CONDUTA MÉDICA NA HETEROINSEMINAÇÃO UM IMPASSE ÉTICO E JURÍDICO Luciano Andrade Coutinho e Tátilla Gomes Versiani Tornou-se premente refletir sobre as implicações ético-jurídicas da reprodução artificial heteróloga, especialmente em face do direito de conhecimento do patrimônio genético, da privacidade do doador de gametas. O direito de conhecimento do patrimônio genético encontra respaldo no direito à filiação e no princípio da verdade biológica, do que decorre, fundamentalmente, a vedação do anonimato da origem genética de uma pessoa. Com isso, a filiação transcende a questão biológica, abrangendo a realidade social, afetiva e cultural do ser humano, em consonância com o que estabelece o novo Direito de Família, que atribui ao afeto valor jurídico. Do direito à filiação, desdobram-se três vertentes: a filiação genética, a filiação jurídica e a filiação socioafetiva. No tocante à origem genética, buscam-se apenas os progenitores, realidade biológica que não interfere na relação paterno-filial estabelecida pelo afeto. Desse modo, as ações de estado destinam-se a quebrar o anonimato da origem genética, resguardando o direito do filho à personalidade e ao conhecimento de sua ancestralidade, direito fundamental. Ademais, assegura a dignidade humana a revelação da identidade pessoal. O dever de “cuidado integral do ser humano” (WALDOW apud PEREIRA, 2010, p.3) enseja a revelação da verdade biológica e gera obrigação de controle e manutenção dessas informações pelo Estado e pelos particulares, notadamente, os bancos de gametas. Competiria a eles, como consectários, a obrigação de revelar estes dados mediante simples requisição, independentemente de mandado judicial, pois trata-se de direito líquido, certo e fundamental direito personalíssimo de acesso à ancestralidade. Cumpre indagar como o médico e os bancos de gametas deverão proceder para, em conformidade com a ética, preservar ao máximo a essência da natureza humana, isto é, a dignidade dos envolvidos nos procedimentos de heteroinseminação. CONDUTA MÉDICA NA HETEROINSEMINAÇÃO O Código de Ética Médica estabelece os princípios norteadores da prática médica e impõe o dever de sigilo em relação às informações obtidas no exercício da profissão médica, nos termos do inciso XI do Capítulo I: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”. Compete, neste ponto, indagar se a remissão à “lei” permitiria interpretação em sentido lato, para abranger normas e princípios constitucionais, ou somente refere-se à lei propriamente dita, fruto do exercício do Poder Legislativo. Considerando que a dignidade humana é alicerce do Estado Democrático de Direito, constituindo-se ordem cogente a determinar a operacionalização dos institutos jurídicos e a interpretação sistemática das normas, melhor hermenêutica parece ser aquela que compreende a palavra “lei” em seu sentido amplo, abrangendo normas e princípios informadores do Estado Democrático de Direito Brasileiro e aqueles inseridos nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina, em especial no Código de Ética Médica. Para realização do procedimento de heteroinseminação, a Resolução CFM nº 1.957/10, no item 3 do Capítulo I, obriga à instrumentalização, pela via documental escrita, do livre consentimento informado, tanto dos doadores de gametas como dos pacientes submetidos ao procedimento: o casal infértil, casado ou não, abrangidos também os parceiros homoafetivos¹, ou a pessoa solteira, maior e civilmente capaz. Ocorre, contudo, que tal disposição pode ser questionada, inclusive com relação à sua constitucionalidade², pois se trata de uma resolução proibindo o particular de praticar determinada conduta que somente à lei, em seu sentido estrito, caberia regular. Forçoso mencionar, entretanto, que o Código Civil não faz constar em seu texto tal obrigatoriedade, mas, no que tange às técnicas de reprodução assistida, uma das poucas tentativas de regulamentação da matéria parece ser mesmo referida Resolução. Regulamentado o procedimento de heteroinseminação, a norma do CFM impõe o dever de sigilo, dispondo que é vedado aos doadores e pacientes conhecerem, reciprocamente, suas identidades civis. Dispõe também que o médico só poderá acessar dados exclusivamente fenotípicos do doador de gametas se estiver diante de situação médica excepcional, e uma vez fazendo-o, deverá manter total sigilo, sob