AS REPRESENTAÇÕES DO NATURAL E DO RURAL EM ALIMENTOS INDUSTRIALIZADOS1 Evander Eloí Krone2 RESUMO Trabalhos da sócio-antropologia da alimentação vêm indicando que existe um anseio urbano contemporâneo em relação a alimentação industrializada. Tal anseio deriva do fato de que na atualidade os consumidores desconhecem a origem e os métodos de elaboração dos alimentos industrializados. Neste sentido, ao mesmo tempo em que temos um anseio em relação a alimentação industrializada vemos o aumento do consumo de produtos mais próximos do universo da natureza e menos manipulados industrialmente. Neste contexto vemos o surgimento do resgate de alimentos percebidos como naturais, regionais, artesanais, tradicionais, alimentos estes que temos chamado de produtos da terra. Neste sentido o uso de imagens nas embalagens que remetem a um rural e um natural idealizado tem sido uma estratégia da indústria alimentar para fazer frente a este novo contexto de valorização dos produtos da terra. Tendo como pano de fundo as representações do natural e do rural, este artigo se propõe a analisar a partir das imagens e das mensagens presentes nas embalagens de alguns alimentos industrializados a forma com a indústria vem tentando imprimir valores que tentam transmitir a idéia da origem natural e rural de seus produtos. Palavras-chave: embalagens, alimentação industrializada, percepção de riscos, produtos da terra, indústria alimentar. 1. INTRODUÇÃO Trabalhos originários da sócio-antropologia da alimentação – e em particular os estudos de Fischler (1995) – têm destacado a presença de uma ansiedade urbana contemporânea em relação à alimentação. Tal entendimento encontra respaldo em estudos recentes que – seja a partir da sociologia do consumo, seja inspirados na sociologia econômica ou, ainda, em trabalhos que, a partir da sociologia rural, têm se dedicado à temática do desenvolvimento rural – vêm destacando, como consequente de sucessivas crises alimentares, a queda de confiança dos consumidores nos processos de produção de alimentos padronizados pela indústria alimentar, bem como uma correspondente crescente demanda por alimentos de outro tipo, cuja procedência e/ou processo de produção seriam conhecidos do consumidor, alimentos produzidos localmente, a partir de procedimentos 1 Trabalho aprovado ao X Congresso Espanhol de Sociologia, Pamplona, 2010. 2 O autor é Bacharel em Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial e Mestre em Desenvolvimento Rural. É estudante do curso de Especialização em Agricultura Familiar Camponesa e Educação do Campo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Brasil. E-mail: [email protected] avaliados como ambiental, social e economicamente sustentáveis, enraizados em um território e em uma cultura, alimentos que denominaremos de produtos da terra3. O ato humano de alimentar-se envolve não apenas a função nutritiva, mas também questões de fundo cultural, os alimentos “refletem uma forma de conceber o mundo e servem, por exemplo, para coesionar um grupo e diferenciar-se dos demais” (CANTARERO, 2002, p. 153). Dessa forma, os alimentos são detentores de funções sociais, pois eles identificam e diferenciam e, portanto, marcam e delimitam fronteiras entre diferentes grupos sociais. Apesar desta estreita relação entre alimentação e cultura, pudemos observar no último século, que os progressos obtidos nos níveis de produção, conservação, acondicionamento e transporte de alimentos, conduziram, a um movimento de internacionalização e mercantilização da alimentação. Alimentos como carnes, queijos, peixes, conservas, enlatados e bebidas atravessam fronteiras continentais e são distribuídos por grandes empresas agroalimentares. Nunca na história da humanidade os alimentos estiveram tão deslocados “de seu enraizamento geográfico e das dificuldades climáticas que lhe eram tradicionalmente associadas” (POULAIN, 2004, p. 29). Se no passado os alimentos eram quase todos produzidos e elaborados pelas próprias pessoas, em pequenas unidades de produção agrícola, na atualidade grande parte dessa responsabilidade passou para as mãos da indústria, que desloca o alimento do seu universo de produção e o transforma em mercadoria. Os avanços técnicos e científicos foram decisivos para instaurar um sistema de mercantilização da alimentação. Mas ao mesmo tempo, o ser humano dotado da qualidade de onívoro depara-se com novos medos relacionados a alimentação moderna. Essas desconfianças em relação a