SIDMAN,
1995).
A punição é aplicada com a finalidade de evitar determinados comportamentos e acredita-se na
funcionalidade deste método. Usualmente os indivíduos não gostam de ser punidos, e os que a
aplicam muitas vezes sentem desprazer. Mesmo assim este método de controle é largamente
utilizado nas sociedades modernas e para muitos é eficaz. Mas, será que a punição funciona?
(SIDMAN, 2001).
Para responder esta questão é imprescindível conhecer o conceito da punição. Entretanto, é
necessário primeiramente elucidar sobre a noção de reforço positivo e negativo, diferenciandoos. Segundo Skinner (1998), um reforçador é positivo quando aumenta a freqüência de um
determinado comportamento ser emitido futuramente. Ao contrário, um estímulo é considerado
aversivo quando a sua remoção é reforçadora. Ou seja, a probabilidade de reforçar uma resposta
a partir da sua retirada é intensificada.
Outro tipo de controle é a punição. Esta pode ser empregada com a remoção de reforçadores
positivos. Assim, patrões descontam uma determinada quantia do salário dos trabalhadores,
quando os mesmos faltam o serviço; ou pais proíbem os filhos de brincarem durante um período
de tempo. Ao contrário, a punição também pode ser aplicada com a apresentação de reforçadores
negativos, como o castigo e a tortura (SIDMAN, 2001).
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Para Skinner (1971) é importante ressaltar que a punição não deve ser confundida com o reforço
negativo, pois este é utilizado para induzir o indivíduo a comportar-se de um dado modo, ao
passo que o emprego da punição tem como objetivo embargar a ação de outrem. Também, o
reforço - positivo e negativo - quando contingente, aumenta a probabilidade futura de ocorrência
do comportamento. Em oposição, a punição ocorre com a remoção de reforçadores positivos ou
com a apresentação de reforçadores negativos (SIDMAN, 2001).
A punição pode gerar três efeitos distintos, dependendo da sua forma e intensidade. Assim, os
estímulos aversivos empregados na punição podem se limitar a uma situação imediata e não
necessariamente modificará o comportamento futuramente. É possível impedir que alguém
continue comendo, ao contar-lhe algo que lhe traga desprazer; ou mesmo pode-se impedir que
uma criança brinque em algum ambiente inapropriado agredindo-a. Mas, geralmente, o efeito da
punição é duradouro (SKINNER, 1998).
Outro efeito da punição pode ser analisado a partir do caso da criança descrito acima. É possível
que em outros ambientes se possam prover estímulos condicionados, provocando a emissão de
comportamentos emocionais. Skinner (1998) assegura que estes - gerados por estímulos
condicionados - podem interferir na freqüência da resposta e até produzir comportamentos
incompatíveis.
Comportamentos severamente punidos desencadeiam respostas emocionais, predispondo-as.
Muitos destes envolvem a ação de glândulas e músculos lisos. A culpa, a vergonha e o
sentimento de pecado são emoções centrais. Mas vale lembrar que a punição não é a única via
para gerar a culpa ou a vergonha.
Os efeitos da punição, até então relatados, enfraquecem temporariamente o comportamento
“indesejável”, a partir da reação emocional. O último efeito da punição é extremamente
relevante. Ocorre quando se estabelece condições aversivas, evitadas pelo indivíduo, e esta é, por
si só, reforçadora.
Não é suficiente dizer que o que é reforçado é simplesmente o oposto. Algumas vezes é meramente “não
fazer nada” sob a forma de permanecer ativamente imóvel. Outras vezes é um comportamento apropriado a
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outras variáveis concomitantes que não são, entretanto, suficientes para explicar o nível de probabilidade de
comportamento sem supor que o indivíduo também está agindo “para estar seguro de evitar complicações”
(SKINNER, 1998, p. 206).
Este efeito pode ser descrito como uma coibição do comportamento, sendo esta a própria
resposta incompatível. O estímulo aversivo condicionado é extinto se a evitação for acentuada. A
intensidade do reforço do comportamento incompatível sofrerá uma diminuição e o
comportamento punido surgirá. Com a nova ocorrência da punição, o reforçador negativo é
recondicionado e o comportamento de evitação é reforçado. Com o cessar da punição, o
comportamento emerge com maior intensidade (SKINNER, 1998).
Portanto, “a punição não tem efeito simples sobre o comportamento. Seus efeitos dependem de
muitos parâmetros do estímulo aversivo – sua força e duração, por exemplo” (MILLENSON,
1967, p. 400). Se a contingência punitiva permanecer durante um longo período de tempo ou for
extremamente intensa, é provável que a supressão do comportamento seja mais duradoura.
Diversas agências utilizam a punição como forma de controle, tais quais: a família, a escola, o
governo e a religião. Através destas, membros de um grupo exercem o controle por meio do
reforço e punição (SKINNER, 1998).
O governo é uma das agências de controle que utiliza a punição para domar o comportamento
humano. Segundo Skinner (1998), geridos pelo poder governamental, a punição na modernidade
é uma tarefa atribuída a alguns grupos - como a Polícia e o Exército - e a repressão,
normalmente, é exercida através da força física.
Através da manipulação de variáveis o governo modifica e controla o comportamento dos
membros do grupo, e estes, ao se comportarem “adequadamente”, reforçam o poder
governamental. Assim justifica-se a sua função e necessidade (SKINNER, 1998, p. 378). Em
contraponto, os controlados podem escapar do poder que os dominam ou agir sobre ele,
objetivando reduzi-lo ou aniquilá-lo. A oposição ao controle resulta no contracontrole
(SKINNER, 2003).
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O contracontrole é um dos efeitos colaterais da punição e pode ser exercido através da ameaça de
remover o reforço. É possível também contracontrolar por meio do reforço positivo. Assim, a
ameaça de remoção do reforço é substituída pela sua promessa e o comportamento do
controlador é alterado, mesmo que o reforço demore (BAUM, 1999).
Outras conseqüências geradas pela punição são: a fuga, a esquiva, a revolta e a resistência
passiva. Na primeira o indivíduo se comporta visando eliminar o controle aversivo (SKINNER,
1998). Neste caso, “algo ruim tem que acontecer realmente antes que possamos fugir; ao fugir,
colocamos um fim a uma situação ruim (SIDMAN, 2001, p. 136).
Ao contrário da fuga, quando o indivíduo age para impedir o aparecimento de um estímulo
aversivo, diz-se que o mesmo emitiu um comportamento de esquiva. De tal forma, “crianças
usualmente não esperam pelo tapa ou pela bronca dos pais, para fugir depois que a punição tenha
começado. Em vez disso, elas se escondem, correm, dão desculpas ou imploram por perdão”
(SIDMAN, 2001, p. 135-136).
A revolta caracteriza-se pelo contra-ataque ao agente de controle. Segundo Skinner (1998) é
possível destruir, por exemplo, através da contra-agressão, o grupo e os seus bens, ou apenas
acusá-lo de ser autoritário. A punição gera a agressão e a “coerção induz mais do que apenas o
ato agressivo em si mesmo. Depois de ser punido, um sujeito fará qualquer coisa que possa para
ter acesso a outro sujeito que ele possa então atacar” (SIDMAN, 2001, p. 221).
A resistência passiva consiste em não se comportar de forma compatível aos procedimentos de
controle. Geralmente isso ocorre quando o indivíduo já tentou fugir ou se revoltar. Skinner
(1998) elucida este subproduto com o exemplo de um trabalhador que não pode se demitir nem
mesmo se revoltar, e por isso boicota a produtividade, fazendo “corpo mole”.
Comumente a agência governamental lida com estes subprodutos intensificando os
procedimentos coercitivos. Por isso, “o fugitivo é capturado e mais seguramente confinado. A
revolta é abafada e o revolucionário fuzilado” (SKINNER, 1998, p. 392).
O controle também gera subprodutos como o medo, a ansiedade, a ira, a raiva e a depressão. O
primeiro origina-se a partir do controle que suscita a fuga. As respostas fisiológicas são eliciadas
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pelos estímulos aversivos, podendo acompanhar comportamentos de fuga. Diversas são as suas
implicações, como o pouco interesse em atividades sexuais, em comer, e até a não emissão de
respostas, devido ao medo excessivo (SKINNER, 1998).
A ansiedade, de acordo com Skinner (1998), é outro subproduto emocional do controle aversivo
que acompanha a fuga ou a esquiva, podendo variar de intensidade. Envolve respostas
fisiológicas e modificações no nível operante.
A ira e a raiva acompanham a revolta, surtindo efeitos sobre os comportamentos reflexos e
operantes. Agregam a intensa probabilidade de agir de forma agressiva sobre o agente
controlador, enfraquecendo outros comportamentos (SKINNER, 1998).
A depressão acompanha a resistência passiva. A criança que desobedece às ordens do pai pode
ficar de “mau-humor” ou “deprimida”. O trabalhador que boicota a produtividade também se
abate. “O tédio se origina não apenas porque não há nada para fazer, mas porque nada pode ser
feito – seja porque uma situação é desfavorável à ação, seja porque o grupo ou a agência
controladora impôs restrições físicas ou autorestrições” (SKINNER, 1998, p.395).
Durante a ditadura militar brasileira, o poder punitivo fez parte da política do Estado contra os
opositores do regime. A organização e atuação em grupos, participação em movimentos
guerrilheiros, debates, manifestações, panfletagens, etc - comportamentos estes de militância
política ou de contracontrole a agência governamental – tornaram-se atividades “ilegais”. Tendo
em vista o cenário histórico da ditadura militar no Brasil e a ótica skinneriana, de que forma a
agência de controle governamental punia seus opositores? Quais as técnicas de repressão
empregadas durante o regime? Será que tais métodos foram eficazes para eliminar
comportamentos de militância política? Quais as repercussões do emprego deste método?
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1.2 A prática da tortura
Seu corpo será desmembrado por
quatro cavalos (...), consumido ao
fogo, reduzido a cinza, e suas cinzas
lançadas ao vento
(Trité de droit penal, 1829).
A tortura foi empregada em diversos períodos históricos e contextos sociais para expurgar os
corpos daqueles que se opunham ao poder vigente. A aplicação sistemática da tortura teve início
no século XI, atingindo o ápice no período compreendido entre XIII a XVII (COIMBRA, 2001).
Doravante, apoiado no discurso “humanístico”, os suplícios desapareceram e foram substituídos
por uma arte de punir mais discreta, tímida, que não atingia apenas o corpo do supliciado, mas a
sua alma. De acordo com Foucault (1987), entre o final do século XVIII e início do XIX, as
grandes fogueiras, os pelourinhos e os espetáculos punitivos foram extintos, acompanhados pela
crítica contra a violência e o horror. É tempo das “grandes internações”! Penitenciárias e
manicômios foram erguidos, forma esta mais sutil de punir, alheia aos olhos da sociedade.
No Brasil - ao longo do século XX - a tortura esteve presente, sendo veementemente empregada
contra os considerados delinqüentes, criminosos e perigosos. Segundo Coimbra (2001), nos anos
20, com a organização dos movimentos anarquistas no Brasil a sua prática se intensificou e
diversos ativistas políticos foram torturados. Durante a ditadura getulista (1937-1945) vários
militantes também foram presos e supliciados pela Polícia Política em todo o país.
Com o levante da ditadura pelos militares, em primeiro de Abril de 1964, a tortura foi
sistematizada e intensificada (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). Para Fausto (2002), o
Estado autoritário alterou a estrutura política vigente, instituiu aparelhos de controle, informação
e repressão – como o Destacamento de Operações e Informações (DOI) e o Centro de Operações
de Defesa Interna (CODI) - e intensificou o poder Executivo. Assim, a ditadura “criou para o
nosso povo uma situação de pesados sacrifícios, que vão desde a entrega e a submissão do país
aos Estados Unidos até a supressão brutal das liberdades com a subseqüente implantação do
terror político e ideológico e o desencadeamento de perseguição em massa” (MARIGHELLA,
1994, p. 82).
Entretanto é com o Ato Institucional nº5 (AI-5), sancionado em 13 de Dezembro de 1968, que a
repressão foi recrudescida e os direitos civis e humanos suspensos. Doravante, os métodos
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coercitivos e os sistemas de investigação foram intensificados, aumentando assustadoramente o
índice de prisão, assassinato, exílio e desaparecimento dos opositores do governo militar.
Segundo Brasil (2007), os meios de comunicação foram silenciados, afastando dos olhos da
sociedade as atrocidades cometidas pelo Estado. Quanto aos “crimes políticos”, os “subversivos”
eram julgados pelos tribunais militares e sumariamente condenados, sem direito de defesa.