pena de sofrer sanções disciplinares. [Digite texto] Considerando que o médico não possui acesso à identidade civil dos doadores, resta indagar qual seria a melhor conduta, sob o ponto de vista ético e constitucional, dos bancos de gametas – clínicas, centros ou serviços que aplicam as técnicas de reprodução assistida –, que se constituem pessoas jurídicas de direito privado, diante do requerimento de identificação civil do doador de gametas, por parte do nascido das técnicas de heteroinseminação. Maria Helena Diniz (2004, p. 24-29) assegura que a ocultação da identidade civil do doador de gametas poderá originar “uma legião de seres humanos feridos na sua constituição psíquica e orgânica, e, além disso, o anonimato do doador traz, em seu bojo, a possibilidade de incesto e de degeneração da espécie humana”. Além destas hipóteses, há que se registrar a pertinência dos problemas relativos à garantia constitucional à saúde, no que tange ao aparecimento de doenças cuja rapidez e certeza quanto ao diagnóstico necessitem de investigação genética. Lucas de Camargo (2008, p. 82) chama a atenção para o fato de que a relação havida entre o banco de gametas e o paciente é a de prestação de serviços, isto é, de negócio jurídico. Por este motivo, não poderia comprometer ou interferir nos direitos e interesses de terceiros, nem poderia a vontade dos pais afetivos ou a do doador de gametas suprimir o direito à identidade genética do nascido pela via da heteroinseminação. Cumpre esclarecer que a compreensão do autor parece adequada e razoável, tendo em vista a parentalidade responsável, que deriva não só da “norma fundamental de civilidade” (CUPIS, 2008, p. 27 apud CAMARGO, 2008, p. 85), mas também do dever de cuidado e do princípio da solidariedade, subprincípios da dignidade humana. Neste sentido é a opinião de Fernanda Moreira (2010, p. 41), para quem, “embora o Conselho Federal de Medicina obrigue a que se mantenha em sigilo a identidade dos doadores e dos receptores, nada impede que o filho de doador investigue e descubra quem é o seu genitor”. Nesse sentido, arremata: “O sigilo não pode prevalecer em face do interesse do concebido”. Desta forma, o nascido por técnica de heteroinseminação não apenas faz jus ao acesso à identidade civil do doador, como também pode reivindicar-lhe o nome de família e os direitos de sucessão. Poderá pleitear, ainda, alimentos, independente da inexistência de vínculo afetivo com o doador dos gametas, podendo vislumbrar-se na hipótese a responsabilidade solidária entre o doador e os pais do concebido. Importante frisar que, muito embora ninguém esteja obrigado ao conhecimento de sua ancestralidade, “a todos é dado o direito de conhecê-la, caso queiram, pouco importando a natureza dos vínculos familiares” (MOREIRA, 2010, p. 41). Entende-se, deste modo, que os vínculos biológicos e os afetivos se acrescentam, mas nenhum deles pode prevalecer. Em outras palavras, a posição jurídica do afeto e da verdade biológica, para fins de assunção de responsabilidades, não deverão ser discriminadas. Impende mencionar algumas cautelas que o profissional da medicina deve adotar para evitar transtornos no âmbito dos Conselhos de Ética. Quando vislumbrada a presença dos requisitos para a realização de técnica de heteroinseminação, o médico deve dirigir-se aos registros clínicos de caráter geral, mantidos pelos bancos de gametas. Nestes, certamente estarão consignadas todas as gestações proporcionadas por cada doador, evitando-se, em tese, que o doador tenha produzido mais de duas gestações de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes, nos termos do que determina o Código de Ética Médica. Faz-se necessário, em seguida, esclarecer os pacientes sobre a técnica em si, seus custos e implicações éticas, alertando sobre as consequências jurídicas desta opção e apontando para a possibilidade de, no futuro, o nascido recorrer aos bancos de gametas ou ao Judiciário para investigar a verdade biológica de sua ascendência. Além disso, compete lembrar que o médico não possui acesso direto à identidade civil do doador, mas apenas a informações fenotípicas e à amostra genética do mesmo, em caráter excepcional, diante de uma necessidade terapêutica. Ademais, o médico que acessar tais informações não poderá transmiti-las sem autorização do Conselho de Ética competente, sob pena de sofrer