DO LABORATÓRIO À PRÁTICA CLÍNICA Psiquiatria Depressão e diabetes: relação de causa ou efeito? A associação frequente entre diabetes e depressão, inicialmente descrita para depressão maior, é objeto de estudo recente, que relaciona também as formas mais brandas de transtorno depressivo com a emergência da doença crônica POR NAYLORA TROSTER MÉDICA PSIQUIATRA PELA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA (ABP-TEP) Thinkstock D iabetes e depressão são duas condições de alto impacto na saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o diabetes é a décima segunda causa de morte em todas as idades1, e a depressão unipolar é a primeira causa de incapacitação em ambos os sexos2. Projeções indicam que o diabetes mellitus (DM) aumentará sua participação mundial na perda de anos de vida por morte prematura e incapacitação, tornando-se a sétima causa de morte em 2030. No Brasil, o DM promove incapacitação ainda maior, em comparação a outros países, em razão da maior prevalência de complicações como retinopatia e neuropatia3. Nas últimas décadas, foi constatada a associação frequente entre depressão e diabetes. Descrita, inicialmente, para depressão maior, a comorbidade foi também identificada, recentemente, em suas formas mais brandas de transtorno depressivo, em populações de diferentes N o 16 | Out/Dez 2010 | PESQUISA MÉDICA 09_11 Diabetes e depressão.indd 9 9 22.09.10 12:36:24 do laboratório à prática clínica Thinkstock A depressão clinicamente significante está associada ao aumento de 65% no risco de diabetes, enquanto quadros depressivos podem desempenhar um papel no desenvolvimento do DM, predominantemente na população idosa. Transtornos depressivos de baixa gravidade, porém persistentes, também se relacionam com a emergência de novos casos de diabetes 10 PM16.indb 10 etnias4-8. Embora a associação pareça bidirecional, há mais evidências de que a depressão desencadeie diabetes do que o contrário9,10. De acordo com metanálise recente, a depressão está associada a um aumento de 60% no risco de diabetes tipo 2 (DM2), enquanto o risco de depressão relacionado a DM2 é modesto11. Um estudo espanhol investigou o efeito de características da depressão encontrada na comunidade – classificada como depressão moderada, depressão persistente e depressão não tratada – sobre o risco de incidência do DM. O ensaio integrou o Projeto ZARADEMP, da Universidade de Zaragoza, sobre incidência, prevalência e fatores de risco para demência e depressão na população idosa. Uma grande amostra de adultos com idade ≥ 55 anos (N = 4.803) foi avaliada em três etapas (na linha de base e após 2,5 e 5 anos). Na linha de base, foram identificados 379 casos de depressão, que apresentaram, ao seguimento, risco mais elevado de incidência de DM, mesmo após o controle de potenciais interferências, incluindo fatores de risco para DM. A taxa estimada de DM atribuível à depressão foi de 6,87%. O aumento do risco de DM foi também associado a quadros depressivos de baixa gravidade, persistentes e não tratados. O tratamento com antidepressivos não foi associado a aumento do risco de DM. Os autores concluíram, neste estudo, que a depressão clinicamente significante está associada ao aumento de 65% no risco de DM e que características da depressão encontradas frequentemente na comunidade podem desempenhar um papel no desenvolvimento do DM, predominantemente na população idosa12. Editorial do American Journal of Psychiatry, onde o estudo foi publicado, atribui sua relevância a três razões: a confirmação de uma estimativa do risco de DM atribuível à depressão da ordem de 7%, próximo do valor de 9% encontrado anteriormente por Mezuk e colaboradores11, indicando uma relação significante entre depressão e DM; a inesperada constatação de que síndromes depressivas de menor gravidade podem acarretar maior risco de DM, talvez porque sejam menos tratadas; e o fato de que o ensaio descreve características depressivas específicas que acarretam maior risco de DM. Os resultados indicam que o tratamento de todas as formas clinicamente significantes de depressão poderia impactar a incidência de diabetes em âmbito populacional9. PESQUISA MÉDICA | No 16 | Out/Dez 2010 20/9/2010 20:38:06 do laboratório à prática clínica As causas da associação são ainda desconhecidas A depressão poderia desencadear fatores de risco para diabetes, como obesidade, inatividade física e aumento de cortisol por estresse crônico9,13. Acredita-se que o acúmulo visceral de tecido adiposo ativa mecanismos imunes inatos, aumentando a secreção de mediadores inflamatórios, principalmente interleucina 6 (IL6) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa), que resultam em acúmulo de leucócitos no tecido adiposo. Tal reação desencadearia um estado inflamatório crônico, reconhecidamente associado a condições como doença cardiovascular, câncer e diabetes14. Publicações recentes apontam, entretanto, a hipercortisolemia associada ao estresse crônico como a hipótese etiológica mais provável para explicar a relação entre depressão e diabetes, considerando resultados de estudos longitudinais, indicativos de que não apenas a depressão, mas também a ansiedade, os problemas de sono, a raiva e a hostilidade são associados ao desenvolvimento do DM215. Alterações do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, com aumento do cortisol, têm importante efeito metabólico. Hipercortisolemia crônica pode causar resistência à insulina, o que pode explicar a associação entre depressão e DM2 e vice-versa. Estresse crônico e hipercortisolemia têm sido implicados como fatores etiológicos da doença de Alzheimer (DA), pois resistência à insulina no cérebro está associada a acúmulo de substância beta-amiloide e hiperfosforilação da proteína-Tau. Sintomas depressivos frequentemente precedem a DA13. Em conclusão, a evidência disponível indica que transtornos depressivos, incluindo quadros de baixa gravidade, porém persistentes, estão significantemente relacionados à emergência de novos casos de diabetes. Dada a prevalência de ambas as condições e a eficácia dos tratamentos disponíveis, esse achado reforça a relevância para a saúde pública do diagnóstico adequado e do tratamento vigoroso da depressão. Referências 1. The global burden of disease: 2004 update. Part 2. Causes of death. Disponível em: http://www. who.int/healthinfo/global_burden_disease/ GBD_report_2004update_part2.pdf. Acessado em: 4 Set 2010. 2. The global burden of disease: 2004 update. Part 3. Disease incidence, prevalence and disability. Dis­ ponível em: http://www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/GBD_report_2004update_part3. pdf. Acessado em: 4 Set 2010. 3. Oliveira AF, Valente JG, Leite Ida C, et al. Global burden of disease attributable to diabetes mellitus in Brazil. 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