UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE E CULTURA RELIGIÃO E VOCAÇÃO PARA O COMÉRCIO: ELEMENTOS PARA A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE IMIGRANTES MUÇULMANOS EM GOIÁS Dissertação de Mestrado Autora: Lucimar Antônia Borges Orientadora: Profª. Drª. Joana Aparecida F. Silva Goiânia, 2004 ii LUCIMAR ANTÔNIA BORGES RELIGIÃO E VOCAÇÃO PARA O COMÉRCIO: ELEMENTOS PARA A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE IMIGRANTES MUÇULMANOS EM GOIÁS Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre. GOIÂNIA, 2004 iii FICHA TÉCNICA Nome: Lucimar Antônia Borges Título: Religião e vocação para o comércio: elementos para a constituição da identidade de imigrantes muçulmanos em Goiás Curso: Mestrado em Sociologia Área de Concentração: Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Imigração e Identidade Data da Defesa: 15 de setembro de 2004 Orientador: Professora Doutora Joana Aparecida F. Silva Palavras-chave: antropologia cultural, religião e vocação para o comércio, identidade dos imigrantes muçulmanos. iv UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE E CULTURA RELIGIÃO E VOCAÇÃO PARA O COMÉRCIO: ELEMENTOS PARA A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE IMIGRANTES MUÇULMANOS EM GOIÁS Banca Examinadora: __________________________________________________________ Orientadora: Profª. Drª. Joana Aparecida F. Silva __________________________________________________________ Profª. Drª. Heliane Prudente Nunes - Examinadora __________________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Paulo Pereira - Examinador Goiânia, 2004 v Agradeço, sobretudo a Deus, pela capacitação recebida para a realização deste trabalho. “(...) Esforça-te e tem bom ânimo; não pasmes, nem te espantes, porque o Senhor, teu Deus, é contigo, por onde quer que andares”. (Josué 1:9) “Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito”. (Provérbios 4:18) “E é por Cristo que temos tal confiança em Deus; não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus”. (2 Coríntios 3:4-5) “E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não o lança em rosto; e ser-lhe-á dada. Peça-a porém, com fé, não duvidando; porque o que duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento e lançada de uma para outra parte”. (Tiago 1:5-6) À minha família: meu pai (in memoriam), minha mãe e o meu filho, dedico este trabalho com muito amor e carinho, face à compreensão que comigo tiveram, pelos momentos que deixei de desfrutar de suas companhias. vi AGRADECIMENTOS Nesta tarefa árdua, nesses longos tempos de pesquisas, muitas pessoas compuseram a lista daqueles que, colaboraram direta e indiretamente comigo, neste trabalho, mais do que isso, através a conquista das amizades construídas, as quais contribuíram para o meu crescimento como ser humano. Ao meu irmão e sua família, pela a ajuda com o meu filho Ian. Aos imigrantes e filhos de imigrantes muçulmanos, a razão deste trabalho. A Joana Aparecida Fernandes Silva, pelo privilégio da orientação acadêmica competente e pela paciência ao meu processo de aprendizagem. Aos amigos imigrantes: Kassem Bazzi, por me fazer compartilhar da sua sabedoria; Khadija Allan e sua família, pela a acolhida carinhosa e sincera e a Jorge Najjar pelas horas consumidas na difícil tarefa das apresentações. Ao Marcelo, da Igreja, pelas horas de sono furtadas e a importante ajuda nas conferências desse trabalho. À Professora Carmem pelas palavras de motivação e bom ânimo. A todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para o meu êxito neste trabalho, meus eternos agradecimentos. vii RESUMO BORGES, Lucimar Antônia. Religião e vocação para o comércio: elementos para a constituição da identidade de imigrantes muçulmanos em Goiás. Orientadora: Profª. Drª. Joana Aparecida Fernandes da Silva. Goiânia: UFG/FCHF/ Programa de Pós-Graduação: Mestrado em Sociologia, 2004. Dissertação de mestrado. Analisa-se, neste trabalho, a inserção e integração dos imigrantes muçulmanos, a partir dos recortes: religião e vocação para o comércio, através de um processo social de construção identitária negociada no contexto social goiano. Este trabalho é uma etnografia desenvolvida a partir da análise da coleta de depoimentos e observação participante na vida dos imigrantes muçulmanos em Goiás, bem como de fontes bibliográficas. Este trabalho focaliza os processos de recriação de tradições e as negociações sociais que agiram no sentido de configurar um grupo étnico. Através das investigações de campo e as bases teóricas utilizadas foi possível verificar que, o processo de inserção e integração dos imigrantes muçulmanos em Goiás se deu pela afirmação e persistência de certos aspectos referentes, ao que se chamou esfera privada, como valores, princípios diretamente ligados às relações familiares, constituindo-se em fronteiras interétnicas delimitativas da identidade. Outros aspectos referentes á esfera pública, como aqueles relacionados à vida comercial e sua relação com a vida econômica e social goianos, a prática das orações diárias, preceito da religião islâmica, foram os mais modificados e portanto, negociados na constituição da identidade dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Assim, esse estudo revelou o universo de situações sociais e negociações, que configuram uma identidade étnica, iniciada com a imigração, preponderantemente, a partir da década de 50 para Goiás. O estudo aborda os mecanismos e processos sociais que propiciaram a afirmação identitária dos imigrantes muçulmanos, entre eles: o projeto desenvolvimentista Marcha para o Oeste, que contribuiu para a ascensão deles, primeiro como mascate e depois comerciantes na sociedade goiana. viii ABSTRACT BORGES, Lucimar Antônia. Religião e vocação para o comércio: elementos para a constituição da identidade de imigrantes muçulmanos em Goiás. Orientadora: Profª. Drª. Joana Aparecida Fernandes da Silva. Goiânia: UFG/FCHF/ Programa de Pós-Graduação: Mestrado em Sociologia, 2004. Dissertação de mestrado. The insertion and integration of Moslem immigrants, which came about through a social process of negotiated identity in the social context of Goiás, is analyzed in this study, from the angles of religion and business acumen. It is an ethnographic study, developed out of an analysis of collected witness and participant observation of the life of the Moslem immigrants to Goiás. Bibliographical sources were also used. The study focuses on the process of recreating the traditions and social negotiations which took place in the shaping of an ethnic group. Field and theoretical studies made it possible to verify that the process of insertion and integration of Moslem immigrants in Goiás came about by affirming and maintaining certain aspects, referring to what is called the private sphere, such as the values or principles directly related to family ties. These constituted inter-ethnic boundaries and demarcated identities. Other aspects referring to the public sphere, such as those connected to business dealings and their relation to economic and social life in Goiás, the practice of daily prayer, a precept of the Islamic religion, were the most modified, and were therefore negotiated in building up the identity of the Moslem immigrants in Goiás. Thus, this study unveils the world of social situations and negotiations which shaped an ethnic identity and which began, principally, with immigration to Goiás, from the 50s onwards. This study deals with the social mechanisms and processes which provided an affirming identity for Moslem immigrants, such as: the developmental project of the March to the West, which contributed to their growth, first as traders and later as businessmen in Goiás society. ix SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 11 CAPÍTULO I A IMIGRAÇÃO MUÇULMANA NO BRASIL............................................. 21 1.1. A PESQUISA ...................................................................................................................... 27 1.2. A IMIGRAÇÃO MUÇULMANA: CAUSAS E REPERCUSSÕES .................................................. 28 1.3. A ESCOLHA DO BRASIL PARA MIGRAR E AS CONDIÇÕES ENCONTRADAS ......................... 29 1.4. INSERÇÃO E INTEGRAÇÃO DAS COMUNIDADES MUÇULMANAS À SOCIEDADE GOIANA ... 32 1.5. A IDEOLOGIZAÇÃO ARÁBICA E ISLÂMICA NAS COMUNIDADES MUÇULMANAS................ 43 1.6. PASSOS E TRAÇOS DA RECEPTIVIDADE DOS IMIGRANTES MUÇULMANOS EM GOIÁS ...... 45 1.7. A EXPANSÃO DAS FRONTEIRAS: O ELDORADO PARA A IMIGRAÇÃO MUÇULMANA .......... 50 1.8. TRAJETÓRIA DA IMIGRAÇÃO MUÇULMANA EM GOIÁS ..................................................... 56 CAPÍTULO II RELIGIÃO E VOCAÇÃO PARA O COMÉRCIO: FUNDAMENTOS DA IDENTIDADE DOS IMIGRANTES MUÇULMANOS ........................................................ 66 2.1. A RELIGIÃO: ELEMENTO IDENTITÁRIO ............................................................................. 68 2.2. RELIGIÃO E COMÉRCIO NA VIDA DOS IMIGRANTES MUÇULMANOS .................................. 96 2.3. DE MASCATES A COMERCIANTES ................................................................................... 102 2.4. O COMÉRCIO: ELEMENTO IDENTITÁRIO .......................................................................... 121 CAPÍTULO III A FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOS IMIGRANTES MUÇULMANOS.......................................................................................... 129 3.1. A CENTRALIDADE DO CASAMENTO PARA OS IMIGRANTES MUÇULMANOS .................... 133 3.2. A MULHER MUÇULMANA E SUA VIDA COTIDIANA.......................................................... 142 3.3. OS FILHOS DOS IMIGRANTES MUÇULMANOS ENTRE AS DUAS CULTURAS ...................... 146 3.4. O COMPARTILHAR DAS REFEIÇÕES ENTRE OS IMIGRANTES MUÇULMANOS ................... 154 3.5. O SENTIDO DA GUERRA PARA AS FAMÍLIAS MUÇULMANAS PALESTINAS ....................... 157 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 162 BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................... 178 ANEXOS .................................................................................................................................. 188 x Cidade Sagrada do Islã – Meca e o Kaaba (local da peregrinação) INTRODUÇÃO Este é um trabalho sobre a trajetória da imigração muçulmana no estado de Goiás. O objetivo desta dissertação foi estudar a identidade dos muçulmanos em Goiás, especialmente os que se estabeleceram nas cidades de Goiânia, Anápolis e Jataí. A profunda religiosidade e o apego aos princípios do islamismo, bem como a vocação para o comércio foram percebidos como elementos constitutivos dessa identidade. Buscou-se analisar o processo de inserção e de integração dos imigrantes muçulmanos à “sociedade receptora” e das negociações realizadas para a formação da identidade étnica dos imigrantes. A jornada de milhões de pessoas que cruzaram o Atlântico a partir de fins do século XIX para as Américas do sul e do norte, sempre estimulou a imaginação de historiadores, sociólogos e antropólogos. Vieram juntos, cristãos ortodoxos, maronitas, druzos e, em minoria, muçulmanos, de diversas nacionalidades do mundo árabe. Partindo de uma perspectiva diferente, este trabalho estuda o desenvolvimento da trajetória dos imigrantes muçulmanos que vieram para Goiás, principalmente a partir de 1950, vindos de São Paulo, seu porto de chegada ao Brasil. A característica principal deste movimento migratório foi predominantemente urbana, pois a maioria dos recém chegados preferiu estabelecer-se em cidades, onde procuraram ganhar a vida com uma atividade autônoma, primeiramente como mascates e depois como comerciantes. Esses imigrantes vieram para Goiás inspirados pelos sonhos de uma vida melhor. Goiás aparece nesse cenário como um eldorado para as imigrações, e dentre elas, a muçulmana. Entre outras razões, os projetos desenvolvimentistas de expansão das fronteiras capitalistas e do governo federal, através da Marcha para o Oeste, visavam integrar o estado de Goiás ao mercado nacional. Nesse período, a economia e a sociedade goiana sofreram transformações aceleradas e os grupos de imigrantes e seus descendentes, certamente tiveram parte nesse processo. O mundo muçulmano brasileiro formou-se com uma maioria sunita, ala menos radical dentre os grupos muçulmanos. Com relação à vinda dos imigrantes muçulmanos no Brasil, o Centro de Divulgação, em um de seus periódicos, afirma que, a chegada deles coincide com Pedro Álvares Cabral, no período do tráfico de escravos, no século XVI, onde milhares de muçulmanos africanos, se aportaram no Brasil. 12 Alguns muçulmanos vieram juntamente com uma grande leva de árabes cristãos ortodoxos. A partir da segunda guerra mundial a imigração islâmica se tornou uma realidade constante e está diretamente relacionada com problemas financeiros e políticos gerados em seus países. A maioria dos imigrantes muçulmanos vindos para Goiás foi de palestinos e libaneses, sobretudo entre as décadas de cinqüenta e setenta. Os conflitos entre palestinos e israelitas motivaram guerras nas regiões por eles disputadas, trazendo graves crises financeiras; já entre os libaneses, as guerras civis entre muçulmanos e cristãos ortodoxos foram as principais causas da imigração dos palestinos e libaneses para Goiás. Assim, as principais comunidades dos imigrantes muçulmanos em Goiás são compostas por palestinos e libaneses. No censo do IBGE, de 1960, aparecem 7.745 pessoas identificadas como muçulmanos, sendo 5.150 homens e 2.595 mulheres. De acordo com Nabhan (1996), a partir do censo de 1970, os muçulmanos foram agrupados no item “outras religiões”, o que dificultou as informações sobre essa população. Em fontes não oficiais é possível encontrar uma estimativa de mais de um milhão de muçulmanos vivendo no Brasil (reportagem de Amaral da Revista Caros Amigos, agosto de 1997). Todos os autores consultados que têm estudado, ou já estudaram a imigração muçulmana no Brasil, observam o fato de que a religião islâmica ainda não faz parte dos fóruns de discussão da Antropologia no Brasil. Os imigrantes muçulmanos chegados em Goiás foram se agrupando, conforme revelaram os dados da pesquisa, em maior número nas cidades de Goiânia, Anápolis e Jataí. Assim, formaram-se, essas três comunidades que podem ser compreendidas a partir do sentimento de compartilharem uma origem religiosa comum. A partir dos elementos da religião islâmica e da dedicação ao comércio foi possível explicar aspectos da vida dos imigrantes muçulmanos menos ou mais modificados ao longo do processo de inserção e de “adaptação” ao Brasil e mais especificamente, à cultura brasileira. Esses aspectos foram agrupados em duas esferas: a privada e a pública. Os primeiros foram os menos modificados em relação aos hábitos originários dos países de onde vieram, enquanto os da esfera pública sofreram transformações mais visíveis. Na esfera privada, conforme foi possível perceber, manteve-se o jejum e continua sendo importante a peregrinação à Meca; a família e as relações entre os parentes consangüíneos são muito valorizadas e os casamentos obedecem a prescrições; os encontros para festas e cerimônias preservam a sociabilidade e a coesão. Já na esfera pública os rituais de oração, como os horários e 13 locais onde as mesmas são realizadas e a atividade do comércio, como as condições das vendas com juros, prestações e a localização dos estabelecimentos comerciais próximos de suas residências, bem como o envolvimento de toda a família, proclamou o sucesso dos imigrantes, que iniciaram como mascates, ou seja, vendedores ambulantes nos primeiros anos de imigração, na maioria dos casos estudados. Esta pesquisa baseou-se amplamente nas considerações de Barth sobre a persistência e a continuidade dos grupos étnicos, apesar da transposição das fronteiras interétnicas. Assim, entende-se que as identidades sociais e étnicas se configuram em um processo contínuo e em constante mudança. Esta análise está permeada por uma perspectiva sociológica de que a inserção, a interação e a integração dos imigrantes muçulmanos ao lugar em que passaram a viver, são processos dinâmicos e que as formas de adaptação são negociadas e interferem na construção de sua identidade étnica no novo contexto em Goiás. Metodologicamente, esta pesquisa pautou-se em instrumentos e técnicas de pesquisa etnográfica importantes, para o tipo de objeto e de análise proposta. A seleção dos entrevistados foi aleatória e ocorreu na medida em que foi possível ter acesso à rede social em que os muçulmanos estão inseridos nas três cidades eleitas para a pesquisa, Goiânia, Jataí e Anápolis. A partir das indicações dos conhecidos de um entrevistado, chegou-se a um universo de 37 famílias nas três comunidades. Um ponto importante é forma como o pesquisador deve apresentar - se diante dos seus pesquisados, para obter sucesso na pesquisa, uma tarefa básica e crucial para todo o andamento, com sucesso da pesquisa. O pesquisador deve identificar os sujeitos de sua pesquisa, obter e sustentar os contatos identificados e, além de tudo, definir quais papéis deve assumir perante os pesquisados, que tipos de intimidades deve cultivar, pessoas a procurar, como fazer os contatos e mantê-los e, por fim, como manter os padrões básicos de interação social entre observador e observado, bem como descrever os dados obtidos na pesquisa para analisá-los e interpretá-los. Para Berreman (1975), o etnógrafo e o pesquisado são grandes artistas, uma vez que ambos representam na frente um do outro, ou escondem situações negativas. A essa característica ele chamou de “controle de impressões”, onde os dois lados procuram manter os padrões básicos de interações (Berreman, 1975: 143). Isso foi experimentado em vários momentos dos encontros e depoimentos com os imigrantes muçulmanos. Durante o trabalho de campo dessa dissertação, as recomendações de Malinowski (1975), em relação aos cuidados e precauções que os pesquisados devem 14 ter ao abordar um grupo social foram também importantes. Através da convivência diária, da participação de suas atividades, da observação de seus comportamentos é possível, de acordo com ele, explicar as regularidades da totalidade da vida cultural do grupo. Trazendo essas recomendações para a realidade do trabalho de campo na atualidade, deve-se traduzir “morando entre eles”, pela observação participante. O trabalho de campo para essa pesquisa foi realizado entre os meses de março a dezembro de 2002, nas cidades de Trindade, Goiânia e Anápolis, em julho de 2003, em Jataí e em julho de 2004, novamente em Anápolis. Em Goiânia, dentre as várias visitas, é importante citar as feitas na casa do Diretor Cultural do Clube Monte Líbano de Goiás, Kassem Bazzi, pois foi possível ter acesso ao acervo de sua grande biblioteca particular. Os vínculos gerados com os imigrantes pesquisados, a partir das visitas realizadas, tanto nos seus estabelecimentos comerciais, como em suas residências, foram importantes para a coleta de dados da pesquisa. Houve mútuo interesse nesse processo: a pesquisadora precisava conhecer a trajetória da imigração muçulmana para Goiás e o processo de estabelecimento aqui e os pesquisados mostraram-se interessados em contar sua história, de como chegaram ao Brasil, falar de sua religião, principalmente dos mandamentos e ensinamentos que, segundo eles, trazem paz ao homem; queriam enfatizar a receptividade do povo brasileiro e a necessidade de começarem a vida como mascates, de juntar dinheiro; lembrar das guerras em seus países e das saudades dos familiares lá deixados. Em conseqüência desses vínculos obteve-se acesso aos periódicos, livretos e panfletos do Centro de Divulgação do Islã para a América Latina, sobre diversos temas, principalmente da religião e seus mandamentos, bem como das recomendações sobre a melhor forma para um muçulmano viver, formar suas comunidades e adaptar-se ao contexto da sociedade para onde migrou. Como o trabalho de campo e a observação participante, segundo Malinowski, deve ir além das aparências e identificar códigos nem sempre explicitados. As visitas foram acompanhadas de conversas informais e formais, de respostas a um questionário e depoimentos, as quais eram relativamente livres, de acordo com o interesse dos entrevistados e quase todas foram gravadas em fitas cassete. Os depoimentos gravados foram reproduzidos em forma literal na dissertação, para que fosse possível, “ouvir” suas vozes e, por isso, as imprecisões na língua portuguesa foram mantidas, e foram corrigidas apenas quando a compreensão ficou comprometida. 15 Neste trabalho a fotografia entrou como um instrumento acessório que também serviu para compreensão dos objetivos da pesquisa. Afinal, durante o trabalho de campo, inúmeras fotografias foram mostradas pelos entrevistados. As fotos das famílias deixadas na terra de origem, das famílias da primeira geração no Brasil e fotos recentes, eram acompanhadas de depoimentos e explicações, desde melancólicas e saudosistas, incluindo informações dos que já faleceram e até lembranças de momentos felizes, de encontros e festas, vividos no cotidiano deles. Dessa maneira, a fotografia pode ser utilizada como um instrumento de pesquisa, assim apontou Godolphim (1995) e John Collier Jr. (1973), quando esta é tomada como mais uma técnica de documentação, além do caderno ou diário de campo e do gravador, o qual pode também auxiliar na relação com o grupo estudado expandindo as possibilidades de comunicação; a partir das imagens podemos dialogar com os informantes, através das perguntas que elas suscitam. Além disso, a fotografia pode ser também um elemento do discurso antropológico, quando a discussão é apresentada de forma imagética. Conforme Caldarola, “Nós etnógrafos, construímos fotografias para fazê-las refletir e coincidir com representações etnográficas de eventos sociais, (...) decidimos sobre momentos e locais particulares, selecionamos a perspectiva, o enquadramento” (Caldarola, 1988: 50). Malinowski (1975), ao apresentar uma descrição dos métodos utilizados na coleta do material etnográfico, onde a etnografia é uma ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário que em outras ciências, afirma que este material, só terá valor científico irrefutável se permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as referências do autor-pesquisador, baseadas em seu próprio bom-senso e intuições psicológicas. Dessa forma, para não perder de vista essas duas fases importantes da pesquisa etnográfica é relevante utilizar a descrição densa proposta por Geertz. A cultura é formada por estruturas múltiplas, que compreende uma dimensão pública, formada pelos sistemas entrelaçados de signos interpretáveis. Essas estruturas sociais podem ser descritas de forma inteligível, por meio dessa descrição densa, começando com as interpretações de pesquisador, sobre o que ele pretende. Em seguida, sistematizam-se tais estruturas interpretadas, tendo como objetivos, como diz Geertz (1989: 38), “tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados”. E ele ainda termina, em uma outra obra, afirmando que “o conhecedor por excelência das 16 mentalidades alheias tem sido o etnógrafo, que dramatiza a estranheza, enaltece a diversidade e transpira largueza de visão” (Geertz, 2001: 80). E o que o pesquisador precisa, não é de idéias grandiosas nem do abandono completo dessas idéias sintetizadoras. Mas simplesmente é, “de modos de pensar que sejam receptivos às particularidades, às individualidades, às estranhezas, descontinuidades, contrastes e singularidades, (...), uma pluralidade de maneiras de fazer parte e de ser (...)” (Geertz, 2001: 196). As divergências entre os grupos pesquisados, de acordo com Foote-Whyte (1975), devem ser percebidas durante a pesquisa, mas deve-se ter cuidado para não mostrar apoio a nenhum dos lados, pois do contrário, se estabelece uma situação divergente com uma das partes e isto pode prejudicar a compreensão do modo de vida dos grupos. Nas comunidades pesquisadas havia divergências em relação à legitimidade de um homem como representante dos palestinos em Goiás e ainda com relação à liderança na comunidade ou na mesquita. Perguntas sutis, ainda de acordo com Footewhite, são mais propícias em um ambiente onde já se tenha alcançado um relacionamento descontraído e nunca numa situação de entrevistas formais. As fontes orais foram obtidas através da coleta de depoimentos e entrevistas dos imigrantes muçulmanos, durante o trabalho de campo. As fontes escritas constituíram-se em: - Na INTERNET, alguns “sites” sobre religiões e história da religião muçulmana foram consultados e, principalmente, jornais sobre diversos temas relacionados à concepção do Islã no mundo e os ataques terroristas. - Nos PERIÓDICOS, as obras de divulgação da religião islâmica e da vida dos muçulmanos no mundo e no Brasil, bem como a história da presença muçulmana no Brasil, editadas pelo Centro de Divulgação do Islã na América Latina e de distribuição gratuita, através de Muhammad Ragip Al-Jerrahi (2003), Ahmad Saleh Maháiri (1977) e Samir El Hayek (1994). Essas obras foram consultadas e utilizadas como fonte para compreender a visão dos próprios islâmicos acerca da sua religião, seus princípios e mandamentos religiosos. - A BIBLIOGRAFIA consultada, pautou-se entre as obras relacionadas à religião islâmica e as imigrações no Brasil: dentre as mais expressivas, as de: Padre Waldomiro Piazza (1996), Jacques Jomier (2001) e Neusa Neif Nabhan (1996), referem-se à formação da religião islâmica, tais como seus dogmas, mandamentos e expansão no mundo. Oswaldo Truzzi (1993 e 1997), Jorge S. Sáfady (1972), Denise Fagundes Jardim (2000), Sílvia Montenegro (2000), 17 Heliane Prudente Nunes (2000) e Nágila Ibrahim El Kadi (1997). As duas primeiras obras tratam de aspectos históricos e fatos referentes à trajetória dos imigrantes árabes no Brasil e, as seguintes, dos muçulmanos no Brasil e em Goiás. Especificamente, a obra de Heliane Prudente Nunes retrata a trajetória do imigrante árabe, desde o oriente médio a Goiás, numa perspectiva histórica, adentrando à descrição das causas e repercussões da imigração, no contexto da sociedade goiana. A obra de Nágila Ibrahim El Kadi ilustra a imigração muçulmana-druza em Goiás, através de um estudo de caso, a partir da situação na sociedade de origem e os caminhos percorridos até o Brasil e Goiânia. As fontes históricas contextualizam a imigração para o Brasil e Goiás, bem como as condições econômicas, sociais e políticas encontradas na época das imigrações sírio-libanesas e muçulmanas, retratando a expansão das fronteiras capitalistas, os planos de desenvolvimentos econômicos de integração ao mercado nacional, chamada Marcha para o Oeste e, aspectos referentes às condições específicas da história da inserção de Goiás, ao cenário brasileiro. Dentre essas obras, as consideradas mais importantes foram: Wilson Cano (1995), Fernando Oliveira (1995), Jan Magalinski (1980 e 1987), Maria Cristina Teixeira Machado (1990), respectivamente. A bibliografia consultada que auxiliou na discussão teórica sobre cultura, etnicidade, identidade e relações interétnicas baseou-se em Max Weber (2000); Clifford Geertz (1989 e 2001); Roberto Cardoso Oliveira (1995 e 1998), Philippe Poutignat & Jocelyne Streiff-Fenart (1998), Tomaz Tadeu da Silva (org) (2000), Stuart Hall (2002), entre outros. O presente estudo é compreendido dessa parte introdutória e de outras três partes, identificadas como capítulos e sub-capítulos, além das fontes documentais e bibliográficas utilizadas durante a elaboração dessa dissertação, e os anexos, compostos pela relação das famílias contactadas durante a pesquisa de campo, as fotografias e os mapas da expansão e dos números dos imigrantes muçulmanos no mundo. Como há parcos trabalhos sobre a religião islâmica e os imigrantes muçulmanos no Brasil, foi importante, iniciar o primeiro capítulo: A imigração muçulmana no Brasil ressaltando-se as considerações acerca do que é ser um imigrante e um breve relato do processo imigratório, bem como as contribuições dos muçulmanos na formação da sociedade brasileira; a descrição da pesquisa; a imigração muçulmana, suas causas e repercussões econômicas e políticas no 18 Brasil e em Goiás; a escolha do Brasil para migrar e as condições encontradas; a inserção e integração das comunidades muçulmanas à sociedade goiana e os referenciais teóricos identitários; a ideologização arábica e islâmica nas comunidades muçulmanas; passos e traços da receptividade dos imigrantes muçulmanos em Goiás, no primeiro, as condições econômicas encontradas em Goiás e, no segundo, as intermediações e negociações produzidas no processo de inserção dos imigrantes muçulmanos na sociedade goiana; a expansão das fronteiras: o eldorado para a imigração muçulmana, a partir da investida e a expansão das fronteiras capitalistas, com a implementação do projeto “Marcha para o Oeste” para o interior de Goiás; trajetória da imigração muçulmana em Goiás. Segundo capítulo: Religião e vocação para o comércio: fundamentos da identidade dos imigrantes muçulmanos destacando a formação da identidade alicerçada no tripé: religião, região e família, tendo o comércio como atividade sagrada, estabelecido pelas condições encontradas na sociedade goiana. Os aspectos menos e mais modificados, referentes à esfera privada e pública, respectivamente, no processo de inserção na “sociedade receptora”; a religião como elemento identitário, os mandamentos e a prática dela; a religião e comércio na vida dos imigrantes muçulmanos, a relação do comércio na formação e propagação da religião islâmica, as negociações com a prática comercial, a partir do contexto sócio-econômico goiano; de mascates a comerciantes, os imigrantes muçulmanos e o preenchimento da fatia do mercado goiano, a partir da mascateação e posteriormente como comerciantes, os estereótipos, anedotas e preconceitos na identificação externa dos imigrantes pela sociedade goiana; o comércio como elemento identitário, a constituição da identidade dos imigrantes muçulmanos, a partir da prática comercial em Goiás. O terceiro capítulo, A família na construção da identidade dos imigrantes muçulmanos caracteriza as peculiaridades etnográficas da família e sua importância para as comunidades de imigrantes muçulmanas em Goiás. A família, a organização da vida doméstica. A centralidade do casamento para os imigrantes muçulmanos na afirmação da identidade; a constituição da família patrilinear; a mulher muçulmana e sua vida cotidiana, o significado do uso do lenço como elemento diacrítico, as considerações da mulher sobre o que é ser muçulmana; os filhos dos imigrantes muçulmanos entre as duas culturas, as condições da educação no Brasil e em Goiás, as mudanças de comportamentos dos filhos dos imigrantes muçulmanos, os conflitos entre os dois mundos, o do lar e o da sociedade goiana; o compartilhar das refeições entre os 19 imigrantes muçulmanos, o momento de comunhão com a família, a comida como processo chave da constituição das identidades, a preparação dos alimentos define as bases identitárias culturais; o sentido da guerra para as famílias muçulmanas palestinas, os traumas e saudades que permeiam a vida dos imigrantes palestinos refugiados, o drama das famílias forçadas à diáspora pelo mundo. E por último a conclusão, com todas as análises elaboradas, a partir da confrontação com os dados de campo obtidos, os referenciais teóricos e a sensibilidade do pesquisador. A expressão “sociedade receptora” foi adotada neste trabalho e é utilizada no mesmo sentido dado pelos imigrantes muçulmanos, ao se referirem ao lugar em que vivem. Os entrevistados estão identificados através de siglas que substituem seus nomes pessoais e sobrenomes familiares, opção adotada para preservar sua privacidade. A sigla I. P. G., designa os imigrantes palestinos e I. L. G., os imigrantes libaneses, ambos residentes em Goiânia. A sigla I. P. A., imigrantes palestinos e I. L. A., imigrantes libaneses, ambos de Anápolis e, finalmente, I. P. J., identificam os entrevistados palestinos e I. L. J., imigrantes libaneses, em ambos os casos, que moram em Jataí. 20 A imigração muçulmana 21 CAPÍTULO I A IMIGRAÇÃO MUÇULMANA NO BRASIL Ao elaborar um trabalho sobre a imigração de um povo para um outro país totalmente estranho de si, de sua língua, seus costumes e hábitos, torna-se essencial iniciar fazendo uma definição do que seria ser um imigrante nesse contexto para ele mesmo. El Kadi cita o depoimento de um imigrante quando este diz que “a imigração é um drama social encoberto pelo mito do sucesso”, e conclui que “A palavra imigrante já diz que você está em lugar diferente” (El Kadi, 1997: 66). O drama do deslocamento e da desterritorialização do seu ambiente social, de sua cultura, a separação de famílias, a responsabilidade e o sentimento do dever de alcançar o sucesso e os ideais projetados para a nova vida fazem parte da realidade do imigrante na sociedade migrada. El Kadi (1997) afirma que “no processo migratório, talvez seja a ‘adaptação’, o capítulo mais difícil, delicado e denso, da história” da imigração muçulmana para Goiás. Dada as circunstâncias em que isso se dá, parece aflorar a sua face mais dramática e de possibilidades múltiplas, abrindo-se um leque de alternativas e construções culturais ou identitárias, que vão desde, por um lado, a existência de aspectos de resistência total/parcial, como, por outro lado, a de acomodações sucessivas e negociadas ou não-conflituosas. (El Kadi, 1997: 132) Nesse processo imigratório, a inserção dos imigrantes à sociedade brasileira e a interferência desta nos imigrantes gerarão mudanças tanto para eles como para ela. Portanto, há que se considerar como e até que ponto esta situação se estabelece, uma vez que os atores, ou seja, os imigrantes muçulmanos e a “sociedade receptora” são marcados por variáveis culturais que atuam de forma ativa e significante. A “sociedade receptora” constrói a imagem que se percebe dos imigrantes muçulmanos e estes desenvolvem a auto-imagem, elaborada por aquela. Assim, a relação estabelecida entre os imigrantes e a sociedade brasileira é permeada por esses ajustes culturais e se estabelece a partir de muitos elementos diversos, em diferentes momentos, os quais irão estabelecer também diferentes “adaptações”. A trajetória dos imigrantes muçulmanos no Brasil é pouco estudada, uma vez que o predomínio dos estudos têm sido de sírios e libaneses cristãos. Contudo, alguns 22 historiadores reconhecem a presença dos muçulmanos na formação da história do povo brasileiro. Isto pôde ser percebido no depoimento de um deles: “Em minha tese, revelo que a imigração libanesa não se constituiu apenas de cristãos, como os autores que estudaram o assunto antes de mim deram a entender, ao não considerar a imigração islâmica como parte da imigração libanesa” (historiador Paulo Daniel Farah, na Folha de São Paulo, 23 set. 2001). Para compreender o processo migratório dos muçulmanos para Goiás, o que se propõe de antemão é fazer um breve relato da imigração muçulmana para o Brasil e de sua importância, bem como suas repercussões para a história das migrações no país, em razão de sua importância na formação da sociedade brasileira. Segundo o depoimento de um imigrante muçulmano palestino de Jataí, que tem amplo conhecimento sobre as questões políticas que envolvem o seu povo, “pouco a pouco cresceu, e até hoje em dia, a comunidade árabe”. E ele arrisca os dados estatísticos, comparando-os com os de algumas instituições e estudos, sobre o total de muçulmanos no Brasil: “praticamente, o Brasil inteiro, dá milhões, porque só de muçulmanos, tem essa informação, há um milhão e quinhentos mil muçulmanos aqui no Brasil, porque tem árabe não muçulmano e tem muçulmano árabe também” (I. P. J., 34 anos). De acordo com as informações do Centro de Divulgação do Islã para a América 1 Latina , ultrapassa um milhão de pessoas, e com a Federação Islâmica Brasileira 1,5 milhão de imigrantes. Os imigrantes muçulmanos estão distribuídos por todo o Brasil, mas com predominância nas regiões mais desenvolvidas: Os muçulmanos se concentram nas cidades que têm mesquitas e escolas islâmicas ao menos 40. A maior comunidade islâmica está no Paraná e no Rio Grande do Sul, mas há grupos importantes em cidades de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás. A 1 O Centro de Divulgação do Islam para a América Latina é uma instituição situada em São Bernardo do Campo- SP, que tem como objetivo precípuo divulgar e condensar a comunidade muçulmana brasileira, a função de promover congressos, seminários, publicar livros e periódicos diversos. Outras instituições se espalham pelo país, segundo Montenegro (1977), aproximadamente 60 instituições muçulmanas de diferentes portes funcionam no Brasil: no estado de São Paulo: 27 instituições; no Paraná: 10; em Minas Gerais: 1; Rio de Janeiro: 2; Mato Grosso: 1; Mato Grosso do Sul: 2; Santa Catarina: 4; Brasília: 2; Bahia: 1; Goiânia: 3; Rio Grande do Sul: 3; Amazonas: 1 e Pernambuco: 1. Goiânia empata com Rio Grande do Sul, ficando em 4º lugar em número de instituições islâmicas no Brasil. E com relação ao número de muçulmanos, estes são muito imprecisos. Segundo Waniez e Brustlein alguns especialistas afirmam que não existem dados confiáveis sobre a população muçulmana porque no recenseamento estes são agrupados numa categoria genérica chamada “outros”. Porém, ainda considerando a categoria outros, a cifra representaria 20% de um milhão, número ao qual se referem as diversas organizações (Waniez e Brustlein, 2001: 160). 23 predominância é de sunitas, embora nos anos 1980 tenha havido uma grande imigração de xiitas devido à guerra no Líbano. (Da Redação, Folha de São Paulo, 23 set. 2001) Segundo o Sheik2 Al-Jerrahi (2003), a primeira contribuição migratória para o Brasil ocorreu no século XVI, através de missionários católicos e sírios que vieram juntos com as caravanas colonizadoras portuguesas, principalmente para o Nordeste, incluindo o Ceará e Pernambuco. O segundo período ocorreu nos finais da dominação turca no século XIX, a partir de 1850, aproximadamente. E o terceiro, e mais recente, com um número cada vez maior de muçulmanos, a partir de 1950. A atração do Novo Mundo seduziu os jovens, principalmente sírios, libaneses muçulmanos, que vieram em pequenos grupos, a partir de 1885, instalando-se principalmente na região Sudeste do Brasil, de onde partiram como mascates para o norte, sul, leste, oeste e centro do país. Dentre as contribuições na formação da sociedade brasileira pelos muçulmanos, deve-se destacar a transmissão de grande parte da herança cultural da antiguidade ao ocidente, especialmente ao Brasil, trazida pela colonização dos povos da negra África muçulmana, que ao virem para o país, mesmo na condição de escravos, trouxeram consigo também sua cultura. Al-Jerrahi cita uma estimativa de que de três a quatro milhões de negros foram trazidos da África ao Brasil, pertencentes a vários povos ou classes sociais. As intempéries relacionadas à falta de liberdade dos escravos africanos muçulmanos os levaram à prática da religião de uma forma clandestina, em um esforço tremendo para manter suas tradições culturais e religiosas. Mesmo enfrentando as dificuldades de comunicação e os controles dos proprietários de escravos, eles promoviam a alfabetização e a recuperação do texto Sagrado Alcorão e de hadiths (tradições do Profeta – saws), a partir do registro do que estava memorizado. (AlJerrahi, 2003: 2) Eram tanto o anseio por liberdade, aliado à capacidade de organização política e econômica dos escravos muçulmanos, que os mesmos, apesar da vigilância constante dos senhores proprietários, constituíram a maior comunidade muçulmana negra que o país já presenciou, em Quilombo dos Palmares (Pernambuco). Ela foi formada por escravos fugitivos das fazendas e dos engenhos, e chegou a reunir mais de vinte mil habitantes, segundo dados do sheik Al-Jerrahi. Palmares foi derrotada. 2 Sheik significa líder religioso na língua árabe. 24 Outra importante comunidade de escravos muçulmanos formada na clandestinidade foi a dos malês, na Bahia, que significa professores, educadores, em árabe. Essa comunidade era formada por intelectuais que tinham como ideal promover a recuperação da religião islâmica entre os escravos e a alfabetização na língua árabe. “Mesmo enfrentando oposição e perseguição dos proprietários de escravos, escreviam panfletos, se comunicavam em árabe, e se organizavam, constituindo conselheiros e juízes em suas comunidades” (Al-Jerrahi, 2003: 4). Os malês foram os grandes promotores das revoltas e movimentos de libertação motivados pelos ideais islâmicos de liberdade e resistência à tirania. Eles mobilizaram seus pares em diversas revoltas. A partir da revolta dos malês a religião islâmica passou a sofrer uma severa repressão. Foi taxada como religião selvagem que incitava a revolta nos negros escravos, então considerados seres sem alma humana e por isto, seres sem direito à liberdade, à justiça, à vida, à religião ou à dignidade. (Al-Jerrahi, 2003: 4-5) Pode-se observar que a história da presença muçulmana no Brasil foi, desde o começo, cercada de estereótipos e estigmas, bem como a religião islâmica, taxada de esotérica. Dadas as circunstâncias em que se dá a inserção desses muçulmanos na condição de escravos, aliada aos preconceitos, distorcidos e confusos, acerca da realidade dos muçulmanos africanos no Brasil, sua presença é conhecida apenas como escravos africanos. Conseqüentemente, é notável o desinteresse dos estudiosos em pesquisar a imigração muçulmana no Brasil e há poucos trabalhos e pesquisas sobre isso, e muitos deles os incluem na categoria “imigrantes árabes”. Os muçulmanos, na voz de Al-Jerrahi, também confirmam que o Islã é uma religião pouco conhecida no Brasil. As referências existentes sobre a religião e os muçulmanos são as vinculadas pela mídia e associadas a atos extremos, como terrorismo e conflitos sangrentos. Ele afirma que “Não há, mesmo entre os brasileiros mais instruídos, sequer conhecimentos rudimentares sobre os princípios, sobre a história e sobre a vasta contribuição que a civilização islâmica trouxe ao conhecimento humano” (Al-Jerrahi, 2003: 7). Mesmo para os primeiros imigrantes muçulmanos que chegaram ao Brasil, já no século XX, as situações adversas ainda persistiram. Isto foi pontuado quando os imigrantes muçulmanos dizem que, eles tiveram sorte, “encontraram a cama pronta” pelos seus antecessores, parentes e amigos. Nas primeiras levas de imigrantes árabes 25 para o Brasil, a presença de muçulmanos ainda era pouca, e, conforme relatos, muitos deles que vieram com os cristãos preferiram se passar também por árabes cristãos para não gerar problemas para conviver no país. Além do mais, outra dificuldade também apresentada para os primeiros muçulmanos que vieram com os árabes cristãos para o Brasil foi a situação adversa para a prática de sua religião, que requeria a sua congregação em um espaço social ou numa mesquita ou centro religioso, que não havia ainda no país. A exorbitante diferença cultural tornava em uma árdua tarefa a luta diária para a sobrevivência e alcance da prosperidade em um país estranho. O Sheikh Al-Jerrahi (2003) afirma que os imigrantes árabes em geral chegaram ao Brasil com a motivação de fazer fortuna e retornar à terra de origem, e que, contudo, esta mesma fortuna e o grande sucesso alcançado, aliados aos problemas políticos e das guerras, principalmente dos palestinos, fizeram com que a maioria não voltasse à terra natal. Inicialmente eles dedicaram-se ao pequeno comércio, como vendedores ambulantes e foram denominados “mascates”. Espalharam-se por todo o país vendendo mercadorias como pentes, perfumes, produtos de higiene, quinquilharias e utensílios em geral. Com o sucesso de seu trabalho, em poucos anos já se estabeleceram em pequenos comércios de armazéns e mesmo pequenas indústrias de tecidos. A prosperidade adquirida atraiu imigrantes árabes muçulmanos, que encontraram os primeiros já fixados e com grandes negócios, que facilitou sua integração, não só em termos comerciais, mas também no aprendizado do idioma português. (texto da palestra “História da presença islâmica no Brasil”, Sheikh Muhammad Ragip Al-Jerrahi, 2003) Jomier (2001) cria uma metáfora comparativa entre o Islã, sua doutrina, seus dogmas e preceitos com a água. Nela, ele expõe as várias configurações do Islã pelo mundo, analisando aspectos que ele chamou de invariáveis e variáveis na constituição do Islã. Nesses moldes, é possível visualizar a formação do Islã e das comunidades muçulmanas de imigrantes no Brasil e em Goiás. O patrimônio comum a todos os muçulmanos é primeiramente constituído por um conjunto de dogmas e de leis, por uma fidelidade ao Corão e à memória de Mohammad, pelo orgulho de pertencer à comunidade muçulmana e por um sentimento de superioridade sobre os que não fazem parte dela. Essas características são comuns a todos os muçulmanos. O Islã é uma água límpida, com propriedades bem determinadas, e que é a mesma em toda parte. Mas o solo sobre o qual flui essa água pode ser bem variado. Assim, em cada caso, a água 26 tomará a cor das pedras, da areia, da terra, que constituem o fundo do seu leito. [...] a água em si mesma, isto é, o Dogma e a Lei que se aprende em todas as escolas do mundo, também hoje em dia. [...] a coloração que tomou essa água no mundo moderno: o que o Islã traz de contribuição para o mundo moderno, e a resposta que dá aos grandes desafios do momento. (Jomier, 2001: 64) Assim, seguindo a contribuição de Jomier, estende-se essa metáfora às comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás. Por um lado há a formação de um agrupamento social a partir de uma origem histórica comum, através de um modo de vida compartilhado, de uma doutrina e de um dogma religioso profetizado entre eles, e por outro tem-se a reconstituição ou re-interpretação dos elementos deste modo de vida no contexto social de Goiás. Essa reconstituição e essa re-interpretação representam as modificações e mudanças, conduzidas no processo de internalização de novos significados e representações dadas à vida como imigrante na “sociedade receptora”. Identificar a construção do cotidiano dessas comunidades muçulmanas, sua inserção e integração à sociedade local a partir do contexto cultural, econômico, social e político goiano tornase uma aventura. Para esta inserção, a Marcha para o Oeste3 goiano, projeto desenvolvimentista de integração nacional e todas as suas conseqüências para o CentroOeste, torna-se fonte de atração para diversos grupos de imigrantes, e dentre eles os muçulmanos. Esse processo de inserção se processa a partir das trocas e mudanças de todo um modo de vida e a partir de uma negociação identitária, em todos os aspectos da vida desses imigrantes e a “sociedade receptora”. Desta forma, completando a metáfora de Jomier, parece louvável interpretar o solo como sendo esse contexto variado chamado Goiás, pelo qual a água límpida do rio passa, ou seja, os muçulmanos, que se torna turva em razão da variação negociada de sua identidade no solo goiano, e o fluir desta água turva seria os elementos negociados. Porém, há elementos culturais que foram modificados, os quais representam a profundidade destas águas. Quais os elementos que têm sofrido variações e quais os não variáveis, nesse processo migratório de inserção e integração à “sociedade receptora” goiana? 3 Para aprofundar acerca da Marcha para o Oeste, pesquisar: DAYRELL, Eliane Garcindo. Colônia Agrícola Nacional de Goiás – Análise de uma política de colonização na expansão para o Oeste, Goiânia, UFG, 1974; ESTERCI, Neide. O Mito da Democracia no País das Bandeiras. Análise simbólica dos discursos sobre imigração e colonização do Estado Novo. UFRJ, PPGAS, 1972. (Dissertação de Mestrado, mimeografado). 27 1.1. A pesquisa Especificamente em Goiás, grande parte da produção acadêmica ligada à temática da imigração tem privilegiado os grupos que se instalaram na área rural, com enfoques históricos e a reconstrução de trajetórias de imigrantes de várias nacionalidades, bem como dos árabes em geral. Desta forma, a eleição das comunidades muçulmanas em Goiás como objeto desta investigação considerou a carência de estudos sobre os muçulmanos, tanto no Brasil como em Goiás. Assim posto, o objeto de estudo desta pesquisa tem como referência a identidade dos imigrantes muçulmanos. O seu universo delimita-se às comunidades de imigrantes muçulmanos em Goiás que profetizam a religião Islã, ou islâmica (“submissão a Deus”). Neste sentido, os brasileiros que se converteram4 ao islamismo não fazem parte desse estudo, bem como prevaleceram os árabes palestinos e libaneses. O universo da pesquisa se constituiu das comunidades muçulmanas de Goiânia, Anápolis e Jataí. O objetivo básico, ao estudar essas comunidades, foi fazer uma interpretação dos elementos religião e vocação para o comércio como constituintes de sua identidade étnica no contexto da “sociedade receptora”. A formação das comunidades muçulmanas é vista como um grupo étnico determinado em primeiro lugar pela religião e região e a família de origem comum, e em segundo pela análise da prática religiosa e a vocação para o comércio como principal meio de sobrevivência em Goiás. A partir dos elementos religião e vocação para o comércio pôde-se observar a formação da identidade muçulmana, engendrada no contexto da “sociedade receptora”. A identidade muçulmana dos imigrantes se apresenta como uma identidade étnica, independentemente da “nacionalidade”, uma vez que a religião tem formado as comunidades étnicas pelo sentimento de pertença à religião islâmica, bem como a prática do comércio é uma atividade tradicional, constituinte da identidade dos imigrantes muçulmanos na “sociedade receptora”. Assim sendo, é necessário conhecer e entender as comunidades muçulmanas de Goiás, o processo migratório e a “adaptação” negociada de sua identidade. 4 A partir de 1970, o professar a religião islâmica se refere não somente aos imigrantes muçulmanos e seus descendentes, mas também àqueles que, se converteram à religião Islã, por escolha própria, incluindo os brasileiros e outros. 28 1.2. A imigração muçulmana: causas e repercussões Os problemas econômicos e políticos enfrentados pelos imigrantes em suas terras de origem foram cruciais para a sua emigração pelo mundo, e especificamente para o Brasil e Goiás. A busca de melhores condições de vida, em razão desses desajustes, tornou a imigração uma constante durante séculos a fio, principalmente no século XX, após a Segunda Guerra Mundial. Segundo Nunes (2000), uma das principais causas das primeiras migrações para as Américas, Brasil e Goiás foram as disputas internas na região da Arábia Saudita, deliberadas entre os séculos VI e VII da era cristã pelas dinastias árabes, levando o Império Árabe à queda e à ascensão do Otomano, que passou a discriminar os árabes em seu território. O território da Grande Síria foi palco de diversas e extensas discórdias entre diferentes grupos étnicos, dentre elas a de cristãos versus muçulmanos. Sobre esses, pesou sobretudo o fato de que, tanto os quase quatro séculos de domínio turco, quanto os mais recentes vinte e cinco anos de regime de protetorado francês, tiveram por sustentáculo fundamental, a política do dividir para reinar, [...] motivo adicional para a emigração [...]. (Truzzi, 1997: 23) Posteriormente, na Primeira Guerra Mundial, França e Inglaterra dividiram o poderio dos territórios árabes e provocaram novo fluxo migratório. Este sentimento de repúdio ao domínio europeu também é considerado responsável por novas levas de emigrantes para a América e para o Brasil, pois tal interferência dominadora gerou hostilidades entre os muçulmanos e cristãos, exacerbando o sectarismo entre os grupos árabes. No Líbano, as interferências políticas dos EUA provocaram acirradas guerras civis entre cristãos e muçulmanos, levando-os à emigração em massa, à procura de paz e segurança para suas famílias. Um dos principais motivos da imigração para o Brasil foi o econômico. Contudo, a falta e recursos financeiros para diversos objetivos constituía-se em um obstáculo a mais, o que também justificou a imigração para o Brasil e em seguida Goiás. Esta situação foi vivida por um imigrante muçulmano palestino da comunidade de Jataí, que disse que a falta de recursos financeiros para determinados objetivos, como os de casamento e constituição de família, era um enorme empecilho, pois o casamento representa uma instituição de enorme valor e destino de todos os jovens solteiros. Ele 29 diz que “não tinha recurso, a família dela faz parte da minha família, ela é minha prima, ela gostava demais do meu pai, gostava de mim, mas eu não tinha recurso, a única solução foi viajar para cá, porque pra eu casar e ficar lá, eu não ia dar conta de sustentar a família” (I. P. J., 70 anos, 2003). 