Além de constituir como técnica para obtenção de informação, a tortura também era utilizada
para punir os “subversivos” e intimidar os demais integrantes do grupo político. Através do seu
emprego, além de atingir o indivíduo, o Estado estimava amedrontar os opositores e,
consequentemente, reduzir as ações e organizações contrárias aos seus interesses. Neste contexto
a
tortura
tornou-se
instrumento
científico
aplicada
rotineiramente
na
masmorra
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).
Os militares tornaram-se agentes repressivos implacáveis, empregando métodos sofisticados e
importados de países imperialistas, sobretudo dos Estados Unidos (BETTO, 1983). No entanto,
de acordo com Gaspari (2002), apesar de sancionada em 1968 pelos oficiais-generais, o Estado
sempre negou o emprego da tortura.
A ambigüidade entre o discurso das autoridades e as práticas utilizadas na masmorra é notável:
ao passo que a primeira nega a existência da tortura nas prisões, esta é empregada com o
consentimento das autoridades responsáveis pela segurança nacional e é baseada em leis que ora
afirmam ser a tortura uma prática ineficiente, ora atestam a necessidade da utilização de métodos
violentos nos interrogatórios (GASPARI, 2002).
O governo tinha as suas razões ancoradas na necessidade de “proteção nacional”, de “combate ao
terrorismo” e da infalibilidade do emprego da tortura como método de extermínio da
“subversão”. Entretanto, “é falsa a suposição segundo a qual a tortura é praticada em defesa da
sociedade. Ela é instrumento do Estado, não da lei. Pertence ao episódio fugaz do poder dos
governantes e da noção que eles tem do mundo, e sobretudo de seus povos” (GASPARI, 2002, p.
25).
A tortura envolvia técnicas de confissão, agressões, injúrias, ameaças, e tais conhecimentos
estavam inclusos na formação militar. A infra-estrutura repressiva incluía instrumentos e locais
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adequados, treinamento dos agentes, até a participação de um aparato médico que assessorava a
tortura (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985). Deste modo, Gaspari (2002) assegura que
médicos e enfermeiros tiveram participação direta e ativa na prática da tortura, monitorando a
resistência do corpo para que o indivíduo não fosse a óbito. Muitos laudos foram fraudados,
escamoteando as marcas das agressões ou as causas reais das mortes.
Diversos eram os métodos de tortura e instrumentos utilizados. O “pau-de-arara”, por exemplo,
refere-se a uma barra apoiada entre duas mesas, que perpassa os punhos amarrados e os joelhos
dobrados do torturado. O indivíduo fica pendurado há vinte ou trinta centímetros de distância do
chão. Geralmente este método é acompanhado de choque-elétrico, palmatórias e afogamentos
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).
Para complementar o método do “pau-de-arara”, o afogamento era utilizado. Constituía de um
pequeno tubo que, ao ser introduzido na boca ou nariz, lançava água. O choque elétrico era
aplicado em partes variadas do corpo do supliciado, principalmente nos órgãos genitais, ânus,
ouvidos, língua, dentes, dedos. Consiste em fios longos, ligados ao corpo, incidindo descargas
elétricas. Esta prática pode ser examinada no depoimento a seguir:
Ligaram os fios na minha mão e começaram a dar choques e perguntar por pessoas. (...) Enquanto pensava, ia
tomando novos choques e quando passaram os fios para a ponta da orelha realmente deixei de pensar em
outra coisa, exceto na necessidade de não deixar que minha cabeça se partisse. Cada vez que davam o
choque, tinha uma profunda sensação de dilaceramento, da cabeça se partindo em duas (...) (GABEIRA,
1979, p. 156-157).
De acordo com José (2000), a “geladeira” - outro instrumento utilizado pelos algozes - era um
ambiente com ar-condicionado, onde se introduzia o indivíduo nu, deixando-o permanecer por
alguns dias. Em alguns casos os indivíduos ouviam barulhos ensurdecedores ou gritos de pessoas
sob tortura.
Produtos químicos também eram utilizados na tortura, tais quais: o soro Pentatotal, substâncias
ácidas e injeções de éter. Do mesmo modo, a palmatória era empregada demasiadamente, sendo
constituída por uma borracha grossa, amparada por um cabo. A asfixia era realizada por uma
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corda, que ao ser amarrada ao pescoço do torturado, o sufocava (ARQUIDIOCESE DE SÃO
PAULO, 1985). Marighella (1994) descreve outro método denominado “telefone” que consiste
na aplicação, com as mãos em forma de concha, de tapas concomitantes nos ouvidos, até estourar
os tímpanos.
De acordo com a Arquidiocese de São Paulo (1985), o “Cristo Redentor” era demasiadamente
utilizado, somado ao espancamento. Neste, os braços do indivíduo eram esticados e amarrados
para cima, desarticulando a musculatura e os rins. Outra técnica consistia em ter a cabeça
mergulhada - com a boca aberta - num tambor de gasolina com água, denominada de “banho
chinês”.
Além destes métodos de tortura tinha-se a “cadeira do dragão”. Esta era constituída por uma
cadeira elétrica de zinco, com uma travessa de madeira que, ao empurrar os pés para trás,
produzia ferimentos graves. Fios elétricos eram ligados ao corpo - comumente a língua, olhos,
ouvidos, pulsos, órgãos genitais, seios, ânus - provocando choques-elétricos intensos
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).
A condição carcerária e a privação de liberdade compunham os mecanismos de punição. No
relato a seguir, é possível constatar a realidade nefasta da prisão: “Foram 19 dias nos quais as 19
pessoas não saíam da cela, não tomavam banho. Para satisfazer as necessidades fisiológicas, uma
lata de 20 litros. Sem escovar os dentes, sem cama. Dormindo no chão, num período chuvoso”
(JOSÉ, 2000, p. 98).
Em alguns casos se extraía os testículos ou introduzia objetos no ânus, como se pode perceber a
partir da descrição seguinte:
(...) Em determinada oportunidade foi-lhe introduzido no ânus pelas autoridades policiais um objeto parecido
com um limpador de garrafas; que em outra oportunidade essas mesmas autoridades determinaram que o
interrogado permanecesse em pé sobre latas, posição em que vez por outra recebia além de murros,
queimaduras de cigarros; que isto as autoridades davam o nome de Viet Nan; que o interrogado mostrou a
este Conselho uma marca a altura do abdômen como tento sido lesão que fora produzida pelas autoridades
policiais (gilete); (...) (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 40).
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Segundo José (2000) insetos e animais foram empregados, também, como instrumentos de
punição. Muitas vezes eram colocados nas celas dos presos ou acompanhavam outros métodos
de tortura, sendo introduzidos, por exemplo, no ânus.
Esposas e filhos foram torturados diante dos maridos e pais, assim como indivíduos
presenciaram os seus companheiros submetidos a sevícias (BETTO, 1983). A tortura foi
empregada indiscriminadamente, independente do sexo. No entanto os métodos utilizados se
diferenciavam.
Comumente as mulheres eram submetidas a violências sexuais, além das agressões físicas,
morais e psicológicas, como pode ser constatado a seguir:
Um policial (...) ficou à sua frente, traduzindo atos de relação sexual que manteria com a declarante, ao
mesmo tempo em que tocava o seu corpo (...); o polícia profanava os seus seios e, usando uma tesoura, fazia
como iniciar seccioná-los; (...) que, na Polícia do Exército, os três presos foram colocados numa sala, sem
roupas; que, inicialmente, chamaram Chael1 e fizeram-no beijar a declarante toda e, em seguida, chamaram
Antonio Roberto2 para repetir esta prática, (...) o cabo Nilson Pereira insistia para que a declarante o fitasse
sem o que não lhe entregaria a refeição (...) (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 48).
Também, casos de aborto são verificados: “molharam o seu corpo, aplicando conseqüentemente
choques elétricos (...), inclusive na vagina; que a declarante se achava operada de fissura anal,
que provocou hemorragia; que se achava grávida, semelhantes sevícias lhe provocaram aborto.”
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 50).
Segundo Gaspari (2002), apesar da dor produzida pela tortura, muitos militantes resistiam ao
máximo à punição. As ideologias difundidas pelos grupos políticos fomentavam a resistência à
prisão e à tortura, sendo fundamentais para a sobrevivência das organizações e dos seus
integrantes. Isto pode ser verificado no relato seguinte: “Eu não podia revelar nada. (...) A
obrigação do revolucionário era preservar os companheiros, e ponto final. Eu nem tinha certeza
de que seria capaz de manter esse princípio. Tinha a convicção, no entanto, de que tentaria, no
limite máximo de minhas forças” (JOSÉ, 2000, p. 16).
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Companheiro da declarante.
Idem.
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A tortura gera efeitos devastadores para o ser humano. Verifica-se que muitos torturados, após
serem submetidos à sevícia, passaram a apresentar perda da coordenação motora, insônia,
alucinações, delírios, perda da noção do tempo, depressão, perda dos sentidos, problemas
respiratórios, dores de cabeça, pânico, medo, fobia, comprometimento da memória, problemas
cardiovasculares, idéias suicidas. Também, a tortura deixou seqüelas irreparáveis. De acordo
com a Arquidiocese de São Paulo (1985), alguns torturados ficaram paraplégicos ou
tetraplégicos; outros apresentaram lesões na coluna vertebral, debilidades físicas, queimaduras,
fraturas, marcas e cortes por todo o corpo, dentes quebrados, hematomas, problemas respiratórios
e cardíacos.
Mesmo com a derrocada da ditadura militar, a tortura ainda é intensamente empregada para punir
os pobres e excluídos do sistema neoliberal (COIMBRA, 2001). Tendo em vista a sua larga
utilização, é imprescindível o estudo dessa prática punitiva no que concerne a sua eficácia e
repercussão para o indivíduo e sociedade.
Percebendo a “dificuldade” da Psicologia para se engajar em temas que fomentem a
transformação
social,
somada
ao
obscurantismo
das
gerações
subseqüentes
que
escandalosamente desconhecem essa história recente, fez-se necessário abordar a temática da
tortura sob a régia da ditadura militar. Tendo em vista o papel do profissional psicólogo, é
indispensável o uso do saber da ciência como forma de desvelar as ideologias materializadas que
intensificam a opressão e a exclusão social, mantendo viva uma história que deixou marcas
profundas.
O presente trabalho, então, foi realizado para contribuir na supressão das necessidades de um
estudo desta natureza dentro da ciência psicológica. Também, na difusão desta história - junto às
gerações ulteriores- que escandalosamente a desconhece. E, principalmente, refletir sobre a
funcionalidade e repercussões do emprego da tortura, tendo em vista a sua larga utilização
durante a história e tempos atuais.
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2 PROBLEMAS E OBJETIVOS
Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião.
(Zé Kéti)
Tendo em vista o emprego da punição, durante a ditadura militar, será que este método foi eficaz
para abolir comportamentos de contracontrole à agência governamental? Ou mesmo após serem
submetidos à punição, os militantes retornaram as suas atividades políticas? Quais são as
repercussões do uso da tortura para o ser humano e sociedade?
Trazendo a discussão da tortura para o campo da Psicologia, o objetivo principal da presente
pesquisa foi analisar a eficácia do emprego da punição - na modalidade da tortura - e seus
subprodutos, em ex-presos políticos sob a vigência da ditadura militar brasileira (1964-1984). De
tal modo, primeiramente foi identificado aspectos da história de vida dos sujeitos que poderiam
ter suscitado comportamentos de contracontrole à agência governamental (história política
familiar; militância escolar e em grupos políticos; outros modelos políticos influentes;
contingências sociais). Também, se fez necessário caracterizar as experiências de punição às
quais foram submetidos os sujeitos. Além disso, foi identificando subprodutos relacionados à
experiência da tortura. E ainda, foi verificado se houve mudança no comportamento político dos
sujeitos após serem submetidos á tortura, e as implicações da punição discriminadas por eles.
De acordo com o referencial teórico estima-se averiguar que a punição não é eficaz e, por isso, a
tortura não é uma via para extinguir comportamentos “indesejáveis” ou “nocivos”. Também, tal
método de controle gera subprodutos, tais quais: a fuga, esquiva, medo, ansiedade, ira, raiva,
agressão, depressão, alucinação, delírio, pesadelos, insônia, perda da noção do tempo e dos
sentidos, dores de cabeça, comprometimento da memória, idéias suicidas, além das
conseqüências orgânicas.