processo ético-administrativo perante o Conselho profissional. Incumbe ao médico esclarecer aos pacientes que o Código de Ética Médica veda a heteroinseminação com intuitos eugênicos (seleção biológica) e também a escolha do sexo do ser que será concebido (sexagem), “exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer” (item 4, Capítulo I). [Digite texto] Ao médico impõem-se, ainda, conhecer que: (i) o número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro, podendo ser transferidos para mulheres com até 35 anos, até dois embriões; mulheres entre 36 e 39 anos, até três embriões; e mulheres com 40 anos ou mais, até quatro embriões; e (ii) em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de reprodução assistida, é proibida a utilização de procedimentos que visem à redução embrionária (item 6, Capítulo I, CEM). À guisa de conclusão, impende afirmar que, na ausência de regulamentação de lei em sentido estrito, recomendável ao profissional da área médica e aos bancos de gametas, em função da vedação expressa no Código de Ética Médica, que mantenham o sigilo da informação, remetendo o caso ao Conselho de Ética, sem prejuízo de que o paciente, por si, busque o Judiciário para resolver a controvérsia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Resta patente que as questões que perpassam pela terapia da infertilidade vão além da utilização pura e simples das técnicas de procriação assistida com o fim de minimizar o sofrimento proveniente de um projeto familiar até então frustrado. É preciso que os profissionais da medicina atuem, ao utilizar dessas técnicas, com todo cuidado e sensibilidade que a situação demanda, visualizando o casal em tratamento em sua saúde integral, física e psíquica. Ao sopesar os direitos de privacidade/intimidade do doador de gametas, o dever de sigilo do profissional da área médica e o direito do concebido à verdade biológica, realiza melhor a dignidade dos envolvidos permitir que o anonimato seja quebrado e as informações genotípicas, fenotípicas e a identidade civil do doador sejam reveladas. Deste modo, conforme a melhor hermenêutica, prevalece o direito à historicidade pessoal, isto é, o direito do concebido por técnica de heteroinseminação de conhecer sua bagagem genética e a identidade civil do progenitor, ainda que seja doador de gametas, cabendo-lhe, inclusive, invocar, em desfavor do doador de gametas, direitos como ancestralidade, nome, herança e alimentos. Admitir o anonimato da origem genética é negar à pessoa parte de sua história e sua própria identidade. É negarlhe o direito fundamental à filiação integral. LUCIANO ANDRADE COUTINHO é Acadêmico do 10º período do Curso de Medicina da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e Técnico administrativo no Hospital Universitário Clemente de Faria (HUCF), vinculado à Unimontes. TÁTILLA GOMES VERSIANI é Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Especialista em Direito pelo Instituto de Ensino Superior COC e Advogada. Artigo veiculado na seção “Direito e Bioética” da edição nº 371 da Revista Jurídica Consulex, de 1° de julho. Publicado também na edição eletrônica do informativo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDF na Mídia), em 10.07.2012. NOTAS ¹ O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF nº 132 e da ADI nº 4.277, em decisão unânime, reconheceu, na data de 6 de maio de 2011, a homoafetividade como formadora de entidade familiar. ² Ao controle de constitucionalidade pode ser submetida qualquer espécie normativa, inclusive as resoluções emanadas do CFM. REFERÊNCIAS DINIZ, Maria Helena. A ectogênese e seus problemas jurídicos. Consulex. Brasília, ano III, nº 30, p. 24-29, set. 2004. CAMARGO, Lucas Couceiro Ferreira de. Responsabilidade civil do doador de material genético na inseminação artificial heteróloga. Tese de Mestrado em Direito, 2008. Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba. MOREIRA, Fernanda de Souza. O direito a alimentos do nascido do banco de sêmen e a legitimação passiva do doador na inseminação artificial heteróloga: uma colisão de direitos fundamentais. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Belo Horizonte, Ibdfam, nº 15, abr.-maio 2010. PEREIRA, Tânia da Silva. Visão holística do sujeito. Boletim Ibdfam. Entrevista. Belo Horizonte: Ibdfam, ano 10, nº 62, maio-jun. 2010, p. 3-4. [Digite texto]