1.3. A escolha do Brasil para migrar e as condições encontradas Além dos relatos dos problemas políticos e econômicos vividos nos países de origem, os imigrantes muçulmanos falam de outras experiências, algumas delas melancólicas, as quais os levaram a migrar para o Brasil. Por exemplo, um dos imigrantes muçulmanos mais velhos da comunidade de Jataí, ao ser perguntado por que veio para o Brasil, responde que veio “porque o pai faleceu, a mãe faleceu, ele só tinha onze anos de idade e a vida acabou, eu não tinha mais carinho de ninguém”. E complementou dizendo que veio sozinho, “com Deus, quando tinha dezenove anos e durante dez anos viveu solteiro em Jataí. Depois voltou lá, casei e trouxe minha esposa” (I. P. J., 70 anos, 2003). Ele ainda disse que na sua terra “não tinha nada, nem emprego”. Então, seu irmão mandou-o vender um pedaço de terra e assim o fez. Mudou-se para o Brasil e depois de um ano seu irmão também veio para cá. E por que escolhiam o Brasil para migrar? Esta é uma pergunta para a qual, na maioria das respostas dadas pelos imigrantes muçulmanos, vem o elogio ao país, à sua amplitude, ao povo que não discrimina e à política de liberdade de culto à religião islâmica. Jawdat Mustafá, imigrante muçulmano palestino de Jataí, disse que “porque o nosso povo saía muitos pra cá, e passava as informações sobre o Brasil”. Ele pede desculpas para falar que o seu povo tem raça e que “o povo brasileiro não tem uma raça igual, e como a gente tinha isso, a gente ligava um para o outro e dava as informações, quem ia para os EUA falava que lá estava ruim, quem vinha para o Brasil falava que aqui estava bom” (I. P. J., 34 anos, 2003). Nota-se que o conceito de raça utilizado por este imigrante está intimamente ligado ao senso comum, de uma solidariedade mútua em razão de um passado de origem comum, onde todos se unem em prol de uma causa, ou seja, a sobrevivência e o bem-estar de todos os patrícios. E ele elogia os brasileiros, dizendo que o povo é comunicativo, que dá para viver aqui e para trabalhar, então quem queria e precisava 30 mudar de vida interessava-se em vir para o Brasil. Desta forma, ele concluiu que as coisas ficaram muito difíceis e a procura para vir pra cá aumentou; depois de 1967, diz ele, “quem vinha de lá pra cá tinha ou um primo ou um da família, ou pelo menos um conhecido”. Muitos dos muçulmanos que migraram para Goiás vieram de avião, a partir de 1970. Eles iam primeiramente para a Bolívia e em seguida entravam no Brasil como clandestinos, e uma vez aqui, legalizavam sua situação. Os muçulmanos chegaram aqui como imigrantes árabes e foram chamados de “turcos” pelos brasileiros, porque eles saíam de suas terras de origem com o passaporte da Turquia, uma vez que o Império Otomano da Turquia dominou a região por muitos séculos, e também porque há várias religiões e nacionalidades diferentes que causam confusões interpretativas no Brasil. Os muçulmanos dizem que tem árabe cristão, tem árabe muçulmano, tem muçulmano iraniano, tem nacionalidades não árabes, temos chinês muçulmano, temos indiano muçulmano, que casou com uma brasileira, mas atualmente, não está aqui, mudou-se para a Índia com a mulher dele. (I. P. J., 57 anos, 2003) Os elogios ao Brasil, através de cartas ou telefonemas, eram tantos que provocavam euforia nas mentes sonhadoras dos que ficavam e recebiam as notícias dos que já estavam aqui. Daher, imigrante e autor de uma obra que relata a história da imigração de três grandes famílias libanesas em Goiás, quais sejam, a sua, a Rassi e a Nabut, fala destas cartas, dos relatos e da intensa descrição da “terra receptora”, dedicando predicativos recheados de grandes elogios ao Brasil e chamando-o de pátria adotiva: “neste País hospitaleiro e acolhedor, como nunca imaginaram encontrar, o Brasil foi a segunda Pátria de ambos e de seus filhos, bem como de toda a descendência, de maneira definitiva” (Daher, 1999: 32). Um imigrante muçulmano de Jataí relatou os problemas ocorridos em seu país e sobre a necessidade de imigrar, bem como os motivos que o levaram a escolher o Brasil para tal: porque lá ficou a minha região, onde nasci, até foi na Palestina e lá fechou por causa do domínio dos judeus, então eu escolhi o Brasil dentre vários, porque a fama do Brasil no mundo árabe, no libanês, nos sírios principalmente, porque o povo brasileiro é um povo pacífico que sabe respeitar, é um povo muito igual, que não tem orgulho de raiz e não tem racismo. O árabe gosta muito do brasileiro, então escolhe o Brasil. (I. P. J., 34 anos, 2003) 31 Rashad, um imigrante muçulmano também de Jataí, mudou-se porque tinha um tio que havia vindo para o Brasil antes da Primeira Guerra e um amigo que tinha uma loja na rua 4, em Goiânia e foi ajudado por ambos. Antes de vir “eu mexia com lavoura de uva, figo, azeitona. E eu plantava trigo, dava pra viver, não era grande coisa como hoje, como os fazendeiros que tem tantos mil alqueires, tinha quatro a cinco hectares por aí” (I. P. J., 57 anos, 2003). As justificativas para as constantes imigrações têm na voz de Truzzi um toque todo poético e especial, quando ele diz: Foi tal espírito febril, um espírito desafiado por condições econômicas e políticas adversas, retemperado pelos condicionantes culturais da sociedade local e inflamado pelas histórias de sucesso do outro lado do mundo, que compeliu os protagonistas, cada um desejoso de não ficar para trás, a redimir a situação econômica familiar, a competir em direção à América. (Truzzi, 1997: 33) Um dos imigrantes muçulmanos mais conhecidos na comunidade de Jataí, por ser considerado por toda a comunidade como o mais “culto”, é o professor de árabe Bahjat Abeidala, que também é palestino e fala dos motivos que o trouxeram ao Brasil. Ele disse que seu pai, que estava no Brasil, preferiu que ele viesse também, “porque o povo daqui é muito bom e o clima é ameno, e o povo brasileiro não discrimina ninguém” (I. P. J., 60 anos, 2003). Outro imigrante muçulmano palestino, quando fala das condições da imigração para os EUA, justificando sua preferência e a de seus familiares pelo Brasil, diz que escolheu este país em razão do racismo, muito forte naquele país. Ele afirmou também que o povo interessava muito mais no Brasil do que os EUA, então ele chegava aqui, e entrava aqui no grande Brasil e começava a trabalhar, porque já tinha costume de carregar as malas, carregava no camelódromo, mas como não tinha camelódromo pra carregar, então carregava a mala na mão, nas costas, batia a porta sempre sem saber da cultura do povo brasileiro, não tinha esta informação, chegou, quer chegar aqui e quer trabalhar. (I. P. J., 34 anos, 2003) As primeiras experiências vividas pelos imigrantes na nova terra e as condições encontradas na “sociedade receptora” goiana geraram muitas experiências e aprendizagens, nos momentos difíceis aqui enfrentados. Sobre alguns deles, atualmente os imigrantes falam e fazem anedotas, como é a história de uma das viagens de Hasam, 32 por exemplo. Ele relatou um episódio que aconteceu logo após ter chegado ao Brasil, quando, vindo de Goiânia para Rio Verde, disse uma palavra errada; ele queria dizer “jardineira”, o motorista do caminhão desceu, sacou uma arma e ele foi salvo por uma mulher que explicou a situação. Ele disse que no começo “toma água e não sabe pedir água, mas quem cai na água tem que nadar, ou nada ou afoga” (I. P. J., 70 anos, 2003). 1.4. Inserção e integração das comunidades muçulmanas à sociedade goiana As comunidades muçulmanas em Goiás se formaram a partir do conceito weberiano de pertencimento subjetivo determinado por uma origem comum, do “tipo categoria organizacional”. Eles compartilham formas culturais de vida entre eles mesmos e, através do processo de “adaptação” e “integração”, também com a “sociedade receptora”. Weber (2000) afirma que a etnicidade tem sido definida como uma “crença subjetiva” de uma coletividade sobre uma origem comum. Para ele, há várias formas de se criar um sentimento de comunidade, sendo uma delas a da comunidade étnica, que é uma das modalidades possíveis e que tem como base os mesmos elementos de uma comunidade religiosa. Para Jardim, esta crença é fundada através de uma igualdade de hábitos e costumes que servem como facilitadores de processos de comunicação: “O grupo étnico é um momento que facilita o processo de comunicação”. Nesta perspectiva, ela complementa o pensamento weberiano ao dizer que para que haja um sentimento de “coletividade” é necessário conjugar forças e atos que atuem como forças centrípetas, a ponto de estabelecer-se um parâmetro para inclusão de outras coletividades nessa “comunidade” e mesmo para consagrar certa tradição (Jardim, 2000: 31 e 34). O sentido de identidade étnica palestina ou libanesa, as duas principais que prevalecem nas comunidades pesquisadas, se constitui no sentimento de comunidade e solidariedade baseado numa história e cultura comuns, a partir das quais são constituídos os símbolos étnicos e religiosos. Um exemplo dessa construção comum vem a ser o depoimento de um imigrante muçulmano libanês, Samir, que fala da formação da sua religião, de não cobrar o dízimo, de que todo ensinamento e salvação são gratuitos, e que nas outras religiões são cobrados. Ele enfatizou também a 33 necessidade de os homens se tornarem muçulmanos como eles, de serem felizes e salvos, para a humanidade se tornar próspera. De certa forma, o sentimento de pertencimento e a vontade de continuar aqui uns em torno dos outros enquanto comunidade, relacionando-se entre si, se explica nas associações, sociedades beneficentes, nas mesquitas, nos centros de divulgação islâmica, onde prescreve uma vontade de, juntamente com os seus, constituírem-se enquanto um grupo ou uma comunidade étnica. Certos costumes, hábitos e valores se constituem ou são concebidos como fronteira étnica a preservar. As experiências comuns experimentadas – como as atividades econômica e social, derivadas da trajetória das experiências da imigração na “sociedade receptora”, qual seja, a mascateação, num primeiro momento e mais tarde o comércio, na relação de dependência estabelecida entre eles – contribuíram para a convivência em torno um do outro. Isto é visível nos estabelecimentos comerciais dos imigrantes muçulmanos, nas comunidades de Goiânia, Anápolis ou Jataí, pois as suas lojas são estabelecidas próximas umas das outras e eles mantêm conversas cotidianas entre si. Foi observado que eles não vivem um ambiente de concorrência; apesar da proximidade de seus estabelecimentos comerciais, eles nutrem um sentimento de solidariedade. Tal situação foi percebida no depoimento de um muçulmano, quando ele disse que a religião islâmica manda um ajudar o outro. “No Livro Sagrado fala que se você já vendeu naquele dia e seu vizinho do lado ainda não, você deverá passar um cliente para o que ainda não vendeu, para também ajudá-lo nas vendas.” O pertencimento comunitário pode ser presumido de forma dupla, segundo Seyferth (RBCS5 24, 2002), ao falar de um modelo pluriétnico de Estado, que pressupõe um duplo pertencimento comunitário: um enquanto lealdade à unidade política, ou seja, ao Estado brasileiro, expressa nos direitos e obrigações da cidadania requerida pelos imigrantes, e outro no sentido de afiliação e solidariedade com a comunidade étnica, na qual os indivíduos nascem, têm sua família e são socializados. Estas duas esferas são negociadas, entre os interesses dos imigrantes ao se tornarem cidadãos, pressupondo o fim da fronteira de exclusão e o processo de inclusão deles na “sociedade receptora”, tendo no pertencimento e na consciência étnica as bases sobre as quais se constroem suas comunidades, culturalmente definidas sob a égide da origem e da história comuns. 5 RBCS: Revista Brasileira de Ciências Sociais/ ANPOCS. 34 Nesse caso, não há um dissenso entre estar reivindicando uma cidadania brasileira e, ao mesmo tempo, um pertencimento a uma comunidade étnica, pois aquela não é requerida pela nacionalidade, mas pela religião e regiões de origem comum. Tanto uma como a outra reivindicação são compatíveis entre si, ou seja, tanto o exercício da cidadania quanto o da vida comunitária e as estruturas culturais endógenas à comunidade se compatibilizam. E por fim, além de não se incompatibilizarem, elas se complementam; e principalmente a comunidade étnica se afirma por meio da diferença. Lanna (RBCS 24, 2002) conceitua este modelo pluriétnico chamando-o de “negociação da cultura”, elaborado a partir do que ela chamou de “projetos individuais”. Segundo Seyferth (RBCS 24, 2002), o paradoxo da etnicidade significa sua mutabilidade na persistência através da mudança. Ao longo do tempo, as comunidades muçulmanas foram reconstruindo seus símbolos, suas estruturas culturais foram se modificando, mas esta modificação não resultou numa plena assimilação das condições culturais impostas pela “sociedade receptora”, mas tão somente de uma reconstrução negociada, onde as bases “estruturantes culturais”, como Levi-Strauss disse, não se modificam. E isto é assinalado como sendo uma consciência étnica de pertencimento, apesar da contínua reconstrução e interiorização dessas comunidades no contexto da sociedade goiana. A noção de “grupo” vai adquirir contorno demarcatório nas questões sobre a persistência das diferenças culturais, onde Barth propõe uma teoria sobre as relações entre grupos e sua capacidade de atualização face a “outros”. Para suas reflexões, ele privilegiará o estudo das fronteiras simbólicas, deslocando-se da tendência até então disseminada de perceber traços e características culturais substanciais, que definiriam um “grupo”, uma “tradição”, para o estudo sobre a produção de fronteiras simbólicas, operadas e expressas por sinais diferenciadores. Segundo Barth os grupos sociais seriam formas de organização social, onde os membros se identificam e são identificados como tais pelos outros, constituindo-se distintamente (Barth, 1998: 111). Assim, a passagem dos grupos pelas fronteiras, ou seja, entre um grupo e outro, não dilui ou extingue a existência de nenhum deles, nem mesmo a rigidez dessas fronteiras desaparece. Segundo Barth (1998), as pessoas podem mudar de identidade e alterar seus traços culturais; contudo, longe de negarem a pertinência da distinção entre grupos étnicos, elas estarão reforçando a existência de identidades distintas. Nas relações interétnicas se estabelece um código para comunicação através dos sinais definidores e determinantes da separação, para delimitação da fronteira 35 interétnica, com o intuito de se firmarem enquanto grupo étnico. Segundo Barth (1998), nesse confronto e nessa relação com o outro, ou seja, nesse espaço do contato interétnico, surgem as identidades e se definem as fronteiras étnicas. Isso supõe uma relação entre o “nós” versus os “outros”. A adoção ou incorporação de certos elementos característicos da cultura da “sociedade receptora” não significa a perda da identidade étnica. Os imigrantes muçulmanos têm-se afirmado enquanto grupo étnico. Esta afirmação se estabeleceu na relação das comunidades muçulmanas e a sociedade brasileira, através de sinais diacríticos marcadores de suas características étnicas. Um exemplo desses sinais é a forma de vestir e o uso do lenço entre as mulheres muçulmanas, que para a “sociedade receptora” são marcadores da diferença. Contudo, nem todo sinal marcador da diferença é percebido desta forma para ambos os grupos. Para as próprias muçulmanas este não é um diferenciador importante, uma vez que há mulheres muçulmanas que não usam o lenço. Elas explicaram que “usar o lenço está no coração, se você sentir no coração, mulher muçulmana não é obrigada a usá-lo”. A definição das fronteiras simbólicas dá primazia à identificação do grupo em relação à cultura que ele exibe. Assim fazendo, resolve-se a questão da continuidade de um grupo no tempo e de sua identidade. Conforme visto, é impossível tomar os traços culturais como critérios de identificação de um grupo étnico, uma vez que as características culturais de um grupo social não são imutáveis, não são constituídas por leis fixas, mas construções constantes, por isso os traços culturais poderão variar no tempo e no espaço, sem que isso afete a identidade do grupo. Essa perspectiva está, assim, em consonância com a que percebe a cultura, conforme Cunha (1986), como essencialmente dinâmica e perpetuamente re-elaborada. “A cultura, portanto, em vez de ser o pressuposto de um grupo étnico, é de certa maneira produto deste.” Os imigrantes muçulmanos entendem a si mesmos enquanto grupo social, portadores de uma cultura e de tradições que os distinguem de outros. Conforme Cunha observou, a origem e a tradição representam, para os imigrantes, o modo como eles se concebem enquanto grupos na relação com outro grupo. Segundo Cardoso de Oliveira (1995), as categorias étnicas são componentes de um sistema ideológico, carregadas de valor e os valores são fatos empíricos, passíveis de serem descobertos, “pois não são construções do analista mas sim pontos de vista dos próprios agentes”. Assim, a noção de etnicidade prende-se principalmente à 36 compreensão da dimensão ideológica do contato elaborada pelos grupos como parte do seu processo de legitimação na “sociedade de adoção”. Os imigrantes muçulmanos em Goiás versus a “sociedade receptora” representam, por excelência, este sistema interétnico definido a partir da construção de diferentes aspectos ideológicos e culturais, inter-relacionados no processo de inserção dos muçulmanos na sociedade goiana. Os imigrantes muçulmanos fazem, por um lado, elogios, e por outro, nas entrelinhas, comentários negativos acerca da sociedade brasileira. De acordo com Cardoso de Oliveira, o rationale das “flutuações” da identidade étnica (ou, em outros termos, a lógica da manipulação dessa identidade), poderá permitir a elaboração de uma tipologia capaz de conter diferentes “culturas do contato” e de conformidade com a maior ou menor distância e “oposição” das culturas em conjunção, da maior ou menor tensão e conflito entre os grupos étnicos em contato. Nesse sentido, essa “cultura do contato” pode ser mais do que um sistema de valores, sendo o conjunto de representações (em que se incluem também os valores) que um grupo étnico faz da situação de contato em que está inserido e nos termos da qual classifica (identifica) a si próprio e aos outros. (Cardoso de Oliveira, 1995: 10) A extrema variedade de traços culturais de um grupo social não impede de se considerar, mesmo que na ausência de traços rigidamente comuns, um grupo cultural como portador de uma identidade étnica. As formas ou traços culturais não se diluem no contexto social da sociedade migrada; elas se concebem a si mesmas com características culturais e estas funcionam com persistência e resistência, na afirmação da identidade. Poutignat (1998) observou que A extrema diversidade dos estilos de vida dos pathans não os impede de se conceber a si mesmos como uma unidade étnica dotada de fronteiras sociais sem ambigüidade [...] se é impossível estabelecer a delimitação estrita de uma “tribo” sobre uma comunidade de cultura (entendida como conjunto de traços objetivos), pode-se fazê-lo se entendermos a “cultura” como o modo de consciência que as pessoas têm de si mesmas”. (Poutignat, 1998: 62) As comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás formam um grupo étnico que possui suas características identitárias, a partir de traços culturais construídos por e sobre eles mesmos. Poutignat constatou que o importante não é estudar a maneira pela qual os traços culturais se distribuem, mas como a diversidade étnica é socialmente 37 articulada e mantida. O processo de inserção dos imigrantes muçulmanos em Goiás constitui-se a partir da articulação com a cultura local através de um processo de “adaptação”. Ao se integrarem no contexto da sociedade maior, as culturas de um grupo étnico constroem sistemas classificatórios, segundo Woodward, com características próprias, que resistem e persistem, estabelecendo as fronteiras simbólicas do que é incluído e do que é excluído nesse processo. “Essa classificação ocorre, por meio da marcação da diferença entre categorias de identidades” (Woodward, 2000: 49). Os sistemas classificatórios são os traços culturais característicos do modo de vida deles na sociedade goiana que os identificam como imigrantes muçulmanos e essa classificação determina as fronteiras interétnicas. Segundo Nunes (2000), para se compreender as diferenças de atitudes dos imigrantes árabes em Goiás, dentre estes os muçulmanos, é importante considerar os aspectos de ordens econômicas, religiosas, sociais e políticas, bem como observar que o processo histórico revela a formação de uma comunidade com diferentes características, a partir de diversos elementos culturais que vêm interferindo na sua identidade. Contudo, apesar desta interferência, as comunidades muçulmanas se afirmam enquanto grupo de imigrantes. Desta forma, o processo de construção da identidade muçulmana passa pelo crivo dialético de sua inserção ao meio social da “sociedade receptora”. Daí, tem-se que há uma dualidade de situações de auto-identificação dos imigrantes muçulmanos e ainda da auto-representação que lhes são dadas pelos outros. Os imigrantes muçulmanos internalizam as identificações representativas construídas pela sociedade goiana e as assumem como uma representação daquilo que eles são. Esta comunidade étnica assume-se e define-se por um conjunto de elementos que servem como limites a separá-los dos “outros”, entre os quais se destacam os pilares da religião (as orações diárias e as das sextas-feiras, os jejuns), as reuniões para as conversas corriqueiras do cotidiano, regadas a chá e fumo (tumbak), o uso da língua árabe, as festas e os cerimoniais, para as comemorações do jejum e as peregrinações determinadas pela religião e, por fim, a prática comercial, a caracterização de mascate ou comerciante “pão duro” e de “turco”. Todos estes elementos caracterizam a auto identificação das comunidades muçulmanas e também a identificação externa sobre eles. 38 Segundo Seyferth (1995), o conceito de pátria leva a uma categorização ideológica e étnica dupla: uma, de pertencimento a uma pátria de origem, que não foi descartada, apesar dos enclaves políticos de constituição do Estado, como é o caso palestino e outra, de uma nova pátria, o Brasil, afirmando a condição de imigrante, mas brasileiro. A separação das duas esferas de atuação – a comunidade étnica e o Estado brasileiro – é apenas aparente, pois, na verdade, elas se complementam a partir do momento em que a pátria é evocada. Pátria com dois significados distintos, mas complementares, um remetido à comunidade muçulmana de imigrantes palestinos ou libaneses, e por isso étnica, e outra derivada do Estado, enquanto entidade política e territorial. No primeiro conceito prevalece o sentido de lar, estilo de vida próprio, intracomunitário. E no segundo se remete a cidadania e a associação ao ethos do trabalho no interior da sociedade goiana. Essa duplicidade ainda inclui os dois princípios que regem a identidade étnica: uma pequena pátria no Brasil, construída pelo esforço coletivo dos imigrantes pioneiros que rumaram para Anápolis, Goiânia e Jataí, e uma outra, a pátria brasileira, que remete à cidadania referenciada pelo direito de solo, de trabalho e vida social aqui conquistada. Assim, Seyferth confirma essa situação descrita dizendo: o que prevalece não é a noção de nação ou Estado brasileiro dado pelas teorias que trabalham a nação, povo e Estado-nação, mas uma nação somente enquanto uma comunidade imaginada, não politicamente imaginada, (...), mas, muito mais próxima do conceito weberiano de comunidade étnica, com ênfase nas noções de origem comum, mesma região, mesma religião e parentesco, bem como o sentimento comunitário, que nutrem a permanência da comunidade, e dentro desta, seus princípios e valores culturais comuns. (Seyferth, 1995: 30) Os imigrantes muçulmanos adotam a nova pátria, o Brasil, a nova cidadania, a brasileira, que muitos alcançam logo cedo, quando da chegada aqui, mas a etnia continua sendo a do país de origem. O ato de emigrar significou o rompimento com o país de origem, em termos de Estados nacionais, que deixou de existir, principalmente no caso palestino, com a criação do Estado de Israel. A forma política de Estado palestino que existia antes da Segunda Guerra Mundial desapareceu, mas aquele rompimento não se deu com o povo ou a etnia, que aqui continua, sendo uma comunidade muçulmana palestina. Um outro aspecto importante de ser mencionado acerca das interações sociais e das representações étnicas entre os imigrantes muçulmanos e os goianos, refere-se à 39 esfera da moral. A estruturação dessas interações se dá a partir de elementos limítrofes para as mesmas, os quais são chamados de limite étnico. Partindo de alguns pressupostos de Barth, nas situações de contato os grupos vão permitir interações em determinados níveis e não em outros, graças à existência de um “conjunto sistemático de regras [...] e por outro, um conjunto de sanções que proíbem a interação interétnica em outros setores, restando assim, certos segmentos da cultura de possíveis confrontações ou modificações” (Barth, 1976: 18). Cabe enfatizar que estes limites “son limites sociales aunque bien puedan contar com su concomitante territorial [...] canalizan la vida social y esto ocasiona una organización a menudo mui compleja de relaciones sociales y de conduta” (Barth, 1976: 17). Esses limites definidores do grau de interação no processo de inserção social são flexíveis e construídos de diferentes formas pelos contextos e atores envolvidos. São esses limites que caracterizam o grupo étnico e não a cultura. O processo de inserção dos imigrantes muçulmanos na sociedade goiana não se funda no antagonismo e na negação total de uma das partes pela outra, mas, contudo, configura-se em determinadas situações de contato interétnico, estigmatizadas e estereotipadas pela representação e auto- representação de um grupo sob o outro, como é o caso da representação de que todos são “turcos”. Outra representação específica da religião islâmica é construída praticamente em todo o mundo, é a de que os muçulmanos são terroristas e fundamentalistas. Quando dos depoimentos, muitos dos muçulmanos entrevistados faziam muita questão de afirmar: “nossa religião é de paz, nós não queremos guerra, os americanos que fazem a guerra, não nós”. El Kadi divide o processo de interação em duas esferas: a pública e a privada: [...] na atuação pública, em especial ligada à atividade comercial e em parte desta, elabora uma fachada que parece indicar uma adaptação e acomodação à sociedade de adoção; por outro lado, na esfera privada parece existir uma outra orientação das condutas visando a preservação de valores e normas fundamentais ao grupo – como o patriarcalismo, a religião e o casamento endogâmico [...]. (El Kadi, 1997: 28) A formação das comunidades muçulmanas em Goiás e o processo de construção da identidade se dão nos diversos momentos, diferentes contextos e situações determinadas, dependendo das relações estabelecidas entre as comunidades 40 muçulmanas e a “sociedade receptora”, onde nestas diversas circunstâncias se ocupa lugares e papéis diferentes, e limitados estruturalmente, de acordo com os elementos negociados e os não negociados, dependendo do processo de inserção. Estes elementos são variáveis de acordo com a situação em que os mesmos se encontram. Nessas relações acontece constantemente o que Hall chamou de “jogo de diferença”, no qual vão-se contrastando e demarcando as suas distintividades (Hall, 2002: 16), como se estivesse “jogando o jogo da identidade”. Ele usa a palavra “jogo” porque o sentido da metáfora sugere “instabilidade, a permanente ausência de ordem, a falta de uma resolução final”, e, dessa forma, a identidade pode ser pensada como “uma produção que nunca se completa, que está sempre em processo” (Hall, 2002: 68 e 71). Nesse jogo identitário, o processo de negociação é contínuo e constante, apesar de nos primeiros anos de imigração ter sido mais intenso do que atualmente. Porém, há sempre novas situações negociadas no processo de integração com a sociedade goiana. Estas situações requerem novas construções da identidade e isto vai trazendo modificações no interior das comunidades muçulmanas. Apesar desta situação, os muçulmanos têm se preocupado em manter como podem e conseguem seus costumes, hábitos e tradições, seus valores, a vida em família e relações domésticas, bem como a língua árabe, preocupação central dos pais com os filhos nascidos no Brasil. Eles defendem a construção de sociedades beneficentes e instituições muçulmanas, editam periódicos, fazem propagandas da religião, falam da constituição das comunidades muçulmanas no mundo, da necessidade de sua conservação, de como uma comunidade ou sociedade deverá se constituir, suas funções e fins, para atingir os objetivos da propagação e ensinamento da religião e da língua aos jovens. Um dos muçulmanos de Jataí disse que “mais importante da sociedade é a união, unir todos, jovens, pra gente ensinar eles os costumes de nossa religião, manter também o costume da comunidade e preservar o costume”. Cardoso de Oliveira (1995) diz que a identidade possui uma dimensão pessoal e uma social, sendo esta que interessa na interação dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Segundo ele, a identidade social supõe relações sociais e um código de categorias de conduta destinado a orientar os envolvidos no desenvolvimento dessas relações. A identidade ainda é relacional e contrastiva com a outra parte envolvente. Ele ainda identifica estas duas dimensões da identidade, afirmando que elas se apresentam como uma negação da outra identidade na qual se insere o grupo étnico. Contudo, esta 41 negação da outra parte não é absoluta, ela é relativizada, uma vez que ambas as partes envolvidas nesse processo de interação social apreendem conteúdos uma da outra. Jardim (2000), ao falar da relativização desses elementos, diz que nos diversos processos de inserção e interação social negociado, em seus elementos culturais e identitários, formam um novo conteúdo, ou seja, uma “nova” identificação identitária. Sales também, ao abordar o processo de constituição da identidade, afirma que ela é tida como um fluxo multifacetado, sujeito a negociações variáveis de acordo com os elementos também do contexto interativo. E ela conclui que, “nesse sentido, a identidade expressa a própria organização social do grupo enquanto um processo de representação coletiva que resulta do reconhecimento de sua especificidade” (Sales, 1999: 35). De acordo com o contexto social experimentado na “sociedade receptora” pelas comunidades muçulmanas de Goiás, foram observados casos de proteção de identidade. Um dos imigrantes muçulmanos da comunidade de Goiânia não assumiu logo sua condição de imigrante muçulmano, dizendo ser um “laico”, ou seja, pertencendo a todas as religiões; mas, no entanto, após novos contatos e o surgimento da confiança, ele assumiu e se identificou como um muçulmano. O sentido de continuidade e de comunidade é imprescindível para veicular a identidade, caso dos muçulmanos em Goiás ao formarem as comunidades em torno de uma identificação comum entre eles. As características desse processo de identificação, dos contrastes estabelecidos entre “nós” e “eles”, são marcadores do jogo de exclusão e inclusão que expressa a natureza da identidade contrastiva. O exemplo por eles dado, de origem da mesma “terra” ou “território” é certamente o primeiro desses operadores simbólicos, marcadores desse jogo, onde o “nós” são os filhos da terra e os “outros” são os da “sociedade receptora”. O segundo operador simbólico é a história da formação religiosa comum. O terceiro operador é o sangue, marcador de uma ancestralidade genética e a língua se apresentaria como o quarto operador, marcador da identificação das comunidades de imigrantes muçulmanas em Goiás. Através desses operadores simbólicos e identificadores é que os imigrantes muçulmanos se comunicam entre si. A partir da apreensão de conteúdos da “sociedade receptora” pelas comunidades de imigrantes muçulmanos, e vice-versa, ocorrerá a interação social. A identidade das comunidades muçulmanas vai se formando, resistindo e certos elementos persistem em detrimento de outros nesse processo. Em outras palavras, o que acontece neste processo 42 de inserção das comunidades muçulmanas é uma “transação” de situações sociais para a própria integração de ambas. Isso foi possível de ser observado, por exemplo, na comida e na língua. A sociedade goiana adquiriu hábitos de comer alimentos típicos da cozinha árabe e dos muçulmanos, como esfirra e quibe, bem como na língua, conforme depoimentos de um imigrante muçulmano de Jataí, o nome camelódromo foi uma adaptação vinda deles. O sentimento de participação de uma história comum na terra de origem, influenciou o processo de produção da identidade, principalmente, dos imigrantes muçulmanos palestinos, ao se tornarem refugiados da guerra com Israel. Isto foi observado empiricamente na comunidade muçulmana de Jataí, onde a maioria sofreu a diáspora, quando perderam suas terras e saíram pelo mundo. Dessa forma, esse sentimento de solidariedade foi percebido nos depoimentos dos imigrantes muçulmanos palestinos, e isso interferiu na formação da comunidade, construindo neles uma identificação muçulmana, que eles chamaram de “raça”. Entre os que gostam de falar da política mundial e dos seus efeitos sobre a condição deles na atualidade, um dos imigrantes palestinos, Jawdatt, frisou que “eles formam uma raça, que luta pela sua gente e suas terras”. Ele ainda disse que “houve um tempo em que aqueles que não abraçaram a ‘causa palestina’ entre seu povo, foram considerados não patriotas” e excluídos da condição de “raça”, tão venerada por eles. Este muçulmano palestino pediu desculpas e criticou o Brasil, afirmando que o brasileiro não tem “raça” e não tem esse sentimento solidário, justificando que no país houve uma grande mistura de gente de todo lugar, citando os índios, os negros e os portugueses. Notou-se, dessa forma que o sentido de “raça” por eles entendida, significa estarem unidos em torno de um sentimento nostálgico de perda da terra de origem, onde todos são solidários entre si, em razão de sentirem a mesma situação. Este sentimento de solidariedade faz os imigrantes muçulmanos palestinos se identificarem uns com os outros, principalmente nos encontros e nas conversas cotidianas. Segundo Cardoso de Oliveira (1988), a identidade e a ideologia são dois aspectos do mesmo processo. A ideologia estabelece, de um lado, a condição necessária para o amadurecimento individual e, de outro, a forma seguinte e mais alta de identificação, a saber, a solidariedade que liga identidades comuns numa vivência, ação e criação conjuntas. 43 1.5. A ideologização arábica e islâmica nas comunidades muçulmanas A formação ideológica das comunidades muçulmanas no Brasil e em Goiás perpassa diferentes caminhos, os quais irão culminar em comunidades que defendem a ideologia arábica ou a islâmica, formando identidades. Na versão arábica prevalece o tipo de comunidade que se orienta pelos sheiks da, e formados na, Arábia Saudita, e a islâmica dos sheiks independentes, que não aceitam orientação da Arábia Saudita e mudaram alguns dos rituais na prática da oração do Islã para absorver os não muçulmanos convertidos para a religião. Esta versão islâmica é formada por um grupo de intelectuais que proclamam a necessidade da abertura da ideologia islâmica para todos. Na observação de campo, percebeu-se que os imigrantes muçulmanos em Goiás, apesar de serem metódicos e manterem uma gama de rituais, de cerimônias significativas para a comunidade, não constituem líderes, enquanto uma organização formal e estruturada6. Ferreira caracteriza a comunidade muçulmana do Braz, em São Paulo, através das construções ideológicas estabelecidas pela visão arabista e a islamita. Explicando estas diferentes posições vivenciadas nas comunidades muçulmanas, ela cita uma entrevista com Walid, um dos muçulmanos de sua pesquisa, falando sobre as mudanças ocorridas no Brasil, acerca da formação diferenciada das comunidades muçulmanas e, ainda, das transformações acerca da constituição identitária primeiramente arabista (arabismo) e depois islamita (islamismo). Esse muçulmano diz que há trinta anos atrás todas as comunidades muçulmanas no Brasil posicionavam-se a partir da ideologia arabista ou arábica. Elas eram ligadas aos ditames dos lideres da Arábia Saudita e voltavam-se para a questão da liberdade da Palestina e da guerra do Egito, prevalecendo o entendimento de que isto era uma causa árabe, e não islamita, enquanto hoje há comunidades ideologicamente formadas pela versão islamita, que abrem espaço para a congregação e aglomeração dentro dessas comunidades de todos os tipos de povos (Ferreira, 2001: 8-9). 6 Em São Paulo e Rio de Janeiro, as comunidades muçulmanas possuem indivíduos-chaves, os sheiks, geralmente dirigentes da mesquita ou da sociedade beneficente que têm o papel de fazer o chamamento para a oração e de dirigi-la, bem como de organizar os rituais e cerimônias religiosas. (Ver: MONTENEGRO, Silvia Maria. “Identidades muçulmanas no Brasil: entre o arabismo e a islamização, UFRJ, 2000); FERREIRA, Francirosy C. B. Imagem Oculta – reflexões sobre a relação entre os muçulmanos e a imagem fotográfica. Dissertação de Mestrado, Departamento de Antropologia, USP, 2001. 44 Atualmente o ponto de vista islâmico prepondera sobre o arábico, conforme observações de campo de Montenegro (2000). No Brasil, o Islã é uma religião de imigrantes e de seus descendentes, mas já se pode observar algumas conversões de brasileiros não descendentes de imigrantes muçulmanos. Apesar de a unidade desta pesquisa excluir os convertidos ao islamismo, não seria possível deixar de mencionálos, uma vez que isso foi propiciado por uma flexibilização dos costumes e tradições ritualísticas do Islã, na versão islamita. A comunidade de imigrantes muçulmanos do Rio de Janeiro, a mais ortodoxa do Brasil, uma vez que eles têm aclamado, conforme Montenegro, pela ideologia da islamização e descartado de seus discursos a arabização, é a que mais tem aberto espaço na comunidade para os novos conversos brasileiros. Ela faz uma classificação das comunidades, que envolve aspectos morais e de costumes, os quais vão classificar o crente muçulmano e o muçulmano converso em, conforme ela diz, “zonas do Islã”. E assim, estas zonas do Islã formam diferentes comunidades muçulmanas no Brasil, ou seja, comunidades arabistas e islamitas. Aquelas comunidades que trazem como legado ou ressaltam a cultura árabe comum como sendo o traço estreitamente vinculado ao islamismo professado no Brasil, constituem a ideologia da arabização, como pode ser observado em São Paulo. E aquelas comunidades, como as do Rio de Janeiro, onde 50 a 60% são convertidos à religião islâmica, são consideradas por Montenegro como comunidades independentes, que mudaram vários costumes, dentre eles aqueles referentes aos rituais da oração, onde uma parte é falada em árabe e outra em português. A comunidade muçulmana de São Paulo não se configura como a do Rio de Janeiro, onde aquela é diretamente ligada aos centros e governos árabes, se constituindo ideologicamente como arabização e esta como islamização. Assim, diz Montenegro (2000), “arabização e islamização aparecem como um par de oposições discursivas”. Segundo Montenegro, a comunidade do Rio de Janeiro vive as oposições discursivas “arabização versus desarabização ou islamização”, onde os fatores históricos percebidos culminaram na identificação ou formação de uma identidade em solo brasileiro, com constituição de um núcleo de intelectuais dentro da comunidade, onde estes reivindicam a separação do Islã, do seu aspecto nacionalista árabe, chamando atenção para o Islã, enquanto uma cultura mais ampla e não atrelada apenas à tradição árabe originária ou aos centros islâmicos dos países árabes. De acordo com ela, “o projeto de construção social de identidade do pequeno grupo de intelectuais da 45 comunidade, atravessa esse duplo dilema: arabismo ou islamização e o reconhecimento ou não do fundamentalismo como categoria de auto-adscrição” (Montenegro, 2000: 10). Por outro lado, segundo Ferreira, “hoje, é possível verificar um grande número de muçulmanos convertidos que freqüentam a Mesquita Brasil, situada na capital paulista”; contudo, para ela, “o convertido por sua vez, sempre será um convertido e será sempre um não-árabe”. Assim, ela aponta “a dificuldade encontrada pelos convertidos brasileiros sem ascendência árabe para tentar um relacionamento mais integrado dentro da comunidade islâmica” (Ferreira, 2001: 9). A configuração arabista versus islamita em Goiás praticamente se manifesta, conforme observado, apenas nas reuniões de todos os sábados, a partir das 18h30min, no Centro de Divulgação da Cultura Islâmica de Trindade. Lá foram introduzidas modificações na realização das orações islâmicas, ao incluir o português em alguns momentos daquele ritual, assim como nas reuniões de estudos do Alcorão7, em razão da conversão de um casal de brasileiros ao Islã, que lá freqüenta. Este exemplo revela que a concepção arabista de identificação dos islâmicos como árabes deixou de ser preponderante, com o intuito de incluir os brasileiros interessados na conversão ao Islã. 1.6. Passos e traços da receptividade dos imigrantes muçulmanos em Goiás É importante demarcar, conforme diz El Kadi (1997), os “passos e traços” da inserção dos imigrantes muçulmanos em Goiás a partir dos elementos religião e vocação para o comércio como elementos constitutivos da cultura identitária deles, no processo inter-relacionado, onde tanto os passos como os traços são condicionados, em maior ou menor grau, pela “sociedade receptora”. No caso dos passos, têm-se as condições sociais e econômicas ofertadas pela Marcha para o Oeste, visando integrar a região à economia nacional, não só enquanto ocupação de território, mas especialmente como fonte de produção de gêneros alimentícios para o mercado interno. No caso dos traços, têm-se as intermediações ou negociações produzidas no processo de constituição 7 Conforme Nabhan “O Alcorão é uma predicação, tendo-se em vista o espírito do Islã, que é o de interligação entre os planos temporal e espiritual, (...). Em língua árabe significa a leitura, o ato de ler” (Nabhan, 1996: 21). Na língua árabe traduz-se sem o artigo “o”. Em português, é Alcorão, ou seja, com o artigo, mas no árabe é Corão. Alcorão ainda significa “leitura por excelência” ou “recitação” e está dividido em 114 suras ou suratas e 6236 versículos. 46 identitária na inserção das comunidades muçulmanas de imigrantes na “sociedade receptora” como lógica para a sobrevivência. A autora ressalta que através da dimensão dos traços revelar-se-ão as diferenças. Estas, no caso das comunidades muçulmanas em Goiás, dada a condição maior da origem religiosa comum, não se sobrepõe outras diferenças, isto somente acontece nos seus países de origem. Lá, há conflitos entre ser um muçulmano sírio, libanês ou palestino, mas aqui, na “sociedade receptora”, sob a égide da condição de imigrantes, na sociedade de destino, não prevalecem essas diferenças por origem de países, pois as mesmas se diluem no contexto social goiano, restando apenas aquelas condicionantes de pertencimento a uma comunidade muçulmana de imigrantes. O sheik Al-Jerrahi, na sua exposição sobre as condições sócio-culturais em que as comunidades muçulmanas de imigrantes encontraram no Brasil, ao se inserirem na “sociedade receptora”, cita alguns fatores pouco favoráveis no contexto da sociedade brasileira e goiana. Dentre estes, a de locais ou espaço suficiente para as orações e escolas para ensinar o árabe aos filhos dos imigrantes. De acordo com ele, estes fatores não só tornaram difícil como também, em alguns casos, impediram que aos seus filhos fosse transmitida uma educação em conformidade com os ideais islâmicos. Também devido a estes fatores e à adaptação cada vez maior das novas gerações ao ambiente brasileiro, o idioma árabe passou a ser cada vez menos utilizado pelos descendentes, dificultando mais ainda a transmissão e recepção da herança cultural e religiosa (AlJerrahi, 2003: 6). Contudo, apesar das dificuldades apontadas, ele observa que “atualmente existem mais de oitenta associações islâmicas e mais de cinqüenta mesquitas e salas de oração no Brasil. [...] As estimativas apresentadas pelas entidades muçulmanas variam de um milhão a um milhão e meio de fiéis, incluídos os convertidos” (Ibidem: 7). Segundo Jardim (2000), a imigração muçulmana no Brasil, em menor número, fugia do padrão previsto para a sociedade brasileira, por não seguir a origem “européia” e os imigrantes eram vistos como “subversivos em potencial” pela sociedade brasileira. Apesar da história e dos constantes estereótipos elaborados sobre os muçulmanos no Brasil, os imigrantes das gerações atuais, observados no trabalho de campo, têm, em sua maioria, uma visão positiva da recepção ou aceitação deles pela “sociedade receptora”. Eles afirmaram que a “terra acolhedora ou receptora” é considerada por eles um novo eldorado, tanto pela melhora das condições financeiras de vida quanto como terra acolhedora para aqueles que a perderam, como os imigrantes 47 refugiados palestinos. Logo nos primeiros contatos com os muçulmanos, percebe-se que os mesmos são gratos e valorizam esse acolhimento, embora alguns tenham um profundo sentimento de nostalgia e vontade de retornar para sua pátria, sobretudo os palestinos, que acreditam na recuperação de seu território. Eles dizem conviver bem e com respeito aos costumes da “sociedade receptora”, bem como consideram importante tudo o que aprenderam. Eles ainda afirmam que vivem como os goianos e que absorveram o costume local, apesar de terem sofrido muito no começo, principalmente por causa da língua. O que se pôde observar, é a persistência aos preceitos e o modo de vida muçulmano, especificamente aqueles ditados pelo Alcorão, com algumas modificações decorrentes da vivência em outro país. Eles preservam características identitárias enquanto comunidade religiosa, tanto dos mandamentos religiosos e cultos ao Deus único, como na prática do comércio como formas de sobrevivência “adaptativa” ao contexto econômico e social da “sociedade receptora”. Desta maneira, eles absorveram a cultura brasileira, mas resistem e permanecem elementos identificadores culturais próprios da cultura deles, que inclusive, é preocupação dos mesmos, formarem sociedades beneficentes e terem a mesquita, como espaço de comunhão, para que possam se reunir para as orações, festividades e também para seus filhos terem lazer e aprendizagem da língua, da religião e dos costumes islâmicos, para que estes não se percam, como eles mesmos dizem. As condições sociais da receptividade local aos imigrantes têm sido consideradas importantes nos estudos dos processos migratórios, com ênfase na necessidade de se perceber as condições específicas que eles encontraram na chegada ao Brasil, para melhor entender o processo de integração. E ainda perceber o processo de inserção ou interação social dado pela convivência entre os imigrantes e a “sociedade receptora”, que se realiza no encontro de dois mundos diferentes. Por isto, torna-se pertinente compreender a forma como estes imigrantes foram incorporados e como se relacionam com a sociedade que os recebe, desenvolver e justificar os vários conceitos e definições teóricas relacionadas ao objeto desta pesquisa e às considerações interpretativas, sobre as quais os dados empíricos são considerados compatíveis. Estudos como os de Truzzi (1997), Nunes (2000), Montenegro (2000) e Jardim (2000) têm como objetivo entender como os imigrantes árabes em geral se inserem na sociedade brasileira, como suas associações e comunidades possibilitam criar uma relação positiva e uma imagem aceitável do imigrante para a sociedade que os 48 recebe. Estas associações são vistas ora como autodefesa frente à sociedade nacional, ora como estratégia de ascensão social do “grupo”. Os imigrantes muçulmanos, em seus depoimentos, relembram a trajetória desde a chegada em Santos (SP) e depois no Estado de Goiás, fazendo elogios à boa receptividade do povo brasileiro. Eles dizem que o povo brasileiro é gentil e simpático, tratando-os bem, e que em várias circunstâncias difíceis, nos primeiros tempos de imigrante, os brasileiros ajudaram-nos. Um exemplo disso ocorreu na época da mascateação, quando estes mais precisaram desta recepção “positiva”. Portanto, tornase importante enfatizar como foi a recepção do Brasil, considerado como “a mãe dos imigrantes”, expresso na fala do imigrante muçulmano Said, da comunidade muçulmana de Jataí: “o Brasil é o único país, onde você não se sente estranho, você se sente em casa”. Esta receptividade também é descrita por outro imigrante muçulmano de Jataí: a gente não sabia conversar bem o português, mas o pessoal sinceramente. O povo brasileiro parece que eles sentiam que nós éramos estrangeiros, que ta procurando assim. Eles recebiam a gente, seja quer comprar ou não, vamos entrar! Então a gente mostrava as coisas ali. Eles quando não podiam comprar, eles, diziam volta depois, porque no momento a gente não tem dinheiro. Então, o povo brasileiro, no meu ponto de vista, são muito bom, nos recebe com todo carinho, não queixava, hospitaleiro, mesmo. (I. P. J., 70 anos, 2003) Mas esta situação “positiva” acima descrita não é percebida com unanimidade nos entrevistados. Há controversas em alguns discursos dos imigrantes muçulmanos, disfarçadas de explicações alternativas. Em um desses tipos de depoimentos, concedido por um imigrante muçulmano da comunidade de Jataí, é um exemplo: quando ele começou a falar que tinha pena do brasileiro, seu amigo, também imigrante muçulmano, o interrompeu advertindo-o em árabe. Na maioria das vezes eles mostraram-se muito agradecidos ao Brasil, “terra que os acolheu, terra que tem liberdade de religião, onde eles podem profetizar o Islã sem medo”, e ainda “convive bem, com respeito, brasileiro é respeitador, são muito bom, etc.”. Os imigrantes muçulmanos ainda disseram se preocupar em não causar dissabores ou más interpretações na relação com o povo brasileiro. Pois “senão eu não vivo aqui”, dizem alguns deles. Eles afirmaram não quererem criar um clima de desafeto, por isso procuram não infringir as leis e não causar problemas ou conflitos sociais onde vivem. Um dos sheiks muçulmanos no Brasil enaltece o país ao dizer: 49 Tenho a satisfação de oferecer, orgulhosamente, a este país hospitaleiro, que amo muito, o Brasil, por um dever de lealdade a ele e em reconhecimento a liberdade religiosa, nele vigente em abundância para todos... Pois, sob o manto dessa liberdade de culto, a comunidade muçulmana brasileira, conseguiu construir suas casas de Deus e fundar suas entidades religiosas, o que possibilitou que essa mesma comunidade ficasse sabendo que Deus é Único e cresse n´Ele, em todos os Seus Enviados e Naquele, foi o fecho da vinda de todos os Profetas e Enviados [...]