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3 PROCEDIMENTOS
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
(Chico Buarque)
3.1 Sujeitos
A presente pesquisa constou de seis participantes - cinco do sexo masculino e uma do sexo
feminino- submetidos à punição durante a ditadura militar brasileira (1964-1984). Todos os
sujeitos incluídos na amostras militaram em organizações políticas de oposição ao governo e
tiveram sua liberdade cerceada durante, no mínimo, uma semana. Os sujeitos foram recrutados a
partir da rede social da pesquisadora e foram acessados em suas residências ou locais de
trabalho. Todos tiveram a sua participação voluntária, mediante termo de consentimento livre e
esclarecido.
Dos sujeitos entrevistados, três foram integrantes da Ação Popular (AP)3, um do Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR)4, um da Política Operária (POLOP)5 e um sujeito
inicialmente militou na AP, mas posteriormente filiou-se ao PCBR. Todos atuaram no
movimento estudantil. Entretanto, três militaram também no movimento operário e um destes
participou do movimento camponês. Três sujeitos são naturais da Bahia, um do Rio de Janeiro,
um de Pernambuco e outro de Alagoas. As idades variaram de 53 a 62 anos. Vale ressaltar que
em virtudes éticas foram utilizadas as iniciais dos nomes dos sujeitos, preservando assim as suas
identidades.
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A AP surgiu em 1962, ligada a setores da Igreja Católica - principalmente a Juventude Universitária Católica
(JUC) - e tinha grande influência sobre o movimento estudantil (BRASIL, 2007).
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O PCBR nasceu em 1964, tendo como referência os nomes de Mário Alves, Apolônio de Carvalho, Jacob
Gorender e Jover Telles. Sua principal meta era reformular a linha tradicional do PCB e a construção de um
Governo Popular Revolucionário, tendo como estratégia fundamental a luta armada guerrilheira (BRASIL, 2007).
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A POLOP foi fundada em 1961, congregando estudantes da Liga Socialista de São Paulo e da Mocidade
Trabalhista de Minas Gerais, bem como dissidentes do PCB e trotskistas. Segundo Brasil (2007), teve seu campo de
ação no movimento operário e estratégia voltada para a luta armada.
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3.2 Instrumentos e procedimentos para coleta de dados
Devido à necessidade de elucidar informações pertinentes aos sujeitos, foi utilizada para esta
pesquisa a entrevista semi-estruturada. Nesta, o entrevistador seguiu um roteiro com 13
perguntas formuladas previamente, e pôde adicionar - no momento da entrevista - outras
questões, para esclarecer alguns pontos que não ficaram claros para o entrevistador. A entrevista
foi formulada a partir do quadro de referência. Aos sujeitos foram apresentados, previamente a
sua participação, o termo de consentimento livre e esclarecido, que elucidava os objetivos da
pesquisa e garantia o sigilo das informações obtidas e das suas identidades.
3.3 Procedimentos para análise dos dados
Visando preservar a singularidade das histórias de vida dos sujeitos e verificar os efeitos da
punição, foi necessário analisar os dados a partir da orientação proposta pela análise de
contingências. Após a coleta de dados foi criado uma matriz de análise e trechos da entrevista
foram agrupados em contingências anteriores à prisão, contingências da prisão e contingências
após a prisão, possibilitando verificar possíveis mudanças nos comportamentos dos sujeitos após
a punição. A partir dessa matriz foi elaborada a análise da história de vida de cada sujeito, com
base na teoria de B. F. Skinner.
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4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Narrar é resistir.
(Guimarães Rosa)
4.1 BF
BF tem 59 anos e é natural de uma cidade localizada no interior do Estado da Bahia. Seus pais
eram praticantes do catolicismo, e sua mãe exercitava a “solidariedade cristã”. BF relata que,
durante a infância, foi estimulado pelo pai à leitura de livros com temáticas políticas, o que o
influenciou a militância. No ano de 1964, seu pai foi eleito vereador na sua cidade natal, pelo
PCB, mas o exoneraram do cargo após o golpe militar.
Em 1962, BF residiu em Feira de Santana-BA e, como estudante, participou de uma
manifestação. Após três anos passou a morar em Salvador-BA e estudou nos Maristas. Na
escola, BF atuou no Grêmio Estudantil e participou de dois movimentos contra o aumento da
mensalidade.
Após concluir o segundo grau, BF cursou eletromecânica na Escola Técnica e participou do
Diretório Acadêmico (DA) como tesoureiro. Com o afastamento do presidente do DA, foi
escolhido pelos membros a assumir o cargo de dirigente.
Na comunidade em que residia, participou de um grupo de jovens. A partir daí foi convidado a
ingressar em organizações políticas, tais quais: o PC do B, AP, PCB e POLOP. Inicialmente, BF
aproximou-se dessa última, mas os antecedentes da sua história de vida estimularam a sua
filiação a AP, pois esta era vinculada a Igreja Católica.
BF passou a trabalhar em fábricas e em 1966 abandonou o curso de eletromecânica. Militou no
movimento operário e após dois meses realizou uma greve. A partir daí participou de várias
paralisações, da criação da Oposição Sindical e do Comitê de Fábricas. “E eu que era um cara
desconhecido na repressão passei a ser um cara observado. Comecei a ser, de certa forma, herói.”
A partir de 1968, com a intensificação da repressão, algumas atividades políticas do Comitê de
Fábricas tornaram-se clandestinas.
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A sua prisão ocorreu em 1969, quando BF regressava do trabalho na companhia de dois amigos.
“Gente com metralhadora, o diabo a quatro. Armado que só. (...) Soldados como o diabo. Parecia
que eles estavam prendendo o cão.” BF foi encaminhado ao quartel dos aflitos, onde permaneceu
por três dias. Durante este período seus familiares não receberam notícias do seu paradeiro.
Posteriormente foi encaminhado ao quartel de Amaralina e submetido à punição. É possível
constatar, com base em seu relato, que a tortura não era empregada apenas para obtenção da
confissão:
Começou com telefones, depois eles foram aumentando. E... (pausa) foram os piores dias da minha vida! Eu
fui torturado durante um mês, mais ou menos. (...) Eu saí de lá com uns quarenta e poucos quilos. Aí
acabaram comigo. Tinha vezes que os caras me torturavam por torturar. Não é que eles quisessem saber coisa
alguma. Chegava um oficial (...) e resolvia me levar para a sala de tortura simplesmente por sadismo.
Ao ser ameaçado pelos militares, BF apresentou comportamento de fuga:
Teve um momento que eles disseram que iam buscar o meu pai. Que iam prender o meu pai. (...) Aí quando
entrou a questão do meu pai eu resolvi liberar nomes e codinomes de algumas figuras que não tava mais na
organização. (...) Quando eu liberei qualquer informação eles abrandaram.
Após aproximadamente dois meses, dirigiram-no a Policia Federal e o submeteram à ameaça,
como pode ser observado em seu depoimento ulterior: “Eu fui torturado psicologicamente.
Aquele negócio de deixar você sem dormir. (...) Ameaças todas. Pegavam o revólver, assim, por
exemplo, no quartel, e diziam que iam me matar e atiravam. Mas não tinha bala!”
Em relação aos subprodutos da punição, BF afirma ter vivenciado momentos de desorientação,
medo, pensamentos suicidas, delírios, alucinações e pesadelos:
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Quando eu saí da prisão, em alguns momentos eu tava na rua e me dava aquele branco. Eu não sabia onde eu
tava (...). Então só dava pra eu sair acompanhado. Começava a ver policial em todo lugar. (...) Pesadelos eu
tenho até hoje, (...) e, por exemplo, eu não posso abusar da bebida. Eu não posso beber. (...) Parece que me
vem tudo. (...) Se eu tivesse com que, eu teria me matado! (...)
A militância política gerou algumas conseqüências relatadas pelo sujeito:
Todo jovem, todo menino, ele tem um tempo. Aquele período de namoro, de paixões, que nós não tivemos.
(...) Nós nos relacionávamos forçados pelas circunstâncias. Enquanto a maioria dos jovens passa pela
experiência do namoro, do noivado, do casamento, nós não passamos. Então, nossa vivência amorosa carece
ainda de um estágio que nós não passamos. Por isso a gente tem determinadas dificuldades até hoje.
Dois meses após, BF foi libertado. Em seguida emitiu comportamento de esquiva – devido ao
controle do grupo e contingências sociais - vivendo na clandestinidade por três anos. No referido
período retornou a militância política operária como pode ser constatado a partir da sua
exposição: “Durante a clandestinidade (...) eu trabalhava, mas continuava fazendo o trabalho
político”.
Em 1974 BF foi capturado e encaminhado à Penitenciária Lemos Brito, sendo submetido à
punição (privação de liberdade e condições carcerárias) por dois anos. De acordo com o seu
relato, a experiência no presídio “foi uma das maiores alegrias. (...) E lá dentro da prisão, já
cumprindo pena, foi um dos anos mais livres da minha vida. Porque a gente discutia.” Assim, a
convivência com outros companheiros era reforçadora, contrabalançando os efeitos aversivos da
privação de liberdade e da situação carcerária.
Ao sair da prisão, filiou-se ao PCBR, emitindo comportamentos de contra-agressão à agência de
controle governamental. BF participou de diversas atividades políticas, tais quais manifestações,
assalto a banco, reuniões, panfletagens. Fundou o PT e até hoje é militante político deste partido.
Portanto, na história de vida familiar de BF, antecedentes estimularam os comportamentos de
militância, como a participação do seu pai no Partido Comunista e o incentivo do mesmo à
leitura de livros com temáticas políticas. Já o contexto escolar propiciou o aparecimento do
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comportamento de militância, com o exemplo do Grêmio Estudantil e do DA. Da mesma forma,
a comunidade na qual o sujeito esteve inserido também foi um ambiente que estimulou tais
comportamentos.
Os valores familiares, escolares e dos grupos - comunitário e AP - corroboraram para a
manutenção do comportamento de contracontrole à agência governamental anteriormente e após
a prisão. Também, reforçaram o comportamento de resistência às contingências aversivas da
prisão e tortura.
É imprescindível frisar que mesmo sendo submetidos à punição, os comportamentos de
contracontrole e contra-agressão à agência governamental não foram extintos. Ao contrário,
ressurgiram após as agressões físicas, ameaças, privação de liberdade e contingências aversivas
do cárcere, perdurando até a atualidade. Desta forma, fica claro que mesmo após a punição, os
comportamentos de militância política não foram abolidos.
4.2 JCA
JCA tem 62 anos, é proveniente de família burguesa e natural da cidade do Rio de Janeiro - RJ.
No seu contexto familiar não há referências políticas, porém, de acordo com o sujeito,
contingências familiares e sociais reforçaram os comportamentos de contracontrole ao governo:
“Não há modelos na época, a não ser a vontade de liberdade, que coincide com a repressão
global. (...) Depois se transforma numa luta política, ideológica. Mas ela não nasce com
características ideológicas. (...) Ninguém era filho de ninguém. Era filho daquela burguesia”.
As atividades políticas de JCA se iniciaram no contexto da escola, ao participar do Grêmio
Estudantil e da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários. Em 1964, ingressou no
curso de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e participou do DA.
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Quando estudante, JCA militou, principalmente, contra a Lei Suplicy6. Seu “objetivo principal
era o estudante, a liberdade e o movimento estudantil. E a liberdade de organização, que não
existia, porque havia a Lei Suplicy. Havia uma série de mecanismo de cerceamento do
movimento estudantil.” No mesmo ano filiou-se à AP e atuou na rearticulação do grupo abalado com o golpe militar – participando de manifestações, debates e reuniões.
Um ano após, JCA participou de um encontro de estudantes, em São Paulo, que visava
rearticular a AP em diversos estados do país. No último dia a Polícia cercou o local e ele foi
detido, como pode ser constatado a partir do seu relato:
Nós éramos trinta pessoas de vários pontos do Brasil. (...) Em 64 foi o ano de rearticulação, de
reagrupamento das pessoas. (...) Então esse encontro foi feito em São Paulo, (...) pra que a gente pudesse
rearticular os objetivos estratégicos no nível universitário. (...) Foi em um pensionato de Freiras. (...) No
último dia cercaram o prédio e foi todo mundo pra cadeia. Não sobrou ninguém. Todo mundo foi preso!
JCA foi encaminhado ao DOPS e submetido à punição (agressões, privação de liberdade e
condições carcerárias), permanecendo no local por uma semana. De acordo com JCA, a privação
de liberdade foi extremamente aversiva:
O pior da prisão é a própria prisão. (...) O problema é que você não tinha essa liberdade. E até as palavras que
você usava e os gestos que você tinha que ter ao ir ao banheiro, ao olhar pra um colega dentro da prisão, você
tinha que tomar cuidado. (...) Você era obrigado até a se autopoliciar no limite do seu gesto. Um cerceamento
total. Essa é a pior sensação na cadeia.
