A LÍNGUA CULTA E A LÍNGUA DO POVo: variantes - Uni

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A LÍNGUA CULTA E A LÍNGUA DO POVo: variantes linguísticas e
seu aspecto social em Emília no país da gramática
Thaíla de Sousa Orlando1 (Uni-FACEF)
Orientadora: Profª Drª Ana Lúcia Furquim Campos –Toscano (Uni-FACEF)
INTRODUÇÃO
O presente artigo parte de nossa pesquisa de iniciação científica, em
andamento, e tem como objetivo apresentar uma análise da obra Emília no País da
Gramática, de Monteiro Lobato, no que diz respeito aos fenômenos naturais à língua
que podem constituir determinadas variantes lingüísticas, reconhecidos, nesta obra,
ora em bairros periféricos, ora presos na cadeia como “Vícios de Linguagem”. Esses
fenômenos se encontram como personagens que representam o arcadismo,
neologismo, a gíria, o barbarismo, o solecismo, a anfibologia, a obscuridade.
Buscamos analisar a constituição desse discurso que distingue a língua do povo e a
língua “de gente importante”, que configura, respectivamente, os dialetos nãopadrão e padrão. Para tanto, utilizamos as reflexões de Mikhail Bakhtin a respeito de
língua, linguagem e dialogismo e estudos da sociolinguística a respeito de
preconceito e variantes linguísticas. Assim, apresentamos primeiramente nosso
referencial teórico e, posteriormente, a contextualização da obra seguida da análise
de trechos representam tal distinção. Nessa análise, abordaremos apenas o
arcadismo, o neologismo, o solecismo e o provincianismo.
1
A língua a partir das reflexões de Bakhtin
O sistema da língua se manifesta efetivamente de forma material, quer
dizer, através de signos. Como sistema de formas normativas, ele repousa na
qualidade de norma social. Se sobre a língua for lançado um olhar objetivo, não será
encontrado nenhum indício de um sistema de normas imutáveis, mas a evolução
ininterrupta de suas normas. Bakhtin (2002) defende que tratar a língua como algo
acabado, implica uma atitude hostil em relação a todas as inovações linguísticas, já
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que a reflexão linguística de caráter formal-sistemático é incompatível com a
abordagem histórica e viva da língua.
A forma linguística vista apenas como sinal não tem nenhum valor
linguístico. Fiorin (2006) comenta que, na concepção de Bakhtin, a língua em sua
totalidade, concreta, viva e em seu uso real, tem propriedade dialógica. O diálogo é
um acontecimento entre sujeitos, uma das formas da interação verbal. De acordo
com Bakhtin (2002, p. 123),
O diálogo, no sentido estrito do termo, não contribui, é claro, senão
uma das formas, é verdade que das mais importantes da interação
verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido
amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de
pessoas colocadas face a face, mas toda a comunicação verbal, de
qualquer tipo que seja.
Os enunciados são as unidades reais de comunicação, enquanto que a
palavra em si, assim como seu significado, são neutros. É nas relações de sentido
entre enunciados que o diálogo se estabelece.
A responsividade é uma das formas mais importantes de relações
dialógicas, que acontece entre dois enunciados pertencentes a diferentes vozes,
entendido não apenas em relação de concordância, mas também como rejeição,
confronto, confirmação ou complementação. Para Bakhtin (2003, p.300),
[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não
pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de
fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e
ressonâncias dialógicas.
Desse modo, o diálogo se firma no âmbito da linguagem. Cada réplica
expressa a posição do locutor, sendo possível tomar, com relação a essa réplica,
uma posição responsiva. Assim, em cada réplica há reconhecimento da
reciprocidade entre o eu e o outro dentro do enunciado, caracterizando, assim, o
diálogo. Reconhecer o caráter dialógico implica entender que qualquer desempenho
formal dentro do enunciado é constituído numa relação, ou seja, numa alternância
de vozes. Marchezan (2006, p.118), ao comentar sobre as reflexões bakhtinianas,
afirma que
Dois enunciados, separados um do outro no espaço e no tempo e
que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica
mediante uma confrontação de sentido, desde que haja alguma
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convergência do sentido (ainda que seja algo insignificante em
comum ao tema, no ponto de vista, etc.).