. (Maháiri, 1985: 18-19) Os agradecimentos ao Brasil pela acolhida dos imigrantes muçulmanos estão expressos em vários periódicos e jornais de suas entidades ou instituições criadas aqui no Brasil. Dentre estes, cita-se: [...] as nossas saudações a este país acolhedor, o Brasil, por gratidão a ele e por fidelidade a seu povo. Pedimos a Deus, Excelso, que propicie a este país generoso a segurança, a fé, a civilização e o progresso, que guarde o seu caríssimo povo e que o guie para tudo que é bom, já que Ele tem a capacidade de atender. (Maháiri, 1985: 19) E ainda com relação à situação ou ao contexto sócio-econômico e político do Brasil, os chefes religiosos islâmicos têm aconselhado as comunidades muçulmanas a respeitarem as leis do país em que vivem, não levando ao conflito e que considerem as condições de minorias dos próprios muçulmanos e o seu nível mental e econômico, nas pregações religiosas, e que, cumpram as obrigações religiosas impostas no Islã. E devido ao fato de ser a Prece da Sexta-feira uma obrigação de todos e não poder ser celebrada, a não ser que os muçulmanos se reúnam, conseqüentemente, cabe-lhes por dever constituir os meios que garantam a sua realização, de acordo com a regra fundamental teológica que diz: “Se aquilo que for obrigatório não pode ser realizado sem a existência de um determinado fator, esse fator passa a ser também obrigatório”. (Maháiri, 1985: 55) [...] se pretendermos retribuir a estes países que nos ofereceram a sua hospitalidade é imprescindível que lhes ofereçamos aquilo que de mais precioso possuímos, que é o Islamismo. Devemos explicar-lhes quais são as coisas boas que ele tem, fazer-lhes a pregação dele após cumprí-lo e aplicá-lo em nós mesmos e nos reunirmos, em seu nome, por intermédio de Sociedades Muçulmanas. (Ibidem: 61-62) No caso dos imigrantes muçulmanos palestinos, principalmente da comunidade muçulmana de Jataí, essa necessidade se confirma ao reclamarem da falta de espaço para a congregação e comunhão. Eles relataram lembranças de tempos atrás, onde havia 50 as rezas coletivas, reuniões festivas, casamentos, aniversários, cerimônias e rituais religiosos cumpridos no clube da comunidade. Os imigrantes palestinos, especificamente, justificam a necessidade de estarem reunidos em comunhão, uma vez que eles emigraram forçadamente, por causa da guerra, e que eles convivem com a dor do afastamento involuntário da religião, de familiares e de sua pátria. Os imigrantes muçulmanos afirmaram que lhes foi suprimido, e aos seus filhos, a dádiva de sentirem o prazer de viverem em um ambiente muçulmano, e, porque lhes negaram esse direito, eles consideram importante o espaço comunitário, onde possam se aglutinar, compartilhando dos mesmos desejos, sonhos e objetivos. As instituições muçulmanas, conforme eles explicaram, servem de apoio para viverem momentos comuns. Um dos imigrantes muçulmanos de Jataí reclamou: “nossos filhos ainda não têm um espaço na mesquita para eles fazerem suas programações dos jovens, não tem o que eles fazerem, isto preocupa” (I. P. J., 48 anos). Os imigrantes muçulmanos, em sua maioria, chegaram ao Brasil já adultos e, portanto, com valores sedimentados, mas passaram por um processo de “adaptação” e “integração” à cultura da nova pátria. As observações de campo têm mostrado que a prática religiosa na mesquita ou na casa de um dos mais velhos, como um espaço comunitário, tem servido para agrupar e manter a religiosidade em seus vários aspectos, proporcionando o convívio social e a comunhão entre eles, ou seja, constituindo o espírito e um sentimento de comunidade entre eles. 1.7. A expansão das fronteiras: o eldorado para a imigração muçulmana Ianni (1975) afirma que os fenômenos migratórios ocorridos nos séculos XIX e XX estão diretamente ligados à expansão do capitalismo europeu e às transformações das estruturas políticas, econômicas e sociais vigentes na Europa e no Brasil. As migrações são um fenômeno que está no bojo de grandes transformações históricas ocasionadas pelo capitalismo comandado pela Inglaterra. No caso específico da formação do capitalismo no Brasil, Lesser (1992) afirma que este se constituiu numa perfeita casa para aqueles provenientes da Europa Ocidental e do Oriente Médio, em razão do crescimento econômico e industrial brasileiro 51 substancial, especialmente depois da Primeira Guerra Mundial. Contudo, o contexto capitalista do Brasil é o de um país predominantemente agrário, que passou por um processo de substituição agrícola e das importações por uma investida desenvolvimentista de industrialização. El Kadi (1997) chama esta investida desenvolvimentista de “crise do Brasil agrário”, e é recorrente a compreensão de que a mão-de-obra imigrante se insere nesta época. No entanto, apesar dessa “crise do Brasil agrário”, para a compreensão do processo de imigração nas diversas regiões do país torna-se necessário observar as também diferentes demandas de mão-de-obra imigrante nestas diferentes regiões brasileiras e perceber como este fato orientou, em parte, determinados fluxos étnicos para regiões específicas, bem como o seu processo de fixação. Dessa forma, notou-se que a natureza da sociedade de adoção é também um dos elementos importantes para se compreender o processo de inserção dos diversos grupos imigrantes em diferentes regiões do Brasil. É importante abordar as considerações acima, principalmente no Brasil dos anos 1930 e com maior força nos anos 1940 e 1950 em diante. Pois, nestas épocas vivenciouse no país a implantação do projeto ideológico desenvolvimentista, que se refere a uma estratégia de desenvolvimento econômico e social com maior intervenção do Estado brasileiro na economia, especificamente no mercado, onde foi implantado o modelo de substituição de importações e incremento à indústria nacional, viabilizada pelo novo modelo de planejamento econômico globalizado. Este projeto de desenvolvimento nacional e de integração do mercado brasileiro visava expandir as fronteiras agrícolas em várias regiões do interior do Brasil, expandindo a economia que era concentrada nas regiões Sudeste e Sul do país. Estas duas regiões, em todas as épocas, foram as que mais receberam contingentes de imigrantes vindos de todo o mundo e, assim, também receberam o maior número de árabes, inclusive os muçulmanos. A Marcha para o Oeste, foi o plano de desenvolvimento econômico para o interior do Brasil promovido pelos governos populistas brasileiros. Os empresários paulistas, mineiros e baianos foram incentivados a colonizar o Paraná, Goiás e Mato Grosso entre 1930 e 1970. Vários planos de desenvolvimento foram implantados, dentre eles o Plano de Metas, que viabilizou a construção de rodovias no Norte e no CentroOeste, a criação de Brasília, a partir de fins da década de 1950, e a colonização da Amazônia, dinamizando a agricultura dessas regiões, dando azo a que, mais tarde, 52 nestas regiões surgissem também uma agroindustrialização e um promissor comércio consumidor (Cano, 1995). Segundo Cano (ibidem), as principais causas determinantes da desconcentração da produção nacional e da expansão da economia de mercado para o interior do Brasil, projetadas pelos governos desenvolvimentistas, foram as integrações dos mercados nacionais promovidas pelo Estado, no período 1930-1960, e independentes do Estado, após 1960. Obteve-se, com efeito, a estimulação de outras regiões, principalmente o Centro-Oeste, com a ampliação da produção, dos mercados nacionais e a expansão das fronteiras agrícolas e agroindustriais provocadas pela Marcha para o Oeste. Como visto, os problemas da imigração e sua dinâmica estão condicionados à acumulação de capital. Segundo El Kadi a imigração exercerá uma dupla função econômica. Uma, do ponto de vista do capital, que se dá através do suprimento da demanda de trabalho nos vários setores da economia, e outra, do ponto de vista do próprio trabalho, que se traduz em formas de se aproveitar as oportunidades desiguais distribuídas no espaço (El Kadi, 1997: 80). A marcha de expansão e integração do mercado nacional brasileiro incentivou a corrida migratória para as regiões fomentadas pelo desenvolvimentismo. Essas regiões tornaram-se atrativas fontes de expansão de um mercado local, principalmente para as mercadorias do tipo utensílios diversos, objetos femininos de mimos, roupas, perfumes etc. Estes tipos de mercadorias constituíam-se nas de maior interesse para o comércio dos imigrantes, principalmente os árabes cristãos e muçulmanos, que mascateavam pelo interior do cerrado goiano. A integração do Estado de Goiás à economia capitalista brasileira efetivou-se a partir das suas zonas sudoeste e sul, inserindo-se no quadro de expansão do Centro-Sul brasileiro, primeiramente como áreas produtoras e exportadoras de alimentos, como o gado, e depois de matérias-primas, como algodão, tabaco, arroz, feijão e milho, bem como, por último, como mercados consumidores da produção industrial “que se gestava nas regiões próximas às do café [...] num movimento de expansão da fronteira econômica, propiciado pela introdução de meios de transporte modernos – principalmente a estrada de ferro” (Nepomuceno, 1994: 28-29). El Kadi (1997) afirma que “após a Segunda Guerra Mundial Goiás aparece no cenário nacional como alternativa de alocação de parte do contingente dos chamados Displaced Persons (deslocados de guerra), que cabia ao Brasil assumir”. A autora disse ainda que a imigração foi mais uma iniciativa de caráter pessoal do Governador do 53 Estado de Goiás, entre 1947 e 1951, Coimbra Bueno, e do Ministro Jorge Latour, então presidente do Conselho de Imigração e Colonização em Goiás. Ambos, além das condições econômicas objetivadas nos projetos desenvolvimentistas de integração do mercado goiano ao Brasil, também tiveram um papel importante no processo de imigração para Goiás, ao tentarem incentivar, através da Primeira Conferência Nacional de Imigração e Colonização (que ocorreu em Goiânia, de 30 de abril a 7 de maio de 1949), a instituição de uma política imigratória em Goiás (El Kadi, 1997: 91). Contudo, Coimbra Bueno, defensor da imigração, tornou-se alvo de críticas, e, apesar do seu empenho, a imigração nos moldes projetados por ele não se efetivou. Segundo Magalinski (1987) a imigração em Goiás ocorreu por dois caminhos: um orientado por algumas iniciativas privadas ou oficiais, como as referentes à cooperativa de imigrantes italianos (CITAG), e outro de forma espontânea, onde situam-se os grupos sírios, libaneses e muçulmanos. Em Goiás, os movimentos imigratórios ocorrerão a partir da terceira década do século XX. Além dos fatores econômico e político, onde o primeiro se refere à expansão da fronteira agrícola e o segundo ao projeto desenvolvimentista do governo brasileiro, a penetração da estrada de ferro na região goiana e a expansão cafeeira pelo interior brasileiro contribuíram para o aumento populacional e a integração do Estado de Goiás com as outras regiões desenvolvidas do Brasil. Apesar da expansão econômica e social propiciada pelo projeto desenvolvimentista, ter promovido um mercado promissor, tanto consumidor de matéria-prima quanto de produtos industrializados, alguns teóricos, como Magalinski (1987), têm uma visão negativa dessa expansão. Para ela, primeiramente, o afluxo de imigrantes em geral não coincidiu com o período de pico da imigração no Brasil – 1888 a 1910 –, nem tampouco os fatores de demanda existentes nos outros Estados tiveram a mesma atuação em Goiás. Chaul (1988) justifica a inserção de Goiás nos quadros da frente de expansão capitalista. Para ele, as regiões sul e sudoeste do Estado foram, no decorrer do processo expansionista, se destacando economicamente das restantes, buscando cada vez mais sua inserção na economia de mercado nacional. Contudo, essa expansão enfrentou alguns percalços, como a concentração política, em conseqüência de decisões nas mãos de uma oligarquia familiar, emanadas da capital. Os cargos e orientações eram distribuídos de acordo com os interesses da oligarquia dominante, os Caiado, os quais não permitiam, de forma satisfatória, a inserção do Estado goiano nos moldes da 54 economia de mercado nacional. A situação de Goiás, de acordo com Chaul, era de total atraso com relação aos centros industriais das regiões Sul e Sudeste do Brasil. Dessa maneira, notou-se que o grupo dos Caiado foi contrário à construção da estrada de ferro. Vale ressaltar que durante o domínio desta oligarquia a imagem predominante de Goiás era a de um local de atraso e desmando, onde a violência armada era tida como instrumento legítimo de manutenção de privilégios. El Kadi (1997) afirma que na oligarquia caiadista reside um dos focos de oposição à mudança da capital, pois que esta implicaria não só em um deslocamento espacial mas também político, com a ascensão de novos setores ligados aos interesses da região sul e sudoeste do Estado de Goiás, defensores de uma nova mentalidade, que propugnavam a modernização das estruturas arcaicas até então existentes, as quais significavam empecilhos ao desenvolvimento capitalista. Com relação específica aos setores oligárquicos do sudoeste goiano, o que se verificou foi a idéia da defesa da promoção e modernização das estruturas capitalistas na região, principalmente em Jataí. Tal situação provocaria a corrida ou demanda migratória tanto interna como externa para a região, e nesta a dos imigrantes muçulmanos palestinos. Como expressão de mudanças estava o médico Pedro Ludovico Teixeira, que governou Goiás de 1930 a 1945. Em nome do progresso se reivindicava uma nova capital. Chaul evoca as necessidades do empreendimento e investimentos numa nova capital, dizendo que Em nome do saber médico, Goiás era um doente incurável. Em nome de uma nova capital do estado, se dinamizava uma capital para o sul e sudoeste, ou seja, para o centro econômico do estado. [...] Por fim vamos notar Goiânia como uma consolidação possível entre o urbano e o rural, capaz de absorver os elementos existentes e as idéias em trânsito, o velho e o novo, a oligarquia e a revolução, a agricultura e o comércio. Enfim, Goiânia será também uma obra deste período de transição. (Chaul, 1988: 47; 78-79) A política de integração do mercado nacional incentivada pelos governos populistas e desenvolvimentistas foi alcançada, apesar das diferenças regionais geradas no território brasileiro. As imigrações para Goiás acompanharam a expansão da fronteira agrícola e pecuária, que passavam pelo Triângulo Mineiro e se expandiram para o cerrado goiano, através da estrada de ferro e algumas estradas não asfaltadas. Os imigrantes vinham de São Paulo de trem, alcançavam as cidades mineiras de Uberlândia 55 e Araguari e de lá partiam, também na estrada de ferro que passava pelos municípios goianos de Catalão, Ipameri, Pires do Rio e outros, até chegar em Leopoldo de Bulhões, onde a ferrovia bifurcava para Anápolis e para Goiânia. De Uberlândia, apesar de menos utilizadas pelos imigrantes, também poderiam vir de caminhão nas péssimas estradas de chão que passavam por Tupaciguara ou Ituiutaba, Itumbiara ou São Simão, até alcançar a cidade de Jataí. As primeiras gerações de imigrantes muçulmanos vieram e se instalaram nas imediações da estrada de ferro; posteriormente, os imigrantes chegaram pelas estradas adjacentes do sudoeste goiano. Os imigrantes muçulmanos também se expandiram para outras cidades goianas à procura de melhores condições de comércio, tais como para Silvânia, Jaraguá, Pirenopólis, Itaberaí, Mozarlândia, Rio Verde, Caiapônia, Uruaçu, Porangatu, Piranhas, Aragarças, Iporá e outras pequenas cidades nos arredores (dos grandes núcleos comunitários) de Goiânia, Anápolis e Jataí, que abrigam as comunidades muçulmanas maiores. Desta forma, os imigrantes se concentraram principalmente no percurso dos trilhos. Segundo Machado, a penetração da estrada de ferro foi um processo intermediário complexo que permitiu a passagem da frente de expansão à frente pioneira. Sendo esta um empreendimento econômico que penetra em meios não capitalistas através de empresas ferroviárias, comerciais, bancárias, de financiamento da produção e comércio, etc. Ela permite a passagem da produção de excedentes para a produção de mercadorias. Produzir mercadorias torna-se o principal objetivo da produção. (Machado, 1990: 79) A estrada de ferro promoveu forte desenvolvimento e o aumento crescente da produção agropecuária; o movimento migratório intensificou-se com a estrada de ferro e “o crescimento da região foi tanto que os centros comerciais que então surgiram suplantaram em pouco, as cidades do Triângulo Mineiro no controle do comércio regional” (Magalinski, 1987: 98). As cidades nascidas no entorno da rede ferroviária abrigaram os imigrantes que nelas iam se instalando com o propósito de trabalhar no comércio. Estas cidades, inclusive, substituíram as cidades mineiras no ramo do comércio regional, e na década de 1930 grande parte destes imigrantes instalou-se em Anápolis, transformada em pólo econômico do Estado de Goiás. 56 Assim, nota-se que o florescimento do comércio goiano se deu pelo empreendimento daqueles que se aventuraram pelos sertões goianos. A importância da ferrovia traduziu-se na possibilidade de viabilizar a inserção de Goiás, uma região periférica de um capitalismo também periférico, à economia de mercado. Com a modernização das estradas, principalmente a continuação da estrada de ferro até Goiânia, muitos dos imigrantes também se transferiram para a nova capital. Após a transferência da capital para Goiânia muitos daqueles imigrantes que haviam se concentrado no interior de Goiás e no entorno da estrada de ferro se mudaram para a nova capital. O pico da imigração para Goiás situa-se na década de 1960, podendo estar também relacionado com a mudança da capital do Brasil do Rio de Janeiro para Brasília. Alguns imigrantes muçulmanos que já viviam no interior de Goiás ou nas cidades próximas à estrada de ferro também se transferiram para a nova capital do Brasil, tornando-se pioneiros na área comercial e profissional liberal. Os imigrantes muçulmanos acompanharam a rota da estrada de ferro e foram depois para além desta, a partir da expansão econômica, primeiramente agrícola e posteriormente agroindustrial, para o sudeste e o sudoeste goianos, onde várias cidades foram se formando, abrindo espaço para a urbanização, que facilitou a aceleração do processo de movimento imigratório por todo o interior goiano. Essa expansão econômica das fronteiras agrícolas, a Marcha para o Oeste de Goiás, culminou numa grande expansão do mercado local, o que se deu na região Centro-Oeste como um todo. Ao descrever as condições históricas encontradas pelos imigrantes, com relação aos períodos de maior ou menor pico de imigração para o Estado de Goiás, Nunes (2000) cita a influência de três fatores importantes que provocaram tais picos migratórios, quais sejam: “o da década de 20 corresponde à chegada da Estrada de Ferro de Goiás ao sudeste goiano; o da década de 50, à expansão urbana de Goiânia; e o último, da década de 60, aos estímulos criados pela construção de Brasília”. 1.8. Trajetória da imigração muçulmana em Goiás Ao descreverem a trajetória da sua migração, os muçulmanos apresentam diferentes relatos, a partir de duas épocas, do antes e do pós-guerra. De acordo com Nunes (2000), os primeiros imigrantes, que vieram antes da guerra, saíram, em geral, 57 dos portos de Trípoli e de Beirute, no Líbano, em navios franceses, gregos ou italianos e iam para os maiores portos da Europa. Lá, esperavam dias por outro navio que os conduziria para as Américas. Desta forma, complementa Nunes, esta viagem era muito dispendiosa e os imigrantes gastavam todos seus recursos pagando a passagem e a hospedagem, entre outras despesas. Já no pós-guerra, conforme relatos dos imigrantes muçulmanos sobre a trajetória deles para o Brasil e Goiás, nas primeiras décadas eles vieram de navio, mas, como as condições se tornaram menos precárias em razão do desenvolvimento dos transportes, a partir da década de 1970 estes imigrantes passaram a vir de avião. Os imigrantes árabes e os muçulmanos chegaram inicialmente a Goiás na primeira década do século XX, mas o fluxo maior veio acompanhando a estrada de ferro, e os imigrantes chegavam, de preferência, nas cidades por onde ela passava e também nas cidades adjacentes, e iam se instalando e iniciando o comércio (Boletim Goiano de Geografia, 1983). Consta ainda no Boletim a informação sobre a cidade de Roncador, que, apesar de ser apenas uma estação, “o comércio ali era bem desenvolvido, pois foi o final da linha férrea por quase oito anos”. A estrada de ferro avançou e Vianópolis transformou-se em um importante cenário para o comércio local, uma vez que também se tornou uma estação de final de linha durante seis anos. Com o prosseguimento da estrada de ferro, em 1930 os trilhos chegaram a Silvânia, e um ano depois a Leopoldo de Bulhões. E, por fim, “Anápolis inaugurou seu tráfego ferroviário em 1935, ocasião em que se tornou o principal centro econômico do Estado. Finalmente, os trilhos atingem Goiânia, que era o maior centro administrativo e cultural do Estado”, em 1951 (Boletim Goiano de Geografia, 1983: 67). Na época da realização dos projetos desenvolvimentistas para Goiás, o comércio atacadista e varejista goiano expandia-se com os vendedores ambulantes e os mascates nas pequenas cidades e povoados, acompanhando a estrada de ferro no sudeste goiano, desde Araguari até Anápolis, e se formaram as comunidades muçulmanas de Anápolis e, posteriormente, a de Goiânia. Anápolis é a segunda maior cidade do Estado de Goiás e é formada por palestinos e libaneses. Já possuiu, na época áurea da imigração, na década de 1950, a maior comunidade, vinda sobre a trilha do trem de ferro. Contudo, com a transferência da capital de Goiás para Goiânia, muitos dos imigrantes vieram para a capital e outros retornaram para sua terra pátria. A partir de 1952 até 1978, Anápolis recebeu mais de cem famílias e, em 1979 saíram setenta dessas famílias com destino a Manaus e Rio 58 Grande do Sul. Hoje, em Anápolis, existem mais de trinta e cinco famílias de palestinos. Em Goiânia, algumas destas famílias começaram a chegar a partir de 1955. Esses imigrantes possuem pequenas lojas com armarinhos, em Anápolis, na rua Gal. Joaquim Inácio; e em Goiânia na Av. 24 de Outubro, no setor Campinas. (Boletim Goiano de Geografia, 1983: 69) O pai de uma imigrante muçulmana da comunidade de Anápolis, ao falar sobre a trajetória da sua família para Goiás, contou que seu pai veio para Anápolis porque seu tio havia chegado antes. Ao falarem da trajetória migratória para o interior goiano, os imigrantes muçulmanos dizem que a “estrada de ferro ajudou muita gente vir para Anápolis e para Goiânia, porque é mais fácil transportar mercadorias e onde você acha mais fácil de você chegar, você chega”, e inclusive um dos imigrantes libaneses de Goiânia disse que assim que chegou logo ficou sabendo de Goiânia, e então “veio seguindo a linha do trem”. Os imigrantes muçulmanos, na sua maioria, chegaram ao Brasil a convite de um parente ou amigo que lhes enviava cartas elogiando o trabalho e a vida aqui. Alguns, ao chegarem, vinham diretamente para Goiás, outros se estabeleciam em São Paulo, mas, ao conhecerem algum mascate “goiano” passando pela cidade para comprar mercadorias, decidiam acompanhá-lo. Esse é o caso do pai do líder muçulmano de Trindade, que chegou em São Paulo, onde ficou morando durante dois anos, até conhecer um mascate de Goiás, para onde se mudou. Um dos imigrantes da comunidade muçulmana de Jataí, que era funcionário do governo na Palestina, migrou para o Brasil em decorrência de problemas político-financeiros; a irmã de sua esposa já morava em Rio Verde (GO) e então pensou em vir visitá-la, e se gostasse ficaria. Ele gostou, e como o “Brasil é país bom, pacífico e a situação econômica estava bom, não tinha crise naquela época, em 1977”, e “com a ajuda do meu concunhado, fiquei na loja dele só pra vender e aprender a língua” (I. P. J., 57 anos, 2003). Dentre os meios utilizados pelos imigrantes para garantir o apoio aos primeiros anos de imigração, o principal era baseado na relação de parentesco. Nunes (2000) diz que “A palavra ‘parente’ é utilizada aqui não somente no sentido de relações consangüíneas, mas também no sentido de pessoas da mesma região”. Um dos muçulmanos diz que a dificuldade que nós encontramos, quando da chegada no Brasil não é nada, porque nós chegamos com a cama pronta. Quem é a cama? Meu pai, meu irmão, meu tio, primo, o amigo, que nos ajudou, mas agora, o 59 pai, irmão que vieram antes, é que sofreram e o meu tio que veio em 1948, não achou ninguém. (I. P. J., 48 anos, 2003) Além das relações de parentesco, outro meio preponderante de apoio para garantir a segurança necessária para a adaptação à nova vida era a religiosidade. A religião comum unia-os em torno da imposição doutrinária de ajuda e cooperação aos irmãos. El Kadi afirma que a religião era fundamental na identificação dos grupos comunitários, tecendo os laços de sociabilidade tanto no Líbano como no processo migratório (El Kadi, 1997: 33). O fato de pertencerem à mesma região de origem tornou-se um elemento preponderante e facilitador para a imigração muçulmana em Goiás. A região de origem tem, em Goiás, um significado identificador e aglutinador do indivíduo em torno daqueles da mesma procedência, e, ainda, daqueles que sofreram os efeitos repressivos das guerras. Esta situação prevalece também como um meio de solidariedade entre eles na “sociedade receptora” e na formação das comunidades muçulmanas. Em cada depoimento observado, notou-se a identificação e cooperação por pertencerem à mesma região na terra natal. Truzzi também observou que “há uma forte identificação religiosa e da cidade da qual se origina a família. A religião e a aldeia (ou cidade) definiram os laços básicos de lealdade entre os aqui chegados. A unidade sustentadora de tais laços foi e é a família ampliada” (Truzzi, 1997: 26). Quando um imigrante muçulmano pergunta quem você é, ele quer dizer “a quem você pertence, ou seja, nome da família, religião e lugar de origem”. Isto foi percebido, por exemplo, na comunidade muçulmana de Jataí, onde todos são palestinos da mesma região; como eles disseram, “as cidades são a poucas distâncias, uma da outra”. Eles formaram comunidades da mesma região de sua velha pátria, estabelecendo uma relação íntima e solidária entre si, com aqueles que iam chegando, por aqueles que já estavam estabelecidos. Nunes identificou esta solidariedade, pois Havia, de fato, fortes laços de apoio, não somente entre parentes consangüíneos, mas também entre parentes fictícios e patrícios do mesmo vilarejo. Isso explica a forte tendência dos imigrantes árabes, originários de uma mesma cidade ou vilarejo, de residir em Goiás na mesma cidade que seus predecessores. (Nunes, 2000: 101) Dada esta situação de dependência quando da chegada para o novo país, eles se sujeitavam a quem os recebia, que geralmente seria seu fornecedor de mercadorias, pois 60 já era um próspero comerciante, de quem os imigrantes recebiam os produtos para negociar. Este fornecedor era geralmente um ex-mascate, que lhes dava as mercadorias para vender e lhes pagava uma porcentagem sobre a venda. Truzzi confirma tal negociata ao dizer que os mascates, em geral, trabalhavam para patrícios já estabelecidos que lhes adiantavam as mercadorias a serem vendidas. O acerto de contas com o fornecedor podia ser feito, portanto, após a venda de parte dos produtos a serem comercializados. Um fornecedor era, em geral, um comerciante que já havia passado pela mascateação e que, graças ao trabalho de alguns anos, lograra estabelecer-se com uma loja. (Truzzi, 1997: 47) Alguns dos muçulmanos dizem que “era a forma mais fácil, menos complicada de começar a vida aqui”, uma vez que eles não compravam as mercadorias, mas as pegavam para vender, e se não conseguissem negociar todas traziam o restante de volta, fazendo o acerto quando do seu retorno ou no final do dia. Eles ainda dizem que “assim não leva prejuízo”. Desta maneira, notou-se que a relação entre o fornecedor de mercadorias e o mascate era uma relação de total confiança, sustentando-se no próprio sentimento comunitário, de pertencimento às origens comuns, e, ainda, associativo, de ajuda mútua, ou seja, de um lado o que precisa vender e de outro o que precisa trabalhar. Segundo Truzzi, o mascate era apenas um parente ou conterrâneo que havia chegado depois do fornecedor, e que isso, conseqüentemente, estreitava ainda mais os laços. Mas, além da relação de confiança estabelecida entre os pares fornecedor/mascate, este último mantinha, ainda, total liberdade de pegar mercadorias de outros fornecedores. [...] em geral o mascate sempre manteve sua autonomia, expressa na possibilidade de trabalhar com vários fornecedores ao mesmo tempo. Obviamente, uma das regras implícitas do jogo, era a de que o trabalho de mascateação era uma condição provisória, um estado de passagem necessário à acumulação do primeiro pecúlio. (Truzzi, 1997: 47) Contudo, apesar das relações se apoiarem nas relações de parentesco e de mesma região em terra natal, não significa que estas se deram sempre de forma harmoniosa, uma vez que nas observações de campo foram detectados vários momentos de conflitos 61 e fatalidades entre eles. Com relação àqueles, os mais comuns observados foram os relacionados à hierarquia ou liderança na condução e organização de eventos e construção da mesquita nas comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás, e estes referentes às situações advindas do próprio ofício de mascate. Conforme relato de um imigrante libanês de Trindade, pertencente à comunidade de imigrantes muçulmanos de Goiânia, seu pai foi mascate durante muitos anos, passou pelas peripécias da mascateação e morreu em um trágico acidente de caminhão em uma de suas muitas viagens a São Paulo, em busca de mercadorias. Ele foi mascate assim com o seu pai, acompanhando-o no cotidiano das aventuras nas estradas, nos vilarejos, nas fazendas e nas ruas, até que ele e seus irmãos cresceram e compraram a sua própria loja. Atualmente, ele tem uma loja que vende todo tipo de utensílios, sombrinhas – inclusive as conserta – roupas masculinas, femininas e confecções de cama, mesa e banho. Seus familiares vieram diretamente para Goiânia, de trem, seu pai veio em 1952, e sua mãe e os filhos em 1959, ele veio em 1960. Ele relatou que “foi o destino que quis desta forma e que é ele que comanda tudo na nossa vida”. Já morou em Rubiataba por cinco anos e em Goiânia por doze anos. Seu pai, quando chegou a Goiânia, “foi mascate, passando de casa em casa, com sacola, mala e vendia à prestação, depois é que ele montou um comércio” (I. L. G., 58 anos, 2002). Outro imigrante muçulmano libanês da comunidade de Goiânia explicou que sempre veio gente da minha cidade para Goiânia na minha frente, então a gente veio, um atrás do outro e em pouco tempo, eu fiquei sabendo pelo meu primo, praticamente. Ele morreu o ano passado, de câncer, em Brasília. Foi um grande compadre, ele veio antes de mim. (L. G., 74 anos, 2002) Esse mesmo imigrante acima, ao ser perguntado se o seu amigo era muçulmano, respondeu com muita veemência que “todos nós que viemos da mesma cidade somos muçulmanos”. E sobre a trajetória da mascateação, eles foram para Araguari e seu amigo foi para Catalão. De Araguari foi para Cristalina com os caminhoneiros que carregavam secos e molhados, e depois Formosa, por uma semana. Este imigrante muçulmano se torna nostálgico ao descrever a natureza, o lugar: “em São Domingos eu gostava muito do rio, era uma água linda, linda, depois fui parar na Barreira, lá é quente demais, quando cheguei lá, tinha caído um teco-teco lá no campo, na cabeceira da montanha, em 53, por aí” (I. L. G., 74 anos, 2002). 62 Desde o começo de suas investidas pelo sertão goiano, com a mala e a coragem, os imigrantes muçulmanos além de contarem uns com os outros, também contaram com o próprio povo da “sociedade receptora”. Isto é detectado no relato de um deles, que encontrou uma pessoa que o ajudou. Ele contou que só viajava e depois ela lhe mandava a mala. Ele disse, também, que “o povo antigamente era mais caridoso que hoje”. Pegava uma mala viajava com ele, nunca tinha visto a cara dele antes, a gente viajava pra Uberlândia para fazer compras. A gente fazia amizades com os caminhoneiros, eles já conheciam a gente, eles levavam a gente e ninguém cobrava da gente, de boa, ele levava a gente na cabine, não era mais lá em cima da lona, qualquer um que passava, levava a gente, levava a mala da gente. (I. P. G., 73 anos, 2002) Hadija, uma muçulmana palestina da comunidade de Anápolis, contou que seu pai veio porque soube, por amigos, sobre o Brasil, e que ele chegou, como todos, no porto de Santos e logo ficou sabendo de Goiânia, da expansão do comércio para aquela região. Ele também seguiu a linha do trem, como outros. Aliás, “todos vieram, sem diferença, seguindo a linha do trem”. Ele veio para Anápolis, uma vez que já tinha um irmão, que havia chegado anteriormente. Outro imigrante da comunidade muçulmana de Anápolis, assim que chegou em São Paulo ficou sabendo da expansão do comércio para a região de Goiás, e ainda mascateou até conseguir comprar a sua loja, como os outros daquela comunidade. Ele também possui outros imóveis comerciais, que mantém alugados. Uma imigrante muçulmana, explicou que não trabalhou como mascate, da forma como seu pai fez, mas que faz feiras em vários locais da cidade, vendendo brinquedos e outros mimos. O seu marido também é comerciante de feiras, nos finais de semanas, e tem, uma banca de bijuterias e acessórios femininos na famosa “Rua dos Turcos”, em Anápolis. Mohammad Allan é um muçulmano palestino da comunidade de Anápolis que chegou ao Brasil pela primeira vez em 1955 e depois de dois anos voltou para sua terra natal, retornando para o Brasil após oito anos. Quando chegou, seu irmão já estava aqui. “Tinha também muitos amigos, antigamente era bom, tinha mais de 25 famílias, era cheio de libaneses aqui em Anápolis”. Quando chegou, a exemplo dos outros, trabalhou primeiro como mascate na região de Goiás e depois abriu a loja. Ele disse que viajava de trem, ônibus e caminhão e que naquela época não tinha asfalto, era “pura estrada de chão”. Buscava mercadorias em São Paulo, de trem. “A maioria dos libaneses e 63 muçulmanos também veio pra cá de trem. O trem passava pelas cidades de Anápolis, Leopoldo de Bulhões, Turvânia, Vianópolis, Urutaí, Cumarí, Catalão” (I. P. A., 75 anos, 2002). Pelas estradas de rodagem sem asfalto, desde Uberlândia, atravessando algumas cidades do Triângulo Mineiro e Goiás, pelo sudoeste goiano, os imigrantes, de maioria palestina, chegaram em Jataí. Muitos deles tinham como objetivo sair de Uberlândia e se mudarem para Aragarças e Barra do Garças, mas, como passavam por Jataí, alguns decidiam ficar, porque, conforme depoimentos dos primeiros a chegar nesta cidade, “tudo que em outras cidades encalhavam, em Jataí vendiam”. Isso ocorreu porque um parente – pai, tio, sobrinho – ou um amigo, já estava estabelecido, o que tornava tudo mais fácil, uma vez que era possível receber ajuda para o início da nova vida. Por fim, eles também afirmam que vieram parar em Jataí porque “Deus quis”, uma vez que na religião islâmica acredita-se em destino, e “Deus é quem o traça, é Ele quem manda, tudo vem destinado por Deus”. A maior comunidade muçulmana de palestinos é a de Jataí, dentre as de Goiânia e Anápolis. A cidade de Jataí começou a crescer com os imigrantes muçulmanos palestinos. Segundo relato dos primeiros que lá chegaram, já houve por volta de 44 famílias muçulmanas. Hoje há um pouco menos, mas enquanto a população muçulmana no Brasil era de 30, 40 mil, em Jataí havia 40 famílias de palestinos. A maioria começou a chegar por volta da década de 1950, e um grande número ainda nas décadas seguintes, de 1960 e 1970. Em Jataí, as lojas distribuem-se pela região central da cidade, especificamente na principal avenida, a Avenida Goiás. Tanto os grandes quanto os pequenos comerciantes são muçulmanos. Eles possuem lojas de diversos tamanhos e comercializam desde móveis, eletrodomésticos, roupas e souvenires, lenços e objetos diversos para casa, produtos alimentícios, materiais para construção e até produtos vindos de seus países, como os fumos aromatizantes. Hasam, um dos pioneiros a migrar para Jataí, chegou encorajado pelo irmão, que veio logo depois dele. Para ele, o povo brasileiro é muito parecido com o seu, e qualquer um que recebesse uma carta que demorava meses para chegar, contando das facilidades de trabalho e sendo convidado para vir para o Brasil, encantava-se com todas as notícias. O Brasil era conhecido como o “paraíso da terra, e que Deus fez a terra, e onde fez o paraíso, o Brasil, todo mundo, então o Brasil é conhecido para os árabes como paraíso, então aqui, ele se sente com mais liberdade do que em qualquer lugar” (I. P. J., 70 anos, 2003). 64 Outro imigrante muçulmano de Jataí falou também da liberdade encontrada no Brasil, tanto para trabalhar como para praticar a religião islâmica, e da solidariedade entre os imigrantes muçulmanos, que disponibilizavam para os recém-chegados tudo o que precisassem para se estabelecer na nova terra. [...] tinha nosso clube, as necessidades de todos os dias, a gente ia lá, conversava e começou a trabalhar... pegava mercadoria numa loja qualquer, jogava tantos por cento acima do custo e dava mercadoria pra ele sair vendendo nas fazendas, nas vilas, andava e na hora que ele vendia, ele pagava e pra todo mundo, ajudava, mesmo que tivesse somente com a calça e a camisa, começou um a ajudar o outro, passou uma época que aqui em Jataí, até hoje, se eu for fazer uma pesquisa geral, as lojas de comércios são de islâmicos e antigamente, era praticamente, tudo de islâmicos, então ele vivia muito bem, é porque o povo brasileiro é muito diferente, do que qualquer raça do mundo. (I. P. J., 34 anos, 2003) A trajetória de deslocamentos descrita formou as comunidades muçulmanas de imigrantes de Anápolis, Goiânia e Jataí. Nestas comunidades, apesar de formadas por imigrantes de várias nacionalidades árabes, prevaleceram, como se pôde observar, os árabes muçulmanos palestinos e libaneses, que, de início, como num rito de passagem, se dedicaram à mascateação e mais tarde tornaram-se hábeis comerciantes. Com relação aos palestinos, “as pesquisas revelam que poucos desses orientais vieram na mesma época dos sírio-libaneses. Um dos palestinos entrevistados, que chegou em 1912, disse ter encontrado conterrâneos seus nas cidades de Catalão, Goiandira, Ipameri, Formosa, etc.” (Boletim Goiano de Geografia, 1983: 68). Anápolis e Goiânia tornaram-se dois centros que exerceram sobre esses imigrantes uma atração toda especial, por se tornarem centros comerciais desenvolvidos e, por isto, oferecerem maiores oportunidades de lucro. Como se pôde observar, duas rotas levaram os imigrantes muçulmanos a chegar em Goiás, uma formando a comunidade de imigrantes muçulmanos de Jataí, e a outra, mais conhecida, as comunidades de Anápolis e Goiânia. Em Anápolis e Jataí, depois da etapa da mascateação, os imigrantes muçulmanos aglutinaram seus comércios ou em uma mesma rua, que ficou conhecida “Rua dos turcos”, ou no centro da cidade. Em Goiânia os comércios se aglutinaram em torno da Av. 24 de Outubro, em Campinas e ainda no centro da cidade, precisamente na Rua 4. 65 A religião e a vocação para o comércio 66 CAPÍTULO II RELIGIÃO E VOCAÇÃO PARA O COMÉRCIO: FUNDAMENTOS DA IDENTIDADE DOS IMIGRANTES MUÇULMANOS Os fundamentos da identidade dos imigrantes muçulmanos se baseiam na religião e na vocação para o comércio, e a partir destes a região e a família também se incluem como elementos que compõem a sua identidade. Assim, o que se observou foi que, primeiramente, a identidade muçulmana está alicerçada no tripé religião, região e família, em detrimento de qualquer tipo de identificação como nacionais, tendo o comércio como atividade sagrada, que se efetivou de acordo com as condições estabelecidas pela “sociedade goiana”. Eles se identificam a partir dos princípios, costumes, hábitos e valores ditados pela religião islâmica. Eles se sentem pertencentes a uma religião e a uma região comum, que os fazem comporem-se em uma comunidade de famílias de imigrantes muçulmanos no contexto social goiano, que preserva certos elementos culturais, construindo um modo de vida comunitário. Esses elementos identitários continuadamente orientam as condutas individuais e coletivas das comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás. O processo de constituição de solidariedades forma as comunidades. Estas se efetivam num contexto de relações sociais estabelecidas entre eles através dos rituais religiosos e festivos, cerimônias de casamentos, comemorações e encontros, que representam momentos de socialização de informações, de lembranças da pátria de origem, de práticas de costumes, de hábitos e da língua árabe. Esses encontros se apresentam como congregadores para a constituição das comunidades muçulmanas em Goiás. Dentre os momentos socializadores cotidianos nas três comunidades estudadas, foram observados como principais aqueles referentes aos ditames da religião islâmica, como as reuniões para orações, ou ainda as reuniões de famílias, o compartilhar refeições, e principalmente no último dia do Ramadã, com um significado todo especial. Ao caracterizar e focalizar etnograficamente as condições sócio-econômicas e culturais estabelecidas no processo de inserção e integração dos imigrantes muçulmanos, e, por conseguinte, das comunidades muçulmanas de Anápolis, Goiânia e Jataí, nas relações sociais com a sociedade goiana, esboçaram-se as implicações pelas 67 quais as identidades são geradas e vão se constituindo ao longo do constante processo de formação identitária, negociada em alguns aspectos, em detrimento de outros, mas que perpassa pelas contínuas transações no interior das relações interétnicas, constituídas entre as comunidades muçulmanas de imigrantes e a “sociedade receptora”. Para a compreensão da efetiva articulação e estruturação identitária dos imigrantes muçulmanos em Goiás, observados no contexto sócio-cultural das comunidades, elaborou-se uma divisão entre a esfera pública e a esfera privada. Estas esferas são uma construção idealizada para mencionar e delimitar as fronteiras étnicas a partir dos elementos religião e vocação para o comércio. Tanto na construção da esfera pública quanto da privada observou-se aspectos modificados no processo de inserção dos imigrantes muçulmanos na sociedade goiana. Dentre os aspectos da esfera pública, aqueles referentes às suas relações sociais, estabelecidas como comerciantes, seus estabelecimentos comerciais e suas implicações, advindas das condições impostas pela “sociedade receptora” e do estado brasileiro, foram os que mais se modificaram. Na esfera privada, apesar de se ter percebido menos modificações quanto aos aspectos referentes ao elemento religião e a prática da mesma, essas representaram também mudanças que influíram no processo de inserção dos imigrantes. Conforme depoimentos dos imigrantes, “tem hora que não dá, você precisa fazer de um jeito que não desagrada nem de um lado e nem do outro”. Dessa forma, dentre os aspectos da esfera privada, referentes à religião e sua prática, cita-se, especialmente, as orações diárias e o jejum, os comportamentos e compartilhamentos de valores dos imigrantes muçulmanos, os princípios, hábitos, costumes e tradições, e ainda a família, a vida doméstica, os casamentos, o papel dos pais na criação dos filhos, a alimentação, a habitação, a língua e a solidariedade estabelecida nas relações de parentesco, que foram “adaptados” ao novo contexto. Apesar dessa gama de aspectos culturais conservados pelos imigrantes muçulmanos no processo de inserção, eles, ao serem questionados sobre a “adaptação”, respondem que são como um brasileiro e que convivem bem e com respeito aos costumes da sociedade brasileira. Dizem considerar importante tudo o que aprenderam no Brasil. Eles afirmaram que vivem como os goianos e que absorveram o “costume local, apesar de terem sofrido muito no começo, principalmente, por causa da língua”. Assim, notou-se que, os elementos citados têm se constituído num vínculo de resistência e persistência fronteiriça. E mesmo para aqueles que não estejam orando, como é o caso mais freqüente, dos mais jovens filhos dos imigrantes muçulmanos, já da 68 terceira geração, eles se consideram muçulmanos. Esses elementos menos negociados no processo de inserção e integração das comunidades muçulmanas na “sociedade receptora” vem a se constituir na identidade étnica. 2.1. A religião: elemento identitário Ser muçulmano em um país muçulmano é muito distinto de ser muçulmano imigrante em um Estado não muçulmano. Peres Oliveira (2002) diz que “ser muçulmano em um Estado muçulmano é um estado civil, uma constituição, um passaporte, código de família e um código preciso de liberdades públicas”. A vida de um muçulmano em um país muçulmano é viver um governo muçulmano, constituído por leis de acordo com os ditames da religião islâmica e uma sociedade organizada em prol de um modo de vida estabelecido pelos mandamentos da religião. Contudo, viver como imigrante em um país não muçulmano, onde as esferas religiosas e políticas estão separadas, torna-se um dilema para a compreensão do fenômeno da imigração dos muçulmanos em Goiás. Este dilema tende a enfraquecer e esmaecer a prática da religião no contexto da sociedade goiana. O sentido desse “enfraquecer e esmaecer” é dado pelas condições impostas no processo de inserção e integração das comunidades muçulmanas de imigrantes, onde os elementos culturais constitutivos da identidade dos imigrantes muçulmanos, vem sendo “adaptados” ou negociados no contato com a “sociedade receptora”. Dentre esses elementos culturais constitutivos na formação da identidade dos imigrantes muçulmanos na sociedade goiana, assume-se, primeiramente, a prática da religião como sendo o principal elemento cultural que vem se modificando, uma vez que a própria formação das comunidades de imigrantes se dá pela constituição deles enquanto pertencentes à religião islâmica. Desta forma, torna-se imprescindível iniciar este item do trabalho adentrando à própria religião, conceitos e definições, bem como a constituição e o processo de inserção dos muçulmanos na sociedade goiana, julgando os conteúdos religiosos e suas modificações para tal empreendimento. Bello (1998), ao falar sobre a função da religião na vida do ser humano, diz que só a religião é plenamente sensível à dignidade do ser humano como indivíduo, pessoa e criatura que possui dimensões espirituais e físicas. 69 [...] É somente a religião que estabelece espaços e instrumentos visando dar a todos a possibilidade de buscar e explorar as profundezas do próprio ser. (Bello, 1998: 162) As religiões possuem todo um aparato significativo de modo de vida, ou seja, ela é um componente ou aspecto da cultura de um povo, do agir do ser humano sobre si mesmo. A religião ainda conceitua o mundo, ela diz o que o ser é e diz como se deve agir no mundo. Kuper (2002) diz que a religião constrói, dita, justifica, dá ordem e significado à vida. Os imigrantes muçulmanos, ao serem questionados acerca do que é a religião islâmica, respondem que ela é universal, ou seja, “ela é do mundo e é só declarar Deus como único Salvador”. Um dos imigrantes muçulmanos palestinos disse: [...] então a gente vai confiar em quem? Só Deus e mais ninguém, só ele, ele que colocou nós aqui na terra, ele que resolve, mas ninguém ta obedecendo. Se nós não lembramos de Deus, Deus lembra de nós, pra você ver, quase não chove todo mundo fica pedindo a chuva, ela vem. Ele é tão misericordioso que ele não nega. Agora nós negamos de obedecer a ele, nós negamos de adorar a ele, esse é que é problema, nós somos desobedientes, ele é bom, muito bom, não existe igual, nem anjos, nem mensageiros, nem ninguém, ninguém somente Deus, só ele pode. (I. P. J., 70 anos, 2003) Segundo Durkheim a religião tem a função de preencher e satisfazer necessidades humanas e sociais, através dos ritos e mitos criados. Por isso ele diz que “Os ritos mais bárbaros ou os mais extravagantes, os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual ou social” (Durkheim, 2000: 7). A religião islâmica não é fanatismo, explica um muçulmano da comunidade de Jataí: a religião islâmica é muito mais do que os outros estão pensando, ela é pra te ensinar, pra transformar a sua vida, a praticar a vida, pra te ensinar o que você faz no dia a dia até chegar a sua hora, entendeu? A religião é uma coisa que não existe melhor, quando é pra Deus, quando você está na mão de Deus, você sente melhor, mais seguro, então a religião te ensina isso e mais do que isso, a nossa religião, que é o Alcorão, não só te ensina apenas a estar com Deus, como te ensina tudo o que existe no mundo, na terra, através do Alcorão, palavra de Deus, pode descobrir o que tem dentro da terra, como é que pode fazer pra chegar à lua, economia tem, esporte tem, ciência tem, tem tudo, inclusive os maiores cientistas do mundo, na hora que eles chegam a uma coisa banal, eles se voltam para o Alcorão, [...] eu por exemplo, não leio o Alcorão, eu sei muita coisa, mas não chego a ler, mas existe muitas coisas, fala sobre a dor, sobre a alegria, sobre a tristeza, sobre o 70 comércio, sobre o dinheiro, sobre tudo e é muito mais do que nas outras religiões, entendeu? (I. P. J., 34 anos, 2003) Durkheim complementa afirmando que, “conforme os homens, os meios e as circunstâncias sociais, tanto as crenças como os ritos são experimentados de formas diferentes”, ou seja, eles são interpretados sob diferentes contextos, dentre eles, principalmente o social, que se estabelece na organização das relações sociais. Segundo ele, é por meio da organização e ordenação das coisas no mundo social que o homem vai construindo seus símbolos sagrados ou profanos, mas que satisfazem e preenchem significantes e significados nas explicações e interpretações de mundo. Durkheim utilizou a religião como um modelo para explicar e interpretar o mundo e como os processos simbólicos são construídos e funcionam, suprindo necessidades sociais. Ele mostrou que as relações sociais são produzidas e reproduzidas por meios de rituais e símbolos, os quais classificam as coisas em dois grupos: as sagradas e as profanas. Os símbolos sagrados estão ligados diretamente aos mandamentos ou pilares da religião islâmica que ditam tipos de comportamento que os muçulmanos devem observar no cotidiano de sua vida religiosa na comunidade. Esses símbolos e rituais mandamentais da religião produzem e reproduzem as relações sociais estabelecidas entre os imigrantes muçulmanos na sua comunidade e a sociedade goiana. Esse produzir e reproduzir vão sendo construídos de forma “adaptativa” ou negociada, de acordo com as necessidades produzidas no processo de inserção e integração dos imigrantes muçulmanos. Os rituais religiosos ou festivos ditados pela religião islâmica, como a higiene para as orações diárias, as doações para os patrícios mais necessitados da comunidade, os jejuns e as festas do final do Ramadã e dos casamentos, todas estas práticas simbolizam e classificam as coisas e a vida dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Estes rituais religiosos utilizados pelos imigrantes muçulmanos contribuem para a aglutinação dos valores, das normas e dos princípios considerados importantes por eles, e os mesmos são internalizados, contribuindo, desta forma, para a unificação cultural identitária deles enquanto uma comunidade religiosa. Um dos muçulmanos palestinos, ao expor o sentimento de identidade relacionado à sua religião, disse que “o cristão está com os dois pés aqui [Brasil], o muçulmano fica com um pé aqui e outro lá [terra de origem]”. Ele disse que se “adapta” ao que consegue e pode, mas continua se definindo como muçulmano palestino, sente 71 saudades e vontade de retornar à terra que deixou, mas por motivos econômicos ou políticos, como a guerra na Palestina, não pode voltar. Ainda com relação à adaptação, ao comparar o modo de vida da terra de origem com o da terra migrada, outro imigrante muçulmano palestino de Jataí responde que aqui bem mais liberal, que sente diferença, sente a liberalidade, [...] mas você conhece o muçulmano, talvez você é um muçulmano, mas talvez você não faz a obrigação de um muçulmano, que a religião islâmica manda, ele como um muçulmano, ele é um muçulmano, mas não está cumprindo o dever dele, mas ele sente ser um muçulmano, mesmo quando não está praticando o islamismo, tem aquele sentimento de ser muçulmano, independente de estar praticando ou não. (I. P. J., 57 anos, 2003) Um dos mais jovens imigrantes muçulmanos palestinos de Jataí – que já viveu na Europa e nos Estados Unidos, é filho de ex-imigrante, que já viveu no Brasil mas retornou para a Palestina, e vive atualmente com o seu tio –, ao ser indagado sobre como concilia o modo de vida daqui com o da terra de origem, respondeu: [...] comparando o modo de vida daqui com o de lá, lá é maioria muçulmano e depois cristão, aqui é maioria de cristãos católicos, maior país do mundo católico, daí a cultura é um pouco diferente, religião é diferente, temperatura é muito diferente também, as pessoas aqui, aí, eu acho completamente diferente, também os árabes têm a cultura muito, muito antiga, país mudou lá com a tecnologia, mas aqui, o Brasil é um país novo, [...] muitas nacionalidades, gente diferente, é um país de muita cultura, muitas raças, não tem uma cultura certa, até aqui em Jataí, cidade pequena, tem muita gente diferente, [...] é um país completamente diferente com muitas culturas, e no final tem uma cultura misturada, muitas culturas, [...] e daí é meio complicado um pouco, mas eu acho ruim, essa cultura muito misturado assim, é muito fácil você viver com essa cultura, cultura brasileira, pra você falar nela é complicado, mas pra você entrar nela é muito fácil. (I. P. J., 23 anos, 2003) Um dos entrevistados, ao explicar as diferenças percebidas entre o modo de vida goiano e o deles, respondem que dentro de casa não muda, dentro de casa não muda nada, fora de casa muda, daí, você se adapta, porque você tem um parente lá, tem sobrinho, tem amizade, como amigos brasileiros e amizade não é como relação de parentesco, mas também não sente muita falta, porque a comunicação de hoje ajuda muito. [...] a relação da colônia palestina com o povo brasileiro é muito forte, muita amizade e a pessoa sente como se fosse a terra dele mesmo, com o tempo a gente 72 começa a fazer amizade aqui até mais do que lá. (I. P. J., 70 anos, 2003) Os imigrantes muçulmanos se ligam aos valores religiosos, referentes à confissão da religião, e dizem que todo e qualquer ser humano, seja de qualquer nacionalidade, poderá converter-se para ser salvo e cumprir as obrigações diárias, ou seja, praticar a religião, se tornando um muçulmano. Ao ser questionado com relação às mudanças da prática da religião em função da “adaptação” às condições locais, em Goiás, um deles especificamente diz que a única diferença é que lá é mais reunido, mais junto, há mais mesquitas, o chamamento da religião lá, é mais forte do que aqui, a prática lá é mais constante do que aqui, agora aqui, lá tem mais mesquita junto, tudo, sher chama a atenção, reunir, dá aulas de religião, aqui é menos, é mais desenvolvido, mais de perto, [...] a religião lá é mais forte, chama mais a atenção, porque é todo mundo reunido, todo mundo reza, aqui faz oração sozinho, aqui é sempre diferente dos outros. [...] aqui se sente só, lá você vai fazer a oração tem umas 50, 100 pessoas, 500 pessoas, 1000 pessoas que faz a oração alto, com relação aos outros mandamentos, dá gosto, é mais unido, mais valor, pessoa que tem dinheiro, dá para o outro. (I. P. J., 70 anos, 2003) Para os imigrantes muçulmanos de Goiás, a religião constitui-se num dos alicerces da configuração social muçulmana da vida deles e de todos aqueles que se converterem ao Islã. Para eles, a religião significa esse processo que dita, regula, justifica e conduz à plena realização, que promove toda a vida deles, desde o sentir interior, o conduzir-se perante a família e o grupo, o construir-se e ser construído, até o depois desta vida. Eles chegam a afirmar que “o melhor para a humanidade é a religião islâmica e quem a conhece a fundo acaba por aderir a ela”. Esta afirmação é uma forte característica deles quando vão falar sobre a religião; eles se entusiasmam em justificar o quanto ela é completa para a vida do homem. Ferreira (2001) complementa o conceito de religião dado pelos imigrantes muçulmanos das comunidades de Goiás ao dizer que em sua pesquisa sobre a imagem em contexto islâmico realizada na comunidade muçulmana do Brás, em São Paulo, os muçulmanos afirmaram que procurar o conhecimento da religião era, para eles, fundamental. Tanto é que ela ouviu de alguns muçulmanos que o fato de ela estar aprendendo sobre a religião era muito positivo e que ao final era certo que ela se converteria. 