Ao apresentar comportamentos de contra-agressão ao agente policial, o sujeito relata que foi
punido: “Me mandaram para a solitária. (...) Na solitária mesmo só ficou um amigo meu e eu. E
ficamos com um vizinho. Quer dizer, cada um em um. Nós ficamos dois dias. Mandaram a gente
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A lei Suplicy surgiu em 1965, após o congresso da UNE, e visava à organização do movimento estudantil em
conselhos (GABEIRA, 1979). De acordo com José (2000), esta possibilitava a perseguição e demissão de
professores e alunos, bem como a interferência nas universidades, reprimindo, assim, as ações do movimento
estudantil.
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num dia, liberaram a gente no outro. Quer dizer, dormimos uma noite”. Além das condições
aversivas do cárcere a da privação de liberdade, o sujeito foi punido mediante agressões físicas,
bem como presenciou um companheiro sendo submetido à mesma.
JCA também foi punido mediante ameaças: “Ameaça teve! Ameaça física. Eles tentaram
arrancar endereços, que o pessoal já tinha comido. (...) No depoimento eles insistiam para a gente
dizer quem eram os responsáveis, os endereços que a gente tinha e os contatos que a gente
tinha”.
Os subprodutos da punição ressaltados pelo sujeito em seu depoimento foram a revolta e o medo:
“Revolta! Eu já te disse que a prisão é a negação da coisa mais elementar de um ser humano - a
liberdade! Então, a prisão vai causando uma revolta maior ainda. O que vem depois é o medo, a
insegurança e tal. Aumenta em função dessa revolta básica”.
Depois de uma semana JCA foi libertado e retornou a militância política - vinculado à AP:
“Voltei para o movimento estudantil de novo e fiquei até a faculdade. Até que em 68 fui pra
Goiás. Aí entrei numa fase da política distinta, de fazer a política integrando na produção. Depois
saí, em 69, e fui para a Bahia com o objetivo de rearticular a Ação Popular”.
No mesmo ano, JCA casou-se com uma militante do mesmo grupo que atuava. Em 1970 viajou
para a Europa e, após alguns meses, foi denunciado. Por isso, ao tentar regressar ao Brasil, foi
impedido, sendo novamente submetido à punição, como pode ser constatado em seu relato: “Eu
precisava fazer algumas coisas lá fora (...). Depois, eu precisava voltar, porque minha filha ia
nascer em Abril. Nesta época, houve uma batida geral na Bahia, prenderam todo mundo, e aí
meu nome veio à tona. Aí me disseram que eu não podia voltar e eu não vi minha filha nascer”.
O sujeito, em seu depoimento, equipara o exílio à prisão:
A melhor imagem que eu acho que tem para um exilado é a prisão. Porque o exilado tem a liberdade pra
fazer o que quiser, (...) menos voltar para o país dele. Então, essa sensação de liberdade limitada, que é a
maior derrocada de uma prisão, para a minha geração era a sensação da falta de liberdade.
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Durante o exílio, JCA residiu primeiramente na França, depois na África e por fim em Portugal.
Ao regressar ao Brasil, em 1978, foi novamente punido, ficando detido durante um dia na Polícia
Federal, sob privação de liberdade. Posteriormente, o sujeito retornou à militância.
Atualmente JCA não possui vínculo partidário, pois se desiludiu com a militância. Por isso, o seu
afastamento da atividade política não esteve vinculado ao processo de punição, mas sim a
mudança das contingências políticas após a ditadura militar – que deixaram de ser reforçadoras.
Eu acho que tem militância e militância. Não sou mais militante no sentido de ir para reunião de partido.
Acabou! (...) Contínuo colaborando para o movimento social de uma forma geral, mais ampla. Pronto! (...)
Eu acho também que as características da militância de hoje já não são mais as mesmas. (...) Não há um
desprendimento hoje, como havia antigamente. (...) Me diga, hoje, quem faz pichação, o que quer antes de
mais nada? E o pessoal disse que não mudou! Existe essa militância hoje? Acho que não!
Portanto, em seu relato, o sujeito destaca contingências reforçadoras do contexto familiar e social
para a emissão do comportamento de contra-controle aos valores burgueses. O ambiente da
escola, bem como da universidade, favoreceram o surgimento do comportamento de militância,
com o exemplo do Grêmio Estudantil e Diretório Acadêmico. O sujeito, durante o período
escolar, vinculou-se a Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários, sendo estimulado
pelo grupo à militância política.
É imprescindível ressaltar que os valores familiares e sociais estimularam os comportamentos de
contracontrole às agências: família, escola, governo. E os valores veiculados pelos grupos
corroboraram para a manutenção dos comportamentos de militância política antes e após a
prisão.
Mesmo após a punição, JCA retornou a militância política, e os comportamentos de
contracontrole e contra-agressão a agência governamental não foram extintos com a privação de
liberdade, ameaça, agressão física e contingências aversivas da prisão e do exílio. O afastamento
de JCA da atividade política ocorreu após o período da ditadura militar, devido às mudanças das
contingências ambientais, que deixaram de ser reforçadoras para o sujeito.
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4.3 JA
JA tem 53 anos e é natural de uma cidade localizada no interior do estado da Bahia. Seus avôs
foram ativistas políticos ligados aos partidos conservadores. “Meus avôs apoiaram o golpe
militar. Eram da Arena.” Entretanto, os seus pais não atuaram politicamente, mas os valores
familiares foram destacados pelo sujeito: “Eu acho que meu pai teve uma interferência de ordem
moral e ética, do que efetivamente política. Porque a gente não falava de política em casa. (...)
Depois, quando meu pai sentiu que eu tava entrando na política, ele teve uma rejeição completa”.
Em 1964 JA foi transferido para o Chile – juntamente com seus familiares – devido à atividade
laboral do seu pai. De acordo com o sujeito, o contexto social chileno o estimulou à discussão
política: “Eu acho que a minha experiência no Chile teve alguma influência. (...) Um adolescente
Chileno era bem mais politizado. (...) Eu passei a ter uma visão um pouco mais diferente das
coisas. Mas não era militância não, eram conversas normais”.
Após três anos JA retornou ao Brasil e estudou no Severino Vieira. Em 1968, foi transferido para
o Colégio Central, mas foi expulso por indisciplina. Um ano após, passou a estudar nos Maristas.
Durante o período escolar, participou de manifestações e foi membro do Grêmio devido aos
reforçadores sociais. “Em 1967 eu não tive militância. (...) Mas gostava das passeatas pela
bagunça. (...) Gostava de assistir as assembléias. Especialmente as do Severino, que antes de ir
para o centro da cidade, o pessoal passava no ICEA para buscar as meninas.”
O sujeito também ressalta o seu interesse pela literatura e pelo estudo das disciplinas de Ciências
Humanas durante o período escolar, sendo estes estimulantes ao comportamento de militância.
Em 1970, a partir da rede social, JA filiou-se a AP:
Os contatos que me levaram a ser da Ação Popular foram dois amigos de rua, de infância, que começaram a
se interessar por política. (...) Eles começaram a procurar alguns amigos que tinha tendência de esquerda. E
eu não tinha. Mas eu era uma pessoa com certo discurso (...) crítico-social em relação a essa questão. (...)
Eles conversaram comigo, me explicaram tudo. (...) Aí eu entrei na Ação Popular como simpatizante e fiquei
como secundarista. A partir daí comecei a ter algumas atividades políticas exclusivamente clandestinas. (...)
Participei de panfletagens, pichações, manifestações.
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No mesmo ano, devido aos interesses da organização, JA passou a estudar medicina na UFBA,
apesar da preferência pelo curso de agronomia. “Mudei para medicina por motivos políticos. (...)
Era mais importante para a Ação Popular.” Participou do Diretório Acadêmico e da redação de
um jornal, como coordenador, de circulação na universidade.
Em 1971 JA foi preso em sua residência - mediante denúncia de um vizinho simpatizante da AP
–, pois era suspeito de portar um documento com a ordem do Estatuto e da resolução do último
encontro da AP. O sujeito portava, em sua residência, armas da organização, mas as autoridades
policiais desconheciam este fato:
A Polícia bateu na porta (...). Quando eu abri a porta, o cara chegou para mim e perguntou se eu era “JA”. E
eu disse que era. Ele disse que era da Polícia Federal, mas não tinha identificação nenhuma. Eles perguntaram
sobre o documento e eu neguei. Aí eu tentei bater a porta, (...) mas eles entraram com tudo. (..) Aí ele veio me
segurando, me dando um monte de porrada e foi uma confusão. Eu tentei agarrar minha mãe, para tentar dizer
que tinha uma sacola com armas, mas não consegui. Na saída, tinha que subir uma escada, e eu tomei logo um
monte de porrada na subida. E eu pensava no cara que eu tinha marcado um encontro para entregar as armas,
pois ele podia aparecer. Então eu gritei, fiz um escândalo, para o pessoal ouvir que eu tava sendo preso, para o
cara não vim. Fui preso e me levaram para o Quartel de Amaralina.
Durante o interrogatório, JA emitiu comportamentos de esquiva e fuga: “Aí na primeira
retaliação eu neguei tudo, disse que era tudo mentira. (...) Os caras me perguntavam uma coisa,
eu respondia outra”. E também de contra-agressão: “A minha atitude foi de resistência física.
Então eu confrontava, cuspia na cara dos caras”. Durante os interrogatórios, JA declara ter sido
submetido à punição, como pode ser constatado em seu relato: “Eu sofri espancamentos. (...)
Tinha levado pancada com algema, já tava todo ensangüentado. Tudo partido na minha cabeça.
(...) Eu passei, basicamente, pelas condições carcerárias e espancamentos”.
Alguns dias após, os policiais retornaram a sua residência em busca do documento da AP.
Entretanto, encontraram uma caderneta com endereços dos seus amigos do Chile e a sacola com
armas da organização: “Eu estava guardando uma sacola com sete revólveres, duas pistolas, da
AP. Eles deram a batida e acharam as armas. (...) Eu tinha uma caderneta com endereços de
pessoas do Chile. Na década de 70, imagine? Governo de Allende! (...) Aí a alegria era porrada!”
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Durante dois meses, JA esteve ilegalmente sob privação de liberdade. Após esse período a sua
prisão foi finalmente decretada. Cinco meses depois o encaminharam à Penitenciária Lemos
Brito, onde permaneceu em privação de liberdade por um ano e um mês.
Para JA, a visita dos seus familiares era extremamente aversiva. “Eu sofria muito quando meus
pais iam me visitar. Minha mãe e meu pai sofriam muito com tudo isso. Eu escondia. Não
contava tudo para eles. (...) A tortura buliu muito, inclusive com os meus pais”. Entretanto, os
reforçadores sociais contrabalançaram os efeitos aversivos da prisão: “O impacto da saída do
quartel para a penitenciária é o mesmo que sair da penitenciária para a rua. (...) Chegar lá e poder
discutir política, reencontrar uma parte dos companheiros (...)”.
Em 1973, JA foi libertado por relaxamento de prisão. Um ano após foi julgado e condenado a
mais quatro meses de privação de liberdade e, por isso, regressou a Penitenciária Lemos Brito.
Após um mês foi beneficiado com a liberdade condicional.
Depois da prisão, JA retornou a militância sem filiação partidária, mas em 1979 ingressou
novamente na AP. Posteriormente, participou da fundação do PT e militou no partido, rompendo
em 2004, quando se aliou ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Eu passei por várias organizações. (...) Fiquei independente uns anos. Depois construí um partido. Acho que
minha atividade profissional nos últimos anos mudou muito, porque eu fiquei muito tempo como um
militante profissionalizado. (...) Até hoje eu estou na militância. (...). Eu fiz Medicina por conta da política,
fui para área de Comunicação por conta da política e hoje dou aula de Ciências Políticas!
Assim, de acordo com a história de vida familiar de JA, a atividade política dos seus avôs (apesar
das divergências ideológicas) e os valores perpassados pelos seus pais estimularam o
comportamento de contracontrole. Também, o contexto social do Chile e o ambiente escolar
propiciaram o aparecimento de tais comportamentos, com a sua atuação no Grêmio Estudantil e
o estudo das matérias de Ciências Humanas e Literatura. Entretanto, de acordo com o relato do
sujeito, é imprescindível ressaltar o reforçador social como estímulo antecedente para a sua
participação política, principalmente nas manifestações.
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Os valores educacionais e do grupo - AP - corroboraram para a manutenção do comportamento
de contracontrole à agência governamental, antes e após a prisão. Bem como reforçaram o
comportamento de resistência às contingências aversivas da prisão e tortura.