O diálogo se apresenta também na relação de sentido entre discursos,
quando, por exemplo, se insere o discurso do outro no enunciado. Esse diálogo se
manifesta quando é citado abertamente o discurso do outro ou quando não há
separação nítida entre os dois enunciados. Alguns teóricos o tratam como
intertextualidade, porém essa denominação não aparece na obra de Bakhtin.
2
Monteiro Lobato e a escola brasileira
A literatura infantil brasileira de fato se iniciou com a publicação de A
menina do narizinho arrebitado, de Monteiro Lobato, em 1921, com trechos da
história antecipados e divulgados na Revista do Brasil.
Monteiro Lobato já era um escritor famoso, e tinha uma literatura destinada
ao público adulto, inserida no período pré-modernista da história literária brasileira.
Monteiro Lobato viu a necessidade de escrever histórias para crianças numa
linguagem que as interessasse, rompendo com a tradição anterior, entretanto sem
ignorá-la.
Desde A menina do narizinho arrebitado, livro que alcançou um grande
sucesso, Monteiro Lobato fixou o espaço, o Sítio do Picapau Amarelo, e boa parte
do elenco que o ocupa. Após essa, seguiram-se outras obras, constituindo uma
série, com a repetição desse mesmo espaço e a de um constante grupo de
personagens. Dentro desse espaço rural, residem Dona Benta, sua proprietária,
acompanhada de sua neta Lúcia, conhecida por Narizinho e Tia Nastácia, uma
cozinheira antiga e fiel. Esta pequena população multiplica-se rapidamente com a
inclusão de Pedrinho, também neto de Dona Benta, que vem passar as férias com a
avó, a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa, e também os animais falantes,
como o porco Rabicó, o burro Conselheiro e o rinoceronte Quindim, personagens
que vão ganhando espaço ao decorrer das histórias, à medida em que aparecem.
No contexto que envolve a produção literária infantil da obra de Monteiro
Lobato, estava havendo mudanças no campo da educação com o movimento da
Escola Nova. Nesse movimento, havia o intuito de valorizar o pensamento científico
e a atitude reflexiva, levando ao questionamento da tradição e à proposição de uma
tecnologia inovadora para a sociedade que se modernizava.
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De acordo com Lajolo (2000), na busca de sintonia com o seu tempo,
Lobato incorpora às histórias que inventa um lastro sólido de informações, muitas
vezes, coincidentes com o currículo escolar. As críticas à escola nesse conjunto de
livros são muito frequentes, que não comprometem, mas reforçam seu valor
formativo. O Sítio do Picapau Amarelo se transforma num espaço equivalente ao da
escola, porém mais eficiente. Dona Benta desempenha o papel de professora ideal e
os moradores do Sítio em alunos atentos e interessados que polemizam os temas
quando não decidem vivenciá-los in loco, abandonando o lugar improvisado das
aulas.
[...] o escritor apresenta alternativas de ação de ensino, que,
afundado no tradicionalismo dos métodos e projetos, fossilizava-se
de modo crescente. Sua crítica, mesmo quando indireta, se resolve
por uma conduta renovadora. Apoiando-se no diálogo, como
metodologia de ensino, e no amor ao conhecimento, como finalidade,
aponta um caminho pedagógico para a sociedade contemporânea,
arejando-a com as idéias que motivam a atividade do ficcionista.
(LAJOLO; ZILBERMAN, 2006, p. 77)
A primeira obra de conteúdo condizente com o currículo escolar, a que
alguns críticos denominam de paradidáticos, é História do mundo para crianças
(1933). Após sua publicação, Monteiro Lobato escreve outras, cada uma
correspondente a uma disciplina: Emília no país da gramática (1934), Aritmética da
Emília (1935), Geografia da Dona Benta (1935), História das Invenções (1935),
sobre ciências, Serões da Dona Benta (1937), sobre física e astronomia, O poço do
Visconde (1937), sobre geologia, Reforma da natureza (1941) sobre ciências
naturais.