73 Um dos representantes da religião islâmica, do Centro de Divulgação do Islã para a América Latina, também confirma a importância da religião na vida dos imigrantes, ao dizer que “a identidade da Comunidade Islâmica assenta-se nos princípios do equilíbrio consistente, do comportamento exemplar, da unidade da finalidade, dos sentimentos recíprocos, da solidariedade e da equidade”, ditadas pela religião islâmica (Abdalati, 2000: 72). Os muçulmanos defendem a idéia de que um filho de muçulmano jamais deixará de ser também um muçulmano. Um deles, da comunidade de Goiânia, disse que quando o pai e a mãe são muçulmanos é mais difícil dos filhos desviarem, o árabe muçulmano é fiel como eu sou fiel, pode até trocar de nome, as vezes mas a religião não. Porque uma vez que, a minha religião não fala mal de ninguém, porque eu vou deixar a minha religião? Eu não vou deixar a minha religião por nada. Sabe o que significa muçulmano? Submissão a Deus. (I. L. G., 58 anos, 2002) E assim, o ponto de partida na compreensão do Islã, sua ramificação em toda sorte de seitas e grupos diversificados, que emergiram desde sua origem, os conflitos sócios-políticos e econômicos, tanto num sentido abstrato, quanto concreto e específico do termo, estão na própria concepção de religiosidade, seus dogmas e princípios entendidos e sustentados pelos imigrantes muçulmanos. Conforme observação, as famílias Liachy e Linchy, ambas provenientes dos Emirados Árabes, parentes entre si e moradores de Goiânia, formam o grupo muçulmano mais fechado contatado durante a pesquisa de campo. Eles promovem seus rituais festivos e comemorações somente entre eles. A divisão do Islã pelo mundo, a partir da morte do Profeta Mohammad8, que fez dividir o islamismo em várias facções, ou seja, grupos com diferentes interpretações do livro sagrado Alcorão e defendendo diferentes formas de sucessão do Profeta, irá compor alguns grupos mais radicais em detrimento de outros. O grupo dessas duas famílias é um exemplo da ala mais radical e fechada do Islã, chamada xiita9. Eles são 8 9 Mohammad é o profeta mensageiro de Deus aos homens, na religião islâmica. No Brasil usa-se falar Maomé, mas alguns muçulmanos não aceitam pronunciar esse nome, porque Mao, para eles quer dizer mal, homem mal, e Mohammad foi o escolhido, homem simples, humilde, bondoso, destemido e honrado para transmitir a mensagem de Deus aos homens. Nabhan (1996) diz que a formação da religião islâmica e sua propagação, se deram através de Mohammad e seus seguidores, que fugiram de Meca (Makka) para Medina (Madinah) em 622 d. C., perseguidos pelas tribos daquela cidade, por pregar o monoteísmo. A fuga de Mohammad e seus seguidores para Medina, marca o início do calendário muçulmano e tal evento chama-se Hégira, que significa “rompimento” ou “partida”. Os xiitas não colocam o nome de Aisha em suas filhas, porque foi com a disputa entre o pai de Aisha, Abu Backr (primeiro sucessor de Mohammad, que se chamou Califado) e o marido de Fátima, Ali, pela sucessão ao califado após a morte do Profeta Mohammad, que começou a divisão no Islã, entre 74 muito exigentes com a prática dos mandamentos religiosos, tradições e costume, inclusive todas as mulheres sentem-se e são obrigadas a usar o lenço (chador). Tudo o que os muçulmanos construíram e tudo o que são é fruto da experiência do passado, das intempéries do presente, aliado às necessidades “adaptativas” nos contextos sociais experimentados com a imigração para Goiás e as utopias do porvir. Dentre as concepções de religião avaliadas pelos imigrantes muçulmanos, temse a idéia da religião do Islã definida aproximadamente como um sistema (ou Din, na língua árabe) que não teria começo na história, pois seria contemporâneo da criação, e enquanto sistema não se constitui em esfera separada da vida humana. Isto é caracterizado por Montenegro: [...] mas como sistema totalizante que implica cinco dimensões: econômica, política, social, moral e penal. Esse sistema, como um todo, goza de uma série de propriedades, a saber: universalidade, abrangência, completude, perfeição, compreensibilidade, praticabilidade. Também é considerado como intrinsecamente compatível com a lógica e a ciência, donde muitas vezes encontramos definições [...] do Islã como o “sistema”, “forma ou estilo de vida”. (Montenegro, 1977: 147) Para os imigrantes muçulmanos, a religião é uma dádiva de Deus para guiar devidamente o homem, trazer-lhe satisfação das necessidades espirituais e moderar as necessidades materiais. A religião, para os muçulmanos, liberta-os dos laços e dos complexos, sublima-lhes os instintos e as aspirações, disciplina-lhes os desejos e o inteiro curso da sua vida. Um deles, de um dos periódicos do Centro de Divulgação do Islã para a América Latina, disse que “esta é a verdadeira religião, pois ela educa o homem, formando-o na esperança e na paciência, na felicidade e na honestidade, no amor pelo bom e justo, na coragem e na perseverança, qualidades necessárias para o domínio da grande arte de viver” (Qutb, s.d.: 59). A concepção filosófica da religião islâmica dada por Montenegro (2000) inclui o que ela chamou de Comunidade (Umma), numa interpretação dada pelos imigrantes sunitas (Sunna, tradição), grupo menos radical, que representa 80% dos muçulmanos no mundo, e xiitas (shiatÁli, partidários de Ali, minoritários) e ainda o grupo sufis, este grupo é considerado os “místicos islâmicos”, uma vez que os mesmos defendem uma vida espiritual ligada e voltada para a aproximação com Deus e para a interiorização da fé. Eles não se atem aos rituais das orações e nem às questões jurídicas do islamismo. Este movimento, que sobreleva importante desenvolver relações íntimas com Deus, regada a vida simples, chamado “sufismo” (equivale a “sabedoria divina”), o qual veio da palavra suf, que quer dizer lã, em recordação da cogula usada pelos primeiros sufis, envolve e engloba realidades mais amplas que o simples misticismo do estilo de vida deles como monges. Esses três grupos se subdividiram em outros formando muitas facções ou seitas do Islã pelo mundo. 75 muçulmanos. Esta interpretação de comunidade é entendida como uma comunhão dos fiéis, através de atos e palavras de Fé no Deus único. E ainda existem certas características únicas, fundadas na base da comunidade, na sua missão e finalidades descritas pelo Alcorão. O que foi percebido durante o trabalho de campo é que a comunidade não se assenta em bases raciais, nacionais ou interesses especiais; ela transcende tudo isto e se baseia nos mandamentos da religião islâmica, como a submissão voluntária à vontade de Deus, a obediência à Sua Lei e o empenho na Sua causa. A comunidade é a própria religião islâmica. O papel histórico de uma comunidade islâmica, para os muçulmanos, deve ser a perfeita encarnação de tudo quanto há de virtuoso, íntegro e nobre. Segundo Gaarder (2001), “o Islã10 não compreende apenas a esfera espiritual, mas todos os aspectos da vida humana e social”. Esta concepção do Islã é percebida nos imigrantes muçulmanos. Samir, imigrante muçulmano libanês da comunidade de Goiânia, fez elogios à religião dizendo que “a religião islâmica é a melhor e mais universal, ela propõe uma vida completa em todos os seus aspectos, desde a comunhão até a questão da honestidade”. Isto foi muito defendido por eles. Esse mesmo imigrante complementa fazendo críticas ao pagamento dos dízimos exigidos pelas outras religiões. Montenegro (2000), ao expor o contexto que abrange o significado de religião dado pelos imigrantes muçulmanos, afirma que a natureza é muçulmana, assim como também tudo criado por Deus, pois, de uma maneira ou de outra, tudo se encontra submetido à vontade de Alá. Em conseqüência, o ser humano é muçulmano do ponto de vista somático, já que a lei da natureza é considerada lei divina da criação. [...] Em tal sentido deve seguir as práticas religiosas que supõem a junção da submissão psíquica e física ao Din. (Montenegro, 2000: 147) Nos depoimentos dos imigrantes muçulmanos foi observado o quanto eles gostam de falar sobre a religião. Eles falam sobre a forma de ser do muçulmano, de que este deve usar a simplicidade, deve praticar a religião, apesar de muitos não estarem 10 A palavra Islã é de origem árabe, derivada da raiz composta por três letras: S, L e M. Essa raiz, em seu estado original, possui vários significados, tais como: paz, pureza, submissão, obediência, saúde, “entrega”, sua plena conotação é “a paz que vem quando a pessoa entrega sua vida nas mãos de Deus”. A derivação “Islã”, no sentido religioso, significa literalmente a submissão voluntária a Deus e a obediência à sua lei. Desta forma, os seguidores do Islã serão denominados em língua árabe muslims, submissos ou submetidos, e é dessa palavra que deriva o termo “muçulmano”. Ser submisso ou muçulmano significa, nesse contexto, estar submetido ao Islã como Din que rege todos os aspectos da vida humana e natural. 76 praticando todas as orações diárias, mas dizem que vão voltar a orar. Isto foi percebido principalmente entre os jovens filhos dos imigrantes muçulmanos; nascidos no Brasil, eles geralmente têm esperado dos seus pais a prática das orações. Desta forma, no trabalho de campo, percebeu-se que o muçulmano, seja na oração, seja na vida cotidiana, na arte, na pregação, tem se mostrado interessado em praticar a religião e fala da importância desta para ele. Eles gostam tanto de falar da religião que aproveitam qualquer oportunidade para isso e dizem que é dever de todo muçulmano falar para todos aqueles que quiserem ouvir. Com relação aos dogmas que caracterizam a religião islâmica, eles dizem que todo muçulmano deve aprendê-los durante a sua vida. Eles citam a necessidade de o muçulmano fazer a profissão de fé em Deus, nos Anjos, nas Escrituras reveladas, nos Enviados de Deus, no Último Dia, bem como os teólogos acrescentam outro dogma, que é o da fé no Decreto Divino. O Alcorão está cheio deles, mas alguns são mais citados pela comunidade muçulmana do que outros, como é o caso do que abre o Alcorão, na sua primeira surata. Este é bastante usado em quadros, com fundos pretos e bordados dourados, nas salas das casas dos imigrantes muçulmanos. Em todas as residências dos imigrantes muçulmanos são encontrados quadros ou fotos de capítulos do Alcorão, fotos de enfeites de Makka e do Kaaba. Os imigrantes muçulmanos fazem questão de apresentar estas fotos e mostrá-las falando da terra natal. Para eles, ser muçulmano é crer em um único Deus (Allah) ou uno (wahed), eles afirmam que Deus é “eterno, todo-poderoso, que tudo vê e sabe, que é bom e misericordioso, mas julga e castiga aqueles que descumprirem seus mandamentos”. Para eles, todo muçulmano deve obediência plena a Deus. Assim, para os imigrantes muçulmanos, apesar das dificuldades de se praticar todos os mandamentos do islamismo, a essência do Islã é o testemunho da unicidade de Deus (tawhid), ou seja, o acreditar em um único Deus e o cultivar, pelo homem, de um comportamento de submissão completa e voluntária a Deus. Contudo, os imigrantes muçulmanos de Goiás, ao serem questionados sobre a desobediência a Deus, explicam que existem dois caminhos distintos na vida do homem muçulmano: ser totalmente obediente à vontade de Deus e ser plenamente regulado pela Lei Divina e a desobediência ou rebeldia onde, ele exerce o livre arbítrio concedido por Deus, mas responde pelas conseqüências dos seus atos. E então, o homem deve utilizar sua razão e inteligência, para o lado negativo ou positivo em sua vida e quem as usa para o positivo é feliz e vive em paz. 77 A concepção de religião dos imigrantes muçulmanos é percebida nos seus depoimentos de forma diferenciada e de acordo com a dedicação diária aos mandamentos da oração. Nas reuniões religiosas, como as do Centro de Divulgação do Islã em Trindade, presididas pelo líder Peregrino Jamil Glannoum, é possível perceber o quanto ele é fiel cumpridor dos mandamentos religiosos, isto por ser o líder religioso do Centro. Ao falar sobre a religião, ele diz que todo muçulmano deve praticar todos os mandamentos islâmicos, ou do contrário não é um muçulmano. Desta forma, notou-se que ele é bem mais exigente do que muitos outros imigrantes muçulmanos, assim como sua própria esposa, que ao ser questionada se era uma muçulmana respondeu que sim, mas que atualmente não estava praticando o Islã. Nas reuniões realizadas no Centro de Divulgação Islâmica, ao participar de uma delas, foi observado que os imigrantes muçulmanos sempre se sentam em volta de uma grande mesa, mulheres de um lado, homens do outro e o líder no meio. As mulheres não podem cumprimentar os homens pegando na mão, uma vez que eles estão preparados para a oração do final da reunião. Durante esta, o líder da reunião, Peregrino Jamil, lê o Corão e explica-o, e outros muçulmanos complementam, sendo que as mulheres permanecem caladas. Este líder fala sobre a salvação e diz que “aqueles que não profetizam Deus como único e Mohammad como seu profeta não serão salvos e irão para o inferno, e o inferno é horrível, muito pior do que fogo, tem gelo também, sofrerá muito frio, se congelará”. Os muçulmanos acreditam na existência dos anjos da guarda, que ficam anotando todos os atos de cada um para apresentá-los no dia do juízo, que é o dia do julgamento; os absolvidos herdarão o paraíso e os condenados serão castigados nesse inferno. Conforme observado, o conceito de ser ou não ser um muçulmano, de pregar o islamismo como única forma de salvação para todo e qualquer homem na face da terra, e ainda o de que para se ser muçulmano deve-se seguir somente o Corão, onde todos os ensinamentos sobre nosso comportamento e nossas obrigações devem ser atendidos a Deus, porque senão ele irá castigar, é interpretado de formas variadas, conforme o próprio imigrante muçulmano esteja mais ou menos praticando os mandamentos religiosos. Estas concepções, de um Deus castigador e julgador no juízo final são preocupações constantes dos imigrantes muçulmanos em seus depoimentos. Ao falarem sobre as ações e virtudes das pessoas, eles sempre tocam nesse assunto e dizem que Deus castiga os desobedientes mas recompensa os que realizam as suas exigências. Com relação à dedicação de um muçulmano aos preceitos da religião islâmica, um dos imigrantes da comunidade de Goiânia disse que 78 a dedicação em ser muçulmano de coração é voluntária, se você ta comendo sem querer, vai vomitar, então se a pessoa segue a religião sem querer, essa oração dela não vale nada, não adianta tapear. Não é com o coração. Então não adianta, ela está fazendo pra ela mesmo e Deus não precisa de nós. Nenhuma hora, em momento nenhum e em segundo nenhum, nós é que precisa de fazer esse sacrifício pra ser beneficiado. (I. L. G., 58 anos, 2002) As obras islâmicas, a maioria de origem dos centros de divulgações e das sociedades beneficentes muçulmanas no Brasil, chamam a atenção e se preocupam com as interpretações dadas sobre o Islã e sobre como ser um imigrante muçulmano nas condições da sociedade brasileira. Além desta preocupação foram observados conflitos referentes às traduções do Alcorão. Há duas grandes traduções no Brasil desse livro sagrado dos muçulmanos, sendo uma delas a do escritor Charlitta Mansour e a outra de Said El Hayek. Alguns imigrantes muçulmanos em Goiás defendem a tradução feita pelo primeiro como sendo a mais fiel do que a deste último. Para El Hayek, “O Alcorão não é um livro, no senso comum; é a coleção das palavras de Deus, reveladas de tempos em tempos, durante vinte e três anos, a seu Mensageiro, escolhido entre os seres humanos” (El Hayek, 1994: 2). E ele complementa citando uma surata do Alcorão, “o Livro que é uma explanação de tudo, é guia, misericórdia e auspício para os muçulmanos” (16ª Surata, versículo 89). Com relação à tradução do Alcorão, ao ser apresentada uma cópia do mesmo a um líder muçulmano de Goiás, ele disse que aquela não era fiel à mensagem de Deus, recebida pelo Profeta, que ele não entendia nada do Corão por ela e que a única tradução fiel que tinha no Brasil era a do outro. E outro conflito percebido nas comunidades muçulmanas de Goiás, além das divergências com relação à interpretação do Alcorão, também foi com relação às lideranças nas comunidades ou mesquita, onde, com referência a ser ou não o líder, alguns que se consideram líder ou representante da comunidade não são considerados por todos como tal. E ainda percebe-se divergências entre um grupo familiar e outro, como foi observado em uma das comunidades com relação às lideranças na construção da mesquita, onde uma família e outra querem ser a que mais tem feito pela realização da obra na mesma. Foi percebido entre os imigrantes muçulmanos, ao conversar com uma família e outra, o quanto eles querem expor apenas o lado positivo da vida deles na sociedade goiana, disfarçando situações negativas e conflituosas vividas entre eles, principalmente 79 aquelas do tipo familiares. Um exemplo desta situação, em um dos depoimentos na comunidade muçulmana de Jataí, um dos informantes elogiava muito a “sociedade receptora” e o outro também, mas a uma certa hora ele começou a dizer que sentia pena do povo brasileiro e repetiu algumas vezes que “o povo brasileiro era de dar dó”, até que o outro imigrante muçulmano o advertiu pedindo-lhe que não falasse daquela forma, pois seria prejudicial para eles e inclusive disfarçou falando algumas palavras em árabe. Ainda com relação ao Alcorão e sua importância para os imigrantes muçulmanos, um deles, da comunidade de Goiânia, faz considerações acerca de como o Alcorão é importante na vida deles, dizendo que para eles O Alcorão é considerado o milagre de Mohammad, nunca ninguém conseguiu imitá-lo, tanto que ele é profundo na literatura. Ele empresta até aos cristãos, quer dizer, no sentido bem sentimental da palavra, como a palavra do Alcorão cai no coração da gente, eu sou homem muçulmano, mas não sou fanático, mas eu defendo a minha religião, porque eu estou com a verdadeira verdade na mão. No Alcorão, nós não somos muçulmanos, nós sentimos muçulmanos, que acredita em todos os profetas que vieram antes de Mohammad. Mohammad disse “eu sou o fim de todos os profetas”. (I. L. G., 72 anos, 2003) Segundo os imigrantes muçulmanos, o Alcorão é dirigido a toda a humanidade, ou seja, ele contém diretrizes para a conduta do chefe de Estado e do homem comum, para a paz e para a guerra, para a cultura espiritual e para o comércio, bem como o bemestar material, matrimônio, herança e direito penal. O conteúdo do Alcorão é de caráter doutrinal e normativo, oferece tanto explicações sobre a origem do mundo como sobre a conduta diária do muçulmano, resultando numa “ética de vida”. Ao serem questionados sobre o Alcorão, os imigrantes muçulmanos respondem que este “é a revelação de Deus aos homens, através de Mohammad, para dar luz e orientação à humanidade”. Eles o consideram uma obra-prima, citada e escrita em árabe, considerada a língua de Deus para os muçulmanos. Os imigrantes muçulmanos ainda dizem, em linhas gerais, que A diferença da religião muçulmana é que tem o Corão na língua árabe, a língua da religião do Corão é o árabe, você não pode mudar, não é da religião, é Deus, quem mandou este Corão na língua árabe, é legítimo do Corão em língua árabe, você não pode rezar o Corão em outra língua, tanto faz ser muçulmano paquistanês, indiano, chinês, 80 você reza a mesma coisa que nós reza, em árabe, agora ele estuda a religião em outra língua, mas reza em árabe. (I. P. J., 74 anos, 2003) Para os imigrantes muçulmanos, todos os princípios da vida e da justiça residem em Deus, todo o poder vem Dele, onde somente Este é justo. E o Alcorão, que é a cartilha de vida deles, contempla todos estes princípios. Ele contempla, por exemplo, a propriedade privada como pertencendo a Deus, sendo que os homens seriam apenas usuários dela, que seria coletiva. Contudo, conforme os imigrantes muçulmanos afirmam, não seria possível a eles possuírem propriedades coletivas, no contexto das comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás, uma vez que esta forma alternativa de propriedade não existe no Brasil, pois já estão estabelecidos a propriedade privada quanto e os direitos a ela inerentes, os quais eles devem seguir, constituindo também as suas próprias propriedades e seus negócios. A estrutura básica da religião islâmica, tanto nos países islâmicos quanto no Brasil e especificamente em Goiás, é fundada na prática cotidiana da religião, através dos cinco pilares que a regem. Interessante observação nos depoimentos dos imigrantes muçulmanos foi a referência que eles fazem à primeira geração de imigrantes, afirmando que os primeiros imigrantes que chegaram a Goiás tiveram mais dificuldades para praticar os mandamentos da religião do que os da segunda geração, uma vez que eles vieram com árabes de outras denominações religiosas, e como eles eram minoria e tinham mais obstáculos do que hoje para a prática da mesma, ao se deixarem se passar pelas outras denominações acabavam deixando de lado a prática, por exemplo, das cinco orações diárias. Eles ainda disseram que a segunda geração tem sido a que mais tem praticado os mandamentos da religião islâmica, e que a terceira geração, os jovens filhos dos imigrantes atuais, da mesma forma, como a primeira geração, tem deixado de praticar os mandamentos religiosos, mas não pelos mesmos motivos da primeira. Quando os imigrantes muçulmanos foram questionados acerca das diferenças na prática da religião e sobre o modo de vida na terra de origem e em Goiás, eles afirmaram que o Brasil é mais liberal, que eles sentem diferenças, mas que de qualquer forma, apesar de serem compelidos a, muitas vezes, agirem de forma diferenciada daquela ditada pelos mandamentos doutrinários da religião ou adotarem novos hábitos e costumes da terra migrada, eles continuam sendo muçulmanos, se afirmam como muçulmanos. [...] você reconhece o muçulmano, talvez você é um muçulmano, mas não faz a obrigação de um muçulmano, que a religião islâmica manda, 81 ele é um muçulmano, mas não está cumprindo o dever dele, ele sente ser um muçulmano, mesmo quando não está praticando o islamismo, tem aquele sentimento de ser muçulmano, independente de estar praticando ou não. (I. P. J., 48 anos, 2003) Um muçulmano da comunidade de Goiânia, quando da primeira visita em sua residência, disse que era laico e que era de tudo, era católico, evangélico islâmico, do mundo, mas em outras visitas ele foi se sentindo mais à vontade para falar e disse que “todo o seu ser era muçulmano”. Ele afirma que “por mais que ele e outros se desvirtuam do islamismo, não segue ou está parado, por um tempo, tem os ensinamentos do Islã guardados no coração, faz parte da estrutura, acho que dos valores que norteiam a vida, está enraizado e não se modifica, e ninguém tira” (I. L. G., 72 anos, 2002). Assim, os imigrantes muçulmanos têm uma vivência comunitária e social fundada em seus sentimentos de pertencimento à religião e ao grupo, mesmo quando não estão praticando todos os ensinamentos do Alcorão. Isto foi percebido no depoimento deles, que num primeiro momento dizem que estão “desviados” ou sem religião específica, mas posteriormente vai sendo possível perceber o quanto eles se consideram e se sentem muçulmanos. Na comunidade muçulmana de Jataí eles convivem juntos vários momentos cotidianos, como, por exemplo, quando um passa de carro na porta do comércio do outro buzina, fala qualquer coisa rápida e sai. Conforme observação e participação em uma das suas reuniões, eles se encontram para conversar, fumar e tomar o chá maramia (sálvia no Brasil) ao final de tarde, sempre depois do trabalho, na casa de um dos imigrantes muçulmanos, Mohd Ali. Na comunidade muçulmana de Jataí foi observada uma convivência coesa entre todos os imigrantes. Eles se reúnem, conversam e visitam uns aos outros, apesar das diferenças de poder aquisitivo, entre as famílias de imigrantes muçulmanos. Há famílias como a de Faruk, o maior comerciante da cidade, que é muita conhecida entre todos. A relação social estabelecida entre eles, apesar dessas diferenças econômicas, é estreita, não importando o status sócio-econômico. As diferenças econômicas não se sobrepõem, pois, pelo contrário, a ligação forte entre eles está nos sentimentos de pertencimento comum da mesma religião e de se considerarem “primos” ou conterrâneos, porque vieram da mesma região ou regiões próximas. Inclusive, eles fazem questão de afirmarem que não se conheciam, mas que a cidade de um é bem próxima da do outro lá na terra natal. 82 Nessa comunidade prevalece o que Bottomore, citando Tonnies (2003) chamou de “vontades naturais” de se identificarem por esse sentimento de pertencimento, de união, de busca das lembranças e repertórios históricos comuns nos encontros deles na comunidade. Todos estes aspectos dão sentido e explicam a vida comunitária. Eles lutam para manter a sua unidade, ao tentarem, conforme observado, terminar o templo, com a cobrança de uma mensalidade entre eles, e ainda realizar outras obras, como dar continuidade à sociedade beneficente de Jataí. Os imigrantes muçulmanos, em seus depoimentos, dizem se relacionarem bem com a sociedade goiana, de forma a estarem inseridos e integrados a ela. Mas eles buscam intensificar os círculos de convivência com os seus próprios “primos” ou “conterrâneos” dentro das comunidades, criando encontros alternativos, como eventos comemorativos e reuniões dentro da comunidade. Eles têm buscado, através destes, incentivar uma maior participação e união entre eles. Em um dos depoimentos de uma imigrante muçulmana palestina da comunidade de Anápolis, ela disse que uma das principais tradições na sua terra é a das festas de casamentos, toda semana tem casamentos lá e que esta é a única festa em que eles dançam. E eles ainda têm mais duas outras festas, sem danças, que são as do Ramadã e da Peregrinação. Ela ainda disse que eles não comemoram aniversários e que aqui no Brasil tem festa pra tudo. Mas ela admite que aqui no Brasil a tradição deles tem se modificado em razão de eles não se encontrarem e de estarem inventando momentos festivos para se reunir. Enquanto lá eles têm o hábito de se encontrar todos os dias na mesquita11 para as orações, aqui eles não podem ir, e lá, explica ela, quando dá a hora de uma das orações, o sheik chama alto e todos se encontram para rezar. Aqui, na terra migrada, eles têm mantido as duas festas religiosas, mas as de casamentos com todo o seu ritual não é possível manter, porque eles fazem festas durante uma semana, e nos últimos três dias tem a festa só do noivo com os seus familiares e amigos, a festa somente da noiva e suas familiares e amigas e a festa do encontro dos noivos no último dia. A imigrante muçulmana de Anápolis Khadija e um dos imigrantes muçulmanos de Jataí, Faruk, disseram que aqui na “sociedade receptora” criaram algumas alternativas, como festas comemorativas de aniversários e outros eventos, onde cada 11 A primeira mesquita construída no Brasil data de 1956, em São Paulo. Outras foram sendo construídas nos maiores centros industriais do país, na medida em que os muçulmanos foram se espalhando pelo país de norte a sul. Atualmente existem cerca de quarenta e duas mesquitas no Brasil, além de centros de divulgações islâmicas e sociedades beneficentes, onde nestes locais se pratica o islamismo, divulgase a cultura, a língua e o pensamento Islã. 83 família leva um prato da comida deles para que eles possam ter um motivo para reuniões e maior convivência. O que se observou também é que aqueles muçulmanos, principalmente os que têm praticado com mais dedicação os ditames da religião islâmica, têm também participado mais desses encontros alternativos, na busca dessa maior convivência entre eles. Os muçulmanos profetizam a religião islâmica, que dita e regulamenta a vida deles em todas as suas formas, conforme os cinco pilares mandamentais da religião, que são: profissão de fé; a oração; a caridade; o jejum e a peregrinação. Estes pilares ditam o que eles devem fazer para serem muçulmanos e cumprirem as suas obrigações. O primeiro deles é o relacionado à fé (Iman) que eles devem ter e declarar na unicidade de Deus como sendo o único salvador e o Profeta Mohammad seu mensageiro. [...] o significado completo da Fé Islâmica não é de modo algum nominal ou puramente formal, é um estado de alma, que o homem adquire pela ação contínua e persistente, que se traduz em medidas dinâmicas e eficientes, que são aquelas trazidas no sagrado Alcorão e nas Tradições do Profeta Muhammad. (Abdalati, 2000: 48) O segundo pilar ou mandamento da religião islâmica é o da oração – salat –, a qual deve ser feita em árabe, pelos menos algumas partes, já que seu conteúdo segue determinadas passagens do livro sagrado dos muçulmanos e repete determinadas fórmulas fixas como a chahada, ou declaração de fé. As orações islâmicas são formadas por um ritual que exige palavras e gestos bem definidos, embora se possa fazer a oração espontânea, falando o que se deseja, mas a do ritual fixo deverá vir em primeiro lugar. Um exemplo de uma oração constantemente repetida é a da Surata 1, a qual inicia o Alcorão, denominada Al Fatiha (a abertura), onde este capítulo louva Alá e pede Sua orientação. Segundo os entrevistados e também a própria literatura muçulmana de Mahairi (1977), a oração significa rogar a Deus e também a misericórdia de Deus aos homens, e, ainda, a oração é uma espécie de adoração a Allah (Deus), que tem como finalidade entrar em sintonia, em ligação direta com Deus e falar com ele, dirigindo-lhe palavras, dedicando veneração, através da prostração e da genuflexão (os movimentos feitos com o corpo durante a oração). Todos os muçulmanos, inclusive os imigrantes muçulmanos de Goiás, dizem que Allah estabeleceu para eles cinco orações diárias, ou seja, nas vinte e quatro horas, desde a alvorada até o anoitecer, eles devem cumprir as devidas orações, porque é uma obrigação do muçulmano e quem não a cumprir é sentenciado como 84 incrédulo pelo Alcorão. O muçulmano deverá orar cinco vezes ao dia com a fronte voltada para a direção de Meca12 (Makkah). A primeira oração é a da alvorada, a segunda é a do meio dia, a terceira é a da tarde, a quarta oração é a do ocaso, acontece ao por do sol, e a quinta oração é a da noite, mas outras voluntárias poderão ser realizadas a qualquer momento, como as fúnebres, do viajante, das duas festas, da chuva. “O muçulmano pode acordar à noite e rezar, mas aquelas não podem faltar.” Na terra de origem dos muçulmanos as orações são dirigidas por um homem, responsável por chamar o povo para a oração nas mesquitas, que se chama Imam ou ainda muezim. Eles dizem que lá há muitas mesquitas e a comunidade pode se reunir todos os dias para as orações. O papel do orientador das orações vai além do chamamento, pois ele ainda educa e orienta os fiéis, supervisiona e dirige todos os assuntos islâmicos da comunidade, inclusive julgando os conflitos com base na doutrina islâmica. No Brasil, o muezim faz o papel de líder (sheik) da comunidade muçulmana de imigrantes. A preservação cultural também é preocupação de alguns chefes (sheiks) da religião muçulmana, os quais mostram os caminhos que as comunidades muçulmanas deverão seguir no mundo e no Brasil para conviverem como minorias de imigrantes na “sociedade receptora”. Esses sheiks se tornaram chefes da religião islâmica, porque de uns 20 ou 15 anos para cá começaram a ir para a Arábia Saudita para estudar teologia e ao retornarem, eles tornam-se capacitados para liderar uma comunidade muçulmana. Eles ainda escrevem livros como o do Maháiri, falando sobre a religião e seus ensinamentos, sobre a língua do Alcorão Sagrado, “ensinando-a a seus filhos para que não derretam no cadinho da dissolução moral das sociedades, em cujos seios vivem, arriscando-se à perdição” (Habábi, embaixador da Real Embaixada da Arábia Saudita no Brasil, citado por Maháiri, 1985: 6). Em Goiás eles escolheram um dos mais velhos, ou aquele considerado o mais sábio em cada comunidade para ser o responsável por aquelas funções, o que significa 12 Cidade sagrada do Islã, onde abriga o templo de Kaaba, uma construção feita de pedra e os muçulmanos acreditam que foi o local original de um santuário estabelecido por Adão. Segundo eles, Deus ordenou a Abraão que convocasse a humanidade para visitar esse templo. Meca era um centro de comércio e de peregrinação. Cada ano, no inverno, uma caravana de cidadãos de Meca ia procurar em Aden, cidade fronteiriça com o mediterrâneo, mercadorias provenientes da Índia, pelo mar. Estas eram levadas a Meca e de lá, no verão, iam, através de uma grande caravana, para a Síria e o Egito. Nos países islâmicos são comuns as casas serem construídas e alinhadas com a qibla (direção), e as pessoas não dormem com os pés apontados para essa direção. Medina que se chamava Yatrib é outra cidade importante no Islã, porque abrigou o Profeta em fuga. Segundo Nabhan (1996), nesta cidade foi construída a primeira mesquita. 85 aquele que melhor sabe recitar o Alcorão e de preferência, que seja casado e com filhos. Na comunidade muçulmana de Jataí há um professor que dá aula de religião e ensina árabe para os filhos dos muçulmanos; ele é considerado “o mais culto” da comunidade, como eles mesmos dizem. Já na comunidade de Anápolis, o responsável pelas funções de muezim é da comunidade de Goiânia, Mohammad, que tem 73 anos e vai toda sextafeira para Anápolis para as reuniões da oração do meio dia. Quando se refere ao muézin fazendo o seu chamado para a oração, “Vinde para a oração, vinde para a salvação”, Assawaf fala da unidade e da igualdade promulgada no Islã, através da oração, uma vez que este chamado é dirigido a todos os que o ouvem, para que observem a oração. E entre eles há o rico e o pobre, o grande e o pequeno, o príncipe e o cidadão comum. Uma vez reunidos, dispõem-se, de pé, lado a lado, sem qualquer distinção ou discriminação, pois todos são servos de Deus, reunidos no mesmo lugar, para evocá-Lo, em humilde entrega a ele, numa das Suas casas. (Assawaf, 1977: 18) O comando da lei islâmica, conforme afirmação do Peregrino Jamil, exige o cumprimento exato de todos os horários das orações diárias. Contudo, observou-se que a prática desse ritual durante todo o dia tem se modificado, para muitos imigrantes muçulmanos, em razão da “adaptação” às condições de vida impostas na “sociedade receptora” em Goiás. Por exemplo, durante o trabalho de campo, por várias vezes, quando chegavam as horas da oração e os imigrantes estavam sendo entrevistados, eles diziam que podiam esperar até tal hora para orar, geralmente adiando a oração para meia hora mais tarde. Outra situação de “adaptação” é citada por um imigrante muçulmano da comunidade de Jataí, quando ele diz que Não pode beber nada de álcool, a religião muçulmana nem permite sentar em uma mesa de quem está bebendo, mas infelizmente não tem como, senão como vou viver, então Deus perdoa. Deus proibiu a bebida, carne de porco, sangue, mas se por acaso você está num mato passando fome e não tem nada pra comer, você pode comer, mas não leva. Não pode ajudar e nem testemunhar uma coisa falsa, se você falou uma coisa pra mim fazendo fuxico, eu não posso concordar. (I. P. G., 72 anos, 2002) Dessa maneira, o contexto da “sociedade receptora”, a correria do cotidiano e o trabalho têm impedido muitos muçulmanos de orar; estes, apesar de saberem das suas 86 obrigações, deixam de fazê-las. Os imigrantes muçulmanos que têm deixado de praticar as cinco orações diárias se justificam de diversas formas, mas afirmam serem muçulmanos. Para os imigrantes muçulmanos, o Islã prescreve a oração como um meio de elevação moral do homem, porém, os imigrantes muçulmanos advertem que se a oração for praticada com descuido ou de coração ausente ela se degenerará em apenas um rito qualquer, em uma cerimônia insípida e sem consistência, que se processará com insinceridade de coração. El Hayek (2000) diz que “não é suficiente que meramente se pratique os seus vários movimentos de ficar de pé, de se curvar, de se prostrar e de sentar [...]. O verdadeiro espírito da oração consiste em estar em constante comunhão com Allah e em constante veneração a Ele” (El Hayek, maio/2000: 7). Mahairi explica que todo fiel às orações se beneficiará com a fortificação do seu coração, do corpo e do espírito. E complementa: “A oração também afasta o mal e aproxima as virtudes, bem como, a oração congrega os homens, unindo-os em verdadeira fraternidade e sincera amizade, sentimentos singelos emanados do coração” (Mahairi, 1977: 30). Os imigrantes muçulmanos de Goiás se reúnem para as orações em qualquer lugar, quando é chegada a hora de rezar. Os locais mais usados por eles são seus próprios estabelecimentos comerciais ou suas casas. A filha de Mohammad Allan, um dos imigrantes muçulmanos da comunidade de Anápolis, interveio prontamente ao ver seu pai sendo questionado sobre a realização das orações diárias: “sim, olha o tapete debaixo dele, ele não fica sem o tapete, deu a hora e ele está na loja, sai de lá, entra no banheiro ou no vestuário e reza” (I. P. A., 52 anos, 2002). Os imigrantes muçulmanos, principalmente os homens, reúnem-se para as orações das sextas-feiras, ao meio-dia, na mesquita de Anápolis ou em casa, em Jataí. Os imigrantes muçulmanos da comunidade de Goiânia vão para Anápolis para esta oração. A oração é o pilar mais importante para o muçulmano, bem como esta oração da sexta-feira também é a mais importante da semana, porque ela é diferente das outras, de caráter mais privado. Os imigrantes muçulmanos de Goiás dizem que o Profeta exortou ao povo a formar comunidades, se encontrando para esta oração, donde saberão notícias uns dos outros e, além de tudo, neste particular, disse o Profeta Mohammad: “A oração do muçulmano “em grupo” vale 25 vezes aquela que faz em seu lar ou em seu trabalho”. Por isto, o próprio Alcorão contém mandamento relacionado à obrigação das orações de sextas-feiras: “Fiéis, quando fordes chamados para as orações de sexta-feira, apressai-vos a vos lembrar de Deus e cessai vosso comércio” (Alcorão: Surata 62: 9). 87 As observações de campo mostraram que, as mulheres, com relação às orações, se adaptaram entre o ambiente doméstico e os templos, os ritos religiosos têm sido realizados mais naquele do que nestes. Nas reuniões para as orações, especificamente as das sextas-feiras, apenas os homens têm participado, uma vez que as mulheres nos horários das orações estão preparando refeições para a família. Khadija, uma imigrante muçulmana palestina da comunidade de Anápolis, disse que “para as mulheres, além de não terem terminado o lugar apropriado para elas rezarem, os seus afazeres domésticos dificultam a freqüência ao templo, por isso elas rezam em casa, com os filhos”, quando estes rezam. Uma das mulheres muçulmanas da comunidade de Goiânia disse que não dá para orar, que somente seu marido tem orado, porque ela tem trabalhado o dia inteiro no pequeno mercado deles. Na comunidade de Jataí, como a mesquita ainda não ficou pronta, as reuniões das sextas-feiras, que devem ser comunitárias, têm acontecido na casa de um dos mais velhos da comunidade, outra forma adaptativa encontrada, em razão das circunstâncias migratórias. Essas reuniões de sextas-feiras são um momento significativo para a manutenção da comunidade, dos valores e dos princípios internos do grupo. Eles justificaram a importância desta oração, citando um dito (hadith) do Profeta Mohammad, que recomendava um dia e uma hora marcados para todos se encontrarem, para saberem da vida uns dos outros, se alguém está precisando de ajuda e como estavam vivendo. Um imigrante muçulmano de Goiânia, ao reclamar da falta de mesquita, disse: aqui também é todo o horário, mas aqui em Goiânia não tem mesquita pra gente reunir todo mundo. Meu filho também, ele levanta bem madrugada pra rezar, cinco horas da manhã ele já está rezando e oito horas da manhã, meio dia, quatro horas da tarde e seis horas da noite e oito horas da noite também, cinco vezes. (I. P. G., 72 anos, 2002) Conforme observação, os filhos dos imigrantes muçulmanos, na sua maioria, já perderam o hábito de rezar as cinco orações diárias, ficando esta tarefa aos seus pais. Esses filhos dizem “ah! Meu pai reza por nós” ou “dá preguiça de rezar muitas vezes por dia”. Mas ao questionar uma filha de imigrante muçulmano da comunidade de Anápolis se ela se considera muçulmana, ela respondeu que é muçulmana sim. Mesmo os pais, alguns deles também já perderam o hábito, mas afirmam que são muçulmanos e dizem que “mesmo não rezando todos os dias, eu sou de origem muçulmana”, outros já afirmam que recomeçarão a rezar. É como se eles tivessem deixado de rezar por algum 88 motivo, por enquanto, mas que vão se esforçar e voltar, eles fazem questão de demonstrar que pararam apenas temporariamente. Ainda observou-se que os imigrantes muçulmanos que não estão rezando sentem consciência intranqüila, pois fazem questão de justificar que vão retornar, “porque precisa”, como eles dizem. Um dos imigrantes muçulmanos ilustra o discurso do ser ou não ser muçulmano ao dizer que não está praticando as obrigações de fazer as orações, mas que o que importa é o que está no coração, o que está interno, os princípios e a aceitação, isto todos dizem, a aceitação ou conversão para os não muçulmanos, está no coração de cada um e isso é voluntário, é somente aceitar Deus, como único e o seu profeta Mohammad como seu mensageiro. (I. L. G., 74 anos, 2002) Com relação às adaptações em razão das circunstâncias da imigração para Goiás, um imigrante muçulmano palestino disse, ao lembrar de seus ritos para orar em sua terra de origem, que “todo dia eu ia lá”, referindo-se à mesquita em sua terra natal, afirmando que “a religião lá é mais forte, chama mais a atenção, porque é todo mundo reunido, todo mundo reza, aqui faz oração sozinho, aqui é sempre diferente dos outros” (I. P. J., 70 anos, 2003). Outro imigrante muçulmano palestino complementou dizendo que “lá vão à mesquita pelo menos nas orações da manhã e a da noite para rezar todos juntos”. E com relação à experiência da prática da religião aqui na “sociedade receptora”, um dos imigrantes muçulmanos, ao ser questionado sobre as mudanças na prática da religião na sua terra de origem e aqui na migrada, ele respondeu que Muita coisa às vezes é obrigado a mudar, mas nem tudo da religião. Porque se eu não for conversar com você, eu não vivo. Por exemplo, nós muçulmanos rezamos cinco vezes por dia, acorda pela manhã e lava a boca, mão e o rosto três vezes, lava o pescoço e a cabeça e depois o pé pra rezar. E se alguém chega e me cumprimenta eu tenho que fazer tudo de novo antes de rezar. Porque eu não posso falar “não pega na minha mão”, senão fica parecendo exibido isso não cabe. Por exemplo, minha filha, minha sobrinha, minha tia pode, mas minha mulher não pode, as pessoas que servem pra mim casar com ela, não pode. Agora a pessoa que é de sangue pode. Agora o brasileiro não vai entender isso, se chegar uma pessoa e eu falar que não pode, essa pessoa vai achar ruim. (I. P. G., 72 anos, 2002) Mas outro imigrante muçulmano da comunidade de Jataí, ao responder sobre as diferenças acerca da prática do islamismo aqui e no seu país de origem, justificou que era da mesma forma de lá, dizendo que 89 é tudo a mesma coisa, porque o Líbano é o país mais desenvolvido do oriente e ele morava na capital, lá não é rígido como em outros países. Tem países que as moças usam roupas com decotes, outras se cobrem toda, outras usam roupas compridas e usam até o véu tampando todo o rosto, isto já é seita, já não é uma religião humana de modo geral. Vocês já devem ter ouvido falar dos xiitas, então cada um tem um tipo de veste e às vezes mais ou a menos, uns acham necessário cumprido, outros já não acham, cada um tem um tipo de hábito. (I. L. J., 63 anos, 2003) Pretende-se apresentar uma breve descrição da oração da tarde, observada durante o trabalho de campo13. É importante frisar que o posicionamento da mulher deverá ser sempre mais atrás do que o homem e um pouco ao lado. O anfitrião pegou seu tapete, estendeu-o no chão e colocou na cabeça o boné de rezar. Ele foi instruindo, passo a passo, como a mulher deveria se colocar e ia dizendo a oração em árabe e colocando a testa no chão. Ele ainda fez questão de explicar a necessidade de se “fazer a higiene nas mãos, braços, rosto, nuca, orelhas e pés, e se tiver dormido com mulher, tomar banho para rezar, porque quando se vai rezar, tem que estar limpo para Deus”. Ali Mohammad fez questão de justificar o fato de não poder cumprimentar pegando na mão, dizendo: estou pronto para a oração da tarde, o muçulmano deverá cumprir o ritual da ablução, se não estiver limpo para a oração, como por exemplo, se num intervalo de uma oração e outra pegar na mão de mulher que possa casar, quando não há impedimento de casamento entre a mulher e quem lhe pegou na mão, não pode pegar, ou terá que fazer novamente a higiene. (I. P. G., 74 anos, 2002) Ainda com relação à ablução para a oração, durante visita ao templo de Anápolis, na oração de sexta-feira, ao chegar na porta da mesquita e estender a mão para cumprimentar um muçulmano que estava entrando na mesma, ele não deu a mão, alegando que estava na hora da oração, e por isso não podia pegar na mão, e além disso os homens não dão nenhuma atenção para as mulheres no momento em que estão na mesquita. Gaarder (2001) interpreta o ato de purificação dos muçulmanos, ao dizer que eles acreditam que as funções corporais tornam as pessoas impuras, justificando as necessidades dos banhos, em algumas circunstâncias, ou higiene em partes do corpo, em outras ocasiões. 13 Durante a oração recebi um lenço para cobrir a cabeça e um tapete para ajoelhar e acompanhar a oração juntamente com o imigrante muçulmano palestino, Ali, da comunidade muçulmana de Goiânia. 90 As orações devem ser realizadas, de preferência, nas mesquitas, por serem considerados locais sagrados e onde também se realizam as reuniões, orientações e meditações, bem como as celebrações sociais e culturais da comunidade muçulmana. Contudo, caso não possa ir à mesquita, o imigrante muçulmano deverá orar onde estiver, quando chegar a hora de uma das preces. Um dos imigrantes muçulmanos disse que quando chega a hora da oração deve-se interromper o que se estiver fazendo, não importa o que seja. Este imigrante, assim como alguns outros que são bem mais exigentes, porque praticam com maior fervor os mandamentos religiosos islâmicos, faz questão de frisar a importância da oração no Islã, ao afirmar que já lhe aconteceu de estar na sua loja quando chegou a hora da oração, e ele estava atendendo um freguês, mas parou o atendimento imediatamente, porque não lhe importava perder a venda, “porque tudo o que ele tem, foi-lhe dado por Allah”. Um imigrante muçulmano libanês da comunidade de Goiânia disse que “quando se começa a rezar, não se pode parar no meio da oração, não se pode virar para os lados nem para trás e nem olhar para lugar nenhum, não se pode prestar atenção em ninguém”, e ainda contou que certa vez lhe foi furtada uma sombrinha enquanto estava rezando; ele viu o ladrão levá-la, mas não podia se mexer e nem fazer nada naquela hora sagrada, complementou dizendo que “mais vale perder um guarda-chuva do que desobedecer e se virar ou parar de rezar”, e disse que Deus o recompensaria. No contexto da construção da vida dos imigrantes muçulmanos em Goiás como meio de inserção e integração à vida goiana, eles vão se inserindo e conduzindo, vão se expondo, mudando e se transformando em alguns aspectos, conservando outros; eles vão negociando com a “sociedade receptora”. O que se observa é que, essas “adaptações”, como esta da prática das orações diárias dos imigrantes muçulmanos, são formas ou mudanças construídas ao longo desse processo de inserção à sociedade goiana, que se constituem numa contínua negociação da identidade. Ao promoverem essas mudanças “adaptativas” na vida cotidiana, buscando soluções para melhor viverem, eles estão negociando suas identidades, como disse Sales, ao chamar esta negociação identitária de “o jogo das diferenças”. Ela diz que isso “se desenrola nas margens, nos limites, longe de qualquer certeza”, sendo que “talvez exatamente essa condição indefinida, essa possibilidade de vir a ser, essa ambigüidade, é que dá margem a tantas negociações” (Sales, 1999: 13). O Islã exorta também à caridade, sendo esta o terceiro pilar do mandamento islâmico, que eles chamam de zakat, que significa “purificação” ou “crescimento”. Esta 91 caridade se traduz em o muçulmano separar uma parte de suas posses para os necessitados, e, pois, “a exemplo da poda das plantas, o corte equilibra e estimula novos crescimentos. Cada muçulmano calcula individualmente o seu próprio zakat. Na maioria dos casos isso envolve o pagamento de dois e meio por cento do capital da pessoa” (depoimento de El Hayek, da Revista do Centro de Divulgação do Islam para América Latina, 2002: 17). O Al zakat na língua árabe, conforme Maháiri diz, É o ato com que o muçulmano retira do seu dinheiro, após fechar um ano de atividades, uma percentagem definida e a entrega aos necessitados [...]. Quem impedir o recolhimento da zakat, negando sua obrigatoriedade é um descrente. E quem a impedir por avareza, embora reconhecendo sua obrigatoriedade, é um pecador [...] e do mesmo deve ser cobrada pela força, além de ser responsabilizado pela infração. E se resistir no intuito de não pagar, deve ser combatido até se submeter ao desígnio Divino. (Mahairi, 1977: 59) A justificativa para a obrigação desta prática baseia-se em um dos princípios mais importantes do Islã, que é o de que todas as coisas pertencem a Deus e que a riqueza está apenas confiada aos seres humanos. Nos depoimentos dos imigrantes muçulmanos em Goiás, eles afirmaram diferentes valores acerca das porcentagens, das doações que se deve dar aos muçulmanos mais pobres. Um dos imigrantes muçulmanos da comunidade de Goiânia criticou as outras religiões, que cobram ofertas e dízimos, dizendo que “não podemos pagar para ser salvos, é de graça, basta aceitar Deus como único salvador e profetizar isto de coração voluntário”. E complementa: colocam a caixinha para receber ajuda, já a religião islâmica, não aceita ajuda assim. Que vem da Arábia Saudita, talvez eles aceitem, mas alguém que conheceu a religião e quer pagar, não pode, tem que ser de graça e não tem muito muçulmano em Goiânia para unir pra ajudar a construir a mesquita, mas se Deus quiser, vão fazer a mesquita pra criança fazer religião, assim fica mais fácil. (I. P. G., 38 anos, 2002) Os imigrantes muçulmanos ainda afirmaram que no Islã eles fazem doações, isto quer dizer que eles devem “distribuir aos irmãos necessitados, mais pobres, 10% do que você tem em mercadorias, como saco de arroz, feijão, sal, açúcar, enfim, o que você tiver e ainda, 3% em dinheiro” (I. P. J., 70 anos, 2003). E ele ainda complementa dizendo que “Esta ação é uma obrigação de todo muçulmano, irmão islâmico não passa 92 necessidade, não passa fome, porque os mais ricos têm obrigação de ajudar os mais pobres e é pecado não fazer isto”. A mesquita de Anápolis recebeu doações de outras entidades beneficentes muçulmanas do Brasil, dos EUA e do Oriente. Com relação a essas doações, algumas famílias entraram em divergência pela liderança da mesquita, disputando sobre quem já conseguiu mais doações para a mesma. Uma das famílias disse que eles chegaram primeiro em Anápolis e começou a construção da mesquita, por isso doaram ou conseguiram mais doações do que aqueles que chegaram depois. Mas todos têm o desejo e querem contribuir com seu zakat para terminar a mesquita. O zakat é incessantemente mencionado no Islã, juntamente com a oração, como algo que foi objeto do ensinamento de todos os profetas, inclusive aqueles anteriores a Mohammad. Jomier (1992) afirma que ele é um princípio do direito dos pobres a uma parte do patrimônio dos ricos e é bastante elogiado no Corão, onde é enfatizado que aqueles que dão esmolas irão para o paraíso. O quarto pilar do Islã chama-se sawn e significa jejum, o qual é realizado no mês de Ramadã. Gaarder (2001) diz que “O jejum simboliza o retiro que cada muçulmano deveria fazer, como fez Maomé”. O jejum é um tributo e devoção obrigatórios para os muçulmanos, sendo a representação de obediência e celebração ao Deus Supremo. Os imigrantes muçulmanos, nos seus depoimentos sobre esse pilar da religião islâmica, citam passagens do Alcorão, e um deles, da comunidade de Goiânia, disse que o Apóstolo de Deus disse: “É no mês de Ramadã que Deus determinou para vós o jejum e aquele que o praticar com sincera intenção e fé, suportando pacientemente o sofrimento da fome e da sede, redimiu-se de suas culpas, tornando-se tão puro quanto o fora ao nascer” (I. L. G., 58 anos). Al-Khazraji (2002) apresenta as vantagens e critérios para se fazer o jejum de Ramadã. Ele lista, dentre as vantagens de se entregar a esse ritual, a cura de doenças, o adestramento da paciência, o ensinamento da tolerância, que leva à tranqüilidade, ao aumento das benevolências e à remissão dos pecados. O jejum no mês de Ramadã14 deve ser absoluto e iniciado a partir de seu primeiro dia, desde o alvorecer até a noite. Nesse período não se pode comer, beber, fumar ou manter relações sexuais. Um dos imigrantes muçulmanos, quando fala da participação dos jovens nos dias das festas, cita logo a de Ramadã: 14 Ramadã é o nono mês do ano islâmico, onde se é medido pelas 12 revoluções completas da Lua em torno da Terra e numa média, seu ano é 11 dias menor do que o ano solar. 