Apesar de ter sido submetido à punição, os comportamentos de militância política não foram
extintos. Ao contrário, ressurgiram após as ameaças, privação de liberdade, agressões físicas e
condições aversivas do cárcere. Vale ressaltar que após a punição o sujeito emitiu
comportamentos de contra-agressão à agência de controle governamental, perdurando até a
atualidade.
4.4 PPS
PPS tem 61 anos, é natural de uma cidade localizada no interior de Pernambuco e aos dez anos
passou a residir em Recife. Em sua história de vida familiar não há referências políticas: “Minha
família era muito pobre, e o objetivo era trabalhar. Ninguém se envolveu em política”.
Em Recife, estudou no Colégio Pernambucano e neste ambiente foi estimulado à atividade
política:
No ambiente do Colégio Estadual eu fui influenciado. Era um colégio com muita atividade política. (...) Um
pouco antes do golpe tinha surgido uma disciplina “Organização Política e Social do Brasil”, que nós
estudávamos a Constituição (...), debatíamos sobre democracia. E isso me influenciou. (...) E eu também,
como estudava de noite, tinha influência do pessoal que era adulto, que já tinha posição política formada.
Anteriormente ao golpe de 1964, PPS foi convidado por um amigo a filiar-se ao PCB, mas negou
por não compartilhar das mesmas ideologias da organização. No mesmo período, participou de
um grupo literário denominado “Monteiro Lobato”. Neste, os integrantes discutiam literatura,
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declamavam poemas, confeccionavam crônicas e jogavam xadrez. Alguns membros do grupo
eram filiados ao PCB.
Em primeiro de Abril de 1964, PPS foi convidado pelos amigos do grupo literário a participar de
uma reivindicação a favor do governador que estava sendo deposto pelos militares. Durante a
manifestação, PPS presenciou a morte de um colega da escola e este fato o reforçou a militância
política.
Quando chegamos, veio um grupo de Policiais Militares e do Exército armados com fusíveis. Aí mandaram
bala de cara e mataram dois. Foram umas seis pessoas feridas. Um dos que morreram era um colega meu lá
do Colégio Estadual. E isso me marcou. (...) Ele ficou com o rosto totalmente estraçalhado, todo aberto,
parecia uma flor. (...) E isso é uma coisa traumática demais. A partir daí eu fiquei com espírito de revolta, de
querer fazer alguma coisa.
Seis meses após - através da rede social - PPS filiou-se ao PCB. Atuou no movimento estudantil
e no Grêmio da escola: “O meu colégio, como era muito grande, tinha muitos militantes lá.
Então tinha uma base específica. E eu fiquei fazendo o movimento estudantil, reativando o
Grêmio. E aí a Lei Suplicy de Lacerda não permitia”.
Em Novembro de 1967, após a fragmentação do PCB, PPS filiou-se ao PCBR. Durante uma
manifestação, PPS foi detido e, consequentemente, punido por meio da privação de liberdade e
contingências aversivas da prisão.
Após a libertação, PPS abandonou os estudos e entrou na semi-clandestinidade (devido ao
controle do grupo e das contingências sociais), emitindo comportamento de esquiva. Doravante,
foi detido algumas vezes, sendo submetido à privação de liberdade e condições carcerárias
aversivas, por curtos períodos de tempo. Respondeu processo em liberdade e foi condenado a
três meses de prisão. Após a condenação, foi transferido para Natal – RS (devido ao controle do
grupo e das contingências sociais), se esquivando da prisão.
Depois de seis meses, PPS foi informado que estava sendo seguido. Por isso, regressou a
Pernambuco e entrou na clandestinidade, emitindo novamente comportamento de esquiva
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(controlado pelas contingências ambientais e do grupo que militava). Após alguns meses passou
a residir na Bahia, se esquivando novamente da prisão. A partir daí passou a atuar na construção
e organização do partido. “Eu recrutava aqueles militantes que eram contra o governo. Fazia
panfletagem, manifestações, pichações”. Em 1969, PPS casou-se com uma militante da mesma
organização política.
Em 1970, devido à prisão de alguns militantes no Rio de Janeiro, PPS foi escolhido para
participar de um assalto a banco na Bahia.
A direção nacional resolveu o seguinte: o pessoal de Recife faz um seqüestro, para tirar os presos da cadeia, e
o pessoal que tiver na Bahia faz um assalto a um banco para financiar. (...) Nós fizemos o assalto a banco.
(...) Nós tínhamos que sair com 160 mil. (...) Uma pessoa pegou um saco desses de feijão e encheu de
dinheiro. Mas ficou pesado demais para trazer. (...) Eu tava escalado a ser o primeiro a sair, e estava na hora
muito nervoso, porque o cara não autorizava sair. A Polícia na frente, atirando, quebrando o vidro do banco.
Terminou saindo todo mundo. Aí largamos o dinheiro na calçada. (...) Nós saímos atirando na Polícia e a
Polícia atirando na gente. (...) Nenhum de nós saiu ferido, mas o dinheiro ficou lá. Aí pegamos 21 mil. (...)
Não conseguimos o dinheiro e o pessoal de Recife foi preso três dias antes. (...) Aí a barra aqui pesou demais.
A Polícia não tinha certeza se o assalto era político ou não. (...) Saíram alguns retratos nos jornais, mas
nenhum deles eram nossos. Então continuamos soltos.
Devido ao fracasso da operação, a direção nacional do PCBR determinou que os militantes de
Recife realizassem um assalto ao banco, e os integrantes da Bahia seqüestrariam um cônsul:
Nós ficamos preparando o seqüestro. (...) Existia um consulado dos Estados Unidos no Garcia. E
normalmente, no final da tarde, o carro descia pela ladeira do Garcia que dá na Vasco da Gama. E ele morava
em Brotas. Então subia o Acupê e chegava a Brotas. Ele já tinha sido seguido. Eu não fiz parte do
planejamento, mas eu ia participar da operação. (...) Como era numa subida, o carro dele, naturalmente, ia
lento. E tinha uma garagem de ônibus do lado. Nós íamos com o carro e fecharíamos o dele. (...) Então era
isso que estava planejado. O pessoal de Recife foi ao Ceará, fez o assalto, e pegou dinheiro demais! (...) Aí
nós alugamos casas, forramos o quarto todo com isopor, onde a pessoa ficaria presa, para não ter barulho. (...)
Na véspera da ida para o seqüestro, eu avisei as outras organizações para se afastarem, que nós iríamos fazer
uma ação. (...) Aí a gente mandou o pessoal nosso pro interior e só ficaria em Salvador quem ia participar.
PPS foi preso antes de realizar o seqüestro ao cônsul, durante um encontro com outro militante
do mesmo grupo político, como pode ser constatado em seu relato:
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Um dia antes do seqüestro eu tive um último encontro com a militante do MR-8. Ela me disse: “olha, tem um
aparelho7 que a Polícia já descobriu. Não é nosso. Nós já verificamos!”. Ela me entregou um código. (...) No
mesmo dia, no ônibus, eu fui traduzindo. O código era “C. Nova”, que era “Cidade Nova”! Era onde eu
morava! (...) Aí fomos embora! Saímos pela ladeira de dentro da Cidade Nova, (...) e viemos para a Vasco da
Gama, para outro aparelho. (...) Aí apareceu um soldado de madrugada. (...) Aí nessa mesma noite nós
saímos e fomos para a Boca do Rio! (...) Dormimos e no outro dia fomos encontrar o cara e o resto do pessoal
para fazer o seqüestro. (...) Não realizamos o seqüestro e eu aluguei uma casa na Fazendo Grande. Aí
dormimos lá uma noite e no outro dia entramos em contato com outro companheiro. Aí falamos com ele para
ir embora, que íamos fazer o seqüestro (...). Estávamos no Dique do Tororó, eramos três pessoas. Aí quatro
policiais chegaram num jipe e nós estávamos de costas para a rua (...). Um companheiro, como tava de frente,
puxou a arma e deu um tiro no policial e aí fugiu. Eu e T. fomos colocados no Jipe (...) e os policiais foram
atrás do companheiro que escapou (...). Quando chegaram à ponte de madeira, um dos policiais saltou do
carro e levou um tiro. T. atirou e bateu na nuca dele, e ele morreu. Era sargento da aeronáutica! T. deu mais
dois tiros que atingiu o motorista. Aí o outro policial tomou a arma (...) e resolveu dar umas pancadas com o
revólver na cara da gente e disse: “vamos para o quartel”.
PPS foi punido pela morte do Oficial e por dirigir uma organização clandestina:
A pancadaria e a brutalidade foram inimagináveis. (...) O coronel solicitou a tortura científica. (...) E aí foi
pau-de-arara, pancada, choque elétrico, e etc. (...) Para mim foi afogamento; queimadura dos lábios com
pontas de cigarro - essa é terrível; Pau-de-arara, que também é terrível, combinado com o choque elétrico.
Esse é pior do que o “Cristo Redentor”. Porque eles te amarram e passam uma trave aqui por dentro. Então
fica pendurado. A tendência é você relaxar. Mas se você relaxar expõe o pescoço e pode quebrar. Então fica
sempre tenso! E como eles dão o choque, a tendência é esticar o corpo.
Além disso, foi punido por meio da humilhação, como pode ser verificado em seu depoimento:
“Eles ficam te provocando, dizendo ‘seu pinto é pequeno’. (...) O problema é que eles fazem isso
no sentido da humilhação. Primeiro lhe despem. Você fica nu quando não quer. E aí depois lhe
dão choque”. E também sofreu ameaças: “Eles tentaram me ameaçar com a minha mulher.
Disseram que iam pegar a minha mulher.”
Também, ao ser punido, PPS emitiu comportamentos de fuga e esquiva, conforme o relato
abaixo:
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De acordo com Gabeira (1979), “aparelho” era o nome dado às casas utilizadas pelas organizações para atividades
políticas.
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Fui contando mentiras. A maioria das coisas deu para a gente se livrar, porque a gente mentiu e resistiu às
porradas. (...) Eu tinha um documento e era conhecido como A. Mas no documento eu era JFS, e meu nome
verdadeiro é PPS. Aí eles me jogaram no pau-de-arara e diziam “como é seu o nome?”. Eu respondia “J”,
eles me davam um choque. “F”, eles me davam outro choque. “S”, eles diziam “tudo bem”. Aí repetiam
“como é seu nome?”. Eu dizia “J”, me davam um choque. “F”, me davam um choque. “S”, eles não me
davam choque. Aí depois da sexta vez que ele perguntou, eu pensei “o cara já sabe que ‘S’ está correto”. Aí
eu disse “sou PPS”! Aí eles me tiraram do pau-de-arara.
PPS relata que nos dias que era punido, os agentes o privavam de alimentação durante o turno
matutino e vespertino, sinalizando, assim, que seria torturado à noite. No percorrer deste período,
o sujeito apresentava comportamento ansioso8: “No dia que eles iam nos torturar, eles não davam
comida. (...) Então eu já sabia que ia ser torturado naquele dia. (...) Aí eu ficava desejando que
passasse logo. Que vinhesse logo a hora da tortura, para acabar logo com aquilo”.
Também, a ira e a revolta9 foram citadas pelo sujeito: “É uma revolta misturada com a dor, com
a impotência, porque você sabe que eles vão quebrar a sua resistência em algum momento”.
Doravante, PPS esteve sob privação de liberdade durante oito anos e sete meses, na Penitenciária
Lemos Brito. Após a sua prisão, a sua esposa foi inviabilizada de visitá-lo, pois era procurada
pelos militares. Alguns anos depois, PPS recebeu a notícia de que a mesma teria sido assassinada
pelos agentes policiais ao ser capturada. Este episódio foi intensamente aversivo ao sujeito.
O sujeito também destacou como aversivos a privação sexual e amorosa. Porém, comumente, os
presos políticos namoravam as amigas ou familiares de companheiros políticos e as conheciam
durante a visita. De tal forma, PPS casou-se novamente no presídio.
Com o objetivo de minimizar as contingências aversivas da prisão, os presos políticos criaram “o
coletivo dos presos”. Em alguns momentos há indícios de supressão do comportamento de
resistência, devido às contingências aversivas da prisão. Entretanto, os valores e o reforço social
contrabalançaram-no, como pode ser constatado a partir do depoimento de ulterior: “O coletivo
dos presos buscava garantir o apoio mútuo. (...) Por exemplo - quando alguém pensava em
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Respostas fisiológicas são eliciadas, envolvendo também modificações no comportamento operante.
Assim como a ansiedade, abarcam respostas fisiológicas e alterações no nível operante.