3
A Língua Portuguesa e o Sítio do Picapau Amarelo
Emília no país da Gramática, escrita em 1934, foi a segunda obra de cunho
paradidático de Monteiro Lobato. Nela, o ensino de língua/gramática se consolida
através de uma postura predominantemente tradicional da língua, porém, em alguns
momentos, há confrontos com o ensino de gramática tradicional.
Ao unir imaginário e real, Monteiro Lobato transforma a gramática em um
país através de numa ficção maravilhosa: as palavras, suas classes e funções
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transformam-se em personagens. A gramática se concretiza e dialoga com o
universo infantil.
Sua história se inicia no Sítio, com Dona Benta começando a dar lições de
gramática ao seu neto Pedrinho. A princípio, o menino não gostou nada da idéia,
recusando-a, referindo-se à gramática como uma “caceteação”, porém, com a
insistência de Dona Benta, após alguns dias, Pedrinho disse que a gramática
ensinada pela avó virava brincadeira, opondo-se a da escola, em que o professor
obrigava a decorar definições que ninguém entendia. Emília se habituou a assistir às
lições, até que um dia deu a Pedrinho a ideia de irem passear no País da Gramática.
A partir da ideia de Emília, as outras personagens, Narizinho, Pedrinho, Visconde de
Sabugosa e Quindim acompanham-na na viagem para o País da Gramática.
Quindim, o rinoceronte, é quem guia a turma do sítio nesse passeio.
Contrapondo-se à maior parte das histórias, em que Dona Benta é quem conduz
ensinamentos, nessa narrativa, Quindim assume esse papel, após ter comido a
gramática que Visconde esqueceu debaixo da jabuticabeira. De acordo com Pereira
Jr. (2008), essa escolha se deve por Quindim estar no mesmo nível das crianças, o
que possibilita uma maior escolha do que desejam conhecer.
4
A língua culta x A língua do povo
Logo no início da viagem, assim que a turma do Sitio adentra a cidade de
Portugália, onde residem as palavras de Língua Portuguesa, no capítulo
“Portugália”. A cidade é descrita como “[...] uma cidade como todas as outras, a
gente importante morava no centro e a gente de baixa condição, ou decrépita,
morava nos subúrbios” (LOBATO, 2008, p. 21).
Pode-se observar nesse enunciado que a descrição da cidade apresenta
uma distinção de grupos sociais e, consequentemente, a relação desses grupos com
a língua. De acordo com Alkimim (2004), a avaliação social das variedades
lingüísticas é um fato observável em qualquer comunidade da fala. Em todas as
comunidades, existem variedades que são consideradas superiores e outras
inferiores, como acontece na descrição da cidade.
“A gente importante” pode ser interpretada como aquelas que utilizam as
variedades de maior prestígio social, como a variedade padrão, estabelecida pelo
conjunto de normas que definem o modo “correto” de falar. Pela perspectiva da
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sociolinguística, esse melhor modo de falar corresponde aos hábitos linguísticos
socialmente dominantes que, historicamente, coincidem com a variedade falada pela
nobreza, burguesia, pelos habitantes de núcleos urbanos e também pelos centros de
poder econômico e sistema cultural predominante.
A “gente de baixa condição, ou decrépita” seria, por sua vez, as variedades
não prestigiadas socialmente, que são colocadas nesse enunciado como condição
de inferioridade em relação à língua dos moradores do centro da cidade. Nessa
concepção de estudos linguísticos, colocar essa variante nesse patamar é
inadequado já que as diferenças linguísticas são inerentes ao fenômeno linguístico;
a língua é adequada à comunidade que a utiliza, permitindo a expressão de seu
mundo físico e simbólico. Como Alkimim (2004, p. 42)
[...] as línguas não são homogêneas e a variação observável em
todas elas é produto de sua história e de seu presente. [...] Podemos
afirmar, com toda a tranquilidade, que os julgamentos sociais ante a
língua – ou melhor as atitudes sociais – se baseiam em critérios não
linguísticos: são julgamentos de natureza política e social.