93 agora nos dias das nossas festas muçulmanas eles vão juntos, rezam, participa, porque no Ramadã é um jejum de 30 dias, aí quando termina os 30 dias, vem uma festa de 3 dias para os muçulmanos, nessa época todo mundo vai para a mesquita depois das 6:00 da tarde, para todo mundo rezar de madrugada, todo mundo quando termina, come, bebe refrigerante, cumprimenta todos, depois quando termina, todos vão ao cemitério, todos rezam pelos mortos, visita um por um e quando termina, a gente visita os parentes em casa cumprimenta a todos. (I. P. J., 58 anos, 2003) Para o jejuador, que se priva dos confortos da vida, o jejum é uma grande lição de humildade e simpatia por aqueles que sofrem fome e ao mesmo tempo desenvolve a sua vida espiritual. É permitida a quebra do jejum àqueles que estiverem doentes, aos idosos, aos que estiverem em viagem, à mulher grávida ou que esteja amamentando, desde que jejue em outra época o mesmo tanto de dias quebrado. Por ser o jejum muito benéfico para a saúde e ainda ser considerado um método de purificação pessoal, as crianças, a partir da puberdade já jejuam. A prática da religião e as manifestações sócio-religiosas têm colaborado para as comunidades muçulmanas em Goiás se manterem enquanto tais. Especificamente no caso das comunidades muçulmanas, dentre as manifestações religiosas, a do Ramadã é a mais significativa, tanto para socialização e aglutinação dos muçulmanos quanto para as reafirmações e reforços de sua identidade. A importância do ritual do Ramadã, que é a grande festa do último dos 30 dias do jejum imposto pela religião islâmica e realizada uma vez por ano, é medida pelos depoimentos deles. Eles descrevem com muito entusiasmo esta festa e também a da peregrinação, depois da visita ao monte Arafat, que se chama “Festa Maior”. A festa, para eles, sintetiza os princípios e valores religiosos defendidos e guardados pela comunidade e é o momento de reencontro e de sociabilidade. Em Jataí, as festas religiosas e as celebrações de casamentos aconteciam no clube da Sociedade Beneficente Muçulmana, atualmente fechado. No momento não estão promovendo as celebrações em razão dos problemas econômicos vividos no país, mas eles pretendem retornar as atividades na Sociedade. Eles reclamaram desta desativação e estão esperando o término da mesquita para voltarem a se reunir. As comunidades dos imigrantes muçulmanos em Goiás têm procurado afirmar e externar suas identidades nessas festas. O que se observou são as constantes criações e recriações da identidade nelas, quando criam espaços e momentos para as afirmações de seus valores e princípios norteadores da religião. Dessa maneira, estes elementos, 94 traduzidos pela prática das festas religiosas, simbolizam e externam os significados atribuídos à manutenção e reafirmação da identidade. Nesses encontros religiosos e festivos, os imigrantes muçulmanos vão construindo a identidade étnica enquanto um grupo de origem religiosa comum, que compartilha de práticas religiosas, como os pilares da religião islâmica, que explica todo um modo de ser “muçulmano”. Este modo, conforme visto nos depoimentos já citados, é incorporado interiormente e também demarca os limites fronteiriços interétnicos entre os imigrantes muçulmanos e os brasileiros, mesmo quando não estejam cumprindo todas as obrigações da religião. A peregrinação15 à Meca (hadj ou hajj) é o último pilar do Islã. É essencial que todo fiel a faça pelo menos uma vez na vida, caso tenha condições financeiras e físicas para tal, não podendo tirar o sustento da família para esse empreendimento. Por volta de dois milhões de pessoas, aproximadamente, vão a Makka a cada ano, de todas as partes do mundo. Apesar de lá estar sempre cheio de visitantes, o hajj anual começa no décimo segundo mês do calendário lunar islâmico. Assim, o Ramadã algumas vezes cai no inverno, outras vezes no verão. A visita é ornamentada de todo um ritual de passagens e orações nos lugares sagrados, como no Kaaba. Foi interessante observar que os muçulmanos que já fizeram a peregrinação ganham um nome específico que os identifica como peregrinadores, ou seja, que já foi à Makka, e por isso acrescenta-se “peregrino” ou “peregrina” na frente de seus nomes. Vários dos imigrantes muçulmanos das três comunidades muçulmanas estudadas já fizeram a peregrinação. Os imigrantes muçulmanos que já passaram pela peregrinação são tratados com muito respeito e veneração por todos da comunidade. Geralmente eles são eleitos líderes religiosos na comunidade e isso se torna um dos requisitos para tal. Isto demonstra a importância, para eles, de se fazer a peregrinação, mas também somente pode ir quem tem dinheiro. Um imigrante muçulmano da comunidade de Jataí, Faruk, disse que não pode ir e deixar a família passando necessidades, só vai se tem dinheiro sobrando e ainda deve-se, quem tem família, casar os filhos 15 Gaarder (2001) descreve os rituais da peregrinação começando, “quando os peregrinos aproximam de Meca, passam a usar vestes brancas. Nos dias que se seguem eles irão realizar uma série de ritos, dentro e fora da cidade. O primeiro rito consiste em caminhar em torno da Caaba sete vezes (...). Outro momento importante é quando os peregrinos se postam no monte Arafat, desde o meio-dia até o pôrdo-sol, sem permissão para proteger a cabeça do calor intenso (...). O clímax vem com o festival dos sacrifícios. Os peregrinos matam um animal (um carneiro, bode, camelo, boi, etc). Esse sacrifício serve para lembrar aos muçulmanos que Abraão foi tão obediente a Deus que se dispôs a sacrificar seu próprio filho” (Gaarder, 2001: 130). 95 primeiro, e aí sim, estará livre e depois da visita, todos os pecados que ficou pra traz são perdoados e a partir daquela data, começa vida nova. Você chega lá, pede o perdão de Deus e você vai sair de lá como se tivesse nascendo hoje. (I. P. J., 58 anos, 2003) Alguns dos muçulmanos entrevistados direcionam suas conversas para a religião, insistem em divulgar os conteúdos doutrinários, os preceitos, enfim, em fazer propaganda e comparações de sua religião com as outras. Dentre os conteúdos da religião islâmica expostos pelos muçulmanos imigrantes, está a forte tendência em falar dos pilares da religião e suas práticas. Também os chefes religiosos e os centros de divulgações do Islã estão sempre divulgando periódicos, livretos ou jornais com enunciados sobre a religião, sobre sua prática religiosa, a história da formação da religião, dados sobre as comunidades muçulmanas no Brasil. Geralmente eles publicam, no dizer deles, modelo que sirva de guia para todas as Sociedades e todos os Centros Islâmicos, para que as esperanças e finalidades para as quais foram fundados sejam realizadas e que são: servir o Islamismo e aos Muçulmanos, elevar a Palavra de Deus, abandonar a troca de apelidos pejorativos, evitar perseguir vantagens pessoais e ambições sociais, cerrar fileiras para melhorar o trabalho Muçulmano neste país e proteger os filhos da Comunidade Muçulmana da perdição e dissolução seguindo os maus exemplos de promiscuidade e imoralidade das sociedades majoritárias [...]. (Maháiri, 1985: 7) Os imigrantes muçulmanos e os Centros ou Federações do Islã têm pregado a união dos muçulmanos e que eles se reúnam na obediência a Deus: ao focalizarmos detidamente os ensinamentos do Islamismo e detalharmos os seus pilares, as suas adorações, os seus relacionamentos e os seus comportamentos, sairemos com uma conclusão que não deixa nenhuma margem a dúvidas e que é a de que, o Islamismo é a religião da sociedade, em sua totalidade e a religião eterna da Humanidade. (Maháiri, 1985: 46) Desta forma, o depoimento de um imigrante muçulmano encerra a concepção e a função da religião apresentada: Deus é único, que tudo sabe e tudo criou [...], a religião muçulmana é isso ai, paz e caridade. Quando fala assim: muçulmano quer ser livre, isso significa ser livre de toda maldade da boca e do olho, se eu olhar pra você, você vai saber se eu olhei com bem ou com o mal. Então a 96 religião muçulmana manda olhar com o coração de bem e não de mal, porque se eu for olhar pra você com o meu coração de mal eu parto a minha cabeça no chão. (I. P. J., 48 anos, 2003) 2.2. Religião e comércio na vida dos imigrantes muçulmanos Segundo Nabhan (1996), houve um grande período de prosperidade na região da atual Arábia Saudita, onde começou o Islã, entre os séculos VII e IX, com o fluxo de comerciantes e mercadores. Eles propagavam as idéias da nova crença, e o comércio se constituiu em uma das causas da expansão da cultura religiosa islâmica. A difusão e o apogeu do comércio fez expandir e consolidar a religião islâmica no mundo árabe. Desta forma, a profissão predominante dos muçulmanos, desde a época do surgimento da religião e sua expansão até a atualidade, tem sido a de comerciante. Os imigrantes muçulmanos, questionados sobre o que representa o comércio na vida deles, dizem que este é sagrado ou que a religião deles nasceu do comércio entre as cidades, entre as tribos e aldeias. A prática das imigrações em busca de melhores condições de vida, em especial das imigrações muçulmanas, a prática do comércio “constituía o aspecto mais importante da vida do Islam” (Nabhan, 1996: 39). “A prática religiosa e a vocação pra o comércio, nas suas relações entre si, foram fatores históricos determinantes, originários das primeiras formas de se ensinar e propagar a religião islâmica” e que mesmo depois da morte do Profeta continuou se expandindo por todo o mundo conhecido (Nabhan, 1996: 36). Enfim, os fatores históricos, aliados às construções da identidade cultural na formação social das comunidades muçulmanas em Goiás, apesar de possuírem características específicas, revelam um modo de vida adequado, à grande e diversificada sociedade onde vivem. Contudo, apesar de serem comerciantes desde o surgimento da religião, a prática desse comércio não é a mesma desde a origem da religião, e nem mesmo de quando emigraram para o Brasil. Dada as necessidades de convivência com um novo modo de vida, estes imigrantes modificaram suas práticas no comércio, com novas formas, hábitos e costumes. Dentre as necessidades surgidas na nova terra, estão aquelas referentes à negociação do modo de comercializar, re-configurado pelo contexto econômico e social da expansão das fronteiras agrícolas para o interior do Brasil, inclusive Goiás, chamada Marcha para o Oeste. 97 As primeiras atividades de mascateação iniciaram-se no interior de São Paulo, com a maioria de árabes cristãos e uma pequena quantidade de muçulmanos. Eles visitavam as fazendas de café, levavam apenas miudezas e bijuterias, mas com o tempo e com o aumento do capital começaram também a oferecer tecidos, lençóis e roupas feitas, dentre outros artigos. Conforme acumulavam os ganhos, os mascates contratavam um ajudante ou compravam uma carroça. O passo seguinte era estabelecer uma casa comercial, sendo o último passo a indústria. Contudo, eles não ficaram somente no Estado de São Paulo. No século XX, a partir da década de 1920 e seguintes, principalmente a de 1950, intensificou-se a imigração de árabes muçulmanos para o Brasil e a sua expansão para outras regiões do país, como, por exemplo, para as regiões Norte e Centro-Oeste. Quando os imigrantes árabes muçulmanos chegaram ao Brasil já havia mascates portugueses e italianos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Entretanto, a mascateação tornou-se uma marca registrada da imigração árabe, e em particular para os muçulmanos, em razão de peculiaridades criadas por eles. Nesta atividade, esses imigrantes introduziram inovações que hoje são vistas como traços marcantes do comércio popular dos camelódromos: as redefinições das condições de lucro, as práticas de alta rotatividade e alta quantidade de mercadorias vendidas, as promoções e as liquidações. Estas inovações revelam o traço definidor da versão árabe da mascateação, qual seja, o interesse pelo consumidor e o espírito batalhador. A prática do comércio pelas comunidades muçulmanas está presente na vida deles desde a época da formação da própria religião islâmica, que deu origem às comunidades muçulmanas e aos grupos islâmicos pelo mundo. Isto pode ser observado no Alcorão, que, ao ditar todas as normas sobre o modo de vida dos muçulmanos, contempla também esse modus operandi ou comportamento típico que se formaliza no cotidiano dos muçulmanos. Desta forma, o comércio está posto pelo Profeta Mohammad em um dos seus ditos (hadith): “O comerciante honesto está associado aos profetas, aos santos e aos mártires” (El Hayek, 2000:13). De acordo com Nabhan, Maomé e seus seguidores andavam em seus camelos pelas vilas da região do norte da Arábia Saudita, comercializando mercadorias com o objetivo de juntar dinheiro, obter armamentos e voltar para Meca para vencer os inimigos religiosos daquela cidade (Nabhan, 1996: 39). A religiosidade e a vocação para o comércio foram fatores históricos determinantes, originários das primeiras formas de ensinar e propagar a religião. A atividade de comércio é familiar a muitas tribos 98 muçulmanas, em muitos dos territórios árabes, que se constituíram em rota tradicional de comércio, ou seja, de tráfego de mercadorias entre os países ocidentais e os orientais. Truzzi também exemplifica esta situação: “a facilidade e propensão a trabalhar no comércio também deve ser buscada no fato de muitos deles já terem exercido tais atividades em seus países de origem” (Truzzi, 1997: 44). E, acrescentando, ele diz que estas atividades comerciais foram, no passado distante, da época da formação da religião islâmica, preponderantemente exercidas, contribuindo, desta forma, tanto para a formação quanto para a expansão do Islã pelo mundo (Truzzi, 1997: 46). Nunes (2000) explica que a inserção dos imigrantes árabes, pioneiros na economia goiana como comerciantes deve-se, além das circunstâncias adaptativas locais, ao processo histórico anterior à imigração, uma vez que comprar e vender eram atividades costumeiras desde seus países de origem. É notável a estreita e importante relação do comércio e da religião na vida dos muçulmanos. A religião islâmica fixa leis para o comércio, sobre as doações e sobre o lucro. Para o Alcorão, tudo é permitido com relação ao comércio, desde que sempre se busque a honestidade, não se podendo avançar além dela. O avanço seria a usura, que não é nem comércio nem lucro. É um meio de exploração e concentração de riqueza. O Alcorão Sagrado diz: “Quando emprestardes algo com usura, para que vos aumente [em bens] às expensas dos bens alheios, não aumentará perante Deus; contudo, o que derdes em zakat, anelando contemplar o Rosto de Deus [ser-vos-á aumentado]” (30ª Surata, versículo 39 do Alcorão). O Centro de Divulgação do Islã para a América Latina divulga em seus periódicos os princípios do Islã e determina regulamentos detalhados para a conduta e a vida econômica, que dizem respeito principalmente aos ganhos e ao uso da riqueza. Esses princípios econômicos visam estabelecer uma “sociedade justa, onde cada um conduzir-se-á com responsabilidade e honestidade, e não como ‘raposa astuta’, lutando para abocanhar a maior porção de tudo, sem se importar com a honestidade, a veracidade, a decência, a confiabilidade, a probidade”. Em um dos periódicos do Centro de Divulgação do Islã para a América Latina é citado um dito do profeta: “No comércio entre vós não há prejudicar nem usar artifícios ilegítimos ou de subterfúgios”. E complementa ao afirmar que o muçulmano deve sempre lucrar de maneira lícita e deve sempre ter em mente que qualquer coisa que faça Deus o sabe. Ele prestará conta de seus atos no Dia do Juízo, pois não poderá esconder nada de Deus, Todo-Poderoso. E algumas proibições são severas, inclusive com penalidades para o infrator, como é o 99 caso, por exemplo, da não permissão para vender e consumir bebida alcoólica, nem mesmo sentar em mesas que tenham pessoas bebendo, porque, diz um imigrante muçulmano, na nossa religião não pode enganar os outros, não adianta dizer, esta cama é isso, é boa, importada, mas é fabricada aqui, nossa religião é ligada com o comércio e a honestidade. A situação mais importante na nossa religião, que é proibido, é não poder enganar, o engano não é de Deus. O lucro não pode ser exagerado, nossa religião não permite juros. (I. P. J., 48 anos, 2003) Um muçulmano palestino de Jataí, atualmente um grande empresário, contou que ao questionar um sheik sobre o que fazer quando se vive em um país de instabilidade monetária, como o Brasil, teve a seguinte resposta: no caso de países que tem desvalorização do dinheiro, como o Brasil, pode cobrar os juros, porque senão daqui uns dias o comerciante está quebrado. Agora num país que tem equilíbrio da moeda, não pode cobrar juros exagerados, aí complica, se você precisa pra sua família e pega comigo R$200,00 e eu te cobro R$400,00, é isto que chama de juro, neste caso eu não estou te ajudando, eu estou acabando com você, tem que se trabalhar de acordo com o país que se está morando: se eu vender sem juros em 10 vezes, então eu quebrei, o sheik falou que neste caso não há problema. (I. P. J., 48 anos, 2003) Ao serem perguntados sobre a importância do comércio, os imigrantes muçulmanos responderam que o mesmo é sagrado. Um dos imigrantes muçulmanos disse: “a gente tem no sangue, o sangue dos árabes é o comércio”. E ele dá um exemplo disso ao contar que, mesmo depois de ter deixado de trabalhar com o comércio porque já estava velho e cansado, há uns seis anos atrás, falou com um homem: Senhor me dá licença, eu trabalhar de vender um bocado destas laranjas, eu disse vem chupar laranja de graça, vem chupar laranja, todo mundo começou a vir, todo mundo começou a chupar laranja de graça, estava doce, todo mundo começou a comprar, vem chupar laranja doce de graça, todo mundo chupando, todo mundo começou comprando, ele ficou muito satisfeito, ficou amigo, veio almoçar em casa. (I. P. J., 70 anos, 2003) Eles oram em seus estabelecimentos comerciais com o intuito de abençoá-los, promovem todo um ritual para que Deus os proteja e lhes assegure o sucesso. Especificamente sobre esta situação, eles dizem que quando abrem a porta do 100 estabelecimento a primeira coisa que devem fazer é invocar o nome de Deus, e depois da primeira venda, caso seu vizinho ainda não tenha vendido nada, deve encaminhar-lhe o próximo cliente, para que também este abra a sorte para as vendas. Eles relataram que “é assim que manda a religião, só que às vezes o ser humano não pratica isso”. Outro imigrante muçulmano exemplificou a influência do comércio na expansão da religião islâmica: O povo andava muitos quilômetros no camelo, pra avistar o mar, trocava mercadorias nos países da Europa e voltava com outra mercadoria, inclusive a origem da palavra camelódromo, veio de uma palavra árabe, que aqui mudou para mascateando, que neste caso, o cara chegava aqui, comprava roupas e aí, carregava as malas, na realidade era o camelódromo, porque lá fazia esta coisa, esta troca, quando carregava no camelódromo, e atravessava milhares de quilômetros para chegar na Europa, na América Central, para trocar estas mercadorias, trocava as mercadorias que tinham lá, que era perfume, que mais tinha naquela época, como seda da índia, tapete, e outras coisas, levava pra lá. Os comerciantes levavam várias coisas para o oriente. (I. P. J., 34 anos, 2003) Ainda sobre a influência da religião na vida deles como comerciantes, um dos entrevistados disse que “a religião que nos induz para melhorar a vida, mas o Alcorão procura melhorar a vida no seu giro16, conforme você usa a palavra de Cristo, seus frutos, se você reconhece e se planta batata, vai colher batata, tudo que você planta você colhe” (I. P. J., 48 anos, 2003). Truzzi também se refere à propensão da família dos imigrantes árabes para o comércio, pois muitos, antes de migrar, exerciam pequenas atividades comerciais, mesmo aqueles que eram agricultores ou criadores de gado. “Era comum que a própria família se envolvesse com a comercialização de seus produtos, o que de alguma forma os aproximava da condição de comerciantes” (Truzzi, 1997: 45). El Kadi nota o que eles eram antes de imigrarem e as imposições para alcançar êxito ao entrar no Brasil, quando diz que Embora uma parte significativa fosse de lavradores em sua terra natal, no caso dos imigrantes libaneses, incluindo-se aqui, os muçulmanos libaneses e os palestinos, nenhum aqui chegado exerceu esta atividade, e sim a mascateação. Ser agricultor e passar no teste de 16 Eles chamam de giro o capital de giro conhecido no meio empresarial, mas inclui não somente o dinheiro fisicamente, mas também, como principal giro, “o giro também quer dizer trabalho, o giro da cabeça, você trabalhou você recolhe” (I. P. J., 48 anos, 2003). 101 saúde, leia-se, não ter tracoma, o que eles qualificaram como “uma espécie de alergia”, era o passe livre para o Brasil. (El Kadi, 1997: 86) Observou-se, desta maneira, o entendimento de que há nos muçulmanos um ethos econômico de vocação para o comércio, influenciado pela formação religiosa ou filiação religiosa de propensão para esta atividade, influenciada pelo seu passado histórico-religioso e político. Contudo, com a imigração para o Brasil, e para Goiás especificamente, o comportamento do muçulmano, na condição de imigrante em terras estranhas, passa por transformações e mudanças “adaptativas”, determinadas no contexto da sociedade migrada. Esta situação se dá em razão da busca de melhores condições de vida, passando por um processo de adaptação às condições econômicas locais, que não poderiam ser melhores do que para o comércio de mercadorias diversas, uma vez que este tipo de atividade não requer um investimento maior. Notou-se, dadas as condições de trabalho anteriores à imigração e as circunstâncias aqui encontradas, que a maioria dos que vieram para o Brasil se tornaram comerciantes. Faruk, imigrante palestino da comunidade de Jataí, disse: “um árabe que vem para o Brasil, não tem como ele trabalhar com terra, isso pra começo acha mais fácil” (I. P. J., 48 anos, 2003). Os imigrantes, além de se identificarem como comerciantes na nova terra, segundo Truzzi, na qualidade de pioneiros, os imigrantes árabes operaram no Brasil e também em Goiás uma verdadeira revolução nas práticas comerciais. De fato, eles “arejaram” o comércio, redefiniram as condições de realização do lucro para todo o setor, ao adotarem uma política de vendas, aumentando a quantidade vendida, ao buscarem uma alta rotatividade no estoque, ao inaugurarem a promoção de liquidações, ao reinvestirem os lucros no próprio negócio e, finalmente, de um modo geral, ao dedicarem maior atenção às necessidades e condições do consumidor. Por tudo isso, não seria demais afirmar que foram eles que, no Brasil, “inventaram” o comércio popular, dando balizamento a seus parâmetros hoje tão comumente empregados. (Truzzi, 1997: 58) Nunes também constatou o interesse dos imigrantes árabes pelo comércio “em todos os níveis de hierarquia ocupacional, assim como seus conterrâneos anteriores, revelaram sempre preferência pelo trabalho autônomo e pelo comércio e total desinteresse pelas atividades relacionadas ao campo” (Nunes, 2000: 109). Para Truzzi (1997), esta situação ocupacional autônoma foi fruto da acumulação primeira, ou seja, a atividade de mascateação, a qual se deu praticamente independente 102 de outras classes e fundamentalmente dependente apenas do trabalho do imigrante. Ele compara o trabalho de colonato ou a proletarização ocorridos nos diferentes grupos imigrantes de outras nacionalidades e o trabalho de mascateação do imigrante muçulmano, dizendo que este oferecia uma enorme vantagem em relação àqueles outros tipos de inserção ocupacional, que eram mais diretamente submetidos às camadas sociais de proprietários. E complementa dizendo que à proporção que o comércio se fortaleceu, estabeleceu-se uma corrente de imigrantes vindos por laços de parentesco ou de origem comum, que a cada leva refazia o ciclo, abrindo seu próprio espaço numa cidade que à época se urbanizava velozmente. Dessa forma, mesmo que inicialmente às custas de muito trabalho e pouco usufruto, as vias de ascensão econômica sempre permaneceram razoavelmente desobstruídas para muitos. (Truzzi, 1997: 103) Também os imigrantes explicam a necessidade de, ao chegarem, iniciar trabalhando em uma atividade autônoma que não requeresse deles muito investimento, uma vez que a maioria chegava no Brasil quase sem recursos financeiros – ou mesmo sem nenhum. Desta forma, eles se tornaram mascates e depois comerciantes, também porque Vieram sem recursos, o que os impedia de estabelecerem-se como proprietários rurais. Em particular, diante de uma estrutura agrária concentrada, teriam de empregar-se como colonos ao longo de, pelo menos, uma ou duas gerações, para terem a chance de conquistar o acesso a algum tipo de propriedade rural [...]. (Truzzi, 1997: 43) 2.3. De mascates a comerciantes A discussão sobre a imigração brasileira, iniciada nos primeiros tempos após a escravatura, identifica-se com a necessidade do “branqueamento” do povo brasileiro. Principalmente as elites brasileiras iniciam o processo de defesa e encorajamento da entrada de imigrantes, considerados propícios à formação de uma raça branca, incentivando o que eles chamariam de aumento da quantidade de sangue ariano entre o povo brasileiro. O sucesso dos imigrantes árabes no Brasil, inclusos aí os muçulmanos, foi tão grande que não deixou de gerar sentimentos contraditórios de inveja e concorrência, 103 aliados à admiração pela dedicação, autonomia e ousadia com que esses imigrantes desbravavam os sertões, sem mediar esforços para as longas labutas cotidianas. Nunes (2000) retrata um pouco dos diversos momentos em que os imigrantes foram alvos de conceituações esdrúxulas ou críticas ferozes. Em um desses, na metade dos anos 1930, uma grande parte da elite brasileira, atribui o sucesso dos imigrantes mascates na economia brasileira, a uma condição biológica: “Os sírios e libaneses descobriram o Brasil e a sua propensão toda acentuada para o comércio ambulante os fez precipitar-se para lá em multidão. Graças às suas qualidades hereditárias suplantando facilmente os primeiros mascates [que eram italianos...]...” (Nunes, 2000: 146). Desta forma, as primeiras gerações de mascates e ou comerciantes árabes, e dentre estes, ainda em pouca quantidade, os muçulmanos, entram em cena, em um momento conturbado e chacoalhado pelas teorias da evolução das raças e do processo de aculturação. A inserção dos imigrantes muçulmanos na estrutura ocupacional econômica e social da sociedade brasileira e goiana realizou-se, inicial e basicamente, pela atividade comercial, na sua primeira forma, a mascateação. Os imigrantes preencheram uma espécie de lacuna ou fatia do mercado ainda não satisfeita, com a distribuição de mercadorias onde uma população urbana significativa e de poder aquisitivo ascendia, ansiosa por usufruir e consumir os produtos industrializados originados dos centros industriais e ainda não disponíveis na economia goiana. Desta forma, como visto, este tipo de trabalho ficou conhecido por todo o interior do Estado goiano, bem como em outras regiões do Brasil, como mascateação, e mascates eram aqueles que se dedicavam a esta atividade. De acordo com Nasser, poeta que enaltece a figura do mascate em seus versos, O nacionalismo não se restringe apenas àqueles que trazem sobrenomes portugueses, lembrando o tempo das descobertas. Ergamos a nossa taça a Alá, aos desbravadores desses caminhos, entre os quais, Emílio Carlos, o deputado mais votado do Brasil, e que rasgou a sua estrada levantando preces nos comícios, ao baú de mascate de seu pai. (Nasser, O Jornal, 26 out. 1969) Safady (1972) descreve o imigrante de origem árabe em São Paulo como mascate, aproximando-o de uma versão contemporânea do “bandeirante” que desbravou o interior do Brasil. Lesser (1992) incorpora a versão ocupacional do mascate para os árabes, tomando esse segmento como uma “nova classe média”. Percebeu-se, assim, o 104 contexto institucional pelo qual os imigrantes são recebidos no país, e ainda ele chama a atenção para a forma como as políticas assimilacionistas os incorporaram aos “nacionais”, priorizando a relação com o poder público, como eixo definidor de etnicidade. Nunes (2000), ao falar do início das atividades dos imigrantes como mascates e comerciantes, afirma que “Esse comércio itinerante foi a atividade responsável pela integração econômica desse grupo e conseqüentemente, por uma série de preconceitos populares que reforçaram seu estereótipo como ‘imigrantes pobres vindos do Levante que começaram sua carreira como mascates itinerantes’” (Nunes, 2000: 146). De acordo com Lesser (1992), a evolução da mascateação em larga escala nas cidades seguiu a expansão industrial no Brasil, induzida pelo crescimento da população. A distribuição de produtos não progrediu tão eficientemente quanto o crescimento industrial, e a nova, e relativamente grande, classe média desejava previamente mercadorias não-disponíveis. E assim, “a redistribuição de capitais e novas demandas não foram seguidas pela oferta e nas áreas urbanas e rurais, os mascates distribuíram mercadorias, de uma forma eficiente e barata” (Lesser, 1992: 400). Também as dicas de patrícios e redes de parentes nortearam suas “escolhas” quanto aos caminhos a percorrer, e a atividade de mascate permaneceu condicionando e iniciando os imigrantes na sociedade. Um outro aspecto importante sinalizado por Lesser (1992), dado o descompasso entre a demanda e a oferta, sobretudo, de produtos industrializados, diz respeito aos rendimentos obtidos na mascateação, um forte atrativo que compensava as dificuldades das viagens feitas a pé, de jardineira ou de trem, cortando de norte a sul, adentrando regiões de difícil acesso, em busca de potenciais consumidores. Contudo, os mascates não penetraram somente pelos sertões longínquos, mas também nos espaços urbanos, onde ganhavam duas vezes a média diária do salário da época. A aceitação de mercadorias em troca daquelas vendidas pelos mascates era comum naquela época, em razão da escassez do dinheiro. Os depoimentos confirmaram o quanto a mascateação representava um negócio atraente, ao proporcionar um ganho rápido e maior, “Porque entrou no comércio, e daí começamos a trabalhar, mascatear dava mais que lavoura” (I. L. G., 66 anos, 2002). Os imigrantes, ao chegarem em Goiás, diz Nunes (2000) “encontraram uma sociedade em vias de se urbanizar, onde o comércio se constituía em um espaço ideal de inserção profissional”. A Marcha para o Oeste proporcionou e viabilizou o comércio, 105 em razão da expansão das fronteiras agrícolas para o interior do Brasil, como foi, especificamente, o caso de Goiás. E assim, novos mercados consumidores se tornaram propícios e ávidos para receber os comerciantes mascates, conforme pode ser observado no mapa do Estado de Goiás (em anexo), em cidades com grupos muçulmanos nascidas a partir dessa expansão. Ela foi feita através da melhor utilização da capacidade produtiva do país, da produção de bens e serviços relativamente independentes do setor externo e da instalação, na região, de unidades produtoras de bens anteriormente importados [...] tornou-se necessária a criação de uma base de apoio nos Estados periféricos, que ficariam encarregados da produção de gêneros alimentícios e matérias-primas para abastecer o Centro-Sul. Foi, portanto, com a função de fornecer produtos agrícolas à futura área industrial do país, que Goiás se integrou à Marcha para Oeste. (Nunes, 2000: 84-85) A viabilização do comércio em Goiás, proporcionada pela expansão das fronteiras agrícolas, tornou-se uma atrativa fonte de consumo local, principalmente para as mercadorias de diversos tipos, tais como utensílios domésticos e confecções para casa e vestuário, objetos de mimos e perfumes. Estes tipos de mercadorias eram os de maior interesse para o comércio dos imigrantes muçulmanos, que andavam livres, por onde queriam, mascateando pelo interior do cerrado goiano. De acordo com informações contidas no Boletim Goiano de Geografia, a atividade dos mascates estendeu-se para todo o interior de Goiás, e os mais privilegiados, possuidores de maior suporte econômico, estabeleciam-se em casas alugadas. Muitos acompanhavam a trajetória dos trilhos, outros permaneceram nas cidades por eles escolhidas. Novos imigrantes procuravam, de preferência, sempre a ponta da linha e o interior mais próximo. Justifica-se essa atitude pela obtenção de maiores lucros e maior rapidez na aquisição das mercadorias, que vinham de São Paulo. (Boletim Goiano de Geografia, 1983: 67) Dentre as justificativas apresentadas para a mascateação, a de que chegar aqui sem dinheiro algum e poder começar a trabalhar sem a necessidade de investimentos é a primordial. Como os imigrantes muçulmanos de Goiás explicaram, “não tem condições de chegar e abrir uma loja”. Por isso, “o único meio de começar a vida aqui, então a única condição que ele pode é abrir uma mala de roupa, porque o irmão ajuda, o amigo ajuda, enche uma mala de roupa e vai trabalhando, dessa mala, vai ajudando você a abrir uma empresa” (. P. J., 48 anos, 2003). 106 Dessa forma, segundo Nunes (2000), os imigrantes recém-chegados recebiam ajuda dos que aqui já estavam, gravitando em torno dos que os haviam precedido, uma vez que estes já estavam estabelecidos e o sucesso dos primeiros, alcançado nas atividades de comércio, reforçava o desinteresse pela atividade agrícola dos procedentes. Isto também justifica o grande interesse, principalmente dos imigrantes do pós-guerra, ao chegarem no Brasil, em procurarem se estabelecer como os seus patrícios aqui radicados. Esses escreviam cartas descrevendo as condições locais e o sucesso alcançado, incentivando os próximos imigrantes a também se dedicarem ao mesmo ramo e se adaptarem às condições ofertadas pelos seus parentes e amigos da mesma região da terra natal, bem como pelas condições econômicas e sociais da “sociedade receptora”. Por último, cumpre ressaltar o contínuo processo de realimentação que representou a importação de parentes e conterrâneos pelos já estabelecidos no Brasil e em Goiás. A imigração para o Brasil e Goiás era uma decisão pensada e planejada, sobretudo para aqueles que decidiram vir porque precisavam melhorar de vida. Contudo, para os palestinos, a imigração era uma realidade a ser vivida, pois eles se tornaram estranhos em sua própria terra e teriam que migrar para algum lugar no mundo, e assim fizeram. Acerca dessa situação da imigração pensada e planejada, Truzzi afirma que desde o início havia uma clara noção, fornecida pelos que chegaram antes, de por onde deveria começar-se, do tipo de mobilidade a ser perseguida, de qual era o nicho em que a colônia se havia entrincheirado com sucesso, de onde, portanto, existia uma rede de conterrâneos funcionando efetivamente: provendo emprego, treinando e socializando o recém-chegado. (Truzzi, 1997: 56) Segundo El Kadi (1997), uma “cultura de cooperação”, apesar de ser informal, sempre permeou os laços de parentesco e de conterraneidade entre os imigrantes. Por trás de cada história individual, de cada ato do drama vivido que representou a aventura da imigração, havia para todos uma busca comum de se refazer a vida. Mesmo quando o imigrante muçulmano chegava com algum dinheiro, o máximo que ele poderia fazer seria comprar um pouco de mercadoria, sozinho ou junto com um amigo, e começar o ofício da mascateação. Um imigrante muçulmano, ao chegar em Goiânia, analisou o local e comprou mercadoria juntamente com um amigo e foram “trabalhar de ambulante que antigamente chamava mascate”. Naquela época saíam cedo e chegavam à noite, e andavam muito. 107 Passava na ponte e ela era suspensa, a base de cabo de aço, porque não tinha asfalto nessa época. De lá eu vim parar aqui em Jataí, voltamos para Rio Verde, aí o Jamil, meu amigo, me largou e foi com o outro pra Goiânia. Comprei novamente mercadoria e voltei pra cá. De Jataí, sempre mascateando, desceu para Mineiros, Alto Araguaia, Rondonópolis etc., e acabei retornando para Jataí. Andei a cavalo, dormia no cerrado e foi assim a vida nossa, eu tinha 22 anos quando cheguei aqui. (I. P. J., 70 anos, 2003) Truzzi (1997) compara a atividade do mascate e a de trabalhadores colonos ou operários, afirmando que enquanto aqueles alcançam a autonomia de trabalho livre e financeira, estes ficam presos à estrutura montada pelos seus patrões. Outro fator preponderante para a escalada de sucesso dos mascates, de varejistas, atacadistas, a empresários, em Goiás, que se conjuga às condições econômicas propiciadas pela expansão e integração do Estado ao desenvolvimento nacional, além da autonomia de trabalho livre, foi a expressiva coragem e capacidade criativa, como muitos estudiosos afirmam, entre eles Nunes (2000) e Nabhan (1996). Explicar o sucesso econômico dos imigrantes árabes pioneiros em Goiás apenas por uma conjuntura econômica favorável é minimizar outros aspectos relevantes, inerentes e significativos de sua atuação como comerciante, tais como: importância do parentesco; dedicação ao trabalho, autonomia e espírito de risco, de inovação e despojamento. (Nunes, 2000: 100) Essa autonomia, mesmo em pequenos empreendimentos, foi defendida pelos imigrantes, para quem o trabalho assalariado é considerado inferior e demonstra baixa capacidade de iniciativa pessoal e falta de ousadia. Outro argumento é o de que “eles estariam submetidos a outrem e seriam mandados pelo patrão”, com horário e salários estipulados. Nabhan (1996) corrobora a importância dada ao trabalho pelos imigrantes muçulmanos, ao dizer que este representa um papel primordial no Islã. A legislação muçulmana dita normas acerca da propriedade pessoal, que é reconhecida pelo trabalho, doação ou herança. O depoimento a seguir ilustra a importância do trabalho para os muçulmanos que vieram para o Brasil. Um imigrante palestino da comunidade de Jataí afirma: Trabalhei como mascate uns dois anos e acabei, em 1956, ficando em Jataí, abri lojas de roupas, agora tem fazenda, trabalhei no comércio até Deus não querer mais, não tem descanso, a maior satisfação da 108 gente é o trabalho, primeiro é o trabalho, depois é o descanso, sem trabalho não ganha dinheiro, sem dinheiro nós não vive, quem trabalha no comércio ganha melhor. (I. P. J., 70 anos, 2003) Conforme depoimento de um dos muçulmanos da comunidade muçulmana de Jataí, além do espírito de ousadia e da dedicação ao trabalho, o imigrante muçulmano é pai de família. Essa é uma instituição de valor inestimável para ele, para a qual tem total dedicação e preocupação, principalmente em relação ao futuro dos filhos, mostrandolhes, através do exemplo, como também devem se comportar: a gente gosta de dar duro pro filho, pra mostrar pra ele como é que a gente ganha o dinheiro, porque outro já traz o filho e o coloca na cadeira, tudo pronto, então ele pondo o filho pra ajudar, ele vê que o pai suou para ganhar esse dinheiro. Quando não vê, então o filho começa a gastar sem dó, porque ele não suou, não trabalhou pra ganhar esse dinheiro, então meu pai colocou meu irmão na mala uns anos pra sofrer, pra ver que o dinheiro não veio fácil. (I. P. J., 48 anos, 2003) Os muçulmanos vangloriam-se quando dizem que a história deles é uma história bonita porque, “você vê o negócio crescendo, não é crescendo rápido, mas de acordo com os nossos lucros, nossos lucros tudo aplicado, então você tem alguma coisa seu, que seu filho vê crescendo, tudo, esta é nossa história desde 1954” (I. P. J., 48 anos, 2003). Os imigrantes muçulmanos relataram, também, que a mascateação facilitou a aprendizagem da língua. “É importante começar com a mala, fazendo a vida, primeiro como mascate”, em razão de todos eles chegarem no Brasil sem saber falar a língua. Eles justificaram que a vida de mascate ou comerciante os fazia aprender, uma vez que, por exemplo, quando o freguês chegava, meu pai pegava a calça e dizia, “isto chama calça, este chama meia”, o pessoal escrevia calça em letra árabe, para aprender a outra língua, quanto mais escreve, aprende mais fácil, lia e ficava repetindo a palavra, olhando-a em árabe, porque não sabia a letra portuguesa. (I. P. J., 57 anos, 2003) Um dos imigrantes muçulmanos disse que não é difícil aprender a língua quando se tem interesse, e que começou escrevendo quinze palavras por dia. Escrevia em árabe, e, no alfabeto árabe, o significado em português. Alguns complementaram afirmando 109 que torna-se mais fácil aprender o português quando se sabe o inglês, em razão da semelhança entre as duas línguas. De acordo com Hasam, imigrante muçulmano da comunidade de Jataí, Você trabalha com a mala pra aprender a falar a língua, você trabalhando com mala, você aprende a língua mais rápido, porque se você fica dentro da loja, junto com seu pai e seu irmão você não aprende. Você vai falar árabe com eles, mas quando você pega sua mala, e vai andar na vila, andar na cidade, não tem ninguém que te ajude pra falar a língua, você é obrigado a aprender a língua. (I. P. J., 70 anos, 2003) Especificamente nas comunidades de Goiânia, Anápolis e Jataí, os imigrantes muçulmanos assumiram-se e identificaram-se como mascates logo nos primeiros anos. A mascateação é um ofício do recém-chegado, forma de inserção temporária no Brasil, na colônia árabe e nas comunidades muçulmanas. Segundo Seyferth, “tal ofício foi adquirindo o peso de uma vocação. Não por acaso, a produção literária de intelectuais da colônia discorre longamente sobre a figura do mascate, seja para torná-lo uma figura brasileira, seja para trazer à tona uma ‘vocação’ étnica para o comércio” (Seyferth, 1995: 110). E segundo Truzzi, A figura do mascate tratou, portanto, de galvanizar esse conjunto de elementos apreciados, positivamente valorizados pela sociedade receptora, reunidos especialmente ao redor da ética do trabalho, ao mesmo tempo em que buscava dissipar dúvidas ou desconfianças em relação a traços culturais oblíquos remanescentes, comportamentos exóticos ou outros valores não coadunantes com o novo ambiente. (Truzzi, 1997: 77). Segundo Truzzi (1997), a vocação comercial iniciada por um “simples mascate” não significou apenas mera inserção urbana do imigrante na “sociedade receptora”; mais do que isto, significou também sua inserção no meio rural, na atividade de mascateação por todo o interior. O campo de trabalho do mascate foi se alargando consideravelmente, na mesma proporção em que as cidades e as fronteiras agropecuárias cresciam e se expandiam, penetrando também nas fazendas e desenvolvendo o comércio. Assim sendo, a população rural também se constituiu em um importante mercado para os mascates. A possibilidade de encher um tabuleiro ou mala de bugigangas variadas e vendê-las em várias cidades, no interior do sertão goiano, nas zonas rurais, carentes das novidades do comércio da capital mais 110 desenvolvida do país, São Paulo, foi cada vez mais atraente para os imigrantes muçulmanos. Isso era como conquistar uma fatia ou espaço do mercado totalmente propício à atividade comercial, era, como eles afirmaram, “juntar a fome com a vontade de comer”. Em seus depoimentos, os imigrantes muçulmanos que vieram para Goiás, antes e depois da Segunda Guerra Mundial, relembram diversas experiências aventureiras e corajosas, ocorridas ao se embrenharem pelo interior de Goiás. Vários dos imigrantes muçulmanos faziam a rota da estrada de ferro, Anápolis ou Goiânia, ou a rota para o sudoeste goiano, pegando carona com caminhoneiros e chegando em Jataí. Um imigrante muçulmano palestino disse que eles andavam na carroceria, sobre a carga do caminhão, e protegiam sua mercadoria sob a lona quando chovia. “Comiam o que tinham e quando não tinha mais nada, pediam nas fazendas e sempre recebiam o de comer” (I. L. G., 74 anos, 2003). Um imigrante muçulmano foi comerciante de secos e molhados em Anápolis durante três anos, e depois mudou-se definitivamente para Goiânia relata uma experiência anterior a esta, dizendo que chegou no Brasil em 1951, tentou a vida em São Paulo como barbeiro durante três meses; depois viajou para Curitiba e aí mudou de ramo: “comprei roupas feitas em São Paulo, depois fui para Araguari e de lá para Cristalina, fiquei lá vinte anos, ganhei uma casa, deixei o ramo de roupas feitas e comecei a trabalhar com cristal numa firma judia, com comércio de cristal”. E termina por dizer que as pessoas com quem trabalhou foram como pais para ele e que o ajudaram muito (I. L. G., 74 anos, 2002). O professor da comunidade muçulmana de Jataí chegou ao Brasil em 1965 e morou em Brasília até os anos 1970. Em 1968 casou-se com uma brasileira, cearense, tiveram dois filhos e foram para Jataí, porque ele trabalhava como os outros, ou seja, vendendo roupas, e os recursos eram muito parcos. Diz ele: Precisei sair fora da capital, porque o custo de vida era muito caro e nós tínhamos conhecido Jataí em 67, tinha alguns amigos aqui. Os nossos conterrâneos daqui eram da nossa cidade, então achei muito fácil, já não tinha outra cidade de opção, mudamos para Jataí, graças a Deus, moro a 33 anos aqui e só tenho a agradecer. (I. L. J., 63 anos, 2003) Ele ainda disse que nunca foi nem grande e nem pequeno comerciante. “Eu fiz só a mala, como dizem.” Em 1973 teve a idéia de abrir uma escola para poder ensinar o 111 alfabeto árabe aos filhos dos imigrantes muçulmanos e também para orientá-los sobre a religião islâmica, e deste então este é seu trabalho. Dentre os comerciantes da comunidade muçulmana de Jataí, destaca-se Said Abdallah Awwad, muçulmano palestino, pioneiro da família Said Abdallah, fundador da “Organização Estrela”, uma rede de mais de trinta lojas de móveis e eletrodomésticos, supermercados e confecções espalhadas em Jataí, por várias outras cidades do interior goiano e mato-grossense e inclusive na capital, Goiânia. A história dessa organização começou em meados de 1956, com a mascateação, mas sua primeira loja foi instalada em 1960, exatamente onde se localiza hoje o “Estrelão Shopping” em Jataí. Assim como a maioria dos que vieram, este imigrante exerceu a mascateação por um tempo até juntar dinheiro e tornar-se proprietário das lojas. Said Abdallah e seu irmão Muhammad Said Abdallah, que já morava em Jataí, foram a São Paulo, compraram duas malas cheias de tecidos e roupas, e então começou a mascateação. Quando voltou para Jataí, Faruk Said, filho de Said Abdallah, contou que seu pai “encontrou um imenso calor humano e muita hospitalidade do povo jataiense”, onde trabalhou como mascate até abrir uma lojinha em sociedade com um amigo, Jehad Jamil Tum. Após a morte de Said Abdallah, seus filhos Daes Said Abdallah, que chegou em 1963, Omar Said Abdallah, que chegou em 1970, e Faruk Said Abdallah, entrevistado da pesquisa, que chegou em 1973, continuaram, e continuam até hoje, à frente dos negócios. O filho de Faruk, Muhammad, e o filho de Omar (seu irmão mais velho), Said e Mohammad respectivamente, estão se preparando para administrar as empresas de seus pais. Eles moram todos na mesma casa e são muito jovens. Trabalham arduamente e são muito responsáveis com os horários de trabalho, uma vez que, conforme observado, quando esgotadas duas horas de intervalo para o almoço um deles já logo diz para o outro “Rápido, temos que voltar para o trabalho, muito pagamento, muito trabalho”. Faruk, em entrevista à revista Metas, especialmente editada para contar a história de sua família em Jataí, disse: Estamos nessa luta, iniciada pelo nosso pai, como vendedor ambulante e depois com uma modesta lojinha de confecções. Mais tarde com o sucesso dessa lojinha, ampliamos nossas atividades investindo no ramo de eletrodomésticos e o progresso foi tão grande que novas filiais foram surgindo naturalmente em todo sudoeste goiano. (Metas, out. 1994) 112 Contudo, antes de migrar para o Brasil, Said Abdallah já comandava suas empresas de eletrodomésticos em sua cidade natal, All-mazra Sharkeia, na Palestina. No Brasil, ao fazer a mascateação, conforme depoimento de seu filho, ele saía bem cedo, visitando as pessoas de casa em casa, oferecendo suas mercadorias e facilidades de pagamento, só retornando a seus aposentos tarde da noite. Quando as vendas na cidade não iam bem, ele se enveredava pelas fazendas por vários dias, retornando somente com as malas vazias. Faruk disse que seu pai chegou em Santos, levou trinta dias na viagem de navio, e, Chegando aqui, sem saber falar nenhuma palavra em português, o irmão dele já tinha a vida bem melhor, já tinha a sua lojinha, trabalhando e tendo o seu ganha pão. E quando o seu irmão chegou, arrumou uma mala de roupa pra ele e ele saiu vendendo sem conversar nada. E batia de porta em porta e começou, e cinco anos depois que ele chegou, ele abriu uma lojinha, chamava Casa Estrela aqui na Av. Goiás, eles compraram uma pensão antiga naquela época, entre eles, mais quatro sócios, e depois meu pai comprou as outras partes, abriu esta lojinha, vendia roupas e começou a vida dele. (I. P. J., 48 anos, 2003) Outro muçulmano, da comunidade de Jataí, disse que chegou por volta de 1977 e teve a sua documentação legalizada, adquirindo a cidadania brasileira em 1981. No início trabalhava na loja do seu concunhado; eles se associaram, “e graças a Deus comecei a trabalhar, consegui, vim direto pra cá [Jataí], era mais fácil pra mim, porque graças a Deus, toda vida tinha inteligência, conhecimentos gerais, ia pra São Paulo fazer compra e vender e depois nós separamos a sociedade” (I. P. J., 57 anos, 2003). Sua esposa veio para o Brasil em 1979, com duas filhas, e então “aluguei um cômodo, construí uma casa descontando o aluguel em baixo, depois graças a Deus, abri mais uma loja e consegui, agora tenho uma loja, porque tinha aluguel, depois construí um sobradinho, com loja embaixo e a residência lá em cima” (I. P. J., 57 anos, 2003). Hasam Zaghloul chegou ao Brasil em 1953, aportou em Santos e foi para Uberlândia de ônibus. De Uberlândia em diante “não tinha nada, não tinha estrada, somente caminhão e nós colocávamos as malas e subia em cima da lona que cobria a carga do caminhão. E a carga era mais alta do que hoje, botava a mala e ia”. Este muçulmano relatou que na primeira vez que veio encontrou em São Paulo um amigo do Líbano: ele falou pra mim que eu tinha pouco dinheiro, então eu comprei as roupas que tinha que comprar e fui para Uberlândia, chegando lá, 113 encontrei uns amigos que arrumou pra mim um roteiro, me deram carona, então nós fomos para Aragarças, para Barra só passava de canoa, não tinha ponte, lá só existia casa de capim, não tinha construção, não tinha nada, nós saímos de Uberlândia de manhã, nós gastamos quatro dias, tentei um mês, um mês e pouco, fui a Ituiutaba, Santa Helena, algumas cidades pequenas, não deu certo, atrapalhou as coisas, então voltei para São Paulo e comecei vender doce sírio. (I. P. J., 70 anos, 2003) Mas, ao encontrar o pessoal da região de Goiás que lá fazia compras, foi aconselhado a desistir, pois a venda dos doces sírios “ia dar mixaria de dinheiro”; então voltou para Uberlândia, onde tinha um conhecido, e junto com ele pegou um caminhão e foi embora para Barra do Garças. De mascateação aqui e ali, pega uma canoa, “tinha duas malas pra segurar, ali estava a vida da gente, cuidava da mala mais do que da vida da gente, segura a mala de um lado, segura a gente do outro, pra não cair, nem a gente e nem a mala”. Por último, lá venderam um bocado de roupas e depois voltaram. Fizeram três viagens, venderam ainda em Piranhas, Bom Jardim, Caiapônia, Jataí, Rio Verde e depois Goiânia. Contudo, acharam que “não deu muita sorte, até parar em Jataí, que é bom para mascatear, aqui tudo vende. Os patrícios disseram que vende tudo, volta no Líbano, depois volta para cá. Já estavam lá os palestinos e muitos deles já morreram”. Kassem Fares, imigrante muçulmano libanês da comunidade de Jataí, disse ter vindo para o Brasil com quinze anos, em janeiro de 1971, e não foi mascate porque seu pai já estava aqui e o ajudou. Kassem disse que tentou trabalhar no Mato Grosso e em Rondônia, e por fim, mudando-se para Rio Verde, abriu uma loja e não deu certo; então foi para Cuiabá trabalhar direto com o seu pai. Um dos muçulmanos, imigrante da comunidade de Jataí, relatou os sacrifícios feitos durante muitos anos até conseguir comprar um supermercado. Ele disse que chegou em Santos às 11 horas da noite, com um amigo, e que ninguém os estava esperando. Eles foram para São Paulo e lá chegaram por volta da 1 hora da madrugada. Ali dormiram e no outro dia seguiram viagem para Goiânia. Pegamos o trem o dia inteiro, que era a maria-fumaça. Fomos até Araguari e lá nós dormimos e pegamos o trem de volta, aí nós trocamos pelo Centro-Oeste. Chegamos mais de meia noite em Goiânia, pegamos charrete e levaram nos para o hotel, que ficava na Rua 4, próximo ao mercado central, nós tínhamos o endereço do amigo [...]