alimentação moderna suscitam também o resgate de sabores e valores atribuídos aos alimentos percebidos como naturais, locais, artesanais. As mensagens culturais e a forma como a indústria se coloca frente a esses novos valores é o que norteia a análise desse trabalho. Tendo como pano de fundo as representações do natural e do rural, este trabalho se propõe a analisar a partir das 3 O termo produtos da terra tem sido empregado a partir da Agenda de Pesquisa “Do consumo à produção: qualidade e confiança nos produtos da terra”, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura, constituído no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS), e do qual o autor deste artigo faz parte. embalagens de alimentos industrializados a forma com a indústria vem tentando imprimir aos seus produtos valores de um produto natural e rural. Foram analisadas vinte embalagens de produtos industrializados, comercializados em grandes redes de supermercado da cidade de Porto Alegre, Brasil. Os produtos analisados referem-se as embalagens de leite longa vida, sucos e de extrato e molho de tomate. 2. A SOCIEDADE DO RISCO Se há estudos que comprovem um medo relacionado a alimentação moderna cabe aqui analisarmos aquilo que o autor Ulrick Beck definiu como a sociedade do risco, ou seja, o medo na contemporaneidade. Para Beck (2006), o termo “risco” possui dois sentidos bem diferentes. O termo aplica-se a um mundo dirigido pelas leis da probabilidade, sendo, portanto, um risco mensurável e calculável. A segunda concepção do termo, segundo Beck, engloba os riscos não quantificáveis. Essas incertezas que Beck comumente chama de “incertezas fabricadas”. Essas verdadeiras incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas, estão criando uma nova paisagem de risco global...Risco é conceito moderno. Pressupõe decisões que tentam fazer das consequências imprevisíveis das decisões civilizacionais decisões previsíveis e controláveis (BECK, 2006, p. 5). Esses novos riscos seriam resultados da modernidade, mas que na prática não representa um maior número de riscos do que antes, mas apenas revelam que os riscos modernos atingem toda a sociedade humana. De Los Rios (2009, p 51) nos revela, por exemplo, que “a sociedade ‘moderna’ não tem como escapar desses novos riscos, como aqueles relacionados à contaminação ambiental e ao consumo de produtos com altos componentes químicos”. Desta forma, Beck considera que com o surgimento da “modernidade e suas implicações, como as mudanças sociais e tecnológicas, são responsáveis pela existência dos riscos modernos, os quais são, na sua maioria, de característica global” (DE LOS RIOS, 2009, p 20). Beck (2006), também nos alerta que um risco por si só não pode ser considerado, pois ele está envolvido por critérios de avaliação e influenciado por conjecturas culturais. Isso significa dizer que os riscos são uma construção social, e são avaliados a partir de critérios culturais que definem quais os riscos mais relevantes para cada sociedade. Segundo Beck (2006, p. 9), é a partir desse fundo cultural que os especialistas percebem muitas vezes as populações como irracionais ou histéricas. Quando a Grã-Bretanha, visivelmente invadida pela opressão alemã, demonizou as suas maravilhas geneticamente modificadas como "comida Frankenstein". É uma frase de efeito e serviu como uma arma definitiva na guerra de palavras contra alimentos geneticamente modificados. Ela contém, contudo, a importante idéia de que mesmo riscos "objetivos" contêm julgamentos implícitos sobre o que é certo. Especialistas técnicos perderam seu monopólio sobre a racionalidade no sentido original: eles não ditam mais as proporções pelas quais julgamentos são medidos. Indicações de risco são baseadas em padrões culturais, expressadas tecnicamente, sobre o que ainda é e o que não é mais aceitável. Quando cientistas dizem que um evento tem uma baixa probabilidade de acontecer, e por esta razão tem um risco negligenciável, eles estão necessariamente codificando seus julgamentos sobre compensações relativas. Então é errado considerar julgamentos sociais e culturais como coisas que apenas podem distorcer a percepção de risco. Sem julgamentos sociais e culturais, não existem riscos. Estes julgamentos constituem o risco mesmo se, frequentemente, de maneiras ocultas. Para Beck (2006), estamos vivendo atualmente a segunda modernidade, ou uma sociedade do risco global onde a ciência tem um papel ambivalente. Para o autor, nesse atual