Assim, pode-se observar em qualquer coexistência da fala um conjunto de
variedades linguísticas, que se dá nas relações sociais estabelecidas pela estrutura
sociopolítica de cada comunidade; há sempre uma ordem de valor das variedades
em uso que reflete a hierarquia dos grupos sociais, ou seja, variedades
consideradas superiores e inferiores (ALKIMIM, 2004).
A turma do Sítio chega à cidade de Portugália entrando por um dos bairros
pobres do subúrbio da cidade, chamado Bairro do Refugo. Ao se depararem com
algumas palavras “velhas, bem corocas” (LOBATO, 2008, p. 21), Quindim comenta:
- [...] Os gramáticos classificam essas palavras de Arcadismos.
Arcaico quer dizer coisa velha, caduca.
[...]
- As coitadas que ficam arcaicas são expulsas do centro da cidade e
passam a morar aqui, até que morram e sejam enterradas naquele
cemitério, lá no alto do morro. Porque as palavras também nascem,
crescem e morrem, como tudo mais. (LOBATO, 2008, p.22)
Esse fragmento mostra a explicação do rinoceronte Quindim a respeito dos
Arcadismos que, como já foi dito, estavam localizados em um dos bairros pobres da
cidade. Ao dizer que “as coitadas que ficam arcaicas são expulsas do centro da
cidade”, Quindim se refere às palavras que caem em desuso, processo natural ao
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sistema da língua considerando que, como aparece na fala da personagem, “as
palavras também nascem, crescem e morrem, como tudo mais”.
Assim, como fruto das relações humanas, a língua acompanha a sua
evolução e suas mudanças, ligadas às variantes diacrônicas, pela perspectiva da
Sociolinguística. Para Bakhtin (2002), a língua dura e perdura sob a forma de um
processo evolutivo contínuo; os indivíduos não a recebem pronta para ser usada, e
sim penetram na corrente da comunicação verbal. Como a língua é viva e está em
constante evolução, existem formas que vão deixando de ser usadas, caem em
desuso. O arcadismo seria, assim, um processo natural à língua.
Além do arcadismo, que é apresentado como morador do subúrbio de
Portugália, o neologismo também é colocado nesse mesmo nível:
- Essas que aí são o oposto dos Arcadismos – disse Quindim. – São
os Neologismos, isto é, palavras novíssimas, recém saídas da
forma.
- E moram também nestes subúrbios de velhas?
- Em matéria de palavras a muita mocidade é tão defeito quanto a
muita velhice. O Neologismo tem que envelhecer um bocado antes
que receba autorização para residir no centro da cidade. Estes aqui
andam em prova. Se resistirem, se não morrerem de sarampo ou
coqueluche e se os homens virem que eles prestam bons serviços,
então igualam-se a todas as outras palavras da língua e podem
morar nos bairros decentes. Enquanto isso ficam soltos pela cidade,
como vagabundos, ora aqui, ora ali. (LOBATO, 2008, p. 23).
É interessante observar como o neologismo é retratado pelo enunciado de
Quindim, quando diz que “em matéria de palavra a muita mocidade é tão defeito
quanto a muita velhice”, desconsiderando a evolução da língua. Além disso, esse
enunciado contraria o apresentado anteriormente, quando o personagem discorre a
respeito do arcadismo e afirma que “as palavras também nascem, crescem e
morrem, como tudo mais”.