. (I. L. J., 63 anos, 2003) 114 Mohad, imigrante palestino muçulmano, foi mascate na cidade de Uberaba antes de vir para Jataí, onde atualmente ele e seus filhos são comerciantes de uma loja de gessos. Ele diz: Comecei como mascate, eu tinha onze anos de idade, era mascate na praça Rui Barbosa na cidade de Uberaba, isso na década de 60, começamos, lembro que foi logo que o Jânio Quadros tinha sido exonerado, é assim que agente fala, renunciado ao cargo de presidente da república, não sei se foi 60 ou 61, então comecei a trabalhar. Eu era um menino, punha um imenso papel no chão, antigamente tinha aquelas bobinas de papel, que embrulhava tecidos, a gente arrumava aqueles papéis grandes, colocava, forrava na calçada, colocava a mercadoria em cima do papel, porque naquela época, não existia banca, a mercadoria era armarinho, às vezes algum par de meias, pulseirinha, chaveiro, pente, escova para cabelo, antigamente usava-se muito aquelas correntes tipo para colocar chave, binga, isqueiro, e as mulheres, diadema e grampo para colocar no cabelo. (I. P. J., 54 anos, 2003) Truzzi descreve as ruas ou calçadas onde os imigrantes muçulmanos mascatearam ou comercializam. Aos olhos do observador que passa, torna-se adornado, como visto no relato do imigrante muçulmano, que mascateou pelas calçadas de Uberaba. Quando um “turco” chega a uma rua para atividade comercial, a rua logo se modifica; toma outro colorido, um colorido quase étnico [...]. Os mostruários de bugigangas nas vitrines, as camisas dependuradas, os sabonetes suspensos por cordões, bolsas escolares, brinquedos de criança, a variação, enfim do colorido e dos objetos expostos dão logo à fisionomia da rua o seu caráter. (Truzzi, 1997: 42) El Kadi faz também uma descrição das ruas e das lojas dos imigrantes: O comércio era predominantemente de “filhos de árabe”, em Goiânia. Nas lojas podia-se encontrar uma variedade de mercadorias: segundo um filho de imigrante, Samir Abdulhak, “achava-se de agulha a avião”. Nas ruas 4 e 24 de Outubro quando se passava, segundo o depoimento de uma brasileira, “eu me sentia em outro país”. As portas faziam vezes de vitrine e no centro a figura do comerciante, dirigindose para o freguês, de forma apelativa, às vezes batendo palma: “Vamô entrar, freguês”. As lojas eram conhecidas popularmente como lojinha de turco. Diegues Jr. (1977) fala desse clima de festa existente na rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, o qual pôde ser observado também na rua do comércio dos turcos de Anápolis, conhecida como “rua dos turcos”, esta rua traz um colorido todo especial, de coisas diferentes e de diversas cores expostas nas portas das lojas. (El Kadi, 1997: 88) 115 E Truzzi complementa a descrição das ruas, dos gestos dos comerciantes e das vitrines: “É rua colorida, alegre, gesticulante, com um cheiro gostoso de fazendas novas, de tecidos gomados, de bons ou falsos perfumes [...]. Ali há de tudo. Tudo que possa arregalar os olhos bisbilhoteiros se acha ali exposto em local bem visível. As vitrines são, por isso mesmo, arlequinescas” (Truzzi, 1997: 42). Kassem Bazzi, imigrante muçulmano libanês da comunidade de Goiânia, ao falar das trajetórias seguidas pelos vários grupos orientais, de várias nacionalidades do mundo árabe, afirma: os cristãos, druzos, maronitas, sírios e muçulmanos, todos vieram pela mesma rota. Eu juntava minhas mercadorias e viajava dias, pegando carona aqui e ali, nos caminhões de transportes, inclusive no caminhão dos correios, e eu viajava na cabine, tamanha era a confiança do motorista. Quando precisava parar para dormir, sempre conseguia pouso em uma fazenda e na estrada comia pão com banana. (I. L. G., 74 anos, 2003) Ele terminou o depoimento sobre aqueles momentos difíceis da mascateação com emoção, dizendo que eles foram muito importantes para a sua vida, que o marcaram e que, inclusive, ele ainda se lembra de algumas pessoas e fatos sucedidos como se fosse hoje. Um imigrante muçulmano palestino da comunidade de Goiânia, Ali Mohammad Sayad, chegou ao Brasil a convite do tio, juntamente com sua esposa e uma noiva encomendada para seu tio, para trabalhar com ele em sua loja, em Goiânia. Seu tio era comerciante na Av. 24 de Outubro, no bairro de Campinas. Antes de migrar para o Brasil, ele e sua esposa haviam ido para um país, que ele chamou de “Gueto”, o qual ele disse estar brigando com a Arábia Saudita, que abre portas para os americanos, Kuwait. Trabalhei lá como enfermeiro e que larguei tudo, escutei a palavra de meu tio, larguei meu serviço lá, não voltei não, vim pra cá. E quando chegamos aqui, não falávamos nenhuma palavra em português e pouco capital também, e quem vem de fora, imigrantes trabalha muito, pra viver e pra arrumar a vida dele, quem não trabalha não adianta, vira ladrão. Então, anos depois da imigração, em 64, abri uma loja na Av. 24 de Outubro: fiquei 36 anos lá e em 99 vendi lá e vim para cá. A gente cansa muito mesmo, e quem fala não tem vontade de voltar pra lá [para o Líbano], mentira, a gente tem saudade das pessoas que deixou lá, porque vivi lá até os 32 anos. (I. P. G., 73 anos, 2002) Ele disse ainda que atualmente possui uma loja de secos e molhados ao lado de sua casa, no setor Campinas, em Goiânia. Ao ser perguntado se foi mascate, respondeu 116 que havia trabalhado na loja do seu tio e que este o havia “convidado para vir ter com ele”, até que ele conseguiu comprar o seu próprio negócio, que se localizava na Av. 24 de Outubro, e depois se mudou para o endereço atual, na Rua Pará, Campinas. Ele explicou que o comércio é muito importante e sagrado, porque “o Corão fala sobre o comércio e o disciplina”. Ao falar do comércio no Alcorão, ele logo começa a falar da religião e a contar como esta se originou, até chegar nas guerras, na expatriação de seu povo, e termina, com muita mágoa e pesar, falando detalhadamente sobre as várias batalhas travadas pelo seu povo. Ele faz questão de mostrar os quadros dessas batalhas e lamenta a situação de refugiados, que até hoje não puderam retornar para sua terra. Outras peripécias sobre a mascateação são relatadas, tais como a de um imigrante, recordando de quando chegou ao Brasil, ainda bem jovem e solteiro. Eu já mascateei em Cristalina, Formosa, no município de Abadia, São Domingos e Barreira foi o último lugar. Eu andava de caminhão e ficava o dia todo mascateando nas pequenas cidades. Eu vendia roupas e fazia compras em São Paulo. Foi uma experiência muito boa. Gente jovem cansa demais, mas quando chega à noite e encontra com uma jovem lá no jardim. Não tinha cinema, nem nada, nem televisão, só alguns rádios. A gente sentia mais vontade de viver. (I. L. G., 74 anos, 2002) Os imigrantes das comunidades muçulmanas encontram-se durante o expediente de trabalho, pois seus estabelecimentos são próximos uns dos outros. Isto é bem visível em Jataí, onde as lojas estão localizadas nas ruas principais do centro. Também em Anápolis isso ocorre, uma vez que há uma rua onde as lojas também se concentram, inclusive as dos árabes não muçulmanos. Os imigrantes muçulmanos, apesar de fazerem elogios ao Brasil como terra de gente receptiva, povo bom e amigo, não passaram apenas por experiências positivas. Circunstâncias conflituosas específicas foram observadas, como as de concorrência ao mercado local, tanto entre eles mesmos como entre os imigrantes mascates e os brasileiros. Isto justifica inclusive a expansão dos imigrantes para outras cidades, pelo interior goiano, uma vez que se chegassem numa cidade cujo comércio local já estivesse bem definido, eles procuravam outras regiões. A escalada ou trajetória do imigrante mascate a comerciante nem sempre foi marcada pelo sucesso. No exemplo abaixo, um muçulmano relata sua tentativa frustrada de se tornar comerciante no Rio Grande do Sul, sendo que acabou se tornando mascate, e depois comerciante, em Jataí: 117 Tentei o comércio no Rio Grande do Sul, não deu certo, cheguei lá o comércio estava uma maravilha, cheguei aqui vendi duas casas que tinha, pra comprar uma casa e montar uma loja, cheguei lá, o peso tinha caído, não tinha comércio, estava ruim, não tinha coragem, então foi pra São Paulo, Deus não ajudou, Deus não quis, aí comecei melhorar, montei uma loja, não deu certo, tentei em São Paulo, eu tinha meu irmão, que tinha um dinheiro bom, 50 mil dólares, ele me arrumou o dinheiro para eu ir pra São Paulo, em São Paulo sem dinheiro, não trabalha. (I. P. J., 70 anos, 2003) Desta forma, notou-se que aqueles muçulmanos que tentaram outro trabalho, passaram pouco tempo nessas outras atividades, logo se engajando no ofício da mascateação. Isto confirma as afirmações de que a atividade mais rentável na época da expansão desenvolvimentista das fronteiras agrícolas no Brasil para o Centro-Oeste foi a de venda de mercadorias fabricadas em São Paulo. A prática do comércio, para o muçulmano em Goiás, extrapola o mero costume histórico, sobrepõe-se às condições impostas pelo contexto sócio-econômico goiano e torna-se uma necessidade adaptativa ao novo modo de vida que se lhe apresenta. Os muçulmanos dizem que “não tem outro jeito, não conhecem a língua, o dinheiro e não trazem dinheiro para investir, por isto, iniciam na atividade de vendas de mercadorias diversas como roupas, lenços, bijuterias, tecidos, chapéus, aviamentos, perfumarias e outros objetos” de pequeno porte (I. L. G., 92 anos, 2002). Alguns disseram que começavam vendendo de casa em casa ou de fazenda em fazenda, com a mala nas costas, buscando seus fregueses. Algumas análises gravitam em torno do ofício de mascate, como a noção de um “grupo ocupacional” vinculado ao comércio, que predomina nos trabalhos sobre migrações semitas, em especial nos trabalhos de Grun (1992), à medida que tomam o comércio como formador de um perfil do grupo. A “vocação para o artesanato” é percebida por Grun (1992) como um eixo de constituição de solidariedade étnica e configuração de pertencimento. Ele funcionava como um período de experiência, em que o negociante em potencial aprendia as lides do ramo calçadista, ao mesmo tempo que provava o valor de sua personalidade de bom armênio, qualificando-se como receptor de ajuda de seus conterrâneos, para daí estabelecer-se por conta própria no ramo. (Grun, 1992: 47) Segundo Truzzi (1992), Grun (1992) e Jardim (2000), os imigrantes se constituem numa “comunidade” identificada pela atividade econômica e de uma 118 ascensão social visível no sucesso desta. Jardim (2000) diz que Truzzi e Grun “privilegiaram a comparação com outros fluxos migratórios para o Brasil, caminho inevitável, uma vez que o viés adotado é o de identificar o processo adaptativo dos imigrantes e a receptividade dos “nacionais” aos migrantes estrangeiros”. Para ela, a vida do imigrante e suas formas associativas são analisadas como fatores decisivos nesse processo de “assimilação” (Jardim, 2000: 112). El Kadi (1997) também observa que a ligação do imigrante muçulmano com o comércio está incorporada na figura do mascate, que era foco de anedotas e gozações no que ela chamou de “imaginário popular” e no meio literário, como pôde ser observado em dois exemplos citados pela autora. Quando chegava e batia na porta saia a empregada da casa. E a patroa do lado de dentro. “Oh! Maria”, “Não tem ninguém não, é mascate patroa” [...] como também de romances de Jorge Amado ou novelas (Renascer – com o personagem Rachid; ou Gabriela com o seu amante Nacib). (El Kadi, 1997: 120) A identificação ou formação identitária dos imigrantes muçulmanos como mascates, está relacionada com a idéia de aventura, de trabalho e de autonomia e como diz Truzzi, “negociante congênito e por hereditariedade, ele ainda o era por educação. Desde os tempos de seus antepassados de Sidon e de Tyro, ele é capaz de mercadejar a própria vida, jurando não ganhar nada” (Truzzi, 1997: 69). Muitos não planejavam imigrar definitivamente para o Brasil e Goiás. Eles tinham como objetivo trabalhar arduamente, ganhar dinheiro, juntar uma boa soma e retornar. Por isto, procuravam gastar o mínimo possível e esta ética de vida regrada e poupança absoluta, distinta da dos brasileiros, foi traduzida pelo estereótipo de que “todo árabe é pão-duro”. E nesta afirmativa se incluíam todos, sem exceção, inclusive os muçulmanos. Esta referência é uma forma de identificação ou de representação dos muçulmanos pela “sociedade receptora”, ou seja, pelo “outro”. Assim, os próprios imigrantes muçulmanos, ao internalizarem tal adjetivo, fazem auto-identificação através da identificação advinda da sociedade goiana. Os imigrantes muçulmanos se identificaram, em parte, a partir da autoidentificação externa a eles e as fronteiras identitárias são estabelecidas através das identificações dadas aos imigrantes. Estas fronteiras são determinadas pelos sinais identificadores que estabelecem as diferenças deles, com os brasileiros. Neste âmbito, 119 há duas questões interessantes: por um lado o espaço do comércio pode ser pensado como um mecanismo de atualização étnica, pois a atividade comercial é assumida como um atributo que “está no sangue”, por outro, os estereótipos e anedotas em torno da vida comercial dos imigrantes muçulmanos são ao mesmo tempo, afirmadores de suas características identitárias e marcadores da diferença. Percebeu-se que os estereótipos, desde o início do contato interétnico, geraram diversos apelidos e tipos de comportamento, os quais foram compondo as representações sobre os imigrantes muçulmanos, sendo o mais usual o de “turcos”, que inclui todos os árabes. Um dos muçulmanos da comunidade de Jataí disse que o povo aqui chama nós de turco, porque a Turquia mandava e o cara saía de lá com o passaporte da Turquia e quando chegava aqui na imigração, então ele carregava o passaporte da Turquia, pra brasileiro eu sou turco, como agora eu estou carregando passaporte de Israel, infelizmente, podem me chamar de israelense, mas eu estou carregando esse passaporte obrigado, porque quem manda lá é Israel, eu fui obrigado a tirar documento de Israel para entrar aqui no Brasil, [...] o povo se acostumou a chamar todo mundo de turco, todo árabe em geral é turco, é uma palavra mais conhecida no Brasil, é turco. (I. P. J., 34 anos, 2003) Com relação à designação de turcos, vez por outra a expressão também foi usada em tons pejorativos, com o intuito de ferir e humilhar, fazendo com que os imigrantes se sentissem ofendidos e envergonhados ao serem confundidos com os turcos que os oprimiram a ponto de obrigá-los a abandonar o seu país. A identificação de “turcos” associa um perfil ocupacional a uma origem racial. Uma identidade atribuída e que é assumida por outras levas de imigrantes recém-chegados. Truzzi justifica e relaciona a imagem dos imigrantes como turcos à atividade comercial, dizendo que é até certo ponto compreensível, portanto, que, ao se dedicarem em massa a uma atividade indelevelmente relacionada ao comércio de bens de consumo popular, [...] tivessem, por esse motivo, recebido uma marca, uma apreciação que fixou deles uma imagem perante a sociedade. À imagem se sobrepôs um designativo: “turcos”. Os sírios, libaneses e muçulmanos aqui chegados, foram indistintamente chamados de turcos, embora a imigração turca propriamente dita ao Brasil tenha sido praticamente nula. (Truzzi, 1997: 68-69) Ao “turco” empregado pejorativamente associou-se também a capacidade de fazer qualquer negócio. Truzzi (1997), menciona que a “expressão mais dolorosa para 120 os árabes do Brasil era a famosa ‘turco de prestação’, encontrada no dicionário. Mais tarde, o aposto seria estendido aos judeus, também mascates”. Os estereótipos relacionados aos imigrantes muçulmanos concentrados nas atividades de mascates e comerciantes foram bastante evidenciados nos depoimentos. Nunes cita relatos de Jacy Siqueira apresentando casos populares de preconceitos em relação à imagem do mascate árabe: Recebidos com certa prevenção a princípio, evidentemente pela concorrência comercial a que submetem os naturais da terra, em pouco tempo superam as dificuldades e se tornam excelentes cidadãos goianos sem embargo das exceções, como aquelas do sertão goiano, quando, há anos passados, um viajante encontrou colado em lugar público este anúncio: “Fulano de tal se encarrega de matar com presteza e discrição de acordo com a seguinte tabela: brasileiro, 500 mil réis, estrangeiro, 300 mil réis, turco, de graça” (Siqueira, 1993, p. 36). (apud Nunes, 2000: 147) Anedotas sobre a avareza, o pão-duro, o enganador, o desonesto, o turco, o “turco que vende tudo até a mulher”, fanatismo por dinheiro, e outras, são construções da “sociedade receptora”, que passam a identificá-los como tal. E os imigrantes muçulmanos, entre alguns desses estereótipos, passam a incorporá-los na sua autoimagem e se identificarem como tais. Há uma anedota recorrente no Brasil, entre tantas outras existentes, que indica a relação estreita entre a denominação “turco” e a trajetória do grupo: “quando chega ao Brasil é turco, quando abre uma loja é sírio e quando fica rico é libanês”. Esta anedota mostra, por um lado, a trajetória econômica do grupo, e por outro, a denominação: “turco”, que não se restringe apenas a uma falta de conhecimento geográfico, mas denota a reabilitação deste termo como identidade negativa, revelando o preconceito. Segundo Woodward (2000), o binômio turco-brasileiro preguiçoso é traduzido como “relação de identidade”. Tal noção sublinhando a idéia de relação, supõe a existência não de uma, mas pelo menos duas identidades, denominadas “identidades complementares ou combinadas”. Ele afirma que a produção da identidade de um grupo é produzida tendo como referência a identidade do “habitante do local”, ou seja, uma identidade é sempre produzida em relação a uma outra. Portanto, a identidade é a afirmação de uma característica que contrasta com outra, a partir da afirmação ou negação. A produção da identidade se dá especialmente por meios de oposições binárias. Essa concepção de diferença é fundamental para se compreender o processo de 121 construção cultural das identidades. A diferença pode ser construída negativamente, por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” ou “forasteiros”. Contudo, apesar dessas diversas imagens estereotipadas, eles ainda consideram seu processo de inserção na economia goiana como um fator positivo, onde se obteve boa aceitação e receptividade do povo. Porém, há uma grande possibilidade de tais considerações nos depoimentos dos imigrantes muçulmanos, terem sido positivos, em razão da preocupação em agradar o pesquisador. Finalmente, “a experiência valeu a pena”, respondem os imigrantes muçulmanos, ao serem perguntados se foi bom terem vindo para o Brasil. Um deles disse: “nossa como eu gostei. Eu falo que tudo eu ganhei, porque agora já acabou, estou feliz com a minha vida” (I. P. J., 57 anos, 2003). Outro imigrante muçulmano disse: “eu não preciso de mais nada, eu tenho um filho, ele tem título de brasileiro, nossa eu adoro o Brasil” (I. L. G., 74 anos, 2002). 2.4. O comércio: elemento identitário A constituição da identidade dos imigrantes muçulmanos em Goiás também está relacionada à esfera pública, ou seja, a condicionantes culturais localizados na esfera externa à comunidade dos imigrantes muçulmanos, os quais têm sido os mais negociados no processo de sua inserção à sociedade goiana. Esses condicionantes se estabelecem a partir da vocação para o comércio, no qual inclui-se o relacionamento como empreendedor e a sociedade local, bem como o trabalho árduo e dedicado dos mesmos à atividade comercial. De acordo com Nunes “a relação entre o fornecedor e o mascate era de confiança e se sustentava em um sentimento associativo e comunitário” (Nunes, 2000: 85 e 86). Isto é importante de ser frisado, dadas as circunstâncias em que surge o sentimento de identificação comunitária. Outro exemplo de sentimento comunitário experimentado nos primeiros anos de imigração e adaptação ao novo contexto social goiano é citado por Nunes: As dificuldades decorrentes da vida em conjunto, tais como perda de privacidade e superpopulação, eram geralmente minimizadas pelas 122 vantagens econômico-sociais resultantes. Esse companheirismo étnico, resultante deste arranjo social e econômico, tendia a suavizar os problemas de adaptação que os imigrantes árabes enfrentavam na nova pátria. (Nunes, 2000: 86) A ética para o trabalho comercial, um dos elementos importantes para o sucesso dos imigrantes muçulmanos, decorre de vários fatores, que vão se estruturando no contexto da “sociedade receptora”. Nunes diz que “O segundo elemento importante para o sucesso dos primeiros imigrantes árabes foi a devoção ao trabalho árduo e persistente”, sendo que o primeiro foi a importância do parentesco. A devoção dos imigrantes árabes ao trabalho “era a resposta a uma situação social em um dado momento e espaço e sob determinadas condições históricas” (Nunes, 2000: 105). Nos diferentes relatos observou-se que, para eles, o sucesso financeiro alcançado dependeu principalmente da dedicação ao trabalho. Os compromissos com o trabalho incluíram toda a família na árdua labuta diária, inclusive a mulher, que não somente continuou a cuidar de toda a administração da vida doméstica e seus afazeres, como também passou a ajudar o marido também na loja, nos seus mais variados comércios. Truzzi confirma essa união estabelecida em torno dos objetivos de sucesso, afirmando que a economia familiar sobreviveu e floresceu porque normalmente nas fases iniciais – como aliás é típico entre outras etnias – o negócio dependia fortemente do trabalho de toda a família. Organizar a família para cooperar e sobreviver em grande parte moldou a entrada desse imigrante na nova sociedade. Assim sendo, a célula familiar permaneceu como o modo tradicional de se compreender e de se ordenar a vida. (Truzzi, 1997: 57) O espírito empreendedor e de iniciativa havia sido tão internalizados na vida do imigrante muçulmano que ele somente parava para cumprir os mandamentos da religião islâmica, e assim mesmo várias inovações foram registradas, no sentido de se adaptar as necessidades comerciais às da vida religiosa. Esta ética para o trabalho, entre os imigrantes muçulmanos era árdua e dedicada, e ainda significava, o comprar, o vender, o estabelecer sociedades uns com os outros, principalmente entre os irmãos, pais e filhos. Isso significou organizar e reorganizar o comércio, administrar os lucros, reinvestindo-os ou mudando de ramo de negócios, e até mesmo de cidade, como foi o caso de alguns imigrantes muçulmanos. Essa atividade ainda se configurou em confiar 123 nos clientes e nos vendedores. E por fim, tudo isso oferecia uma boa dose de despojamento, que foi marcada por decisões que envolveram iniciativas inovadoras e ao mesmo tempo um alto risco, mas que acima de tudo isso oferecia uma boa recompensa, ou seja, o lucro, e este a maioria conseguiu. Nunes cita um chavão sobre o sucesso da atuação dos imigrantes em Goiás: “é possível ouvir com freqüência a seguinte afirmação: para descobrir se uma cidade tem possibilidades de desenvolvimento basta saber se há árabes morando por lá, pois onde eles se instalam o progresso é certo” (Nunes, 2000: 107). Outra característica vital para o sucesso dos imigrantes muçulmanos em Goiás foi o espírito de aventura e despojamento. Eles se aventuravam pelo interior do cerrado goiano quase sem pensar nas condições ou intempéries que viriam pela frente, levavam pouca comida, andavam de qualquer jeito e tinham que enfrentar o inesperado, ou seja, as situações mais hostis e adversas eram constantemente vividas, apuros experimentados, com as soluções advindas no momento dessas situações. Nos depoimentos, os imigrantes muçulmanos acham que o brasileiro não é poupador, se comparado aos imigrantes, e nem bom para o trabalho como o é o imigrante. Eles se apresentaram comedidos em suas relações sociais, quase não desfrutando de lazer, a não ser o de estar em casa reunida com a família. Eles têm muita determinação e preocupação com o futuro, principalmente dos filhos. Por isso, eles evitam a ostentação, o desperdício, e acham que o brasileiro não é poupador. O que se pôde perceber é que o preconceito é de mão dupla, ou seja, se por um lado se produziu um discurso sobre os nacionais como preguiçosos, avessos ao trabalho (e não poupadores), por outro, construiu-se o de que os imigrantes muçulmanos são avarentos. A tal atitude Nunes chamou de ética levantina17, dizendo que este comportamento não era determinado por princípios religiosos, “como acontecia com os calvinistas, mas era uma resposta a um conjunto de condições associadas aos seus antecedentes pessoais e ao novo ambiente em que se integravam” (Nunes, 2000: 108). Contudo, com relação aos imigrantes muçulmanos especificamente, esta ética comedida 17 Conforme nota de Nunes (2000): Dá-se o nome de ética levantina aos princípios de conduta ordenados pelas idéias que regem o mundo islâmico. Estes princípios, que se organizam sob o ponto de vista do bem e do mal, são relativos à sociedade que compõe a região do chamado Levante, designação geográfica referente aos países que fazem parte do Mediterrâneo Oriental. A expressão Levante é usada também para designar as primeiras grandes civilizações como as do Egito e da Mesopotâmia, localizadas em regiões da África e da Ásia banhadas por grandes rios como o Nilo, o Tigre e o Eufrates. Essas terras, dispostas numa grande meia-lua que se estende do sudeste do Mediterrâneo ao Golfo Pérsico, receberam também a denominação de Crescente Fértil e abrangem os atuais Estados do Egito, Israel, Líbano, Jordânia, Síria, Turquia e Iraque. 124 e do não desperdício tem fortes princípios religiosos, inclusive abordados no Alcorão. Ao falarem de um dos mais importantes pilares da religião islâmica, que é o zakat (doação), afirmam a importância de se dar à família conforto e comodidade. Eles se preocupam muito com a criação dos filhos, mas, principalmente, dizem que devem ensiná-los a não esbanjar, não devem desperdiçar nem jogar nada no lixo. Tudo deve ser aproveitado. Um dos imigrantes da comunidade de Jataí disse que A religião muçulmana ensina nos a não desperdiçar nada, não pode jogar fora... e eu não sei jogar uma lata no lixo, tem que ser aproveitada porque isso é uma coisa sagrada. Se o muçulmano encontrar um pedaço de pão no chão ele pega e procura um buraco para colocar um pedacinho de pão, sagrado, porque tudo que nos alimenta, pra nós é sagrado. A água também é sagrada. (I. P. J., 70 anos, 2003) Depois de sua família suprida, um muçulmano deve preocupar-se com os seus irmãos: “irmão muçulmano não passa necessidade não”. Há uma época específica em que devem dar o zakat (doação) para aqueles irmãos que tiverem necessidades, que é a do final do Ramadã, ou seja, final dos 30 dias de jejum. Assim, esta preocupação em não desperdiçar e em poupar, em suprir as necessidades de suas famílias e ajudar as outras necessitadas é um princípio religioso, uma vez que a doação está consagrada em um dos cinco pilares da religião islâmica. O trabalho árduo e autônomo se apresenta como um comportamento típico-ideal para o sucesso dos imigrantes muçulmanos, na maioria alcançado no processo de inserção e integração à “sociedade receptora” goiana. Isto foi crucial e totalmente compatível, conforme visto, com o momento sócio-econômico experimentado em Goiás. Nesse contexto de inserção e integração, a família ganha novos contornos, situados entre os desafios de manutenção de princípios e valores tradicionais, como forma de preservação do grupo familiar, e as novas conformações, propiciadoras do sucesso na vida econômica das comunidades de imigrantes muçulmanos em Goiás. Os valores da comunidade muçulmana e os da sociedade goiana apresentam-se confrontados entre si. Tal confrontação refere-se às liberdades individuais, onde para os imigrantes, os indivíduos da “sociedade receptora” têm menor controle sobre a família e seus filhos do que eles. Isso foi criando uma atitude crescente de afirmação dos valores familiares morais e da vida doméstica dos muçulmanos em relação aos da sociedade goiana. Esses valores ditados pela religião islâmica não foram negociados da mesma 125 forma como os da prática do comércio. Dessa maneira, houve uma maior mudança nos costumes relacionados à esfera pública, principalmente aqueles referentes aos costumes, hábitos comerciais e o mercado consumidor. O imigrante muçulmano, como um trabalhador e provedor da família, absorveu mais conteúdos adaptativos do seu trabalho como comerciante do que como marido e pai de família. Outra importante mudança adaptativa referente ao comércio foi a inclusão da mulher, no papel não somente de administração do lar e educação dos filhos, mas também de auxílio ao marido no comércio. Com relação a esse comportamento da mulher, várias mudanças “adaptativas” foram sendo negociadas na vida do casal para se prover as necessidades da família, no contexto social goiano. Por exemplo, um casal de muçulmanos da comunidade de Goiânia, quem atendia todas as visitas era a esposa, que vinha do comércio ao lado da residência da família. Ela é que estava sempre no comércio e entrava em casa somente para chamar seus filhos ou seu esposo. Dessa forma, nota-se que a loja é considerada como um triunfo do trabalho de toda a família. Inicialmente vários imigrantes moravam na própria loja ou em cima dela, ou ainda, nos fundos, através de uma divisória ou em barracões separados, ou moravam nas cercanias do comércio, onde o mundo da casa se entrelaçava com o mundo da loja. Assim, percebeu-se que a vida econômica foi a mais negociada para o processo de interação social com a “sociedade receptora”. Esta interação vai gerar as comunidades, a afirmação identitária estabelecida, no limite fronteiriço entre os elementos identificados. Foi observado que nas três comunidades muçulmanas pesquisadas há traços da prática da religião islâmica e do comércio amenizados ou misturados no contexto da vida pública goiana, isto é, nas suas relações sociais externas, desempenhada no cotidiano do contato interétnico com aquela sociedade. As práticas do comércio são negociadas via um processo de compatibilização com a realidade econômico-social local, experimentadas nas formas das vendas e de quais os produtos vender. Por exemplo, os produtos mais vendidos eram aqueles industrializados em grande escala, nos grandes centros industriais do Brasil e escassos no interior goiano. Os pagamentos eram facilitados em função da periodicidade dos ganhos da economia agropecuária local, com prestações a longo prazo, bem como, ainda, preços ofertados de acordo com “a cara do freguês”. Em relação à religião, observou-se que alguns grupos muçulmanos são mais dados a divulgar a sua fé e seus preceitos e outros em falar da cultura literária. Cada 126 qual com os seus interesses específicos. Em suas conversas, ambos se afirmam como grupo diferenciado, grupo pertencente a uma comunidade, que tem uma crença religiosa chamada Islã. Esta crença também sofre transformações necessárias ao novo modo de vida. Dentre estas, notou-se a liberação, o das vendas com juros, por exemplo, uma proibição na religião islâmica; os chefes religiosos islâmicos, ao serem consultados, respondem que no caso de uma economia instável, seria impossível não vender a juros. Isto foi colocado por um imigrante da comunidade de Jataí: “eu vi estes dias na internet, o sheik liberou, porque a situação da vida modifica, a própria religião tem que se adaptar a nova realidade do país em desenvolvimento, onde tem uma moeda instável. Agora seguro de vida na nossa religião, isto é propina, isto é indiscutível” (I. P. J., 57 anos, 2003). Questionado sobre a “adaptação” da sua vida como comerciante à sociedade goiana, um dos imigrantes responde: quando vem, aceita qualquer coisa, aceita comer banana, vem e não conhece ninguém, quando dava pra comer um pãozinho comia, comia pão e enchia com banana, fazia sanduíche de pão com banana e agente, deu tudo certo, eu precisava deles [os receptores da terra migrada]. A língua não sabia nada, chegava batia na porta, abria a mala, quer não quer, agora o povo daqui é muito carinhoso, eu devo um favor muito grande, a maioria são as mulheres, elas tem muita dó de quem é de fora, elas são caridosas, boazinhas, elas compram e pagam, homem não, homem dá rolo, dá malandro, pega roupa, some e não paga. (I. P. J., 70 anos, 2003) Com relação aos conflitos acerca do modo de vida de lá e aqui, em seus comércios, um imigrante respondeu que “nos primeiros dez ou quinze dias eu encontrei dificuldades, geralmente no horário comercial, porque na hora de fechar o comércio, ajuntava todo mundo falando em árabe e aí eu sentia falta. Meu pai saía e me deixava sozinho para aprender. Eu tinha que chamar minha irmã” (I. L. G., 58 anos, 2002). A comunidade muçulmana de Jataí possui uma Sociedade Beneficente composta por nove membros, todos eles comerciantes bem-sucedidos, e nos seus depoimentos um deles citou a propaganda numa revista editada na cidade contando a história do seu pai, um mascate e depois comerciante que começou os negócios da família, com o qual eles progrediram e se encontram muito bem posicionados economicamente. Nosso povo aqui, por exemplo, nossos filhos aqui, quantas pessoas que estão vivendo através de um trabalho, um emprego que ele 127 trabalha aqui, tem fábricas, tem Estrelão, tem várias lojas de construção, várias lojas de roupas, várias de móveis, então eu acho que tudo isto, eu acho que agradou ao povo brasileiro e muito como o povo já tinha agradado nós, na nossa chegada aqui e todo mundo, que trabalhou e se o povo brasileiro, desse as costas, eu acredito que não iria chegar onde chegou agora, eles também tratou os brasileiros muito bem, também, não iria chegar onde chegou até agora, então os dois trabalhou juntos e o que é, é a confiança entre os dois, de um lado os árabes e os brasileiros, que se ajuntaram e hoje em dia eu não estranho. (I. P. J., 48 anos, 2003) Com relação ao comércio dos imigrantes em Jataí, um jovem da comunidade falou sobre o quanto este é comum entre todos os jataienses: Quando eu ando na rua e encontro com uma pessoa, me perguntar meu sobrenome e me perguntar se é árabe, é a maioria, virou uma coisa normal, antigamente não, mais hoje em dia você anda na rua, tem muita gente que tem o sobrenome árabe, descendente de árabe, então daqui um tempo, vai se misturar, daí vai ficar a maior raça que entrou no Brasil, além da portuguesa e em segundo os árabes, só que hoje os árabes estão crescendo muito mais. (I. P. J., 23 anos, 2003) Os imigrantes muçulmanos chegaram ao Brasil e Goiás com idade adulta, em sua maioria, e trouxeram consigo valores e princípios já sedimentados, mas que foram se transformando enquanto passavam pelo processo de “adaptação” e “integração” ao novo modelo cultural da nova pátria. Esse “adaptar” e “integrar” à “sociedade receptora” foi conduzido pela formação de um modo de vida, onde os elementos religião, base da formação comunitária dos muçulmanos, e vocação para o comércio, sustentadora da sua vida econômica, foram se delineando de acordo com as mudanças e transformações culturais instituídas, formando uma nova identidade, negociada na inserção e integração à sociedade goiana. E assim, conforme visto, as maiores modificações, substanciais e necessárias ao convívio com a sociedade goiana, prevaleceram no âmbito da esfera pública, aquelas relacionadas à vida dos imigrantes no comércio, no mercado ou na economia, na escola e suas conseqüentes adaptações. 128 A família e a mulher muçulmana 129 CAPÍTULO III A FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOS IMIGRANTES MUÇULMANOS As peculiaridades etnográficas das famílias são importantes para se conhecer e entender as comunidades muçulmanas de Goiás. Os argumentos e fatos aqui apresentados são baseados na pesquisa de campo realizada entre as comunidades muçulmanas de Goiânia, Jataí e Anápolis. Portanto, os dados expostos foram construídos através das anotações e impressões do observador e da transcrição literal de depoimentos dos pesquisados. Baseado no que Ribeiro (1999) coloca sobre a dinâmica social entre o público e o privado na vida cotidiana da sociedade, pretende-se pensar em tal diferenciação, propondo-se a análise dos elementos identitários na esfera privada e na esfera pública, para uma melhor compreensão das negociações, ou seja, das modificações e afirmações da identidade dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Ribeiro disse que a dinâmica público/privado é crucial para a construção de identidades. A família vem a se constituir na instituição de afirmação, pela qual se configura a identidade dos imigrantes muçulmanos em Goiás. A família, constituinte da esfera privada, dentre os elementos identitários, representa a instituição de maior valor para os muçulmanos e, por isso, de grande importância para a análise do processo de constituição das identidades das comunidades analisadas. Para os muçulmanos, a instituição família e a vida doméstica são regidas pela lei do Islã, que fixa todos os ritos, regras e organização da vida deles, desde o nascimento até a morte, e principalmente aquelas referentes às relações entre os pais e os filhos, a regulamentação da herança e a partilha dos bens. Truzzi (1993) e Nunes (1996) observaram que a família teve um papel importante, senão fundamental, tanto no processo imigratório como no ajustamento do imigrante à nova sociedade. Na imigração através do chamado “efeito corrente”, onde os parentes ou pessoas de regiões vizinhas aqui instaladas auxiliavam a vinda de parentes ou conterrâneos, a imigração era, conforme os autores observaram, mais fruto de uma decisão familiar do que individual, após um levantamento da situação que o emigrado poderia encontrar no Brasil. Contudo, geralmente, vinha um da família na 130 frente e os outros esperavam pelas cartas com notícias e o convite para que estes também viessem. Algumas famílias muçulmanas vieram para Goiás com todos os seus membros. Outra modalidade de emigração era em conjunto com algum parente próximo, tal como o tio e sobrinho, pai e filho mais velho, ou, ainda, a família separada, como por exemplo, o chefe mudava-se primeiro e depois de um tempo a esposa e filhos o seguiam. Em alguns casos, o marido emigrou sozinho e depois de algum tempo constituiu nova família no Brasil, abandonando a outra na terra pátria. Uma muçulmana libanesa de 92 anos, da comunidade de Goiânia, relatou com tristeza todo o sofrimento por ela vivido, em conseqüência da imigração. Em sua trajetória de imigrante, ela veio para o Brasil por volta de 1958, para juntar-se ao marido, que chegou em 1951, com o filho mais velho. Ela disse: “estranhei muito a língua quando cheguei aqui e chorei muito no começo, pois tinha muitas saudades, mas agora já me acostumei, têm muitos amigos, já tem família aqui, com filhos casados, com netos, inclusive, bisnetos” (I. L. G., 92 anos, 2002). Seu marido, quando chegou, ficou um ano em São Paulo, adoeceu e não foi bem sucedido em São Paulo. Então, ele veio para Goiânia, em busca de melhores condições de trabalho e foi tudo bem. Mas, um acidente o vitimou, próximo da cidade de Uberlândia, quando estava chegando de São Paulo, onde havia ido buscar mercadorias para sua loja, em Goiânia. Ela está viúva há mais de 26 anos e nunca se esqueceu do trágico acidente com o seu marido, e terminou de criar seus filhos sozinha. A maioria dos imigrantes muçulmanos vinha na adolescência, e depois de um tempo voltavam ao país de origem para se casar; em outros casos casavam-se aqui com outros da família que haviam migrado também na mesma época. Faruk, imigrante muçulmano palestino, bem sucedido no comércio de Jataí, veio solteiro, depois de viver alguns anos em Goiás, retornou para a Palestina e casou-se. Sua noiva, à época, tinha apenas 14 anos. Apesar de não haver proibições quanto a casamentos com “outros”, eles preferem cônjuges da mesma família. Como eles dizem, qualquer uma, sem ser da religião, a preferência e o costume lá, é casar primo com prima, e acho que o motivo é muito mais do que racismo, é porque, por exemplo, o pai rico, a riqueza não vai sair para outra família, continua na família, [...] e hoje nem tanto como antigamente, por exemplo, a menina já acaba de nascer já prometida para o fulano, entendeu? Pra agradar ao pai e já fazem o negócio entre 131 as duas partes, estava errado, estava certo, hoje nem tanto. (I. P. J., 34 anos, 2003) Nunes (2000) apontou o fenômeno daqueles que migraram e deixaram suas famílias na terra de origem, colocando-as para esperar o momento de todos se reunirem novamente: os imigrantes árabes, em geral, que haviam deixado suas esposas na pátria-mãe tiveram que esperar vários anos para reunir novamente a família. As dificuldades que alguns enfrentaram impuseram às suas famílias uma penosa espera de vários anos até que as condições financeiras permitissem arcar com o ônus das despesas de viagem e com o estabelecimento de uma vida familiar digna. (Nunes, 2000: 133) Outros, já casados, vinham sozinhos para o Brasil e, com o passar do tempo, casavam aqui novamente, constituindo nova família. Conforme Jawdat Mustafá, imigrante muçulmano palestino da comunidade de Jataí, dois de seus tios tinham família na Palestina, migraram para o Brasil e constituíram novas famílias aqui também, e “um deles faleceu e o outro se separou aqui, voltou para lá e juntou com a família de lá”, mas, não é tão fácil assim, porque abandona durante 30 ou 40 anos, depois que veio”. O apoio interpessoal trazia conforto em situações de crise, companhia na solidão e segurança nos compromissos, e as famílias sempre estavam presentes para ajudar a resolver todo tipo de questões ou problemas. Os recém chegados eram recepcionados por aqueles que já estavam instalados e recebiam todo tipo de ajuda, moradia e trabalho. Os laços familiares entre os imigrantes, aqui no Brasil, foram ampliados, uma vez que aqueles que vinham de suas terras, mesmo que fossem apenas da mesma região ou de cidades próximas umas das outras, passaram a ser considerados parentes ou “elmanos”, como se pertencessem todos à mesma família. Desta forma, uma vez no Brasil, os laços de parentesco dos imigrantes são reelaborados, deixando de ser firmados apenas a partir da consangüinidade e da religião, mas também, a partir da região. Todos se transformam em primos e tios. A pergunta feita por um brasileiro “é seu tio ou primo por parte de pai ou mãe?” pode receber a resposta de que “na verdade, a gente não é parente, mas desde criança começamos a chamar assim porque somos da mesma cidade”, explicitando, assim, a diferença entre consangüinidade e procedência. 132 A experiência imigratória dos muçulmanos confirma a observação exposta por Truzzi (1993: 10), de que “a religião e a aldeia (ou cidade) definem os laços básicos de lealdade entre os aqui chegados. A unidade sustentadora de tais laços é a família ampliada”. Nunes (2000) também observou a mesma lógica de definição dos laços de solidariedade, ao dizer que: “A ajuda que o recém-chegado recebia de parentes ou amigos era retribuída mais tarde, através de préstimos a outro parente ou amigo imigrante, formando-se, assim, uma vasta rede de solidariedade étnica” (Nunes, 2000: 138). A manutenção dessas relações de contato e de ajuda mútua, principalmente entre aqueles que ficavam e não retornavam para a terra de origem, aconteceu com mais freqüência na primeira geração de imigrantes vindos para Goiás, uma vez que esses laços de solidariedade, de certa forma, foram se afrouxando, em razão da independência gerada com a fixação em seus comércios e as mudanças de uma cidade para outra. Apesar das mudanças nas relações entre os imigrantes muçulmanos, o que se observou, ainda assim, é que as reuniões religiosas programadas pelos pilares islâmicos, os encontros de finais de tardes entre os imigrantes das comunidades muçulmanas e a própria condição de imigrante em um país estranho, comparada com a “sociedade receptora”, têm sustentado os laços afetivos entre eles. Nunes também notou esse aspecto com os árabes entrevistados, os quais reclamaram da dificuldade de se relacionar com a sociedade goiana, de se sentirem incluídos e as pessoas solidárias entre si. Ela cita uma entrevista onde um dos imigrantes árabes diz que “os laços sociais em Goiânia não são tão fortes o bastante para manter a fraternidade e a amizade” (Nunes, 2000: 140). Para os imigrantes muçulmanos, o apoio e a amizade na velha pátria eram muito mais fortes e significativos do que na nova pátria. As famílias das comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás estão, atualmente, contando com filhos jovens, na faixa de idade entre 16 e 26 anos, na terceira geração. Contudo, a instituição da família, que está diretamente ligada aos ditames da religião islâmica, nas suas relações domésticas e relações entre as famílias muçulmanas, teve muitos dos seus valores e princípios mais preservados, principalmente aqueles ligados à moral e às liberdades, apresentando, desta forma, aspectos que não se alteraram ou que resistem no interior da sociedade goiana. Nas primeiras famílias que migraram para Goiás, esses dilemas e conflitos gerados entre os pais e seus filhos eram maiores do que nas famílias e seus filhos da geração atual. Isto foi visto nos depoimentos dos imigrantes mais velhos, os quais 133 afirmaram que quando chegaram aqui defrontaram-se com um tipo de relacionamento entre pais e filhos totalmente diferente daquele acostumado na terra de origem. Dentre estes dilemas e conflitos, os que trouxeram maior sofrimento para os filhos dos imigrantes foram principalmente aqueles referentes à obediência dos filhos para com os pais e a relação dos seus filhos no ambiente fora do âmbito familiar, como nas escolas e com os colegas. Um longo processo de aprendizagem e experiências vivenciado no contato com a cultura da terra migrada tem sido necessário para a inserção e integração desses imigrantes em Goiás. O que foi possível perceber é que os problemas surgidos no contato interétnico provocavam, por um lado, afirmações identitárias e, por outro, modificações. Essas afirmações têm sido percebidas, dentre os aspectos referentes à esfera privada, no âmbito familiar, onde as modificações têm sido mais resistidas do que na esfera pública, como aquelas acerca das relações com a sociedade goiana, dadas as circunstâncias exigidas nesse mesmo processo do contato cultural. 3.1. A centralidade do casamento para os imigrantes muçulmanos Para os imigrantes muçulmanos, o objetivo da vida deles é crescer, trabalhar, constituir família e ter filhos. E o primeiro passo para se estabelecer essa família é a escolha da noiva e a negociação entre as famílias, que já representa o namoro. Eles comparam os namoros do Brasil com os de suas terras de origem, dizendo que namoramos quando a gente vê uma moça bonita na rua, a gente pergunta de qual é a família, é de família tal, então meu pai vai lá e vê a noiva que eu escolhi, vai pede a mão dela para os pais dela, se os pais quiserem, convida o noivo para sentar com a noiva para conversar, fica umas duas horas conversando, se der tudo certo, noutro dia já fazemos o negócio. A família tem que concordar, mas hoje ela também tem que concordar, e se a família dela não achar que aquele rapaz não é o ideal para filha deles não, as duas famílias olham se é ideal para seus filhos, se é religioso, se não é ruim, se não mexe com coisas erradas, daí pede a mão dela em casamento, daí o casamento 10 dias de festa. (I. P. J., 58 anos, 2003) As mulheres muçulmanas casam-se muito cedo, preferencialmente por volta dos 13 ou 14 anos, e no máximo com 18 anos. Esta faixa etária é considerada ideal, pela saúde e pelo vigor biológico da mulher, o que, de acordo com eles, favorece uma prole 134 saudável, além do que, “se passar dessa idade, a mulher é considerada como velha”, sendo “mais escolhida do que com opção de escolher”, e as mais velhas “viram coroas”. Na maioria dos casamentos da primeira geração de imigrantes, os cônjuges foram escolhidos pelos pais e não pelos próprios filhos. Atualmente, notou-se que os homens têm tido a liberdade de elegerem as suas esposas, mas os pais são sempre consultados e devem concordar com a escolha, para que o casamento se realize. Foram observados casos de casamentos entre muçulmanos e brasileiras, em razão da “adaptação” aos costumes locais e às necessidades de constituição de família, para aqueles que nunca voltaram à sua terra de origem, seja por falta de condições financeiras ou por outros obstáculos. Foram registrados, na comunidade muçulmana de Jataí, dois casos de muçulmanos casados com brasileiras, sendo eles: Mohd Tum e o Professor Bargian; na comunidade de Goiânia, Kassem Bazzi e seu filho são casados com brasileiras, bem como na comunidade de Anápolis, Amin Iamin e Arafat Mustafá. Um dos imigrantes muçulmanos palestinos da comunidade de Jataí, apesar de dizer que “cada um pensa o que quer e escolhe o que deseja”, referiu-se aos mandamentos do casamento muçulmano para a religião islâmica, dizendo que ela permite uniões de homens muçulmanos com mulheres não muçulmanas, mas o marido deve continuar praticando sua religião e ela terá liberdade de seguir a sua. O imigrante muçulmano deu o seguinte exemplo: “eu muçulmano caso com católico, eu continuo praticando minha religião e ela a sua religião, só que os filhos fazem parte do pai e não da mãe” (I. P. J., 23 anos, 2003). Durante a entrevista, ao sugerir o nome “família patriarcal” ao imigrante muçulmano, ele complementou dizendo “sim, e se eu caso com você, católica, os meus filhos têm que ser muçulmanos”. E outro imigrante muçulmano que estava participando também da entrevista disse: “a nossa religião, não importa do muçulmano casar com mulher católico, pra eu chamar ela a ficar muçulmana, entendeu, pra eu mudar a cabeça dela, pra ela ficar muçulmana” (I. P. J., 34 anos, 2003). Nota-se, conforme depoimentos acima, que a família nas comunidades de imigrantes muçulmanas é patrilinear, ou seja, o sobrenome da mulher é eliminado depois do casamento e a religião também é transmitida pela linha paterna, uma vez que os filhos, além de herdarem o sobrenome do pai, deverão ser muçulmanos, mesmo quando a mãe não o for. Resta esclarecer que, nas pesquisas de trabalho de campo, não foi registrado nenhum caso de mulheres muçulmanas casadas com homens brasileiros, mas somente o inverso. 