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desistir, a gente falava ‘não faça isso. Você vai ser importante. Isso aqui é temporário’. Era um
apoio psicológico”.
PPS respondeu a sete processos. Destes, três correspondiam a sua militância na Bahia e quatro
em Pernambuco. Foi processado por homicídio (mas absolvido posteriormente), por assalto a
banco e pela organização do partido na Bahia. Em Pernambuco foi condenado por participar de
uma manifestação no Colégio Estadual, por uso de explosivos – apesar de nunca ter portado este
instrumento-, pela organização do partido em Recife e por atuar no movimento a favor de “Chico
de Assis”.
Durante a prisão na Penitenciária Lemos Brito, PPS emitiu comportamentos de esquiva, visando
suprimir a privação de liberdade e retornar a militância política: “Eu fiz vestibular preso. Então,
quando eu saí para assistir aula, eu procurei os ex-presos. Saí com essa tarefa. (...) Eu não queria
estudar. (...) Isso era uma estratégia para eu sair da cadeia. (...) Passamos a ser à base do DCE”.
PPS, ao ingressar na universidade, foi considerado ídolo, sendo estimulado pelo grupo: “Era
manchete em todos os jornais. Chamava a gente de pessoas dedicadas. (...) Quando eu cheguei à
faculdade para assistir a primeira aula, tinha fachas, jornalistas. (...) Eles me tinham como uma
espécie de símbolo.
Em 1979, PPS foi libertado. Doravante, o sujeito passou a se auto-reforçar ao se expor as
contingências da prisão, como pode ser constatado a partir do seu relato seguinte:
Eu tenho coisas no meu comportamento que pode ser considerado neurótico. Ser perseguido. (...) Eu me vejo
em situações anteriores. Então eu posso estar fugindo da prisão de ontem para hoje, ou de hoje para amanhã.
(...) Essas coisas são recorrentes em meus sonhos. Pesadelos eu não tenho muito não. (...) Eu sou muito
atraído por filmes ou coisas que falam sobre o ambiente da prisão. Como é a convivência. Essa coisa me atrai
muito. É uma coisa que eu me identifico.
Ao cessar a punição - agressões, injúria, ameaças, privação de liberdade e de alimentação e
contingências aversivas da prisão - PPS retornou a militância política. “Eu continuei na
militância. Fui solto no dia dois de Junho de 1979. Menos de um mês depois eu já estava fazendo
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comício pela anistia, eu já estava pichando muro, já estava articulando, viajando”.
Posteriormente filiou-se ao PT e participou da sua formação e organização. Atualmente atua no
mesmo partido.
Desta forma, de acordo com a história de vida familiar de PPS não houve antecedentes que
estimularam o seu comportamento de militância. Entretanto, o contexto escolar propiciou o
aparecimento deste, a partir da atuação do sujeito no Grêmio Estudantil e com o estudo da
disciplina “Organização Política e Social do Brasil”. Além, também, do estímulo da rede social à
discussão política no ambiente da escola.
O sujeito afirma ter sido estimulado à militância política no ambiente do grupo “Monteiro
Lobato” e a sua entrada no PCB ocorreu por intermédio de um amigo que integrava o referido
grupo. PPS discrimina uma contingência que reforçou o seu comportamento de militância, com o
exemplo do episódio em que presenciou a morte de um colega de escola em uma manifestação
após o golpe.
Quanto aos valores, estes estimularam os comportamentos de militância, bem como de
resistência à prisão e à tortura, corroborando também para a manutenção do contracontrole e
contra-agressão na atualidade. Portanto, “(...) um dos meus orgulhos, das minhas vaidades é o
seguinte: participei da primeira manifestação contra o golpe até a última. Depois que saí da
cadeia, fui imediatamente participar do comício da anistia, pichar muro (...)”.
Faz-se necessário ressaltar que mesmo sendo submetido à punição, o comportamento de
militância não foi extinto. Ao contrário, retornou após as agressões físicas, ameaças, injúrias,
privação de liberdade e contingências aversivas da prisão. E ainda, os comportamentos de
contracontrole e contra-agressão perduraram até a atualidade.
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4.5 JH
JH tem 59 anos, é originário de uma cidade localizada no interior do Estado da Bahia. De acordo
com sua história de vida familiar, antecedentes estimularam o comportamento de militância:
“Meu pai foi vítima de perseguição política. (...) Então, desde menino, eu tive essa consciência
de perseguição política. Mas meu pai não era militante. Ele era getulista, a favor dos direitos
trabalhistas e conscientizava os operários. (...) Mas não era um militante de esquerda”.
Também, JH discrimina outros estímulos familiares, como pode ser constatado em seu relato:
“Com o golpe de 64, um tio meu foi preso. Isso me despertou para a política (...). Eu acho que
meu tio influenciou mais do que meu pai. E teve outro primo meu que era mais jovem, da
aeronáutica, que foi preso e cassado no Rio. Então minha família foi atingida pelo golpe militar”.
Estudou no Colégio Central e neste contexto participou do Grêmio Estudantil. “Eu não tinha
contato com a esquerda. Era aquela participação somente no nível de reivindicações. Eu era um
estudante que gostava de participar de movimentos. O Grêmio era um bom lugar para
participar.” Também atuou no movimento contra a censura de uma peça teatral, escrita por um
dos alunos da sua escola, denominada “Aventuras e desventuras de um estudante”.
Em 1966, JH prestou vestibular para arquitetura, mas não foi aprovado. Por isso, participou da
manifestação dos “excedentes”, que denunciava a falta de vagas nas universidades públicas. A
partir daí estabeleceu contato com outros militantes políticos.
Em 1968, o sujeito ingressou na UFBA, no curso de Física. Em seu relato, JH discrimina as
contingências sociais e o ambiente universitário como estimulantes à militância política:
1968 foi o ano que houve mobilização no mundo todo. Houve movimentos na França, movimentos contra a
guerra no Vietnã. (...) Surgiu o movimento hippie, que era uma forma contestatória dos valores burgueses e
etc. Então tinha um segmento que adotou uma postura socialista, procurando um engajamento político de
apoio à revolução cubana. (...) Coincidiu que eu entrei na universidade exatamente nesse ano de
efervescência. Aí sim eu fui ter contato com a esquerda organizada. Com a POLOP! (...) Todo mundo
naquele ano, em 68, tava se propondo a acabar com a ditadura militar e fazer a revolução social. Era uma
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outra postura. E isso implicava numa mudança de comportamento, de modo de vida e de relação com a
família.
Portanto, no ambiente universitário, JH participou do movimento estudantil, do DA e filiou-se a
POLOP, sendo também estimulado à prática da guerrilha:
Nós estávamos ocupando a universidade. (...) Então nós saíamos durante o dia para fazermos passeatas e de
noite (...) nós inventávamos nossos inimigos. Nós mobilizávamos nossas forças para lutar contra o pessoal do
Comando de Caça aos Comunistas (CCC). A gente se armava, dava plantão. Tinha toda uma estrutura
militarizada para enfrentar esse pessoal. (...) Isso era orientado pela POLOP. (...) E aí nós formamos uma
cédula lá dentro. A gente tinha a prática de criar tensão permanente com a direita. (...) E essa era uma forma
da gente formar a tropa: ficar inventando que vai ser atacado, que estamos cercados. Tinha a prática
intelectual também, que era nas escolas, tentando mudar o currículo, (...) professores, melhorar as condições
das escolas, bebedouro, sanitário, auditório. (...) Tinha um lado de aventura na gente. Era uma dinâmica, era
uma prática agradável.
Posteriormente, JH atuou no movimento operário (como estudante), e em 1969 tornou-se um dos
dirigentes da POLOP no Estado da Bahia. A partir daí passou a atuar na organização do partido e
na direção das cédulas, sendo o elo entre a base e a direção nacional.
Em 1972, o sujeito foi informado que estava sendo seguido e comunicou o fato a direção da
POLOP. Esta, então, deliberou a sua ida ao Rio de Janeiro. Portanto,
teve um pessoal do movimento secundaristas, que eu tive contato. E eles começaram a desconfiar que
estavam sendo seguidos. (...) Essa turma tinha entre eles um policial infiltrado, que estava usando eles como
isca para chegar às organizações. Aí o Pessoal da POLOP disse (...) para eu sair daqui da Bahia e ir para o
Rio de Janeiro. (...) Eu tive um último contato com essa turminha, para avisar do meu afastamento. (...)
Quando eu desci para pegar o ônibus, eu encontrei a minha namorada. Aí fomos a um barzinho. Nos
sentamos numa mesa redonda e começamos a namorar e a conversar. (...) Aí entrou três bêbados, um caindo
em cima do outro. Um deu um tombo e aí a mesa foi virando. Aí eles seguraram, botaram tudo no lugar e aí a
gente sentou. (...) Na verdade, aqueles caras eram três policiais. Eles pegaram o gravador e botaram em baixo
da cadeira que tava vazia. Então eles ficaram sabendo que eu ia embora para o Rio e aonde eu iria me
encontrar com as pessoas (...).
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Entretanto, alguns dias antes da viagem, o sujeito entrou em contato com a direção nacional da
POLOP e foi informado sobre a alteração dos planos. Doravante, JH deveria viajar para Minas
Gerais:
Aí eu telefonei para São Paulo para confirmar a minha chegada no Rio, que deveria ser no dia 18 de Abril de
72. (...) Aí me disseram que eu não ia mais para o Rio, que ia para Minas, porque lá tinha uma menina que
estava morando sozinha. Aí a gente ia simular que éramos um casal. (...) O ponto do Rio era o seguinte: eu
deveria ir para o Rio de Janeiro, e deveria encontrar com uma companheira no Teatro Municipal. Era para eu
ficar circulando num sentido e ela em outro, que a gente iria se encontrar em algum momento. (...) A Polícia,
com esse negócio do gravador, ficou sabendo que eu tinha esse contato. Quando cheguei em casa, a Polícia
tava me esperando para me prender.
JH foi detido em cinco de Abril de 1972 e encaminhado para a Polícia Federal. Como se pode
constatar a partir do seu relato, o submeteram a punição por meio da ameaça, privação de
liberdade e contingências aversivas da prisão: “Tiraram a minha roupa. (...) Aqui na Bahia tinha
na época o esquadrão da morte. E eles tentavam usar aquele físico enorme para amedrontar a
gente. Eles botavam a gente perto do halterofilista para a gente ficar com medo”.
O identificaram como dirigente da POLOP e enviaram-no para o quartel de Amaralina. Seis dias
após a sua detenção, JH foi encaminhado para o Rio de Janeiro:
Eles ouviram a fita gravada e compreenderam que eu estava indo embora da Bahia para ser um dirigente
político no Rio. Aí me levaram para o Rio para pegar os outros militantes. (...) Eles me botaram dentro do
avião. Um pessoal da Aeronáutica soltou no aeroporto (...) e me botaram dentro de uma cela. (...) Quando
foram cinco horas, eles reapareceram. Aí me deram uma mala pesada com pedras, tijolos, ferro, e algemaram
no meu braço, para eu não correr. Jogaram um casaco pra ninguém ver que aquela mala estava algemada no
meu braço. Então me deixaram no Aeroporto Santos Dumont e atravessaram comigo até o Teatro Municipal.
(...) Comecei a rodar com a mala, no Teatro Municipal. (...) Aí no outro dia de manhã o mesmo esquema. (...)
Rodei, rodei, rodei, e não aconteceu nada. Aí me trouxeram para a cela novamente. No terceiro dia o mesmo
ritual. Aí eles me disseram que desse dia eu não passava! (...) Aí rodaram comigo, e na volta disseram que o
pessoal estava desgastado (...). Quando chegou na avenida, perto do aeroporto, tinha um semáforo e à cem
metros um carro parado, cheio de “tira” dentro. E eu com aquela mala pesada. Aí ele veio caminhando
comigo, quando chegou na metade da pista, ele voltou correndo e o carro saiu de lá em minha direção para
me atropelar. Daqui a pouco eu senti o carro freando e eu sem saber o motivo. Eu tentava correr com aquela
mala. De repente eu estava no meio de uma multidão e o carro parou por isso! Quando eu vejo, tinha um
carro trazendo “Tostão”! Ele estava chegando naquele momento no Rio de Janeiro. E a torcida do Vasco
invadiu o cenário que eles prepararam pra me matar (...).
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Posteriormente a esse episódio os policiais o capturaram. Na prisão o sujeito foi submetido à
punição (agressão física e ameaça): “Me deram porrada, simularam morte botando revólver na
minha cabeça, (...) pra eu falar. (...) Eles me mudavam de endereço; levavam para alguns lugares
silenciosos; para lugares com zoada; lugares quentes; lugares frios, sem me dar explicações”.