Assim como os Arcadismos são descritos como expulsos do centro da
cidade, os Neologismos só poderão morar nos “bairros decentes” se prestarem
“bons serviços” aos homens e, enquanto isso não acontece ficam soltos como
“vagabundos”2. Ora, os Neologismos são as palavras que “nascem” como Quindim
mesmo explica, desse modo, pode-se perceber a contradição desses enunciados,
apresentados e discutidos, que aparecem através da voz de Quindim. Para Bakhtin
(2002), a língua vive e evolui na comunicação verbal concreta, dessa forma, a
criação de novas palavras e de novas construções lexicais e suas funções sociais,
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são tão naturais à língua quanto as construções que deixam de ser usadas, como é
o caso do arcadismo. Como já abordado anteriormente, não se trata de isolar
palavras por desuso ou pouco emprego, pois importa, nesse contexto, entender que
as palavras devem estar inseridas no jogo social:
[...] as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas),
depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das
relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em consequência
da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na
mudança das formas da língua. (BAKHTIN, 2002, p. 124).
Mesmo que Quindim mostre às crianças que a língua está sujeita a
mudanças, em alguns momentos elas são desconsideradas, como foi possível
verificar nos trechos citados acima.
Mais adiante, no capítulo “Vícios de Linguagem”, alguns dos fenômenos
naturais à língua, encontrados no subúrbio da cidade, estão presos em uma cadeia
como “Vícios de Linguagem” por Dona Sintaxe, como é o caso do Arcadismo e do
Neologismo. Dona Sintaxe é uma das personagens de Portugália que a turma do
Sítio conhece no capítulo “Bairro da Sintaxe” e é quem faz as palavras
“comportarem-se como é preciso dentro das orações” (LOBATO, 2008, p. 103).
Nessa prisão, o Arcaísmo está preso por deixar que palavras que já caíram
em desuso, apareçam em “frases modernas” (LOBATO, 2008, p.113). Outra vez
aparece a questão de que o uso de palavras arcaicas é um defeito, um desrespeito
à língua. Com relação ao Neologismo, apresentamos o seguinte trecho:
Emília passou ao décimo cubículo, onde estava um moço muito
pernóstico.
- E este aqui, tão chique? – perguntou.
- Este é o Neologismo. Sua mania é fazer as pessoas usarem
expressões novas de mais, e que pouca gente entende.
Emília, que era grande amiga de Neologismos, protestou.
- Está aí uma coisa com a qual não concordo. Se numa língua não
houver Neologismos, essa língua não aumenta. Assim como há
sempre crianças novas no mundo, para que a humanidade não se
acabe, também é preciso que haja na língua uma contínua entrada
de Neologismos. Se as palavras envelhecem e morrem, como já
vimos, e se a senhora impede a entrada de palavras novas, a língua
acaba acabando. Não! Isto não está direito e vou soltar esse
elegantíssimo Vício, já e já...
-Não mexa Emília! – gritou Narizinho. – Não mexa na língua que
vovó fica danada...
- Mexo e remexo! – replicou Emília batendo o pezinho. E foi e abriu a
porta e soltou o Neologismo, dizendo: - Vá passear entre os vivos e
forme quantas palavras novas quiser. E se alguém tentar prendê-lo,
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grite por mim, que mandarei o meu rinoceronte em seu socorro.
Quero ver quem pode com Quindim... (LOBATO, 2008, p. 113)
Nesse fragmento do diálogo entre Emília e Dona Sintaxe, Emília é a
personagem que contesta e rompe com os preceitos sociais e também com a
ideologia dominante. Existe na voz do enunciador a concepção da língua como
fenômeno vivo, sujeita a mudanças, de modo que o neologismo seria uma inovação,
contrária ao purismo existente até então, representado pela Dona Sintaxe. Esse
enunciado contraria também a posição assumida por Quindim, quando encontram o
Neologismo no subúrbio de Portugália, alegando que a muita mocidade das palavras
é tão defeito quanto a velhice; ao questionar a posição de Dona Sintaxe, Emília,
mais uma vez demonstrando sua irreverência e astúcia, revela um maior
amadurecimento em relação às mudanças da língua ao soltar o Neologismo da
prisão.
Na cadeia, especificamente, aparecem personagens estreitamente ligadas à
variação linguística, como exposto no seguinte fragmento. (LOBATO, 2008, p. 114):
Emília encaminhou-se para o último cubículo, onde estava preso um
pobre homem da roça, a fumar seu pito.