135 Uma das filhas de uma imigrante muçulmana palestina de Anápolis, ao ser questionada sobre os namoros, disse que elas preferem namoros com muçulmanos, mas “não tem outra alternativa”, porque elas têm ficado sem opção e por isso elas têm procurado rapazes brasileiros, ou, em alguns casos, elas têm viajado para sua terra de origem com os pais e lá se casam. Porém, apesar da falta de opção, o que se verificou foi uma restrição maior para os casamentos exogâmicos entre as mulheres muçulmanas. Nos depoimentos, as moças muçulmanas afirmam que não são como as moças brasileiras, porque somente podem namorar para casar, por isso, também, a preferência pelos rapazes muçulmanos, uma vez que o namoro já significa a programação para o casamento. Uma imigrante muçulmana da comunidade de Goiânia, que está em Goiás há somente 4 anos, conta como conheceu seu noivo e fala de seu casamento no Líbano: meu marido foi pra lá passear, conhecer a família dele, [...] aí quando ele chegou lá ele gostou de mim, aí eu casei com ele, aí ele veio pra cá, depois de quatro meses, ele arrumou papel pra mim, aí eu vim pra cá, casar aqui, fizemos o casamento, foi uma festa. Lá nós fizemos o casamento de religião e aqui foi a festa. Nós chegamos aqui fizemos a festa fomos pra Caldas Novas fazer a lua-de-mel. Ele é primo do meu pai e eu sou segunda prima dele, aí ele é bom e todo mundo conhece ele, ele é bom e eu gostei dele. (I. L. G., 26 anos, 2002) Os imigrantes muçulmanos disseram que os namoros e casamentos dos brasileiros, com altas taxas de divórcios e com os problemas familiares daí advindos, são preocupantes. Eles afirmaram que a família tem se desintegrado e que entre eles quase não há divórcios, por isso eles têm reforçado a necessidade de continuar com os costumes muçulmanos e na defesa do casamento endogâmico. A centralidade da instituição do casamento endogâmico, entre os imigrantes muçulmanos, se expressa como um costume preservado. Dentre os vários motivos colocados, a endogamia é defendida por possibilitar a preservação dos valores culturais e religiosos próprios da comunidade muçulmana. Outro motivo é a passagem da herança, e notou-se uma preocupação em que esta não saia do âmbito da mesma família. No caso de casamento entre primos cruzados, a herança permanece na mesma família do novo casal. E ainda, o casamento endogâmico é recomendado porque, quando se escolhe uma moça ou um rapaz, sabe-se se ele é bom, se é de “caráter”, uma vez que já é conhecido, assim como as famílias de origem. Um dos imigrantes muçulmanos ilustra esta colocação ao dizer que “a herança fica na família nestes tipos de casamentos e 136 ainda, os pais se conhecem, são irmãos, sabem como os jovens foram criados, da índole dos nubentes” (I. P. J., 58 anos, 2003). Assim, os casamentos, são preferencialmente mais do que endogâmicos, são arranjados pelos pais dentro da família extensa. Nunes (2000) fala da importância do “familismo na seleção de parceiros no mundo árabe”, o qual gerava casamentos de preferência entre primos cruzados, um filho com a filha do irmão de seu pai, ou seja, a filha do tio paterno. Nunes conclui que este tipo de casamento serviria para o fortalecimento dos laços com a unidade familiar extensa. Para os muçulmanos, o amor não está ausente dos casamentos, mesmo nos arranjados, já que, para eles, este sentimento nasce e cresce durante a relação conjugal. Atualmente, mesmo nos casamentos arranjados, os pais têm sido menos radicais e consultado seus filhos. Os relatos mostraram que os arranjos atuais têm a interferência, principalmente do rapaz, que em alguns casos escolhe e conversa com o pai sobre o assunto; caso haja concordância, o pai do rapaz visita a casa da pretendente e conversa com o pai dela, e acerta (ou não) a união do casal. Jawdat, um imigrante muçulmano palestino de Jataí, ao explicar seu casamento disse: “sou casado com a filha do meu tio”. As pessoas casadas passam, para eles, a ser chamadas não mais pelo nome, mas pelo novo status adquirido na linha de parentesco. Ele ainda disse que “Essa denominação é mantida independente do grau de parentesco e expressa a incorporação do novo membro familiar”. Os valores relacionados ao casamento vêm se modificando paulatinamente, de uma geração para a outra. Contudo, apesar das necessidades de “adaptação”, nos depoimentos eles defendem os casamentos endogâmicos, e estes, quando possível, continuam vigorando. Dentre os aspectos que vêm sofrendo modificações, em virtude da incorporação dos valores da sociedade de adoção, os filhos dos imigrantes muçulmanos têm tido maior liberdade de namorar e casar com mulheres não muçulmanas do que as filhas. A “identidade negociada” representa esses aspectos da vida dos imigrantes muçulmanos, onde, para o alcance da interação social necessária, eles se adaptam ao contexto da “sociedade receptora”. Os pais imigrantes muçulmanos têm criado seus filhos ensinando-lhes e preparando-os para o trabalho, para o casamento e sustento da família, enquanto as filhas têm sido preparadas para o matrimônio e as lides domésticas. Assim, diz El Kadi (1997), O casamento é precedido de um curto namoro, suficiente para os casais prepararem a infra-estrutura do viver juntos mais do que para o 137 próprio ato de se conhecer, como no Brasil se coloca, mesmo porque em boa parte as pessoas e as famílias já se conhecem. A relação sexual antes do casamento é ainda considerada um tabu. (El Kadi, 1997: 61) Os casais de imigrantes muçulmanos ocupam papéis diferenciados, conforme se observou principalmente na comunidade de Jataí, onde os espaços reservados e ocupados pelo homem e pela mulher são distintos. Durante os encontros realizados pelos homens, após fecharem os seus comércios, nos finais das tardes, na frente da casa, mais especificamente na calçada de Mohd Tum, um dos mais conhecidos da comunidade de Jataí, as mulheres ficam na cozinha ou no interior da casa e aparecem para cumprimentar os homens ou servir o chá com biscoitos e logo retornam para dentro da casa. Os imigrantes muçulmanos explicam que a liberdade da poligamia pela religião islâmica é condicionada à possibilidade do homem sustentar várias mulheres, mas lembram que, muito antes do islamismo, já se praticava esta modalidade de casamento. Um imigrante muçulmano libanês da comunidade de Goiânia, explicou como ocorrem uniões deste tipo, pois, de acordo com ele, É liberado casar com quatro mulheres, mas tem que ficar com estas certinho, por exemplo, murcha um lado e do outro não, larga pra lá, tem que comprar a mesma coisa, dar comida a mesma coisa, direitinho, não pra uma só. Se não faz certinho, não pode. Porque Deus deixou nós por exemplo pra casar com quatro mulheres muçulmanas? Pra que crescesse o Islã. Era pra aumentar a família muçulmana depressa. Agora é pouco usado, eu nunca escutei assim, os homens ter três ou quatro mulheres, só aqueles mais ricos, eu não conheço ninguém. Aqui em Goiânia, todos que vieram pra cá trouxeram só uma mulher, porque dá uma dor de cabeça casar com duas mulheres, dá briga, nenhuma gosta da outra, cada uma puxa o marido dela pro lado dela, então dá briga, então alguns têm duas mulheres no oriente. (I. L. G., 74 anos, 2002) E uma imigrante libanesa, também da comunidade de Goiânia, expõe sua opinião sobre o casamento com várias mulheres, dizendo que poder casar com mais de uma mulher, muito antes do islamismo, isso já era praticado. Não é especificamente o islã que fala que pode casar com outras mulheres, mas isso também é para quando o homem as pode sustentar em igualdade, porque tem muito mais mulheres que homem, ele protege a mulher. Igual ao Profeta Mohammad, ele não casou só porque ele gosta da mulher, ele olhava e via que a mulher 138 precisa de uma família, de um homem, é por isso que ele casou com as doze dele. (I. L. G., 26 anos, 2002) É interessante, ainda, observar a opinião de um jovem imigrante palestino da comunidade de Jataí, que chegou ao Brasil há apenas 2 anos, quando este disse que: a religião só manda a nossa vida pra felicidade, [...] agora nosso religião muçulmano, eles têm muitas teorias sobre as mulheres, e tem muita gente que não entende estas teorias, e pensa que está errado, igual o homem também, igual as coisas de casamento, eles falam de mulher, que homem tem que casar com 4 mulher, tem muita gente que entende estas coisas erradas, mas não é desse jeito assim, o homem casa com 4 mulheres, [...] a religião colocou esta teoria porque teve condições pra colocar, se o homem casa com uma mulher, e no futuro tem um problema com ela, sexual ou não sei o quê, o que ele tem que fazer, daí, ele separa com ela joga ela na rua e casa com outra, não é assim, então ele tem que casar com outra, mas ela fica responsável nele, ela fica ajudando ele a gastar o dinheiro dele, quase como se fosse esposa dele, mas ela não é, ele só cuida dela, entendeu, ele casa com outra, ele não joga ela na rua, religião muçulmana aqui, é protetor de mulher, mas aqui não, eu não gosta de mulher, eu jogo ela na rua e vai e casa com outra, e o que vai ser a vida dela agora, vai ficar passando mal, vai ter um problema de comunidade aqui, ninguém vai ajudar ela, então não pode, e nossa religião proíbe isso, deixar a mulher assim. (I. P. J., 23 anos, 2003) Os imigrantes muçulmanos ainda justificam a preferência por casamentos entre parceiros da mesma origem religiosa, dizendo que há menos diferenças entre marido e mulher muçulmanos do que entre cônjuges de denominações religiosas diferentes. Os homens, de acordo com os depoimentos, sentem-se mais seguros com mulheres da pátria de origem, uma vez que elas são consideradas mais recatadas, conservadoras e discretas, por isto supõe-se que elas seriam melhores esposas do que as mulheres goianas. Eles ainda alegam as diferenças culturais como empecilhos aos casamentos interétnicos e, Nunes (2000) observou, em sua pesquisa, que eles se apóiam em determinados estereótipos em relação à mulher brasileira, alegando que elas são “indolentes” e “gastadeiras”. Apesar dessas ressalvas, os namoros de filhos de muçulmanos da terceira geração, com brasileiras, têm aumentado e isto foi possível observar em algumas famílias da comunidade de Goiânia e Anápolis. Notou-se também que persiste a preferência pelo casamento endogâmico, principalmente entre as famílias mais tradicionais, ou seja, aquelas que continuam praticando com mais veemência os mandamentos da religião islâmica. 139 Desta forma, apesar das modificações havidas com os casamentos, principalmente a partir da segunda geração de imigrantes muçulmanos, observou-se uma preocupação constante com a vida privada, com a formação da família e com a criação dos filhos dentro dos ditames, valores e princípios norteadores da religião islâmica, onde o casamento é o valor mais sagrado na constituição da família muçulmana. Assim, a família torna-se a principal articuladora e mantenedora da fronteira étnica, exercendo um papel importante para a identidade dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Seyferth (1990) exemplifica essa situação ao afirmar que, O conjunto das instituições comunitárias étnicas se completa com a família, reduto íntimo da etnicidade, pois cabe a ela socializar os filhos como membros do grupo [...] no contexto étnico o papel principal é o controle familiar sobre os casamentos, o que supõe o controle sobre a endogamia. (Seyferth, 1990: 84) O casamento tem uma centralidade no contexto social dos muçulmanos e isto pôde ser observado no interior das casas, mais precisamente nas salas de suas residências. Geralmente, observam-se retratos de casamentos dos imigrantes, de seus filhos e parentes, e todos em lugares de destaque. Também se observou empenho dos pais na busca de alternativa para que todos os jovens se casem e, ainda, que se casem na mesma família. E em todas as famílias entrevistadas, há primos casados entre si ou, pelo menos, tentativas dos pais de casarem uma sobrinha com seu filho, como foi o caso de um imigrante libanês de Goiânia. Ele relatou que foi passear no Líbano com toda a família e lá tentou casar seu filho com uma sobrinha; eles chegaram mesmo a começar o namoro, mas não deu certo. O casamento se apresenta como uma instituição fundamental de reprodução social. Ele dimensiona e articula três formas de constituição da identidade muçulmana, ou seja, a religião, a família e a região. Estas dimensões se objetivam em requisitos primordiais para a efetivação de um casamento muçulmano. Uma das manifestações identitárias se expressa na hierarquia de valores existentes para a escolha do cônjuge muçulmano, buscado na própria família muçulmana e, de preferência, na mesma cidade; caso o padrão ideal não possa ser realizado, o parceiro é buscado em outras famílias muçulmanas mais próximas ou em outras cidades, desde que prevaleça a preferência por um muçulmano ou muçulmana. Contudo, alguns valores e padrões de comportamento da “sociedade receptora” se tornaram uma força, senão contrária, relativizadora do casamento endogâmico. 140 Muitos dos valores transmitidos pela educação familiar passam a ser questionados pelos filhos dos imigrantes. A imposição familiar, na escolha dos cônjuges, passou a ser avaliada pelos mais jovens filhos de imigrantes muçulmanos, de uma forma contestadora, quando eles passaram a namorar moças brasileiras, sem nenhuma preocupação. Um exemplo foi o caso do filho de um imigrante muçulmano palestino, da comunidade muçulmana de Goiânia, que namora uma brasileira, sem qualquer restrição dos seus pais. Outro padrão da família muçulmana, o comando do pai ou da figura masculina mais velha, que centraliza a autoridade e, ao redor do qual se mantém coesa, tem se modificado. Isto foi percebido com relação à divisão sexual do trabalho. Conforme depoimentos, o homem, na terra de origem, trabalha fora e é o alicerce financeiro da família, enquanto a mulher administra a casa e o trabalho doméstico; com a imigração e o processo de inserção na “sociedade receptora”, esta situação vem se modificando e a esposa muçulmana também trabalha fora com o marido no seu comércio ou, ainda, possui sozinha o seu próprio negócio. Atualmente, ainda prevalece a concepção de que as mulheres imigrantes muçulmanas devam exercer atividades fora do ambiente doméstico apenas quando necessário. Elas trabalham no comércio, nas feiras ou nas lojas e, na maioria das vezes, ao lado do marido, em razão das necessidades impostas com a imigração. Desta maneira, elas ampliaram suas funções, uma vez que passaram a colaborar com seus maridos, trabalhando junto com eles. Observou-se também que, muitos filhos homens dos imigrantes muçulmanos ajudam seus pais no comércio, enquanto as filhas trabalham no serviço doméstico. Em uma das famílias da comunidade muçulmana de Anápolis, as filhas mais velhas trabalham fora de casa e as mais novas desempenham tarefas domésticas. Para os imigrantes muçulmanos, conforme depoimentos, o ideal é que a mulher casada seja submissa, ocupada com as lides domésticas e viva nos limites desse ambiente, cuidando da educação dos filhos, enquanto ao homem cabe a sustentação econômica, a segurança da mulher e dos filhos. Nunes (2000) retrata esta mulher ao descrever o seu papel, principalmente as da primeira geração de imigrantes em Goiás, onde elas, se tornaram donas de casa, criadoras dos filhos, defensoras da honra familiar, guardiãs da moralidade e responsáveis pela harmonia familiar. Elas eram as arquitetas do caráter dos filhos, transmissoras 141 de valores culturais, bem como enfermeiras para os doentes e idosos. (Nunes, 2000: 126). Notou-se que a fortuna e o sucesso desejados tiveram um preço, pois os valores e costumes conservados foram sendo “adaptados”, em razão das necessidades impostas pelas condições sócio-econômicas locais na “sociedade receptora”. Assim, observou-se que o papel da mulher no desempenho dos negócios familiares foi crucial para a ascensão e para o sucesso dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Porém, conforme Nunes (2000), essas mudanças no desempenho do papel da mulher não se refletiram nos papéis desempenhados na relação entre marido e mulher no âmbito doméstico: Esta participação, todavia, não tinha qualquer reflexo nos papéis desempenhados por marido e mulher no interior da família. O maridopai continuava a ser o chefe de família, a figura autoritária a quem cabiam todas as decisões de importância. A ampliação do espaço de trabalho destas mulheres, mais do que a mudança de papéis sociais representava sempre o acúmulo de jornadas de trabalho estafantes. (Nunes, 2000: 128). Uma imigrante muçulmana libanesa, casada há 5 anos, da comunidade de Goiânia, ao falar sobre a condição da mulher no casamento, disse: por favor, falem para as pessoas que pensam que a mulher sofre e é submissa, nós não somos submissas, vivemos muito bem e felizes, todas nós podemos estudar e ter profissão se quisermos. Nós temos nossos direitos todos protegidos no Alcorão. E se o homem casa-se com várias mulheres, isto já acontecia antes do Islã e é difícil isto acontecer hoje, porque dá muita confusão, ciúmes, porque ele tem que tratar todas iguais e dar a todas igualmente tudo que é o dever do marido de dar às esposas. (...) Todo mundo pensa que a mulher muçulmana não pode falar na frente do marido, ela não pode ver ninguém, é tudo errado. Eu acho, não é porque é a minha religião muçulmana, mas a mulher no Islã tem muito mais respeito e direito do que em outra religião, ela é muito respeitada. Às vezes as minhas amigas dizem assim “você pode ir pra minha casa?” Eu digo “posso sim, por que não?”, elas dizem “ah, pensei que teu marido não gosta. Mas você pode sair assim?”, eu digo “não tem nada não, eu tenho confiança nele e ele tem em mim, como as mulheres têm direito de sair eu também tenho, não tem nada não. (I. L. G., 26 anos, 2002). As mulheres muçulmanas casadas afirmaram serem felizes e que os seus direitos são respeitados, bem como não são submissas a seus maridos. Conforme observação de campo, mesmo quando estejam ocupadas em alguma tarefa e o marido desocupado, a obrigação de olhar e cuidar da criança, por exemplo, é dela. Durante a entrevista, a 142 imigrante muçulmana, da comunidade de Goiânia, foi chamada pelo seu marido para aquela tarefa. Assim, as observações de campo levaram à conclusão de que essas convenções estabelecidas para a relação marido e mulher são bem aceitas entre elas. 3.2. A mulher muçulmana e sua vida cotidiana Acerca das suas roupas, especialmente com relação ao uso do lenço (hijab), a mulher imigrante muçulmana empenha-se em afirmar que não é o uso do lenço (ou shador) que as faz ser mais ou menos muçulmanas. Ferreira (2001) aponta que há anos a maioria não fazia uso dele e que esta prática tem sido retomada por muitas hoje no Islã. Ela ainda participou de uma festa e observou comportamentos importantes com relação à vaidade da mulher muçulmana. Por exemplo, Ferreira (2001) disse ter percebido que a muçulmana anfitriã da festa trouxe um espelho para que as mulheres pudessem se pentear, depois de tirarem os véus, quando entrassem no salão de festas. Para ela, o encobrir e o ocultar são um exercício instigante. Conforme observado no trabalho de campo, para as mulheres e homens muçulmanos, o conceito de beleza e sensualidade, é diferente daquele da “sociedade receptora”. Tanto para os homens quanto para as mulheres muçulmanas, conforme depoimento de um imigrante libanês de Goiânia, “a mulher é uma pérola, jóia rara que desperta a atenção do homem, por isso era necessário ocultar-se, principalmente, as solteiras aos olhos de seus pretendentes” (I. L. G., 74 anos, 2002). Observou-se também que, tanto para uma mulher muçulmana como para um homem muçulmano pretendente a casamento, o revelar-se é fundamental para despertar no homem o interesse pela mulher. E para ela, a vaidade desse despertar ou revelar-se através dos casacos, das roupas recatadas, das jóias, que os levam a pensar em uma beleza “escondida” ou “oculta”, que pode ser mostrada somente diante das amigas, da família ou do “quase marido”. Um dos imigrantes muçulmanos libaneses de Goiânia disse que as emoções se acabam quando a mulher deixa transparecer excessivamente o seu corpo, “com a liberdade em excesso, o homem tem descaso e falta de romantismo”. Ele complementa ao dizer que o que está estragando a cultura no mundo é a liberalidade, e que 143 Se você acha o muçulmano uma religião que mais lhe protege, que mais tem cultura, (...) o muçulmano ainda conserva a mulher, os islâmicos acham que a mulher tem muito mais valor do que a cristã, porque para os cristãos a mulher tem que fazer tudo, ser liberal demais, abre tudo antes de casar, o homem alcança tudo com ela, quando casa já está cansado um do outro. A mulher muçulmana sempre se protege, valoriza mais o seu corpo. O homem muçulmano não pode ficar vendo o corpo da mulher, eu sou muçulmano fanático, mas sou homem, a mulher mostra o rosto tudo bem, põe um lenço na cabeça e fica bonito, muito bonito e a mulher fica bonita, olha o cabelo da mulher, os outros detalhes, o corpo da mulher chama a atenção cobre ela, então aí o homem tem mais respeito e ela tem mais valor, você sabe tem muita mulher que dá tanta abertura e o homem não tem mais aquele poder, aquela força sexualmente, não tem. Tá perdendo, porque está mexendo, está pegando, está alcançando facilmente, com o tempo não tem mais aquela emoção. (I. L. G., 74 anos, 2002). Ainda falando acerca da mulher e do seu vestuário, um dos imigrantes muçulmanos de Jataí cita uma passagem bíblica, onde Moisés, ao fugir do Egito, encontrou duas moças, as quais ele ajudou a tirar água de um poço; ao contarem essa estória para seu pai, ele mandou que fossem buscar o rapaz, e na volta as moças estavam caminhando na frente de Moisés quando veio um vento forte e suspendeu-lhes as saias. Então, Moisés lhes disse que iria na frente e que elas apontassem o caminho, se à direita ou à esquerda. Com este exemplo bíblico, o imigrante quis dizer que, assim como Moisés andou na frente para não ver as pernas das moças e não ter maus pensamentos, eles também devem fazer da mesma forma. Ele afirmou que não tem nenhum homem que não tenha um pensamento mau, e ainda, “nossa religião não permite misturar homem com mulher, lá não mistura. Somente pessoas da família como primos e primas, mas com pessoas estranhas não se misturam, e aqui (referindo-se ao Brasil) já mistura” (I. P. J., 70 anos, 2003). Em um depoimento, um muçulmano da comunidade de Goiânia aponta o excesso de liberdade vivido pelos brasileiros, principalmente pelas mulheres e afirma que, “há excesso de liberdade no comportamento da mulher brasileira, é muito aberto, a mulher é muito livre” (I. L. G., 74 anos, 2003). Ao ampliar-se a reflexão sobre o encobrir-se, alguns aspectos importantes foram considerados por Ferreira (2001), sobre o oculto e o mistério que envolve o corpo e a mente da mulher e do homem muçulmanos. Na comparação entre o Oriente e o Ocidente, ela sugere que aquele é repleto de histórias e de lendas que povoam o imaginário das pessoas e que neste, o “encobrir uma pessoa é o mesmo que reprimi-la, desvalorizá-la”. Ela conclui dizendo que, para os brasileiros, é inconcebível considerar 144 feliz uma mulher que faz uso do lenço (hijab), pois nada se vê além do véu. E ainda, é por isso, também, que ele é fonte de mistério, fronteira entre o conhecido e o desconhecido, entre o oculto e o revelado. É possível também entender o significado do uso do lenço como um elemento diacrítico, que para a “sociedade receptora” define e qualifica a mulher que o usa como uma muçulmana. E para os próprios muçulmanos, o que se observou é que o lenço é visto como uma fronteira entre o feminino e o masculino, o humano e o divino, o lícito e o ilícito, e ele pode ser usado politicamente, como forma de afirmação, protesto ou reconhecimento. Nas primeiras impressões de campo, a hipótese era a de que as mulheres poderiam ser identificadas como muçulmanas, ou não, a partir do uso, ou não, do lenço (shador). Contudo, percebeu-se posteriormente que para as mulheres o uso do lenço não é um sinal de identificação, ou um sinal diacrítico definindo, a priori, uma mulher muçulmana. Por exemplo, uma mulher muçulmana casada, mesmo sendo muito exigente em relação à prática dos preceitos da religião, disse que “não usa o lenço e muitas mulheres já deixaram de usar. Outras mulheres muçulmanas também não usam o lenço e nem sequer cumprem as orações exigidas” (I. P. A., 34 anos, 2002). Isto quer dizer que mesmo que as mulheres imigrantes muçulmanas não estejam fazendo, por exemplo, as orações diárias e também não usando o lenço, elas não deixaram de ser muçulmanas. O uso do lenço pelas mulheres imigrantes muçulmanas tem uma representatividade importante para a “sociedade receptora”. Ela reconhece a mulher imigrante muçulmana quando a vê usando o lenço e os vestidos, reconhecidos como trajes típicos das mulheres muçulmanas. Portanto, para a sociedade maior, este sinal representa uma diferenciação definidora de que uma mulher seja ou não seja uma muçulmana. Contudo, ao entrar em contato com as comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás, durante o trabalho de campo, os depoimentos das mulheres muçulmanas vão esclarecendo o fato de que elas não são muçulmanas porque usam o lenço; tanto há mulheres muçulmanas que usam o lenço, como há mulheres muçulmanas que optaram por não usá-lo. Elas dizem que depende de cada uma, optar por usar ou não o lenço e que não é o lenço que as identifica como mulheres muçulmanas, é o profetizar que é uma muçulmana de coração. Os imigrantes muçulmanos frisam muito esta condição de ser ou não ser muçulmano como sendo uma “questão de profetizar, vindo do coração, de que Allah (Deus) é o seu único e salvador”. E é esta condição que os faz se sentirem pertencentes 145 a esta dominação muçulmana, ou seja, à identidade étnica muçulmana. Um exemplo notado nos trabalhos de campo sobre a representação ou identificação pela sociedade goiana acerca do lenço nas mulheres muçulmanas, foi a de que, nos depoimentos, elas disseram que o uso do lenço as faz ser reconhecidas pela sociedade, e que quando não o usa, elas passam despercebidas. Uma mulher muçulmana, imigrante palestina de Anápolis, relatou que quando ela foi vista em um camelódromo de Goiânia, todos a viram e a olharam entendendo que ela fosse muçulmana, mas se ela não estivesse usando o lenço não seria percebida como uma mulher muçulmana. Desta forma, é interessante observar que, a identificação de que uma mulher usando o lenço seja muçulmana é somente externa e não interna ao grupo de imigrantes muçulmanos, uma vez que, para eles, este elemento não é fundamental para a definição ou distinção do que seria ser ou não muçulmana. A “sociedade receptora” percebe a mulher muçulmana porque ela está usando o lenço, contudo, este sinal identificador somente serve à sociedade goiana, uma vez que, para elas, este sinal não identifica ou representa ser ou não muçulmana. Porém, o que foi observado, empiricamente, é que elas assumem esta forma de a sociedade as identificar, esta representação da “sociedade receptora” é internalizada como a auto-representação ou auto-identificação como muçulmanas, a partir do uso do lenço. Quando uma imigrante muçulmana foi questionada se usava o lenço, ela respondeu que não, e ainda questionada se não era muçulmana, ela respondeu com muita veemência que sim, parecendo que não tinha gostado da pergunta. Para elas, conforme depoimento, o que as caracteriza como muçulmanas é o que está no coração, é o sentimento de serem muçulmanas e criadas no costume da religião islâmica. Isso foi observado no depoimento de uma das imigrantes muçulmanas de Anápolis, que ao ser questionada sobre o uso do lenço disse que “não há obrigação de usá-lo, basta que sinta no coração a vontade e necessidade de usar o lenço” (I. P. A., 34 anos, 2002). E outra imigrante muçulmana da comunidade de Goiânia disse: “como já formei família, já me casei e não interessa mostrar-me ou arrumar mais noivo, então decidi colocar o lenço” (I. L. G., 26 anos, 2002). Assim, para elas, especificamente, outras características ou sinais representativos diversos, próprios do grupo muçulmano, identificam as mulheres e os homens muçulmanos. Aliás, conforme os depoimentos, mesmo aqueles muçulmanos que nem estejam praticando as obrigações das orações diárias, se consideram muçulmanos, como 146 bem disse um dos imigrantes muçulmanos de Goiânia: “o que importa é o que está dentro de nós”. Ainda com relação ao uso do lenço, uma das imigrantes muçulmanas da comunidade de Goiânia relatou que não suportou a pressão e as chacotas das pessoas na rua e deixou de usá-lo, pois ficou muito magoada. Mas ela disse que “continua sendo muçulmana. Não é o lenço que vai me tirar o sentimento de ser muçulmana”. Um dos imigrantes muçulmanos de Jataí disse que a sua mulher era moderna porque não usava o lenço, e seu amigo o corrigiu imediatamente, dizendo que ela era “modesta, mas que se todas passar a usar, aqui em Jataí, vira costume e todos os brasileiros também acostumarão” (I. P. J., 57 anos, 2003). Então, aquele imigrante muçulmano palestino de Jataí complementou dizendo: A minha mãe usa roupa comprida, cobre a cabeça, mas hoje, aqui é muito difícil usar, inclusive aqui no interior, faz muito calor e o povo acha muito estranho usar roupa muçulmana aqui. Agora em São Paulo, cidade grande, eles usam, mas aqui, porque não começaram a usar, mas se começar vira moda também aqui. (I. P. J., 58 anos, 2003). Uma muçulmana libanesa de Goiânia decidiu, somente há uns quatro meses usar o lenço. Ela disse que apenas agora se interessou e se decidiu, declarando: “já casei, já tenho os filhos e então vai se dedicar toda”. Ela disse que seu marido não interferiu na sua decisão, mas acha que ele gostou que ela tenha adotado o uso do lenço, e disse: Eu gosto muito, minha mãe usa, minha tia usa, antes eu ficava com medo porque aqui as pessoas não têm esse costume, até hoje quando eu saio é difícil, as pessoas olham e falam bastante e falam coisas, mas eu coloquei com o coração, com muita força, aí eu não importo, eu acho bonito, (...) uns falam mal outros falam bem. (I. L. G., 26 anos, 2002). 3.3. Os filhos dos imigrantes muçulmanos entre as duas culturas Com relação à quantidade de filhos, as famílias muçulmanas, desde as primeiras gerações de imigrantes, têm tido uma grande quantidade deles. Conforme os depoimentos, antes da imigração, também em suas terras de origem, as famílias possuíam muitos filhos. Contudo, as famílias muçulmanas da segunda e da terceira 147 geração têm diminuído o número de filhos mas, se comparado ao padrão brasileiro, o dos muçulmanos ainda continua alto, pois a média é de no mínimo três a quatro filhos por família de imigrantes muçulmanos em Goiás. Os imigrantes muçulmanos apresentaram, na sua maioria, um grau de instrução não muito variado. São poucos aqueles que se destacaram nas letras e, geralmente, estes são escolhidos pela comunidade para ser o professor da mesquita ou da Sociedade Beneficente, ensinando os filhos dos imigrantes. Outro aspecto importante de ser mencionado é que há uma pequena ocorrência do analfabetismo, sobretudo entre as mulheres que vieram da terra de origem e que, contudo, com o tempo no Brasil, a situação de imigrantes e seu processo de inserção à “sociedade receptora”, já com os filhos nascidos aqui, houve a preocupação, por parte dos pais, em garantir a educação escolar para todos, incluindo as imigrantes mulheres, principalmente as mais jovens, que têm cursado o ensino médio e superior. Os pais muçulmanos justificam a necessidade de seus filhos freqüentarem as escolas da comunidade muçulmana, nas mesquitas ou associações muçulmanas, uma vez que nestas, seus filhos aprendem a língua e a religião islâmica, conhecendo os princípios e valores que regem o Islã. Conforme um imigrante muçulmano da comunidade de Jataí disse, “não se desviando do caminho que deve trilhar um muçulmano”. Eles fizeram tal justificativa, especificamente naquela comunidade, onde há um professor que ensinava às crianças muçulmanas, mas que no momento essas aulas estão paradas. Assim, o que se observou é que os pais têm se preocupado com uma educação voltada para os ensinamentos tanto da língua quanto da religião, para que os mais jovens não percam o costume de falarem a língua pátria de seus pais e se desviem para outros caminhos religiosos. Isso pôde ser observado em um depoimento de uma imigrante libanesa da comunidade de Jataí, quando disse: No Brasil tem lugar que tem mesquita para rezar, para reunião árabe, aqui em Jataí tem para rezar, mas para crianças não tem, ninguém faz uma escola para criança aprender, estudar, saber (...). E nós paga, pagava, agora eu e meu marido saiu da reunião deles, porque tem hora que eles abrem a escola e de novo fecham, quando abrir eu pago o atrasado (...), eu e o meu marido sabe falar árabe, sabe o costume da gente, e meus filhos não sabe, não é?. (I. L. J., 45 anos, 2003). Conforme observação, os imigrantes muçulmanos da segunda e terceira geração sofreram menos os atritos culturais no processo de inserção à “sociedade receptora” do 148 que os primeiros imigrantes, uma vez que, como eles disseram, “os nossos pais ou os que vieram primeiro é que sofreram as dificuldades, nós encontramos a cama pronta”. Um imigrante muçulmano, ao responder sobre como foi sua adaptação nos primeiros anos de imigração, disse que “a pessoa que vem desse jeito não muda muito, porque acha as coisas ajeitadas, aí se você chegar num lugar que não tem ninguém prá receber você, aí você sente diferença” (I. P. J., 48 anos, 2003). As facilidades encontradas com a imigração recente, comparadas aos primeiros que vieram para o Brasil e para Goiás, são ditas por um jovem imigrante que vive em Jataí há apenas dois anos, quando ele fala que o povo brasileiro agradou ao seu povo e que gerou a confiança entre os árabes e os brasileiros: é a confiança entre os dois, de um lado os árabes e os brasileiros que se ajuntaram, e hoje em dia eu não estranho, quando eu ando na rua e encontro com uma pessoa, me perguntar meu sobrenome e me perguntar se é árabe, é a maioria, virou uma coisa normal, antigamente, não, mais hoje em dia você anda na rua, tem muita gente que tem o sobrenome árabe, descendente de árabe, então daqui um tempo, vai se misturar, daí vai ficar a maior raça que entrou no Brasil, além da portuguesa. (I. P. J., 26 anos, 2003). Assim, o que se observou é que os imigrantes da primeira geração sofreram com maior intensidade os problemas de “adaptação”, nos primeiros tempos de imigração. Mas os imigrantes da segunda e da terceira geração, principalmente os filhos jovens dos imigrantes, têm passado pelos conflitos referentes ao processo de internalização de crenças, valores e comportamentos de seus pais, no âmbito da vida doméstica, e ao mesmo tempo os da rua, na escola, na vida pública, ou seja, no contato contínuo e direto com a sociedade goiana. Por exemplo, foi percebido no trabalho de campo, ao mesmo tempo que em casa eles recebem um tipo de educação voltada para os ditames e comportamentos ligados à religião islâmica, na rua ou na vida pública estão convivendo e aprendendo situações diferenciadas ou até contraditórias, em relação aos ensinamentos recebidos dos pais. A preocupação com a criação e encaminhamento dos filhos nos ensinamentos do Islã é muito grande. Tanto que um entrevistado, ao se referir à peregrinação à Meca, afirmou que apenas irá após ter “criado a família”, o que significa casar todos os filhos e ter dinheiro para a viagem. Esses aspectos culturais, como a educação religiosa e a aprendizagem da língua árabe, a preparação para a vida profissional, se tornando 149 autônomos, e a condução para o casamento são imprescindíveis para os imigrantes muçulmanos. Os pais muçulmanos têm reclamado dos seus filhos por não seguirem os ensinamentos da religião como lhes foi ensinado, e se lamentam dizendo: “mas eles não escutaram”. As impressões de campo levaram a entender que apesar de os jovens muçulmanos não seguirem a religião como seus pais e nem como estes desejariam, sentem a influência da religião islâmica e conhecem os mandamentos religiosos. Eles receberam todos os ensinamentos da religião pelos seus pais. E os pais, que têm mais se envolvido com os preceitos cotidianos da religião, reclamaram da inobservância e desobediência de seus filhos, quanto ao cumprimento dos mandamentos religiosos, principalmente os referentes à prática das cinco orações diárias. Os pais explicaram que os seus filhos se comportam desta forma devido a influências recebidas através da convivência com não muçulmanos em Goiás. Alguns jovens muçulmanos consideramse muçulmanos em virtude de serem filhos de país muçulmanos, e afirmam: “meus pais são muçulmanos, eu também sou”. Percebeu-se, nas famílias dos imigrantes muçulmanos, um conflito de gerações entre os costumes dos pais e os dos filhos. Esse conflito tem a especificidade de se caracterizar pelas constantes discordâncias dos pais com relação ao modo de vida dos filhos, em não atenderem os ditames da religião, onde os pais acabam cedendo, porque se tornam impotentes diante das mudanças dos filhos, que passaram a se identificar com o modo de vida dos jovens com quem convivem fora da comunidade muçulmana. Contudo, em uma mesma família convivem os pais seguidores da religião, que determina todo seu modo de vida, juntamente com os filhos, sobre os quais ainda têm poder de comando em outros aspectos, como aqueles referentes às tarefas em casa ou ajuda no comércio, mas que não seguem os mandamentos da religião como os pais desejam. Dentre as comunidades de imigrantes muçulmanos pesquisadas, a de Goiânia foi a que apresentou maior número de imigrantes, já na terceira geração, com comportamentos e estilos de vida mais próximos da “sociedade receptora”. Caso dos filhos homens de uma família de imigrantes muçulmanos palestinos, nos quais foram observados corte de cabelo, tatuagens e brincos. Nas comunidades de Anápolis e Jataí se observaram maiores rigores no comportamento e na manutenção de valores e princípios da religião islâmica nos filhos dos imigrantes. Eles se aproximam mais do perfil de filhos que os chefes religiosos esperam, estão mais ligados aos “caminhos 150 retos”, como eles dizem, ou mesmo aos valores morais defendidos pelo Islã. Isto foi observado por Maháiri (1985), quando enfatiza a constituição das comunidades muçulmanas de imigrantes no Brasil e suas instituições sociais, como as Sociedades Beneficentes ou Centros Islâmicos. Ele diz que, o grande papel que as Sociedades Muçulmanas do Brasil, de uma maneira especial, têm exercido e da enorme responsabilidade da qual elas se têm desincumbido com galhardia contínua e incansavelmente defendendo os ensinamentos da Santa Religião Muçulmana e educando as novas gerações muçulmanas em consonância com esses ensinamentos sublimes, pois, elas são como as velas que iluminam o caminho a ser seguido pelos filhos dos Muçulmanos, para poderem trilhar o caminho reto buscando a inspiração da ajuda de Deus, para sempre Seja Louvado (...). (Maháiri, 1985: 6-7). Os chefes religiosos islâmicos ainda afirmam a necessidade dos imigrantes muçulmanos serem rigorosos com a preservação e o controle de seus filhos para que eles não se desencaminhem, como é possível perceber no texto a seguir: “Cumpre aos muçulmanos dos países de imigração, que têm a vida de uma minoria muçulmana, interessarem-se com mais vigor pelos seus filhos e filhas, temendo que eles se percam ou se descaracterizem” (Maháiri, 1985: 23). Desta forma, os descendentes dos imigrantes que moram em Goiânia experimentaram maiores rupturas com os valores trazidos por seus pais e avós, enquanto nas comunidades de Anápolis e Jataí, prevaleceram maiores rigores no comportamento e manutenção de valores e princípios muçulmanos. Estes padrões de comportamento são diferenciados e são sentidos de acordo com o tamanho e a coesão na formação do grupo étnico. Os descendentes dos imigrantes muçulmanos de Goiânia estão mais dispersos do que os das outras comunidades e, por isso, têm internalizado mais os padrões culturais locais. Os filhos das duas comunidades menores têm resistido e conseguido resguardar mais, principalmente na esfera privada, seus costumes e hábitos tradicionais, herdados de seus avós, em razão de estabelecerem relações mais estreitas no âmbito familiar. Contudo, no processo de inserção e integração dos imigrantes muçulmanos, nas três comunidades pesquisadas, há mudanças “adaptativas”, em maior ou menor grau de internalização, dos modos de vida desses, formando a identidade dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Os filhos homens dos imigrantes muçulmanos, da última geração, conforme visto, são aqueles que seguem menos fielmente os costumes religiosos, e mesmo 151 aqueles referentes ao comércio, do que as filhas. Comparando-se uma família muçulmana da comunidade palestina de Anápolis que tem somente um filho e quatro moças solteiras em casa com uma outra família da comunidade muçulmana palestina de Goiânia, que tem a mesma quantidade de rapazes, percebe-se que, enquanto nesta seus filhos vivem um ritmo de vida diferente do de seus pais, pois percebeu-se os filhos ouvindo música e assistindo videoclipes no estilo rock, muito alto, outros namoram bem à vontade em casa, naquela, as moças são caseiras, vestem-se de forma recatada, não saem sozinhas e obedecem aos comandos dos pais. Desta maneira, os filhos dos imigrantes da terceira geração, ou seja, os descendentes nascidos no Brasil, das comunidades muçulmanas de Goiânia, Anápolis e Jataí apresentaram diferenças de comportamentos entre os jovens e as jovens muçulmanas, em razão da liberdade de ação, de vestir, de sair, de falar e se relacionar que é dada àqueles em detrimento a estas, ou seja, às jovens filhas de imigrantes muçulmanos ainda são negadas as liberdades já conquistadas pelos jovens filhos. Elas são controladas de perto pelos pais e sua castidade cuidadosamente guardada, como diz Nunes (2000), “não só como um símbolo da honra da família, mas também como uma necessidade para seu casamento e sua manutenção”. Dessa forma, a mulher muçulmana até hoje vive de forma recatada e tem seu comportamento estritamente fiscalizado pelos seus pais. Assim, há uma grande diferença entre a criação dos filhos e das filhas dos imigrantes muçulmanos em Goiás. Conforme depoimentos dos imigrantes muçulmanos, o tabu da virgindade entre as jovens, por exemplo, é importante e defendido na família, sendo uma questão de honra nas famílias dos imigrantes muçulmanos, chegando a jovem, em caso de desonra, a ser julgada pela família. Contudo, não foi registrado nenhum caso específico nas comunidades de imigrantes muçulmanas em Goiás. As alterações experimentadas na estrutura familiar referentes à esfera privada dos imigrantes muçulmanos em Goiás, percebidas em seus depoimentos, tornou possível concluir que a família é o elo e a continuação da sua origem, das suas crenças; ela é a ligação deles entre si e o principal canal de socialização. Esta se dá através do processo de internalização, que ganha características próprias ligadas à cultura da classe ou dos agentes socializadores, que transmitem de geração em geração os seus valores, incorporados em hábitos, costumes e concepção de mundo. Este processo de socialização é chamado por Durkheim (2000) de “educação metódica”, onde o 152 indivíduo se submete a esses padrões de comportamentos determinados socialmente. Nunes (2000) conforma a situação da permanência de princípios e valores familiares no âmbito doméstico e entre as famílias entre si, ao dizer que, A devoção à família constituía parte fundamental da bagagem dos imigrantes árabes. Na nova pátria, a família permaneceu sendo, assim como na terra natal, o laço essencial na identidade e na organização social dos árabes. Na fase de adaptação no novo país, ela se encarregou de manter vivas as origens e as lembranças da pátria [...]. Os laços familiares no novo país não só amenizaram o choque cultural, mas também restringiram o processo de assimilação. (Nunes, 2000: 115). Pôde ser observado este processo na fala de um filho de imigrante, quando esse diz: “eu nunca fui á Palestina, ela que veio a mim, pela minha família”. Nesta colocação aparece com clareza a força da socialização, desvelando a face social subjacente à identidade. E também, em um depoimento de um imigrante muçulmano, é revelado como a religião é fundamental na identidade muçulmana, a forma que ela é percebida como uma herança que lhes parece quase genética. Os filhos dos imigrantes muçulmanos, mesmo aqueles que já nasceram aqui, na sociedade goiana, percebem-se como diferentes dos goianos, ao dizerem que “nós somos diferentes, nós não podemos namorar como vocês”. Eles sentem ainda outras diferenças, como os passeios livres em clubes ou qualquer lugar, permitidos aos filhos dos brasileiros e proibidos aos filhos dos muçulmanos. Um dos imigrantes, da comunidade muçulmana de Jataí, demonstrou esta diferenciação ao dizer que seus filhos precisavam estar no ambiente da mesquita e nas festividades, que “antigamente eles faziam muitas festas e cada um trazia um prato de salgadinho e que agora eles não têm reunido como antes”. Ele disse que seus filhos, há tempos atrás, estavam crescendo naquele ambiente dessas festas, no ambiente deles, mas que agora ele se preocupava deles não terem uma programação específica, pois eles não têm se reunido como antes. Os filhos dos imigrantes muçulmanos apresentaram, em alguns casos, uma dupla identidade, em razão de viverem uma vida em casa e terem uma postura ou comportamento com a família e nos programas familiares e uma outra postura fora de casa, como por exemplo, na escola e em outros lugares que passam a freqüentar. À medida que os filhos transitam em outros ambientes, aprendem outras noções e, em 153 determinadas situações, questionam os valores recebidos dos seus pais. Woodward salienta, acerca dessa situação, que Os indivíduos vivem no interior de um grande número de diferentes instituições, que constituem aquilo que Pierre Bourdieu chama de “campos sociais”, tais como as famílias, os grupos de colegas, as instituições educacionais, os grupos de trabalho ou partidos políticos. Nós participamos dessas instituições ou “campos sociais”, exercendo graus variados de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos. Por exemplo, a casa é o espaço no qual muitas pessoas vivem suas identidades familiares. A casa é também um dos lugares nos quais somos espectadores das representações pelas quais a mídia produz determinados tipos de identidades. (Woodward, 2000: 30). Acerca desses valores da esfera pública e da privada que articulam a vida dos imigrantes muçulmanos em Goiás, Barth exemplifica essa emblemática situação ao focalizar as relações interétnicas, estruturadas nesse contexto das articulações, entre a vida pública e a privada dos grupos sociais. Para ele, Relações interétnicas estáveis pressupõem uma estruturação da interação como essa: um conjunto de prescrições dirigindo as situações de contato e que permitam a articulação em determinados setores ou campos de atividade, e um conjunto de proscrições sobre as situações sociais que impeçam a interação interétnica em outros setores, isolando assim partes das culturas, protegendo-as de qualquer confronto ou modificação. (Barth, 1998: 197). Essas condições, estabelecidas nos padrões de comportamentos acerca dos casamentos e na constituição das famílias dos imigrantes muçulmanos em Goiás, têm sofrido modificações, por um lado, pelas transformações econômicas e sociais na modernidade capitalista brasileira, por outro, conforme visto, em razão da necessária nova divisão sexual do trabalho entre os cônjuges imigrantes muçulmanos, com a inclusão da mulher no mercado de trabalho, onde a família patriarcal extensa, desta forma, tem se conformado em unidades nucleares menores. Essas condições também têm impelido os imigrantes muçulmanos a casar não somente entre si, mas com os da “sociedade receptora”, e os novos casais passaram a estabelecer-se em seus próprios lares, ou seja, em outra casa, formando uma família menor. 154 3.4. O compartilhar das refeições entre os imigrantes muçulmanos O estar juntos, compartilhando de momentos para as refeições com a família, assim como com todas as famílias da comunidade, é um momento de comunhão importante na vida comunitária. As refeições são compartilhadas com a família, no sentido ampliado, uma vez que sobrinhos, tios e primos também participam desse momento congregador. Isto foi observado na comunidade de Jataí, onde Said, sobrinho de Faruk, interrompeu a entrevista dizendo que seu tio estava ligando e chamando-os para o almoço. Eles são muito dedicados ao trabalho, mas quando chega a hora do chamado para a refeição, eles param com suas atividades e vão imediatamente encontrar com a família, se desculpam e vão logo para suas casas. E quando terminam as refeições, eles continuam a socialização numa mesa na varanda da casa, munida de frutas, conversas e fumo. Notou-se que o compartilhar de refeições é um processo chave de construção da identidade e identificação dos imigrantes muçulmanos com as comunidades muçulmanas em Goiás, principalmente a de Jataí. Ribeiro (1999) caracteriza esse processo ao enfatizar que, comer junto reforça sentimentos de semelhança, mesmo de distinção, pois as pessoas compartem uma mesa e incorporam substâncias comuns. Além disso, as comidas são poderosamente evocativas. Elas podem significar bem-estar ou doença, segurança ou perigo; recordam momentos, lugares, cenas inteiras do passado ou, talvez, visões do futuro. (Sales, 1999: 48). Os imigrantes muçulmanos se situam construindo o seu mundo cultural também ao estarem compartilhando o ato de comer alimentos preparados de acordo com o que eles interpretam do seu universo sócio-cultural, ritualizado num constante processo de construção identitária. Uma ilustração de que as identidades podem se definir com base no que as pessoas comem é dada pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1997), que se propôs a desenvolver esse aspecto da formação da identidade, utilizando o exemplo da comida para ilustrar esse processo. Para ele, a cozinha estabelece uma identidade de um grupo social; o modo como esse prepara sua comida define quem eles são, ou seja, seu modo cultural de vida. A comida em si é a natureza, e nós a transformamos ao transformarmos essa comida, cozinhando-a, assando-a ou fritando-a. Assim, Lévi-Strauss diz que, 155 It is clear that in respect to cooking the raw constitutes the unmarked pole, while the other two poles are strongly marked, but in different directions: indeed, the cooked is a cultural transformation of the raw, whereas the rotted is a natural transformation. (Lévi-Strauss, 1997: 29). E Woodward complementa ao dizer que “a cozinha é o meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura. A cozinha é também uma linguagem por meio da qual ‘falamos’ sobre nós próprios e sobre nossos lugares no mundo” (Woodward, 2000: 42). E Lévi-Strauss, ao classificar o que vem da natureza, a comida e o cru, onde o homem, ao transformar, utilizando um objeto, torna-o cultural por exemplo, um alimento cozido, identifica-se consigo e com os outros, estabelecendo relações com o mundo. Ele diz que, On two grounds, then, one can say that the roasted is on the side of nature, the boiled on the side of culture: literally, because boiling requires the use of a receptacle, a cultural object; symbolically, in as much as culture is a mediation of the relations between man and the world, and boiling demands a mediation (by water) of the relation between food and fire which is absent in roasting. (Lévi-Strauss, 1997: 29). Ao interpretar a colocação acima, Woodward (2000) diz que “a comida é um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmações sobre si mesmas. Ela também pode sugerir mudanças ao longo do tempo bem como entre culturas”. Ele afirma que a forma como organizamos a comida, como definimos o prato principal, a sobremesa e, ainda o que é cozido ou cru, pode definir a identidade de um grupo social. Uma muçulmana da comunidade de Anápolis demonstrou especial atenção, ao fazer questão de, durante visitas de campo, preparar pratos especiais da cozinha palestina, como um arroz com frango diferente chamado machuba; um caldo de molho verde, murriá; charuto de folha de uva, malfuf; salada com molho de tahine e esfirra de zátar. O sentido daquela recepção era demonstrar o que e como eles eram, uma vez que a família fez questão de expor os nomes dos pratos, os ingredientes, alguns específicos da terra de origem, formas detalhadas de preparos, os nomes dos mesmos, e explicar o que podiam e não podiam comer, como é o caso da carne de porco ou carnes com sangue. Ela demonstrou prazer e orgulho em fazer todas as explicações detalhadas sobre a alimentação deles e como o momento anterior ao preparo dos alimentos, e depois o de sentarem juntos à mesa para comerem, representa instantes agregadores e socializadores dentro da família. 156 Para Lévi-Strauss também, os hábitos de comer certos tipos de alimentos em detrimento de outros, estão diretamente ligados à construção de certas identidades, como, por exemplo, comerem alimentos orgânicos ou vegetarianos. Desta forma, as fronteiras identitárias são estabelecidas a partir dos limites daquilo que é considerado comestível ou não comestível. Woodward diz que as “fronteiras podem estar mudando e as práticas alimentares são, cada vez mais, construídas de acordo com critérios políticos, morais ou ecológicos” (Woodward, 2000: 43). Assim, segundo Lévi-Strauss (1997), a alimentação e os rituais do comer, associados ao consumo de certos tipos de alimentos em detrimento de outros, em alguma medida sugerem as formas pelas quais um grupo se identifica. E Woodward complementa ao exemplificar esta situação, afirmando que “nós somos o que comemos”, e que Na verdade, se consideramos as coisas que, por uma razão ou outra, nós não comemos, talvez a afirmação mais exata seja a de que ‘nós somos o que não comemos’. Existem proibições culturais fundamentais contra o consumo de certos alimentos. (Woodward, 2000: 43-44). Ainda na análise de Lévi-Strauss, a comida não é apenas “boa para comer”, mas também “boa para pensar”. Com isso, ele quer dizer que a comida é portadora de significados simbólicos e pode atuar como significante. E outro aspecto teorizado e analisado por Woodward é o de que, “como a cultura classifica os alimentos em comestíveis e não-comestíveis, é por essa distinção e de outras diferenças que a ordem social é produzida e mantida” (Woodward, 2000: 44). É no contexto dessas construções que se estabelece e se fundamenta a socialização e a conseqüente cultura de um grupo social. Foi o papel do alimento na construção das identidades e a mediação da cultura na transformação do natural, que tornaram importante esse desvio pelos caminhos da cozinha, ao mesmo tempo em que se fundamentou, em um dos seus aspectos, dentre os vários que se apresentaram, a identidade dos imigrantes muçulmanos em Goiás. 