Após aproximadamente um mês JH retornou à Bahia e foi novamente punido, como pode ser
constatado a partir do seu relato:
Eles me botaram no pau-de-arara dentro do avião. (...) Eles me dependuraram no teto do avião, amarraram
com algema as minhas pernas e as minhas mãos e eu vim dependurado. (...) No quartel de Amaralina eles me
deram choque elétrico, simularam fuzilamento, afogamento, queimaduras, telefone, tapa no ouvido.
Queimaduras com cigarro no peito e no pé. (...) Tomei muita pancada, fui humilhado.
JH foi condenado a três anos de reclusão por participar da organização de um grupo clandestino
com fins conspiratórios e em Julho foi transferido para a Penitenciária Lemos Brito. O sujeito
permaneceu sob privação de liberdade durante dois anos e cinco meses e, após este período, foi
beneficiado pela prisão condicional. De acordo com ele, “pra quem sai do quartel e chega à
penitenciária era o mesmo que chegar ao paraíso.” Ou seja, os reforçadores sociais
contrabalançaram os efeitos aversivos da privação de liberdade e das condições carcerárias.
Após a prisão JH retornou a atividade política. “Depois eu continuei na militância. Participei da
fundação do PT. Até hoje eu sou militante do PT”.
Portanto, em sua história de vida familiar, antecedentes estimularam o seu comportamento de
militância, como a atividade de conscientização dos operários realizada por seu pai. As prisões
de um primo e, principalmente, de um tio após o golpe foram identificadas pelo sujeito como
estimulantes ao comportamento de militância.
O ambiente escolar propiciou o surgimento do comportamento de contracontrole (como a
participação em manifestações, grêmio estudantil). Entretanto, o contexto da universidade e as
contingências sociais da época, estimularam o ingresso do sujeito no DA e na POLOP.
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No que concernem os valores familiares, escolares e dos grupos políticos que o sujeito
participou, estes estimularam os comportamentos de militância anteriormente à prisão. Também,
corroborou para a manutenção do contracontrole e contra-agressão durante a tortura e a prisão,
até a atualidade.
Faz-se necessário frisar que mesmo após a punição, o sujeito retornou a militância política. Desta
forma, a agressão física, a ameaça, a injúria, a privação de liberdade e as contingências aversivas
da prisão não extinguiram os comportamentos de militância. Como se pode constatar, após a
tortura o sujeito participou da fundação do PT, até a atualidade.
4.6 MLS
MLS tem 58 anos e é natural de uma cidade localizada no Estado de Alagoas. Seu pai foi ativista
político, bem como alguns familiares, como se pode constatar a partir do seu relato:
Três pessoas na minha família foram atuantes na política, mas eram de direita e centro. Só eu militei na
esquerda. (...) Meu pai se envolveu com a União Democrática Nacional (UDN). Meu pai foi prefeito, foi
vereador. Era um representante político da cidade e eu gostava de participar das eleições. Para meu pai
ganhar eu era uma militante ativa. (...) Levava eleitor para casa, levava eleitor para votar. Eu era bem
aguerrida, mas sem uma visão maior.
Estudou em um internato - ligado a Igreja Católica – durante quatro anos e neste contexto
participou de reuniões comunitárias e congregações. Nesta escola emitiu comportamentos de
contracontrole, como pode ser constatado a seguir: “Me rebelava na sala de aula. A professora
percebia e aí me botava de castigo. Eu perdia as férias do meio do ano, porque cometia atos de
indisciplina. Eu me rebelava com as filas. (...) O adolescente tem um pouco de rebeldia e de
transgressão”. Posteriormente estudou no Colégio Estadual de Alagoas. Doravante, participou do
Grêmio e do movimento estudantil secundarista.
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MLS ingressou no curso de Medicina e Serviço Social e após um ano abandonou o primeiro. No
ambiente da universidade participou do DA e militou na Juventude Universitária Católica (JUC).
Em serviço social comecei a militar na Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social. Fui do Diretório
do início até quase o final do curso. Ora vice-presidente, ora secretária. (...) Eu Participei de reuniões e dos
congressos. Aí, como a minha origem foi católica, eu comecei a participar da JUC, Juventude Universitária
Católica, antes de chegar a ser uma militante do partido.
Em 1965, MLS foi estimulada a filiar-se a AP pela rede social: “Na época do estágio, a minha
orientadora era uma militante de AP. Aí conversou comigo e eu acabei entrando na AP. Até
então eu era da JUC. (...) E eu estava fazendo a minha monografia ligada ao ciclo operário”.
Em 1967, ao regressar de um congresso em Salvador, MLS foi presa e permaneceu durante três
dias em privação de liberdade e sob contingências aversivas. Após ser submetida à punição,
MLS retornou a militância, atuando no movimento estudantil, camponês e operário.
Em 1968 foi novamente detida e encaminhada à prisão de uma cidade do interior de Alagoas,
onde permaneceu por um mês em privação de liberdade e sob contingências aversivas:
A gente começou a formar o sindicato dos camponeses. E eu comecei a me juntar, a ir para os interiores, para
implantar os sindicatos como militante da AP! (...). Eu tava na minha casa, sentada na área, com um
camponês, preparando uma assembléia, (...) quando chegou o carro do DOPS. (...) Eu fui presa e foi uma
coisa de grande repercussão. (...) Eles vendaram meus olhos e me levaram para uma cadeia no interior de
Alagoas!
MLS foi submetida à punição (agressões físicas, injúria, privações, contingências aversivas da
prisão) como é possível constatar a partir do seu relato:
Eu dormi no chão, e saí com problema de saúde. (...) Eles metiam a cabeça da gente dentro da água pra tentar
afogar, até falar. E choques! (...) O choque foi mais nessa região genital. (...) Na prisão eu me transformei em
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um trapo humano. Eles não têm o mínimo de respeito. (...) Eles já chegaram a outros estágios de seres
humanos, no sentido de atenderem aos seus instintos animais. (...) Eram pessoas sanguinárias. Eles diziam
que se batessem, a gente falava. Mulher falava. (...) Então a prisão é um negócio terrível.
Durante a punição, os valores reforçaram o comportamento de resistência: “(...) No momento
que estava sendo torturada, eu não desistia do que eu tava fazendo, pois eu achava certo. Eu
chorava porque eu tava totalmente desprotegida.” Também, a punição (choque-elétrico) gerou
subprodutos como o medo: “O que tem eletricidade me apavora”.
O seu advogado entrou com o pedido de habes corpus, mas o mesmo foi negado. MLS, então,
emitiu comportamento de fuga (controlada pelo grupo e pelas contingências aversivas da prisão):
O partido tramou uma fuga e eu consegui sair. Eles foram com carro. (...) Aí abriram a minha cela e eu
consegui fugir. E nesse momento saiu a notícia de que o habeas corpus não tinha sido liberado, porque eu
estava em poder da jurisdição do Exército. Aí a cidade ficou toda fechada pra impedir a minha saída, mas a
gente conseguiu fugir, porque eles me levaram para uma fazenda do partido. Aí me caracterizaram para evitar
que me reconhecessem.
Da mesma forma, MLS apresentou comportamento de esquiva (controlado pelo grupo e pelas
contingências sociais) vivendo por 11 anos na clandestinidade. Durante o período mencionado
militou na AP e residiu na Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trabalhou em
diversas fábricas como operária, participou de greves e mobilizações: “Na clandestinidade (...)
estudava a vida do trabalhador e vivia a vida que ele também vivia”.
Durante o período que viveu na clandestinidade, MLS casou-se com um operário, mas o mesmo
não era militante e desconhecia o seu envolvimento político. “Ele só veio saber que eu era
militante depois. Ele não sabia quem eu era. Me conhecia com outro nome”.
De acordo com as suas descrições, durante a clandestinidade esteve sob controle de
contingências aversivas:
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Quando algum companheiro era preso, alguém do partido se aproximava e avisava para a gente não voltar
para casa. Aí eu ficava totalmente perdida. Era uma vida terrível. (...) Eu ficava várias vezes vagando pela
cidade, procurando um lugar para ir. (...) Acho que entrei em pânico. Não dormia de noite, passava mal. (...)
Eu desmaiava na rua, por que eu não tinha dinheiro pra comer (...).
MLS também relata outro episódio em que esteve exposta a contingências aversivas: “Uma
militante entrou em surto (...). Aí foi um sufoco. Ela tentava se matar, não tomava remédio.
Estava sempre ativa, falando que a Polícia tava chegando”.
Com a abertura política, no governo Figueiredo, MLS foi anistiada. Na década de 90 deixou a
militância política (estimulada pela rede social, devido à crise de valores), mas atualmente vota
na cédula do PCdoB, partido que se filiou após a extinção da AP. Também, posterior a esse
período, liderou movimentos na Associação de Moradores do condomínio onde reside, e
atualmente trabalha na área de Recursos Humanos, “visando à melhoria da qualidade de vida dos
trabalhadores”:
Durante todo o período da ditadura eu fui militante. Eu abandonei depois por questões pessoais. (...) Eu saí
muito em função do meu marido. Ele fez uma pressão muito grande e eu, quando voltei pra Salvador, tive
uma crise muito forte. (...) Eu achava que não merecia ter conforto, que eu tinha que ter uma vida que um
trabalhador tinha. (...) Passei um período em tratamento. (...) Dos 19 anos até aproximadamente 30 anos eu
fui militante.
Com relação aos subprodutos da punição, MLS passou a emitir comportamentos de medo,
delírios de perseguição, pesadelos e depressão. Devido a essas conseqüências - somadas a crise
de valores gerada pela incompatibilidade entre as vidas como operária e assistente social submeteu-se ao tratamento farmacológico e psicológico: “Eu tive uma depressão muito forte e
fiz tratamento a base de remédio e terapia, para chegar a conclusão que eu merecia ter conforto.
(...) Deixar de ser perseguida constantemente. (...) Da prisão eu guardo o medo. Eu não consigo
estar sozinha. Eu quero que o meu marido esteja próximo. (...)Eu tenho muito pesadelos”.
Outra conseqüência aversiva relatada por MLS foi à impossibilidade de engravidar, devido à
punição (choque-elétrico): “(...) Não ter gerado um filho, isso foi uma marca. (...) Mexeu demais
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comigo (...). Eu adotei um filho por causa dos problemas que eu tive. Por conta do choqueelétrico.” Também, devido às condições carcerárias, teve problemas na coluna vertebral e
verticulite.
Assim, o ambiente familiar de MLS favoreceu o aparecimento do comportamento de militância,
com o exemplo da atuação política de seu pai e outros familiares - apesar de ideologicamente
divergente. No contexto escolar do internato - vinculado à Igreja Católica- o sujeito foi
estimulado a participar de reuniões comunitárias, congregações e emitir comportamentos de
contracontrole. O ambiente do Colégio Estadual de Alagoas também propiciou o aparecimento
do comportamento de militância, através das atividades do Grêmio Estudantil. Também, durante
o período escolar, MLS vinculou-se a UESA, sendo estimulada pelo grupo à militância política.
Do mesmo modo, o ambiente universitário propiciou o aparecimento dos comportamentos de
militância, através da participação no Diretório Acadêmico. MLS também atuou na JUC, sendo
reforçada pelo grupo à atuação política. Posteriormente, no estágio (sobre o ciclo operário), foi
estimulada pela supervisora a filiar-se a AP. Quanto aos valores, é imprescindível frisar a sua
importância na manutenção dos comportamentos de contracontrole anteriormente a após a
prisão, bem como a resistência à tortura e contingências aversivas do cárcere.
MLS, ao ser submetida à punição (agressão física, ameaça, privação de liberdade, contingências
aversivas do cárcere), emitiu comportamento de fuga (compelida pelo controle do grupo), a fim
de eliminar o controle aversivo. Do mesmo modo, se esquivou da prisão e da tortura, entrando
posteriormente na clandestinidade.
Durante a clandestinidade, MLS continuou atuando politicamente na mesma organização. O seu
afastamento das organizações políticas ocorreu após a ditadura militar - em 1992,
especificamente-, estimulada pela rede social, devido ao conflito de valores. No entanto, após
este período, MLS participou de movimentos na Associação de Moradores do condomínio onde
reside e até a atualidade trabalha no setor de RH, sob controle de contingências semelhantes ao
período de militância. A punição, portanto, não extinguiu o seu comportamento de
contracontrole à agência governamental.
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Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro.