- E este pai da vida, que aqui está de cócoras? – perguntou ela.
- Este é o Provincianismo, que faz muita gente usar termos
conhecidos em certas partes do país, ou falar como só se fala em
certos lugares. Quem diz NAVIU, MÉNINO, MECÊ, NHÔ, etc. está
cometendo Provincianismos.
Emília não achou que fosse o caso de conservar na cadeia o pobre
matuto. Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da
língua e soltou-o.
-Vá passear, Seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena
vai ser lei um dia. Foi você quem inventou VOCÊ em vez de TU, e só
isso quanto não vale? Estamos livres da complicação antiga do
Tuturututu. Mas não se meta a exagerar senão volta para cá outra
vez, está ouvindo?
O personagem Provincianismo refere-se à variação linguística relacionada a
fatores geográficos com características próprias de influência regional, nesse caso, a
linguagem rural, que pode ser reconhecida também como o dialeto caipira. De
acordo com Alkimim (2004), a variação geográfica ou diatópica está relacionada às
diferenças linguísticas atribuídas no espaço físico, observáveis entre os falantes de
origens geográficas distintas. Para Preti (2003), as diferenças causadas por
influência regional ou mesmo rural são, em geral, acentuadas no vocabulário,
expressiva na fonologia e diminuta na morfossintaxe.
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O Provincianismo, retratado nesse trecho, difere-se da variedade padrão e,
pelo fato de estar preso, demonstra essa variedade como não aceitável. Desse
modo, é encontrado um preconceito linguístico com relação a essa variante, porém,
na edição comentada aparece uma nota com relação a isso: “Hoje em dia, o
Provincianismo não é mais considerado um erro, mas apenas uma variação em
relação à norma culta. A variedade regional falada pelo caipira é tão legítima quanto
todas as outras da língua” (LOBATO, 2008, p. 114).
De acordo com Bakhtin (2002), a forma linguística não pode ser isolada de
seu conteúdo ideológico. Ao comparar a ideologia do fragmento citado e da nota de
comentário a respeito da variação em relação à norma culta, vê-se que a questão da
variação linguística está sendo respeitada na edição atual, aspecto importante já que
se trata de uma obra de cunho paradidático.
Também em relação à variação, outro personagem aparece preso
(LOBATO, 2008, p. 111):
Emília passou ao cubículo imediato, onde havia outro “cara de
coruja”, ainda mais feio.
- E este? – perguntou.
- Este é o tal Solecismo, outro idiota que faz muito mal à língua.
Quando uma pessoa diz: HAVIAM MUITAS MOÇAS NA FESTA, em
vez de HAVIA MUITAS MOÇAS, está cometendo um Solecismo. FUI
NA CIDADE em vez de FUI À CIDADE; VI ELE NA RUA, em vez de
VI-O NA RUA; NÃO VÁ SEM EU, em vez de NÃO VAI SEM MIM, são
outras tantas belezas que saem da cachola desse imbecil.
Emília botou-lhe a língua e passou ao terceiro cubículo.
Verifica-se, através da descrição do Solecismo, a partir dos termos “cara de
coruja”, “outro idiota”, “imbecil”, que há, nesse enunciado, a voz purista que não
aceita esses desvios da língua referentes à norma padrão. Emília, que é irreverente
e contestadora, também não aceita os Solecismos, visto que “botou-lhe a língua”, ou
seja, é irreverente, mas respeita as regras prescritas pela norma culta. Esse
fragmento demonstra a posição, às vezes, incoerente da boneca.
O que aparece nesse trecho como erro através da concordância verbal
(“Haviam muitas moças na festa”), no uso inadequado da preposição (“Fui na
cidade”) e o emprego dos pronomes pessoais (“Vi ele na rua”, “Não vá sem eu”) é
utilizado na maioria das situações informais entre falantes. Essa variante pode ser
considerada como social, se pensado que é este o comportamento linguístico ligado
a situações em que se encontram os falantes. De acordo com Calvet (2002), fatos
como o exposto acima são exemplos de variáveis, que podem tocar tanto no campo
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da fonética, quanto no léxico e na sintaxe, estão ligadas à variação da língua.