157 3.5. O sentido da guerra para as famílias muçulmanas palestinas A guerra, especificamente para as famílias de imigrantes muçulmanos palestinos de Goiás, tem uma centralidade importante na vida deles. Os palestinos não tiveram grandes chances de idas e vindas, uma vez que os mesmos, na sua maioria, passaram pela experiência de uma imigração forçada pelas constantes guerras em sua terra. Muitas famílias vieram pensando que a guerra terminaria brevemente e que poderiam retornar para casa. Retornar para casa constituía o sonho de todos eles, porque sofreram experiências traumáticas, como separação entre os membros da família, pois os mesmos foram forçados a abandonar suas casas, suas terras e plantações de qualquer jeito, e estas estão até hoje nas mãos do Estado de Israel. A guerra representa o trauma vivido pelas famílias palestinas, forçadas à diáspora pelo mundo, vivendo as fantasias e desencantos de uma vida, dividida entre o sentimento do pertencimento à terra natal e de, ao mesmo tempo, não a possuir. Um imigrante muçulmano de Anápolis deixou tudo o que tinha nas mãos de um primo, com medo das invasões e guerras, e veio com toda a sua família para o Brasil. Ele já está velho, mas pensa que suas posses estão intactas, cuidadas por esse primo. Eles são obstinados em falar dos seus antigos lares e descrevê-los, misturando saudade com ressentimentos das sangrentas guerras que os assolou terrivelmente desde 1948. Um dos imigrantes palestinos da comunidade de Goiânia faz questão de mostrar os quadros de fotos de parentes que deixou lá, bem como de heróis da guerra, daqueles que morreram combatendo pela causa palestina. Eles são chamados de “combatentes de guerra” e, conforme observação, são muito venerados e respeitados pelos “patrícios” muçulmanos de Goiás. Um imigrante da comunidade de Jataí, proveniente da Palestina explicou que O nosso povo vivia com tranqüilidade, e aquela região é de interesse do mundo inteiro, lá é uma região do mundo, porque o mundo nasceu lá. A região árabe era formada por 21 Estados árabes, até a Segunda Guerra Mundial, entre a primeira guerra e a segunda guerra, depois de 1937, estes Estados foram divididos entre franceses, ingleses e um pouquinho de italianos, ficaram com parte da região árabe, portanto, cada Estado independente, praticamente somente o nome era independente, porque é mandado por porta do estrangeiro, e após a Segunda Guerra Mundial continuou, quem não tinha cerca, passou a ter cerca, cada Estado tem cerca, pra ser um pássaro não voa, é muito difícil, então, essa política mundial começou a mexer dentro da própria terra, interesse pelo mundo, passou muito mais, do que a 158 religião, é o econômico, quem olha através da compreensão, é tudo econômico. (I. P. J., 34 anos, 2003) Ainda com relação às causas políticas que levaram os imigrantes a sucessivas migrações pelo mundo, principalmente no pós-guerra, tem-se os palestinos e os libaneses, em razão dos conflitos internos por eles enfrentados em seus países. Na Palestina, com o término do mandato britânico em 1948, constituiu-se o Estado de Israel, e, conseqüentemente, um milhão e meio de árabes palestinos foram deslocados de suas terras e se tornaram refugiados pelo mundo. Conforme observação de campo, os imigrantes muçulmanos palestinos têm maior interesse em falar de guerras e os libaneses em falar de religião. Aqueles sentiram com maior intensidade os efeitos de uma guerra, sofreram e sofrem pela expulsão de suas próprias terras, bem como pela condição de se tornarem refugiados, tanto em seu próprio território quanto na diáspora pelo mundo. Os imigrantes palestinos acompanham bem de perto, inclusive pela TV a cabo, direto do oriente, as notícias sobre os conflitos vividos com os seus “elmanos”, e eles sentem muita mágoa desta situação de refugiado que vive o seu povo, “porque tomaram nossas terras, nossas casas” (I. P. G., 72 anos, 2003). Um dos imigrantes muçulmanos palestinos de Jataí, Jawdatt, que migrou para o Brasil na década de 1970, disse ter sofrido muito com o sectarismo exacerbado dos israelenses contra os palestinos, e que, inclusive, foi obrigado a tirar passaporte israelense, migrar como israelense “de esquerda, contra o regime adotado”. Ele chegou a ser preso político dentro do país, “que havia deixado de ser meu”. Ele diz que foi “a política mundial que os fizeram migrar para outros países. Tudo começou quando a política mundial mudou, então esta imigração começou, praticamente, logo após a Segunda Guerra Mundial, porque a política que imperava na Palestina mudou”. E diz, com mágoa, que na terra dele as potências mundiais começaram a plantar a divisão (I. P. J., 34 anos, 2003). Os imigrantes muçulmanos palestinos dizem que vieram porque, em conseqüência da guerra, sofreram perdas de seus bens, postos de trabalho e problemas financeiros. As condições de vida tornaram-se tão precárias que se tornou uma questão de honra, inclusive para o sustento da família, o pai ou o irmão mais velho migrar à procura de melhores condições de vida para a família. Conforme relato, Said, um dos imigrantes palestinos de Jataí, disse que a imigração muçulmana começou a aumentar a partir de 1967 até 1975, época de muita crise interna entre o seu povo e os israelenses. 159 Mustafá disse que veio muita gente de lá pra cá e que eles se acostumavam aqui. A única coisa que eles achavam difícil era o idioma, muito diferente do deles e, ainda, não tinha formação, não tinha estudo, e por isto, é difícil lidar com outro idioma, que nunca escutou, sendo a única coisa que possuíam, a força braçal, ou seja, era o trabalho deles. Hoje em dia se tornou mais fácil, fala se, no outro lado do mundo, e já está sabendo o que está acontecendo no Brasil, com a informática, ficou mais fácil aprender tudo. (I. P. J., 34 anos, 2003) Os dados do Boletim Goiano de Geografia (1983) corroboram os depoimentos de que a partir de 1948 houve a imigração mais intensa dos muçulmanos palestinos para Goiás, quando foi instalado o Estado de Israel. Desde então, os palestinos passaram a sofrer com muita intensidade os maiores horrores da guerra, o que intensificou sua imigração, “inclusive na guerra de 1967, quando os palestinos abandonavam sua terra e se dirigiam ao Brasil”. Ainda Jawdatt relatou, finalmente, que “após a Segunda Guerra Mundial já tinha algum parente aqui, e entre 1966 e 1967, quando aconteceu a primeira guerra entre os palestinos, Guerra dos Seis Dias, em que Israel tomou a metade da Palestina, aliás em 1948 tomou a metade, em 1967 tomou tudo” (I. P. J., 34 anos, 2003). Vários dos muçulmanos palestinos gostam muito de acompanhar as notícias, para saber tudo sobre seus patrícios e os conflitos vividos em seu país. Em um depoimento, um imigrante da comunidade palestina de Goiânia pormenorizou todos os detalhes que envolvem o conflito entre seu país e os israelenses desde a Segunda Guerra Mundial e a instituição daquele Estado, quando termina a colonização britânica na Palestina, iniciada desde 1917, época do declínio do Império Otomano. Ele culpa os Estados Unidos da América por terem influenciado e ajudado os judeus sionistas a oficializarem a constituição do Estado de Israel em terras palestinas. Ele gosta muito de falar de seus “patrícios” ou “elmanos” que tiveram que fugir da guerra e diz que “o Estado de Israel tomou suas terras e expulsou os palestinos de suas próprias terras, por causa do império norte-americano”. Ele termina dizendo que tem muita mágoa desta situação de refugiado que vive o seu povo. Na comunidade muçulmana de Jataí, onde prevalece uma maioria de muçulmanos palestinos, não foi percebido esse posicionamento político, denominado “refugiados palestinos”, como um grupo organizado politicamente, em defesa da constituição do seu Estado. Conforme observação, eles não demonstraram preocupação 160 com a situação da “causa palestina” e a OLP, enquanto uma organização política internacional, bem como com a defesa do nacionalismo palestino e as guerras no Oriente Médio. Eles somente se imaginam como uma comunidade de mesma origem ou região da Palestina e se ligam nesta situação de pertencimento, por serem de regiões próximas umas das outras. Um dos muçulmanos palestinos diz que, a comunidade é formada por todos da mesma região na Palestina; a cidade de Faruk até minha cidade são dez minutos de carro. Todos da mesma região da Palestina vieram pra Jataí, a gente procura parente ou da mesma região pra ajudar parente, porque você chega não conhece nada, então te ajuda, digo que são muito integrados na comunidade. (I. P. J., 57 anos, 2003). Para a compreensão dessa autodenominação de “refugiados palestinos” é fundamental entender como a chamada “questão palestina” evidencia explicações oriundas de versões nacionalistas diversas ou, ainda, advindas de palestinos ou israelenses, formando um campo de disputas, com elementos já consagrados, os quais identificam e são identificados. O que se observou é que a manifestação da força do nacionalismo tem se imposto como uma explicação da realidade, desencadeadora de estratégias políticas e do uso de denominações, nas comunidades muçulmanas maiores e mais integradas ao contexto político globalizado. Ou seja, na comunidade muçulmana de Goiânia, esta perspectiva nacionalista se apresentou mais evidente do que na comunidade de Jataí. Isto foi observado em uma das visitas à residência de um muçulmano palestino de Goiânia, no período da guerra entre Estados Unidos da América e Iraque. Ele esteve o tempo todo sintonizado num canal de TV do Oriente Médio, preocupado com o desenrolar da guerra, e sua conversa baseou-se somente nas questões relacionadas à guerra e à causa palestina, ou seja, a luta deles para a constituição do Estado palestino, a demarcação de seu território e o retorno dos palestinos à terra que os israelenses haviam tomado. Ele fez questão de mostrar vários quadros de combatentes de guerras, inclusive uma mulher, que ele disse ter sido uma “heroína”, a lutar pela causa palestina. Ele faz severas críticas à interferência dos Estados Unidos no Oriente Médio e diz que, por causa dessa interferência, muito sangue já foi derramado e muitos patrícios já morreram. Assim, como visto e observado, a condição do imigrante muçulmano em Goiás e de suas famílias, se manifesta no cotidiano, através do processo de socialização, assumindo, por um lado, uma dimensão da afirmação da identidade e, por outro, uma negociação de sua identidade, em virtude da “adaptação” ao contexto social goiano. 161 Mesquitas no Oriente 162 CONCLUSÃO Esta pesquisa foi centrada nas comunidades de imigrantes muçulmanos de Goiânia, Jataí e Anápolis, por considerá-las as de maior contingente de imigrantes. A religião e a vocação para o comércio foram eleitas como os elementos identificadores da identidade deles no processo de inserção e integração na “sociedade receptora” em Goiás. Contudo, primeiramente, serão feitas algumas considerações com uma breve exposição acerca da repercussão da religião islâmica no mundo moderno. Tais considerações se tornam importantes em razão das falsas e simplificadas propagandas sobre o mundo islâmico e os muçulmanos, implicando em distorções, concepções e compreensões generalizadas dos grupos ou comunidades muçulmanas. Essa propagação supõe a idéia de que o Islã é formado por tão somente milhões de fanáticos que alimentam sentimentos de destruição em relação ao Ocidente. Arbex Jr. diz que “o mundo islâmico contemporâneo é uma realidade política e social extremamente complexa, integrada por mais de l bilhão de habitantes espalhados pelo mundo” (Arbex Jr., 2000: 60). Os muçulmanos constituem-se em maioria populacional nos países árabes, mas há no mundo todo muito mais muçulmanos não-árabes. O destino dos muçulmanos mudou substancialmente a partir do século XX em razão de a maior parte dos países muçulmanos ter se tornado independente politicamente dos europeus. Porém, a descolonização criou uma situação de dependência econômica e tecnológica ideal para as antigas potências coloniais, que continuaram desfrutando de suas ex-colônias sem se responsabilizarem pela sua administração política. O islamismo é uma religião que tem crescido muito no mundo e sua amplitude é acompanhada, cada vez mais, de uma diversidade étnica e cultural. Altoé diz que “a relativa tolerância pregada no Islã explica, em parte, a atração que o islã exerce sobre minorias étnicas e raciais oprimidas em seus próprios países” (Altoé, 2003: 41). Os muçulmanos acreditam que o Islã é um modo de vida completo, apesar das contradições internas no seu mundo e de seus ensinamentos não separarem a política da religião e da economia. Os muçulmanos se distribuem por várias sociedades e sistemas políticos de governos diversos, onde, neste caso, não existe um único Islã, mas vários islãs. Ainda 163 que todos eles estejam unificados pelo Alcorão, as diferentes interpretações e os diversos posicionamentos políticos abrem espaço para a formação ou infiltração de grupos ou minorias ideológicas, como terroristas ou fundamentalistas. Há opiniões sobre o Islã entre alguns teóricos que divergem totalmente entre si com relação à concepção da religião islâmica. Padre Piazza (1996) critica o monoteísmo islâmico ao dizer que este se apresenta empobrecido e rígido. Por isso o islamismo não consegue exaltar a imaginação e nem o misticismo entre os fiéis. Ele diz que “é uma religião sem mitos e sem ritos, sem mesmo sacramentos. As orações, as esmolas, os jejuns, é tudo prescrito de modo formal, como imposições exteriores sem motivação interior” (Piazza, 1996: 400). Ele diz que se a religião muçulmana não preconizasse a profissão de fé em Maomé como verdadeiro profeta e a peregrinação à Meca, ela seria igual às outras religiões monoteístas, e desta maneira perderia a sua identidade, pois a fé em um só Deus, as obrigações de preces e esmolas são comuns a todos os monoteísmos (Piazza, 1996: 401). Já Smith (1991) dá um panorama da grandeza, expansão e importância histórica do Islã no mundo moderno, ao falar das seções do império muçulmano, “que se estendia desde o golfo de Biscaia até o rio Indo e as fronteiras da China, desde o mar de Aral até o Alto Nilo”. Ele descreve a importância da difusão das idéias muçulmanas: “o desenvolvimento de uma cultura fabulosa, a ascensão da literatura, da ciência, da medicina, das artes e da arquitetura; a glória de Damasco, de Bagdá e do Egito; o esplendor da Espanha sob os mouros” (Smith, 1991: 256). A (re)constituição da sociedade na modernidade supõe a formação de vários elementos ou subsistemas, e dentre eles podemos apreender o de identidade. Este elemento se tornou freqüentemente usual, aliado às constantes transposições fronteiriças causadas pelas correntes migratórias que permeiam a modernidade. A modernidade nos transparece como sendo a abstração da globalização e seus efeitos à modernização, onde transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, cada vez mais velozes, ou seja, dinamizadas pelo processo de fragmentação e racionalização desenfreadas, são conduzidas por atores sociais. Este processo vai gerar contradições e conflitos, formar, redescobrir, reinvestir e questionar velhos paradigmas dicotômicos, fazendo ressurgir monstros adormecidos como xenofobias, renovando diásporas étnicas e identitárias. Vai transformando tudo o que era sólido, profundo e estruturado em frágeis superficialidades transitórias e multifacetadas. Na modernidade há uma liberação das vontades, das energias, das ações dos indivíduos com as relações sociais, combinando a 164 crença no desenvolvimento e na mudança através da ação humana, no retorno do “eu” ou na realização nostálgica do ser. Segundo Giddens (1991), nesta modernidade em que o homem tem se sentido perdido, sem referencial e segurança psicológica, presencia-se a expansão de diversas religiões, as quais têm suprido este homem desse sentimento de fragilidade diante de tantas gigantescas adversidades construídas pelo próprio homem, mas que lhe têm fugido do controle. A expansão de facções, como o fundamentalismo, ou da própria religião islâmica dá conta deste homem perdido, radicalizando para atos negativos ou positivos, mas suprindo e justificando os seus atos no conjunto dos contextos situacionais do mundo moderno. A tragédia das conseqüências da modernização é a própria tragédia das imigrações, da exaltação e dos conflitos das identidades, com a intensificação das relações internacionais entre diferentes e diversificadas fronteiras. Estas fronteiras são transpostas, as etnias identitárias são acomodadas nas sociedades, formando novas configurações sociais modernas. A globalização envolve processos associados com mudanças sociais, com questões históricas e movimentos políticos. Ela envolve uma extraordinária transformação, onde as velhas estruturas cedem lugar a uma crescente transnacionalização da vida econômica, política e cultural. Ela ainda envolve interações sociais e culturais, onde o lugar da identidade no circuito dialético da cultura significa examinarmos os sistemas de representações, relacionando a cultura e o significado dado às práticas sociais. Nós damos sentido à nossa vida, e o que somos depende dos significados produzidos pelas representações e pelos sistemas simbólicos por nós mesmos construídos através das nossas experiências cotidianas, que são transmitidas às gerações posteriores. A globalização está estreitamente relacionada ao processo de aceleração das migrações pelo mundo, uma vez que temos experimentado maiores desigualdades sociais, maior desemprego e outras tensões sociais que levaram ao aumento destas. As pessoas têm se espalhado pelo globo, de forma que a migração internacional é parte de uma revolução transnacional que está remodelando as sociedades e a política ao redor do mundo. Tem-se, além do exemplo da imigração islâmica para o Brasil e Goiás, ainda o exemplo dos próprios goianos e outros brasileiros, que, migrando para países do Primeiro Mundo, vão à procura de melhores empregos e maiores salários. A migração causa impactos tanto sobre o país de origem quanto sobre o de destino. 165 Azevedo (2003) fala do desafio representado pelo modo de vida ocidental moderno, que provocou as mais diversas reações por parte dos povos islâmicos. Poderse-ia falar de três correntes políticas islâmicas. A primeira significa a política de acomodação da Igreja às tendências secularizantes. São chamados de modernistas islâmicos e abrangem um espectro amplo de posições políticas, sociais e religiosas, incluindo o “nacionalismo árabe” de Nasser, o “socialismo islâmico” da Argélia e até mesmo as teses “fundamentalistas”, a Revolução Islâmica de Khomeini. A idéia predominante é a de “acomodação” com as ideologias modernas. O segundo grupo, que pode ser denominado de Islã tradicional”, é a tendência mais tolerante para com outras religiões e culturas, e também a mais mística e contemplativa, corporificando-se sobretudo nas fraternidades sufis, as tariqahs. Existentes por todo o “Dar el Islam” até hoje, os sufis são responsáveis pelas principais produções da cultura e da arte. Esta corrente continua influente tanto entre a elite intelectual quanto entre o povo mais piedoso. Essa perspectiva “tradicional” é pacífica e prefere recorrer à oração, à meditação e à prática das virtudes fundamentais, como a generosidade, do que pegar em armas para fazer valer seu ponto de vista. A terceira corrente é a que mais comove o Ocidente e é a facção mais questionada no mundo. Trata-se do chamado “fundamentalismo”. Abrange vasta gama de posições, desde a que implica uma interpretação literal das injunções corânicas, dos hadiths (ditos tradicionais do profeta) e da sunna (modos e costumes do profeta). Essa posição quer, de certa forma, retornar á “primitiva pureza” do Islã, baseando-se exclusivamente nestes, interpretados de maneira literal e limitada. Desejam, do mesmo modo, descartar todos os desdobramentos culturais, filosóficos e artísticos que acompanharam a história da civilização islâmica e seus contatos com os vários povos e culturas do mundo. Segundo Frank Usarki (na Folha de São Paulo), originalmente o termo fundamentalismo foi cunhado para designar certas manifestações no protestantismo americano. No fim dos anos 1970 foi transferido para a Revolução Islâmica no Irã e depois também para outros grupos extremistas, por exemplo, na Argélia ou no Egito. Finalmente, o termo se impôs como nome genérico para todos os grupos extremistas em todas as religiões. O termo é popular porque sua generalidade serve para reduzir a complexidade ao reunir grupos diferentes sob a mesma categoria. Assim, o termo impede uma percepção detalhada, mas aponta para qualquer aspiração contra a 166 modernização da sociedade, em favor da restauração de padrões tradicionais da vida e das estratégias violentas para realizar suas finalidades. Os fundamentalistas, em geral, lutam pela independência política dos países islâmicos e contra a influência ocidental, em favor dos costumes primitivos. Nas bordas extremas dessa corrente grassam grupos minoritários, condenados pela maioria dos muçulmanos, que propõem e praticam o terror para chegar a seus objetivos. Esses agrupamentos militantes e extremistas têm um vínculo superficial com o Islã, aderem a ele como se adere a uma torcida organizada de futebol, de forma apaixonada e cega. A última coisa que se encontra neles é espiritualidade, que constitui justamente o cerne da mensagem islâmica. “Escreva aí que os Estados Unidos se acham os donos do mundo e que o Islã não faz mal a ninguém”, diz Ahmed, um nome que ele escolheu na hora, rindo. “Muhammad disse que não se deve fazer mal nem sequer a uma mosca. Por isso sou contra os atentados”, depoimento de um muçulmano que vive na França (Folha de São Paulo, 23 set. 2001). E por último, ele diz que “As relações com muçulmanos deveriam ser normais, mas elas dificilmente se normalizarão agora, diante desse problema mundial”, referindo-se ao atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. “Não sinto nenhuma pressão aqui, em Paris, nem antes nem depois dos atentados”, afirma Abderahmane Mamoumf. “Mas o mundo islâmico em geral está sob pressão. Temos medo de uma guerra e é sobre isso que mais falamos atualmente. Não sabemos quais as conseqüências de um grande conflito para os países e os povos muçulmanos” (Folha de São Paulo, 23 set. 2001). Este estudo da experiência migratória dos muçulmanos em Goiás, a partir das premissas teóricas norteadoras referentes às concepções de cultura, relações interétnicas e identidades, construídas no processo de inserção e integração desses imigrantes na “sociedade receptora”, elegendo os elementos religião e vocação para o comércio como constituintes identitários desse processo, foi permeado de constatações que caracterizaram peculiarmente o modo de vida desses imigrantes em Goiás. Iniciando pelas concepções de cultura na modernidade, notou-se que a adoção ou incorporação de certos elementos característicos da cultura da sociedade goiana pelos imigrantes muçulmanos não significou que o grupo étnico perdeu a sua identidade cultural, pois estes continuaram se afirmando enquanto grupo étnico diferente do outro. Assim, as formas pelas quais a cultura estabelece suas fronteiras e distingue a diferença são aquilo que separa uma identidade da outra, estabelecendo distinções, 167 freqüentemente como oposições, onde as identidades são construídas por meio de uma clara oposição entre “nós” e “eles”. A cultura globalizada vive e revive este circuito dialético, interagindo com os fatores econômicos, causando mudanças nos padrões de produção e de consumo, criando necessidades e novas identidades globalizadas. As concepções de relações interétnicas e identitárias, no contexto dos imigrantes muçulmanos em Goiás, permearam este trabalho e construíram novas interpretações, condicionadas e possibilitadas pelas transformações nesse contexto de modernidade. Essas novas identidades, caricaturalmente simbolizadas, às vezes, pelos jovens que comem hambúrguer do McDonald´s e que andam pela rua de walkman, discman ou laptop, formam um grupo de “consumidores globais”. Mas a globalização não produz apenas homogeneidades culturais mundializadas; ela produz também diferentes resultados em termos de identidades, levando a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar as diferenças, bem como levar ao surgimento de novas posições de identidades. As identidades culturais são afirmadas através da tentativa de se buscar recuperar a “verdade” sobre o passado na “unicidade” de uma história e de uma cultura partilhada que poderiam, então, ser representadas, por exemplo, em uma forma cultural como um filme, para reforçar a identidade. E também elas são afirmadas através da concepção em que vê, como “uma questão tanto de tornar-se quanto de ser”, reivindicando e reconstruindo a identidade cultural. Toda a prática social é simbolicamente marcada e as identidades são diversas, cambiantes ou negociadas, tanto nos contextos sociais por elas vividas quanto nos sistemas simbólicos, por nós mesmos construídos. Na sociedade complexificada da vida moderna, diferentes culturas emergem ao classificar o mundo dando sentido a ele. Os imigrantes muçulmanos, na prática social cotidiana, classificam e criam seus sistemas simbólicos em vários momentos das suas vidas. Os encontros de finais de tarde, onde o momento de falar da terra, das notícias, re-memorizar as histórias passadas, construir, classificar e compartilhar as coisas e a vida cria sistemas simbólicos e todas estas situações são classificadas e tornam-se simbolicamente representativas para o grupo, formando as ações culturais. De acordo com Ribeiro (ANPOCS, 2002), a fragmentação das identidades deve ser entendida em um universo onde há um fluxo em aceleração crescente de mudanças de contextos, de encontros sociais e comunicativos, e uma múltipla exposição a 168 agências socializadoras e normatizadoras, elas mesmas também viajando em um fluxo acelerado de mudanças. Os imigrantes muçulmanos em Goiás expõem-se a esse universo acelerado e de constantes transformações, mediadas pelas agências socializadoras e instituições sociais da “sociedade receptora”. E o resultado dessa exposição é a formação de uma identidade contextualizada no processo interativo e regulador, negociada com a sociedade goiana através da inserção e integração a esta. Nessa situação, as identidades só podem ser definidas como a síntese de múltiplas alteridades construídas a partir de um número enorme de contextos interativos regulados, na maioria das vezes, por instituições. Isto é, ao invés de uma essência irredutível, a identidade nas sociedades complexas modernas/pós-modernas pode ser concebida como um fluxo multifacetado, sujeito a negociações e a rigidez, em maior ou menor grau, de acordo com os contextos interativos engendrados. Maffesoli (2000) diz que a “identidade do ponto de vista sociológico é apenas um estado de coisas relativo e flutuante”. A identidade diz respeito tanto ao indivíduo quanto ao grupamento, no qual este se situa: é na medida que existe uma identidade individual que vamos encontrar uma identidade social. “A identidade em suas diversas modulações consiste, antes de tudo, na aceitação de ser alguma coisa determinada” (Maffesoli, 2000: 92). Assim posto, a partir das considerações gerais no mundo moderno globalizado acerca dos muçulmanos e da religião islâmica, especificamente, a partir das premissas teóricas norteadoras expostas, comparadas com os dados de campo obtidos na pesquisa, foi possível analisar e chegar aos seguintes resultados: – Os problemas econômicos e políticos enfrentados pelos imigrantes em suas terras de origem foram cruciais para a emigração deles pelo mundo, e especificamente para o Brasil e Goiás. A busca de melhores condições de vida, em razão desses desajustes, tornou a imigração uma constante durante séculos a fio, principalmente no século XX, após a Segunda Guerra Mundial. – Apesar da história e dos constantes estereótipos elaborados sobre os muçulmanos no Brasil, os imigrantes, na sua maioria, construíram uma visão positiva da recepção ou aceitação deles pela “sociedade receptora”. Eles relembraram a trajetória desde a chegada em Santos (SP) e depois no Estado de Goiás, fazendo elogios à boa receptividade do povo brasileiro e da liberdade de religião, onde eles puderam profetizar o Islã sem medo. Os muçulmanos são gratos e valorizam esse acolhimento, embora 169 alguns tenham um profundo sentimento de nostalgia e vontade de retornar para sua pátria, sobretudo os palestinos, que acreditam na recuperação de seu território. – A Marcha para o Oeste contribuiu para a expansão migratória dos imigrantes muçulmanos por todo o interior do cerrado goiano, através da estrada de ferro e algumas estradas não asfaltadas. Os imigrantes muçulmanos acompanharam a rota da estrada de ferro e foram depois para além dela, penetrando todo o sudeste e o sudoeste goianos, onde várias cidades foram se formando, abrindo espaço para a urbanização, o que facilitou a aceleração do processo de movimento imigratório por todo o Estado e um comércio promissor. – A religião islâmica para os imigrantes muçulmanos é universal. Para eles, a religião significa esse processo que dita, regula, justifica e conduz à plena realização, que promove toda a vida deles, desde o sentir interior, o conduzir-se perante a família e o grupo, o construir-se e ser construído até o depois desta vida. – Notou-se que a religião e o comércio na vida dos imigrantes muçulmanos em Goiás nortearam suas relações entre si e com a “sociedade receptora”, sendo a religião a razão de ser das comunidades de imigrantes muçulmanos, e o comércio sagrado para eles. A prática religiosa das orações das sextas-feiras, na mesquita ou na casa de um dos mais velhos, como um espaço comunitário, tem servido para agrupar e manter a religiosidade em seus vários aspectos, proporcionando o convívio social e comunhão entre eles, ou seja, constituindo-se um espírito e um sentimento de comunidade entre eles. – Os imigrantes muçulmanos ao chegarem no Brasil foram mascates e depois comerciantes. Eles saíam de casa em casa ou pelas fazendas com uma mala cheia de produtos ou mercadorias e essa prática foi importante para eles aprenderem a língua portuguesa. Eles revelaram a preferência pelo trabalho autônomo porque este não requeria dispêndio financeiro, uma vez que chegaram com parcos recursos. Mascateavam até conseguir juntar dinheiro e abrir a suas lojas. Recebiam ajuda daqueles que já estavam aqui instalados e isso estreitou os laços entre eles. A mascateação representou um negócio atraente, ao proporcionar um ganho rápido e maior do que o proporcionado por outras atividades. A prática do comércio, para o muçulmano em Goiás, extrapolou o mero costume histórico, sobrepondo as condições impostas pelo contexto sócio-econômico goiano, tornando-se uma questão de adaptabilidade ao novo modo de vida que se lhe apresentava. 170 – A imigração para o Brasil e para Goiás transformou e mudou o comportamento do muçulmano em alguns aspectos e o firmou em outros, fazendo-o se “adaptar” ao contexto da sociedade migrada. O processo de inserção dos imigrantes muçulmanos no meio sócio-cultural goiano foi se constituindo e sendo construído a partir da articulação de peculiares condições estabelecidas entre a sociedade goiana e as comunidades muçulmanas de imigrantes, as quais, para tanto, passaram pelo processo de “adaptação” ou “negociação” a estes novos contextos sociais, voluntária ou involuntariamente por eles escolhidos, ou ainda, numa “migração forçada”, em razão das necessidades impostas na origem. Esse processo não se fundou no antagonismo e na negação total de uma das partes pela outra, mas sim configurou-se em determinadas situações de contato interétnico, estigmatizadas e estereotipadas pela representação e auto-representação de um grupo sobre o outro. – A identidade muçulmana dos imigrantes em Goiás se apresenta como uma identidade étnica, formando comunidades étnicas, independentemente da “nacionalidade”, uma vez que estas têm se formado a partir da religião, ou seja, pelo sentimento de pertencimento à religião islâmica, bem como a prática do comércio, como uma atividade tradicional, também constituinte da identidade deles. O sentimento de pertencimento e a vontade de continuar aqui, uns em torno dos outros, enquanto comunidade, relacionando-se entre si, se explicou nas associações, sociedades beneficentes, nas mesquitas, nos centros de divulgação islâmica constituídos no Brasil e em Goiás. Eles manifestam a vontade de, juntamente com os seus familiares e conterrâneos, constituírem-se enquanto um grupo ou uma comunidade étnica. – A religião e a vocação para o comércio foram os elementos identificados como formadores da identidade dos imigrantes muçulmanos no processo de inserção e integração deles na “sociedade receptora”, uma vez que as comunidades de imigrantes muçulmanos se constituíram a partir da religião islâmica e tendo no comércio sua principal atividade. Para uma melhor compreensão destes elementos observados no contexto sócio-cultural das comunidades de imigrantes muçulmanos de Goiânia, Anápolis e Jataí, elaborou-se uma divisão teórica entre construções pertencentes à esfera pública e à esfera privada. Entre os aspectos da esfera pública incluíram-se aqueles referentes às suas relações sociais, estabelecidas como comerciantes, seus comércios e implicações destes, advindas das condições sociais, econômicas e políticas do Estado brasileiro e de Goiás. Na esfera privada, os referentes ao elemento religião e à prática da mesma. A conclusão alcançada foi a de que, apesar de tanto os aspectos considerados da 171 esfera pública quanto os da privada terem passado por um processo de “adaptação” ao modo de vida da sociedade goiana, os elementos referentes à esfera pública foram aqueles que mais se modificaram, e os da esfera privada os que menos se modificaram e os mais importantes para a constituição da identidade dos imigrantes no contexto social goiano. Os comportamentos e compartilhamentos de valores dos imigrantes muçulmanos, os princípios, hábitos, costumes e tradições concebidos pelos ditames da religião, como a prática religiosa, a vida na família e suas relações domésticas, os casamentos e a língua, tiveram maior preservação. A família, constituinte da esfera privada, dentre os elementos identitários, representa a instituição de maior valor para os muçulmanos, e, por isso, de grande importância para a análise do processo de constituição das identidades das comunidades analisadas. Os laços familiares entre os imigrantes, aqui no Brasil, foram ampliados, uma vez que aqueles que vinham de suas terras, mesmo que fossem apenas da mesma região ou de cidades próximas umas das outras, passaram a ser considerados parentes ou “elmanos”, como se pertencessem todos à mesma família. A negociação destes elementos, nos limites fronteiriços estabelecidos no processo de inserção e integração das comunidades muçulmanas constituiu-se nas identidades sociais dos imigrantes muçulmanos. – Dentre os fundamentos da identidade muçulmana formada em Goiás, a religião, a região e a família têm sido os elementos cruciais para sua constituição. Assim, o que se observou foi que a identidade muçulmana está alicerçada no tripé religião, região e família, em detrimento de qualquer tipo de identificação como nacionais. Eles se identificam a partir dos ditames da religião islâmica. Eles se sentem pertencentes a uma religião e uma região comum, que faz com que se componham em uma comunidade de famílias de imigrantes muçulmanas no contexto social goiano. E por último, eles constroem esse modo de vida comunitário, centrado na preservação de elementos culturais, dentre eles, principalmente aqueles relacionados à família, à vida doméstica e da solidariedade estabelecida nas relações de parentesco. Esses elementos identitários continuadamente orientam as condutas individuais e coletivas das comunidades muçulmanas de imigrantes. Dentre eles, percebeu-se os rituais religiosos e festivos, cerimônias de casamentos, comemorações e encontros, como aqueles entre os homens muçulmanos, para tomar chá e fumar. Estes representaram momentos de socialização de informações, de lembranças da pátria de origem, de práticas de costumes, hábitos e da língua árabe. Esses encontros se apresentaram como congregadores para a constituição das comunidades muçulmanas. Outros momentos socializadores no cotidiano das três 172 comunidades estudadas ainda foram observados, como aqueles referentes aos ditames da religião islâmica, como as reuniões para orações, ou para compartilhar as refeições com a família, ou no último dia do Ramadã. Especialmente o momento de estarem juntos para as refeições com a família, assim como com todas as famílias da comunidade, é um momento de comunhão importante na vida comunitária. As refeições são compartilhadas com a família, no sentido ampliado, uma vez que sobrinhos, tios e primos também participam desse momento. – Dentre os elementos que caracterizam e identificam os imigrantes muçulmanos ou as comunidades muçulmanas por eles mesmos e identificados pela “sociedade receptora”, os mais importantes foram: os pilares da religião, como as orações diárias e as das sextas-feiras e os jejuns, as reuniões entre eles para as conversas corriqueiras do cotidiano, regradas a chá e fumo (tumbak), o uso da língua árabe nestes encontros, as festas e os cerimoniais por eles realizados para as comemorações do jejum e das peregrinações, determinadas pela religião, e ainda as instituições culturais, como a família, os costumes e o modo de vida em casa e no meio familiar, e por fim, a caracterização de “pão-duros” e da representação de que todos os imigrantes são “turcos”. – Com relação às situações “adaptativas”, um exemplo importante percebido na sociedade goiana foi a constatação de que eles não têm tempo e nem espaço para orar as cinco vezes ao dia, no local apropriado; muitos deles fazem o que podem, carregam os tapetes para a oração ou deixam de fazer todas as orações exigidas pela religião islâmica. Ainda referindo-se às orações, as adaptações requeridas em razão das circunstâncias da imigração fizeram com que, ao fazerem a comparação dos ritos da oração na terra de origem e aqui, eles concluíssem que as práticas da oração lá são mais vivenciadas do que em Goiás, uma vez que lá eles são chamados para as orações nas mesquitas e todos se reúnem para orar, enquanto que aqui às vezes fazem a oração sozinhos ou com a família em casa. – Nas três comunidades pesquisadas pôde-se observar os valores referentes aos diferentes aspectos da vida comunitária que se afirmam enquanto características de sua identidade. Dentre estes valores, aqueles referentes à relação deles entre si e com a própria família são os mais fortemente vividos. Eles mantêm traços culturais de seus modos de vida anteriores à imigração, condições estabelecidas para a criação dos filhos, aspectos relacionados aos comportamentos da mulher e da própria função do casamento, ainda que a mulher tenha saído para o trabalho juntamente com o marido. Eles se 173 preocupam com a preservação da família unida, com a comunhão e criticam o excesso de liberdade nos lares das famílias brasileiras. Deste modo, quando os imigrantes das comunidades muçulmanas re-significam suas manifestações culturais, mantendo alguns traços da cultura trazidos da terra de origem, estão selecionando sinais diacríticos importantes por meio dos quais afirmam sua identificação como grupo de imigrante no contexto social da sociedade goiana. – Esta pesquisa centrou-se, como entendeu Barth (1998), nas fronteiras sociais do grupo e não na cultura que essas fronteiras encerram. Assim, uma conseqüente situação deve ser colocada, que é a de que a passagem dos grupos pelas fronteiras, ou seja, entre um grupo e o outro, não diluiu ou extinguiu a existência de nenhum dos grupos, nem mesmo a rigidez dessas fronteiras desapareceram. Os imigrantes muçulmanos, mesmo alterando seus traços culturais, não negaram a sua identidade, mas a reforçaram, enquanto identidade distinta. Nessas relações fronteiriças, nesse espaço do contato interétnico, surgiram as identidades e se definiram as fronteiras étnicas de diferenciação e afirmação enquanto grupo étnico. Esta afirmação se estabeleceu na relação entre as comunidades muçulmanas e a sociedade goiana, através de sinais diacríticos marcadores e diferenciadores de suas características étnicas. Têm-se como exemplo a forma de vestir para as mulheres, o uso do lenço, que para a “sociedade receptora” é um sinal diferenciador, marcador da diferença, tornando-se um delimitador das fronteiras interétnicas entre eles e a sociedade goiana. Para as próprias muçulmanas, este não é um diferenciador importante para elas serem consideradas muçulmanas, uma vez que há mulheres muçulmanas que respondem sim veementemente quando questionadas se são muçulmanas, mas no entanto não usam o lenço, mas assumiram a representação externa de que o uso do lenço é caracterizador das muçulmanas. Para elas, este elemento não é fundamental para a definição ou distinção do que seria ser ou não muçulmana. Para elas, o que as caracteriza como muçulmanas é o que está no coração, é o sentimento de serem muçulmanas e terem sido criadas no costume da religião islâmica. – Os pilares da religião islâmica ditam tipos de comportamentos que os muçulmanos devem observar no cotidiano de sua vida religiosa. Esses símbolos e rituais mandamentais da religião islâmica produzem e reproduzem as relações sociais estabelecidas entre os imigrantes muçulmanos na sua comunidade e a sociedade goiana. Os rituais religiosos ou festivos ditados pela religião islâmica, como a higiene para as orações diárias, as doações para os patrícios mais necessitados da comunidade, os jejuns 174 e as festas do final do Ramadã e dos casamentos, todas estas práticas simbolizam e classificam as coisas e a vida dos imigrantes muçulmanos. – Apesar das modificações nas relações entre os imigrantes muçulmanos, o que se observou, ainda assim, é que as reuniões religiosas programadas pelos pilares islâmicos, os encontros de finais de tarde entre os imigrantes das comunidades muçulmanas e a própria condição de imigrante em um país estranho, comparado com a “sociedade receptora”, têm sustentado os laços afetivos entre eles. – O imigrante muçulmano é pai de família e essa é uma instituição de valor inestimável e que tem uma centralidade na vida deles. Eles têm total dedicação e preocupação, principalmente em relação ao futuro dos filhos, mostrando-lhes através de exemplos como também devem se comportar. Os casamentos das famílias de imigrantes muçulmanos em Goiás são endogâmicos. A centralidade da instituição do casamento endogâmico ou endógeno entre os imigrantes muçulmanos se expressa como um costume preservado. Dentre os vários motivos colocados, a endogamia é defendida por possibilitar a preservação dos valores culturais e religiosos próprios da comunidade muçulmana. Outro motivo é a passagem da herança, e nota-se uma preocupação em que esta não saia do âmbito da mesma família. No caso de casamento entre primos cruzados, a herança permanece na mesma família do novo casal. E ainda o casamento endogâmico é recomendado porque quando se escolhe uma moça ou um rapaz sabe-se se ele é bom, se é de “caráter”, uma vez que já é conhecido, assim como a família de origem do rapaz ou da moça. Dentre os aspectos que vêm sofrendo modificações, em virtude da incorporação dos valores da sociedade de adoção, os filhos dos imigrantes muçulmanos têm tido maior liberdade de namorar e casar com mulheres não muçulmanas do que as filhas. Notou-se que a família nas comunidades de imigrantes muçulmanas é patrilinear, ou seja, o sobrenome da mulher é eliminado depois dos casamentos e a religião também é transmitida pela linha paterna, uma vez que os filhos, além de herdarem o sobrenome do pai, quando a mãe não é muçulmana, estes deverão ser. Os homens sentem-se mais seguros com mulheres da pátria de origem, uma vez que elas são consideradas mais recatadas, conservadoras e discretas, por isto, supõe-se que elas seriam melhores esposas do que as mulheres goianas. Observou-se também que a preferência pelo casamento endogâmico ainda continua mais proeminente, principalmente entre as famílias mais tradicionais, ou seja, aquelas que vêm praticando com mais veemência os mandamentos da religião islâmica. Na maioria dos casamentos da primeira geração de imigrantes, os cônjuges foram escolhidos pelos pais e não pelos próprios filhos. 175 Atualmente, os homens têm tido a liberdade de eleger as suas esposas, mas os pais são sempre consultados e devem concordar com a escolha para que o casamento se realize. Outro padrão de comportamento ligado ao casamento que foi relativizado refere-se à família muçulmana, que se estrutura no comando do pai ou da figura masculina mais velha, que centraliza a autoridade e ao redor do qual a família se mantém coesa, mas que tem se modificado no contexto social da terra migrada. Isto foi percebido na divisão sexual do trabalho, onde o homem, na terra de origem, trabalha fora e é o alicerce financeiro da família, enquanto que a mulher administra a casa e o trabalho doméstico, mas com a imigração e o processo de inserção na “sociedade receptora”, esta situação vem se modificando e a esposa muçulmana também trabalha ou com o marido no seu comércio ou ainda possui, sozinha, o seu próprio negócio. Assim, o papel da mulher no desempenho dos negócios familiares foi crucial para a ascensão e para o sucesso dos imigrantes muçulmanos, mas essas mudanças no desempenho do papel da mulher não se refletiram na relação entre marido e mulher no âmbito doméstico. – Observou-se também que os imigrantes muçulmanos consideram que as mulheres brasileiras vestem-se deixando transparecer excessivamente o seu corpo e que esta liberdade tem tirado as emoções e o romantismo nas relações entre os casais. – Com relação a filhos, as famílias muçulmanas, desde as primeiras gerações de imigrantes, têm tido uma grande quantidade deles. Contudo, as famílias muçulmanas da segunda e da terceira geração têm diminuído o número de filhos. – Os imigrantes da primeira geração sofreram com maior intensidade os problemas de “adaptação” nos primeiros tempos de imigração. Mas os imigrantes da segunda e da terceira, principalmente os filhos jovens, têm passado pelos conflitos referentes ao processo de internalização de crenças, valores e comportamentos de seus pais, no âmbito da vida doméstica, e ao mesmo tempo os da rua, na escola, na vida pública, ou seja, no contato contínuo e direto com a sociedade goiana. – A preocupação com a criação e encaminhamento dos filhos nos ensinamentos do Islã é muito grande, e apesar de os jovens muçulmanos não seguirem a religião como seus pais e nem como estes desejavam, sentem a influência da religião islâmica e conhecem os mandamentos religiosos. Eles receberam de seus pais todos os ensinamentos da religião do Islã. Alguns jovens muçulmanos consideram-se muçulmanos em virtude de serem filhos de país muçulmanos. Os filhos dos imigrantes muçulmanos da última geração, na sua maioria, não seguem fielmente os costumes 176 religiosos. Esta situação se tornou mais preponderante entre os filhos do que entre as filhas. – No processo de interação dentro das comunidades muçulmanas de imigrantes em Goiás foi observado que nas comunidades localizadas no interior do Estado, como as de Anápolis e Jataí, e principalmente nesta última, têm prevalecido laços familiares e sociais mais coesos, ou seja, relações sociais face-a-face. O contrário ocorre nas grandes aglomerações sociais, como é o caso da comunidade de Goiânia, onde há uma alta divisão social do trabalho, prevalecendo relações funcionais, baixa coesão social, grande diferenciação de papéis na esfera social, provocando uma solidariedade e sociabilidade menos forte e os encontros mais raros. O processo de inserção e a interação social num contexto social marcado por espaços sociais diferentes e mais distantes, onde as relações sociais são intermediadas por outros elementos funcionais, se tornou mais complexo e menos fácil de se estruturar, em razão da interferência de um número maior de elementos. – Foi observado o distanciamento nas relações sociais entre os imigrantes muçulmanos da comunidade de Goiânia e uma maior diferenciação social, provocada pela mudança de status, onde aqueles que obtiveram maior enriquecimento e mais bens deslocaram-se para bairros mais nobres da cidade. Dentre as comunidades de imigrantes muçulmanos pesquisadas, a de Goiânia foi a que apresentou maior número de imigrantes na terceira geração. Nas comunidades de Anápolis e Jataí se observaram maiores rigores no comportamento, manutenção de valores e princípios da religião islâmica por parte dos filhos dos imigrantes. Eles apresentam o perfil de filhos que os chefes religiosos esperam, estão mais ligados aos “caminhos retos”, como eles dizem, ou mesmo aos valores morais defendidos pelo o Islã. – Os imigrantes muçulmanos apresentam, na sua maioria, um grau de instrução não muito variado. São poucos aqueles que se destacam nas letras, e estes geralmente são escolhidos pela comunidade para serem os professores da Mesquita ou da Sociedade Beneficente, ensinando os filhos dos imigrantes. Outro aspecto importante de ser mencionado foi que há uma pequena ocorrência do analfabetismo, sobretudo entre as mulheres que vieram da terra de origem, que, contudo, com o tempo no Brasil, a situação de imigrantes e seu processo de inserção à “sociedade receptora”, já com os filhos nascidos aqui, houve a preocupação, por parte dos pais, de garantir a educação escolar para todos, incluindo as imigrantes mulheres, principalmente as mais jovens, que têm cursado o ensino médio e superior. 177 – A guerra tem uma centralidade importante na vida especificamente das famílias de imigrantes muçulmanos palestinos de Goiás. A guerra representou o trauma vivido pelas famílias palestinas forçadas à diáspora pelo mundo, vivendo as fantasias e desencantos de uma vida dividida entre o sentimento do pertencimento à terra natal e de, ao mesmo tempo, não a possuir. – Assim, a condição do imigrante muçulmano em Goiás e de suas famílias se manifestou no seu cotidiano através do processo de inserção e integração socializado, assumindo, por um lado, uma dimensão da afirmação da identidade, e por outro uma negociação de sua identidade em virtude da “adaptação” ao contexto social goiano. 178 BIBLIOGRAFIA FONTES ESCRITAS: Periódicos, Revistas, Jornais e Internet. A RELIGIÃO de Alá. Disponível pela internet em http://www.zaz.com.br/almanaque/ historia/islamismo.htm, acessado em 14 de outubro de 2001. ABDALATI, Hammudah. O Islam em foco. São Bernardo do Campo: Centro de Divulgação do Islam para a América Latina, 2000. AL-JERRAHI, Muhammad Ragip. História da presença islâmica no Brasil : um breve relato. Sevilha, 2003. 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Petrópolis: Vozes, 2000. 188 ANEXOS 189 Questionário para entrevistas com os imigrantes muçulmanos 1)- Nome completo, com quem veio? De onde e por que imigrou para o Brasil e Goiás? 2)- Quando, onde e como foi a sua imigração para o Brasil? Como chegou a Goiás e onde se estabeleceu? 3)- Como se sustentou a partir de sua chegada ao Brasil ou a Goiás? 4)- A família veio junto ou depois? Se depois como foi o reencontro, quantos vieram e como viviam e vive hoje a família no contexto goiano? 5)- Como vocês conciliaram o seu modo de vida com o da sociedade goiana? 6)- Quais os atritos vividos que tiveram que se adaptar à sociedade goiana? 7)- Quantos de sua família já casaram e quantos filhos têm? 8)- Como foi o processo de adaptação, como se deu a aprendizagem da língua, dinheiro, nomes, etc... 9)- Quais as modificações percebidas entre como viviam ou o modo de vida antes e depois da imigração para Goiás? 10)- Fale sobre os sentimentos e ressentimentos gerados na nova vida de imigrante. 11)- Fale sobre a religião islâmica, os critérios de vida e os mandamentos por ela estabelecidos. 12)- Quais os conflitos gerados entre o novo modo de vida e os mandamentos/critérios regidos pela religião islâmica? 13)- Por que a prática do comércio tem sido constante por parte daqueles que imigraram para o Brasil e para Goiás? 14)- Qual a importância da religião e do comércio na vida de vocês? 15)- Como tem sido a prática da vida religião na sociedade goiana? 16)- Quais as diferenças de costumes percebidos no modo de vida goiano e de vocês? 17)- Como vocês se identificam enquanto grupos de imigrantes e como vocês vêem os goianos? 18)- Na percepção de vocês, o que os fazem se identificarem como imigrantes muçulmanos? 190 Relação de famílias contactadas - Aiche Ghannoum. Senhora libanesa de Goiânia e viúva. Ela tem 4 filhos. - Ali Muhammad Sayad S. Said. Senhor palestino de Goiânia, casado com Sara Abdel Qader, eles têm 6 filhos. - Amin Iamin. Senhor palestino de Anápolis, casado com brasileira, eles têm 5 filhos. - Assad Jamaleddine. Senhor palestino de Anápolis, casado com Fátima Jamaleddine, eles têm 6 filhos. - Atiah Mustafá. Senhor palestino de Anápolis, casado com Seham Mustafá, eles têm 5 filhos. - Awad. Senhor palestino de Anápolis, casado com Iptsam, eles têm 5 filhos. - Bahjat Abeidala. Senhor palestino de Jataí, casado com Antônia Sampaio Abeidala, brasileira, eles têm 3 filhos. - Daes Abdallah. Senhor palestino de Jataí, casado com Rukaia Andel Mali Ali Nafal, eles têm 5 filhos. - Faiçal Allan. Senhor palestino de Anápolis, casado com Mona Allan, eles têm 3 filhos. - Fairus Mohammad. Senhor viúvo cisjordaniano de Goiânia. Ele tem 1 filha. - Faruk Abdallah. Senhor palestino de Jataí, casado com Kifaya Abdallah, eles têm 5 filhos. - Hasam Zaghlul. Senhor palestino de Jataí, casado com Abelkis Zaghlul, eles têm 8 filhos. - Hadi Abdel Gafar. Senhor libanês de Anápolis, casado com Rania Gafar, eles têm 2 filhos. - Jamil Ghannoum. Senhor libanês de Trindade, casado com Ilham Isbir Ghannoum, eles têm 5 filhos. - Jawdatt Mustafá. Senhor palestino de Jataí, casado com Karla Lima Tum, eles têm 3 filhos. - Jorge Najjar. Senhor libanês de Jataí, casado com Leila Simão Najjar, filha de libaneses, eles têm 3 filhos. - Kassem Bazzi. Senhor libanês de Goiânia, casado com Nabiha Salamé, eles têm 1 filho. - Kassem Muhammad Fares. Senhor libanês de Jataí, casado com Sabah Yassin Fares, eles têm 2 filhos. - Marouf Habashi. Senhor palestino de Anápolis, casado com Khadija Allan Habashi, também palestina, eles têm 6 filhos. - Mohammad Allan. Senhor palestino de Anápolis, casado com Yusra Allan, eles têm 6 filhos. - Mohd Ali Tum. Senhor palestino de Jataí, casado com Auristelina Lima Tum, brasileira, eles têm 4 filhos. - Munged. Senhor palestino de Anápolis, divorciado, ele tem 3 filhos. - Omar Abdallah. Senhor palestino de Jataí, casado com Asmieh Abdel Nagib Ali Nafal, eles têm 3 filhos. - Rashad Mishmsh. Senhor palestino de Jataí, casado com Amineh Mishmsh, também palestina, eles têm 5 filhos. - Said Taifur. Senhor libanês de Goiânia, casado com Asmahan Said Zaghlout Taifur, eles têm 3 filhos. - Said Abdallah. Senhor palestino de Jataí, casado com Alia Hussein Muhamad Vik, eles têm 3 filhos. - Said Abdallah Awwad. Rapaz palestino de Jataí. Filho de Omar Abdallah. - Sâmia Otman Allan. Senhora cisjordaniana de Anápolis, casada com Fuad Allan, eles têm 4 filhos. - Samir Ghannoum. Senhor libanês de Goiânia, casada com Amira Ghannoum, também libanesa, eles têm 2 filhas. 191 Fotos Figura 1: Família Bazzi no Líbano (s/d) Figura 2: Família Bazzi no Líbano (s/d) 192 Figura 3: Armazém Kassem Bazzi em Cristalina-GO (1970) Figura 4: Escritório Kassem Bazzi em Cristalina-GO (1970) 193 Figura 5: Esposa, filho, sobrinha e irmã Kassem Bazzi no Líbano (s/d). Figura 6: Família Kassem Bazzi em Goiânia-GO (1997). 194 Figura 7: Kassem Bazzi e amigo em Campinas, Goiânia-GO (1995). Figura 8: Kassem Bazzi e amigo na sua loja em Goiânia-GO (1995) . 195 Figura 9: Nabiha Salame e sua sobrinha no Líbano (s/d). 196 Mapas 197 198 199