(Chico Buarque)
5 CONCLUSÃO
Para estabelecer uma análise de um determinado comportamento é imprescindível considerar a
interação entre os três níveis de seleção, tais quais: a filogênese, a ontogênese e a cultura
(ANDERY, 2001). Por isso, múltiplos fatores durante a história de vida corroboram para a
emissão de um dado comportamento. Assim, no presente trabalho, também se buscou analisar a
variedade de contingências que determinaram o comportamento de militância. Entretanto, se faz
necessário ressaltar a simplicidade desta verificação, uma vez que alguns fatores podem não ter
sido colhidos durante a entrevista - devido à limitação do contato ou por não serem identificados
pelos sujeitos.
Assim, a partir da análise dos dados pode-se concluir que - quanto à história de vida familiar dois sujeitos apresentaram antecedentes que estimularam os comportamentos de militância
política. No caso de um dos sujeitos, não houve modelos que atuaram politicamente, entretanto,
contingências familiares – referentes aos valores burgueses - e sociais da época reforçaram o
comportamento de contracontrole às agências: familiar, escolar e governamental. Dois sujeitos
apresentaram
antecedentes
que
estimularam
o
comportamento
de
militância,
mas
ideologicamente opostos. E um deles não apresentou antecedentes familiares.
Com relação à agência de controle familiar é imprescindível ressaltar que os sujeitos, no período
histórico investigado, eram adolescentes ou adultos jovens. É comum, durante a referida fase, a
redução da influência da família e conseqüente intensificação do poder reforçador do grupo.
Comumente, os sujeitos emitem comportamentos de contracontrole as agências: familiar,
educacional, religiosa, governamental e etc, quando adolescentes ou adultos jovens.
Por isso, quanto aos resultados referentes à agência de controle familiar, em alguns casos os
comportamentos de militância política foram estimulados. Em outros, há alta probabilidade de
que estes foram emitidos para contracontrolar esta agência – sendo este comportamento comum
durante a fase da adolescência e adulto jovem. Também, um refere não ter sido estimulado pela
família à militância política, pois esta agência de controle não é o único ambiente reforçador dos
comportamentos humanos. Assim, múltiplos ambientes e contingências os determinam.
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O contexto escolar foi o ambiente propício para o surgimento do comportamento de militância
política, uma vez que todos os sujeitos atuaram no Grêmio Estudantil e no DA. Dois sujeitos
destacaram o estímulo de matérias lecionadas na escola, e um destes ressalta a influência da
leitura de livros literários, revistas e jornais. Este também frisa o estímulo dos reforçadores
sociais - principalmente nas manifestações estudantis - para o comportamento de militância. Um
sujeito ressalta o reforço de uma professora para a filiação na organização política.
Anteriormente ao golpe de 64, a atividade política na escola não era reprimida. Após este
período e, principalmente, com o AI-5, tais práticas passaram a ser punidas, tornando-se
clandestinas - comportamento de esquiva controlado pelo grupo e pelas contingências sociais para evitar a punição. Desta forma, a repressão política no ambiente da agência educacional
propiciou o surgimento dos comportamentos de contracontrole na qualidade de militância
política, pois os indivíduos estavam submetidos ao controle coercitivo. Também, vale frisar que
o ambiente da escola fomentava a formação e participação em grupo - apesar de censurado pela
agência governamental- sendo estes estimulantes a atuação em organizações políticas.
Durante o período escolar, quatro sujeitos participaram de grupos políticos, sendo por estes
estimulados à militância e filiação ulterior em organizações e partidos: um atrelado ao
movimento estudantil secundarista, outro à comunidade, o terceiro à rede social e o último à
Igreja Católica. Um dos sujeitos destaca o contexto social do Chile - onde residiu por três anos como estimulante ao comportamento de militância e dois o ambiente do Brasil à manutenção
deste. Outro enfatiza um episódio que o reforçou a ingressar em uma organização política - a
morte de um colega da escola.
Ao serem punidos, cinco sujeitos emitiram comportamentos de fuga e esquiva - em alguns casos
sob controle do grupo e das contingências sociais. Três apresentaram comportamentos de ira,
revolta e contra-agressão; e um destes salientou o comportamento ansioso. Três sujeitos
afirmaram em seus relatos que emitiram medo durante a punição e dois destes também após a
prisão.
Três sujeitos, após a punição, apresentaram delírios de perseguição; dois referiram desorientação
e pesadelos; e um a alucinação. Destes, um também mencionou pensamento suicida e o outro
depressão. Um sujeito destaca conseqüências orgânicas da tortura, tais quais problemas na
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coluna vertebral, verticulite e dificuldades para engravidar. É imprescindível frisar que todos os
sujeitos, após a prisão, emitiram comportamentos de contra-agressão a agência de controle
governamental.
O controle aversivo gera a fuga ou a esquiva. Quando impossibilitados de evitar ou eliminar a
punição, os indivíduos contracontrolam os seus controladores ou emitem comportamentos de
contra-agressão. Com o recrudescimento do controle e da agressão, o contracontrole e a contraagressão também se intensificaram. Além desses subprodutos, a punição suscita comportamentos
emocionais e psicopatológicos, gerando conseqüências devastadoras aos seres humanos.
Referente aos valores transmitidos pela família, escola e organizações de oposição, é
imprescindível ressaltar a sua importância para a manutenção dos comportamentos de resistência
durante a punição. Devido a esses, os militantes políticos, quando torturados, se esquivavam da
confissão, promovendo a sobrevivência do grupo e dos seus integrantes. Por isso, o
comportamento de “resistência” era ressaltado pelas organizações como heróico e digno.
A tortura e prisão não suscitaram alterações dos valores e, principalmente, não promoveram a
“culpa”. Mesmo após a punição, os sujeitos continuaram classificando como “certos” ou “legais”
os comportamentos de contracontrole a agência governamental. Desta forma, os valores
corroboraram para a ineficiência do método punitivo e, mesmo após as sevícias, os
comportamentos de militância ressurgiram.
Os resultados apontam para a ineficácia deste método, pois todos os sujeitos, após a prisão,
retornaram a militância. Vale ressaltar que dois sujeitos afastaram-se da atividade política. Um
destes se desligou devido as mudança das contingências ambientais, não sendo estas reforçadoras
atualmente; já a outra se afastou devido à incompatibilidade dos valores e pelos estímulos da
rede social. Mas, mesmo assim, afirma ter participado da Associação dos Moradores do
condomínio onde reside e até a atualidade trabalha no setor de Recursos Humanos, em “busca de
melhorias da qualidade de vida dos trabalhadores”. Portanto, estes sujeitos não militam mais,
mas os motivos não estão vinculados ao processo de punição.
Faz-se necessário frisar que com o golpe militar de 1964, organizações de oposição foram
censuradas, tornando-se clandestinas - se esquivando do controle aversivo do Estado. Mandatos
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foram cassados, líderes estudantis e sindicais perseguidos e direitos políticos suspensos. Muitos
foram presos ou exilados. Ao passo que se intensificaram os aparelhos repressivos, a oposição
também se articulou, surgindo grupos guerrilheiros com estrutura militarizada.
A “linha dura” do Exército estava descontente com a “conivência” do governo em relação à
oposição, e por isso, ao assumir o poder, intensificou a máquina repressiva. O AI-5 foi o “golpe
dentro do golpe”, corroborando para um Estado de terror e de guerra. Era tempo de “caça as
bruxas”! Em resposta, grupos da oposição investiram na luta armada. “No ano de 1969, o
recrudescimento da repressão em todo o país reforçou o sentimento, no interior das organizações
de esquerda armada, de que de fato não havia outro caminho senão o das armas” (JOSÉ, 2000, p.
46). As ações guerrilheiras aumentaram, mas, consequentemente, o índice de prisões, torturas e
assassinatos foi diretamente proporcional.
A máquina repressiva do Estado era muito mais poderosa e por isso aniquilou as organizações de
oposição, desestruturando-as. Muitos foram presos e torturados, alguns morreram durante a
tortura, outros foram assassinados ou se suicidaram, e há indivíduos que até hoje estão
desaparecidos.
O governo Médici, já contando com a Rede Globo – o Jornal Nacional, iniciado em 1969, era uma espécie de
diário oficial do regime-, isola a esquerda, que perde inteiramente suas bases sociais, sua vinculação com o
povo. É nesse cenário de isolamento que o aparato policial-militar-terrorista montado por Médici vai
aniquilar a quase totalidade da esquerda armada, assassinando cruelmente seus melhores combatentes. O
confronto entre a esquerda armada e a ditadura reduzia-se ao campo militar, e neste Exército, que se envolveu
diretamente na repressão, era muito mais poderoso (JOSÉ, 2000, p. 38).
Os principais líderes das organizações estavam presos ou mortos, e a massa desprovida de
dirigentes. Com isso, a oposição foi desarticulada, o índice de mobilizações políticas e ações
armadas foram reduzidos, mas não abolidos.
Nos anos seguintes a oposição se rearticulou e ganhou força. A derrocada do milagre econômico
- que reforçava seguimentos da sociedade, principalmente a classe média, a apoiar o governo -
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colaborou para a intensificação da oposição, eclodindo diversos movimentos, gerando a abertura
política em 1984.
É no governo Geisel que os sindicatos ressurgem com força, e outros seguimentos sociais
também se organizam. Com o abrandamento do maquinário repressivo nos anos pós-Médici, a
oposição modificou a sua estratégia de militância política, e os movimentos guerrilheiros foram
extintos.
Assim, com o recrudescimento do controle coercitivo da agência governamental, o
contracontrole também se agravou, e as organizações tornaram-se militarizadas. Com o AI-5, o
aniquilamento destas se deu através do assassinato - principalmente dos dirigentes - das prisões
de militantes políticos ou do exílio, gerando a redução no índice de mobilizações. Durante o
período de supressão, a oposição se rearticulou e os comportamentos de contracontrole
ressurgiram, gerando a abertura política. Com o a atenuação da repressão, os movimentos
abandonaram as armas e modificaram a sua estratégia de luta. Vale ressaltar que esta relação de
controle e contracontrole é dialética.
Fazendo-se uma análise do contexto histórico é possível constatar que os comportamentos de
contracontrole não foram extintos, porém suprimidos durante o período de rearticulação da
oposição. Esta supressão foi causada pelo extermínio dos opositores, através da sua prisão,
assassinato ou exílio. Durante esta fase, setores da sociedade se reorganizaram e os
comportamentos de militância ressurgiram. Porém, as estratégias foram modificadas, devido a
alteração das contingências sociais.
Portanto, a punição não é eficaz para abolir comportamentos considerados “indesejáveis”. Estes
podem ser suprimidos durante um determinado período, mas não são extintos. Além da
ineficácia do método punitivo, vale ressaltar que o controle gera contracontrole e a agressão
produz contra-agressão. Ao passo que o Estado ampliava o seu aparelho de repressão, as
organizações tornaram-se militarizadas e intensificaram as suas ações (e vice-versa). Com o
extermínio da oposição, o controle foi abrandado.
Após o aniquilamento da oposição, esta se rearticulou e os comportamentos de contracontrole e
contra-ataque à agência governamental ressurgiram. Mas quando o Estado abrandou seus
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métodos punitivos, as organizações modificaram as suas estratégias, abandonando a luta armada.
Portanto, “práticas coercitivas podem gerar contra-ataque contra indivíduos e grupos dos quais
eles são membros. (...) Coerção severa, então, gera uma contra-reação quase automática”
(SIDMAN, 2001, p. 223).
Os resultados da presente pesquisa confirmam a teoria de Skinner, ao demonstrar que a punição
não é eficaz para abolir comportamentos considerados “indesejáveis” ou “dolosos”. Também,
este método gera conseqüências desastrosas ao indivíduo e produz contracontrole e contraagressão.
Vale ressaltar que mesmo com a “democratização”, a tortura ainda é empregada nos cárceres,
nos manicômios e nas instituições repressivas - contra os pobres e oprimidos. Utilizada
atualmente como estratégia de exclusão, mas aplicada sob a justificativa de abolir a violência, a
sociedade fecha os olhos para a prática da tortura e extermínio. Sustentada por uma elite omissa,
que escamoteia as verdadeiras causas da violência urbana e dos abismos sociais, as sevícias são
intensamente empregadas, como foi nos tempos negros da ditadura.
Há que se revisar os conceitos atribuídos aos comportamentos “indesejáveis”, ancorados nas
concepções que incorporem a inclusão social, a ética e os direitos humanos. Se a punição é
ineficaz, devemos ainda insistir na aplicação dessa técnica que agrega ao homem e à sociedade
danos irreparáveis? Se “agressão gera agressão”, é a partir da coerção que iremos abominá-la?
Qual o caminho para a redução da violência e exclusão social?
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