Quanto ao português brasileiro, Calvet (2002) atenta para o caso do uso do pronome
reto e oblíquo como sujeito de infinitivo; existe a tendência do primeiro vir a substituir
o segundo, e provavelmente deixar de ser usado oralmente, como no enunciado “vi
ele na rua” .
É certo que em determinadas circunstâncias formais, quando
monitoram seu modo de falar, os falantes brasileiros cultos tendem a
utilizar o pronome oblíquo (“deixa-me ver isso”) e a utilizar (mesmo
sem ter disso consciência) a forma reta (“deixa eu ver isso”) quando
não se monitoram. Essas duas formas podem ser consideradas
como indicativas de dois estilos que podemos grosso modo definir
como “formal” e “distenso”. (CALVET, 2002, p. 97)
Os exemplos citados por Calvet (2002) demonstram as mudanças que
ocorrem na língua através da relação entre falantes, assim como nos exemplos do
trecho citado anteriormente. Para Alkimim (2004), cada grupo social estabelece um
contínuo de situações cujos pólos extremos e opostos são representadas pela
formalidade e informalidade.
Pelo fato de o Solecismo estar preso, pode-se verificar preconceito
lingüístico a respeito dessa variação. Além disso, o enunciado apresentado através
de Dona Sintaxe, voz representante da concepção purista da língua, o referencia
como “outro idiota que faz muito mal à língua”. Além de julgá-lo como “imbecil”,
refere-se aos exemplos citados como algumas das “belezas” cometidas por ele,
denotando um certo deboche em relação ao Solecismo. Outro fator que evidencia
preconceito é o comportamento de Emília, quando a boneca mostra a língua para a
personagem, ato de “maus modos”.
Para Sherre (2005), as questões que envolvem a linguagem não são
simplesmente linguísticas; são, acima de tudo, ideológicas. Pode-se dizer, assim,
que a variação lingüística é desconsiderada nesse discurso, se visto que o que é
ditado como correto está relacionado às normas encontradas na gramática, sem
reflexão consistente a respeito da língua em uso. A esse respeito, Bakhtin (2002)
discute que, se for lançado sobre a língua um olhar objetivo, não seria encontrado
sobre ela nenhum indício de um sistema de normas imutáveis, já que ela se
apresenta como uma corrente evolutiva ininterrupta. Para ele, pensar dessa forma
seria cometer um grande erro, já que o locutor utiliza a língua nas suas enunciações
concretas e utiliza as formas normativas em um contexto concreto; não é o aspecto
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da forma linguística que importa, mas o que torna um signo adequado à situação
concreta, ou seja, ao contexto sócio-histórico-cultural.
Conclusão
O fato de os personagens analisados morarem no subúrbio da cidade e
estarem presos na cadeia, revelam o sentido de que não podem estar em
convivência com a língua; e, por serem erros, devem permanecer longe dela, o que
revela uma posição purista em relação à evolução da língua e dos fenômenos
naturais a ela.
Através dos trechos apresentados, verifica-se que a questão dos fenômenos
linguísticos que estão ligados a variações, considerando que a língua é mutável,
encontram-se de forma conflituosa. Ora a língua é concebida como sistema
imutável, ora é sujeita a mudanças. No primeiro caso, os discursos veiculados estão
geralmente envolvidos de preconceito linguístico, como pudemos analisar nos
trechos apresentados. Contudo, é preciso refletir que esta é uma obra cujo conteúdo
visa a um aprendizado ligado ao ambiente escolar, de uma época em que a língua
era somente concebida pela norma padrão como sendo correta.
1
Aluna regularmente matriculada no 5º semestre de Letras no Uni-FACEF Centro Universitário de Franca e
bolsista de Iniciação Científica pelo PIBIC - CNPq.
2
Na edição comentada há uma nota a respeito desse fato linguístico: “Os Neologismos hoje são entendidos como
um fenômeno natural de renovação da língua”(p. 23).
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