processo de modernização a ciência é a responsável pela solução de muitos problemas, mas por outro lado, a ciência também é uma fonte de problemas. Corroborando para isso citamos como exemplo o estudo de Douglas e Wildavsky (1982) que mostram que nos Estados Unidos – país de avançado nível científico e tecnológico - no momento em que as condições de vida e a expectativa de vida estão melhores, é também o momento que ocorreu uma ampliação do alarde sobre riscos. Trabalhos de Douglas e Wildasvsky (1982) e Douglas (1996) nos dizem que os riscos não são necessariamente surgidos da modernização e de abrangência global. Para estes autores os riscos são definidos e construídos em função do nível educativo e cultural de cada sociedade. “Este viés cultural faz parte da organização social. A tomada de riscos e a aversão aos riscos, confianças e medos mútuos, fazem parte do diálogo sobre o que é melhor para aperfeiçoar as relações sociais” (DOUGLAS; WILDASVSKY, 1982, p. 8). Menasche (2003, p. 110-111), também aponta que a teoria cultural dos riscos, se encaminha para diminuir a lacuna entre o conhecimento perito e conhecimento leigo, e por outro lado apontando “a análise cultural como caminho para a compreensão das percepções de risco – construídas a partir de critérios sociais e culturais – de diferentes sociedades e diferentes grupos em sociedades complexas”. Trazendo o debate da sociedade do risco e da teoria cultura dos riscos ao nível que pretendo discorrer neste trabalho, vamos observar que fica cada vez mais evidente a preocupação das sociedades humanas com os riscos associados a alimentação moderna. Alguns dos alimentos mais consumidos estão envolvidos por um sentimento de desconfiança na atualidade (FOUILLÉ, 2005). Não por acaso a mídia vem tratando com grande destaque nas últimas décadas as epidemias relacionadas aos rebanhos de diferentes regiões do mundo e a contaminação de alimentos. Um dos casos mais emblemáticos foi o caso da vaca louca na Europa. Desde de 1985 especialistas já relatavam a morte de bovinos afetados por uma doença desconhecida, que atingia o sistema nervoso dos animais. Pesquisadores concluíram que a doença estava associada a mudanças metabólicas que ocorreram no sistema nervoso de animais que consumiram ração produzida a partir de ossos e carne dos corpos de outros animais. A descoberta e a constatação de vários casos de contaminação humana foi o estopim para a crise. O caso serviu de alerta e levou milhões de consumidores a abandonarem o consumo de carne bovina, aumentando a demanda por carnes naturais e orgânicas. No Brasil, em 2007, cooperativas que operavam no processamento de leite foram denunciadas por adicionar soda cáustica e água oxigenada no leite com a finalidade de aumentar o rendimento e volume do leite. Outro escândalo parecido de contaminação alimentar ocorreu em 2008 na China, onde um composto químico industrial foi adicionado ao leite com objetivo de substituir a proteína do leite pela melanina, o que acarretaria em menores custos para a indústria de laticínios. No entanto, os efeitos da alteração do leite resultaram na morte de vários bebês e deixou milhares de pessoas doentes. Ainda, outras epidemias, como a gripe viária, que afetaram o consumo de frangos também foram alvo de preocupação da OMS e da comunidade internacional. Neste sentido, com base em dados estatísticos do Eurobarómetro (1998), Millán (2002), já afirmava que há uma demanda social por segurança alimentar que insiste na presença de controles e na ausência de elementos químicos. Para Millán (2002, p. 282), “poderia se dizer que trata-se de uma alimentação por defeito, em coerência com a chamada sociedade do risco que não trata de alcançar meta positivas (busca de benefícios), senão metas negativas (evitação de males)”. Desta forma, podemos perceber que os riscos, anseios e medos relacionados a alimentação humana atual estão diretamente relacionadas a uma sociedade do risco, onde os modernos processos de produção dos alimentos industrializados levaram a indústria a deter grande parte do conhecimento e controle sobre os processos de produção e elaboração dos alimentos. 3. A MERCANTILIZAÇÃO DA ALIMENTAÇÃO Durante o século XX, o homem pôde observar uma série de progressos técnicos e científicos que revolucionaram a forma das pessoas se relacionarem, internet, telefone celular, aviões supersônicos, trem bala. Esses progressos fizeram com que o tempo e a distância entre os países diminuíssem, permitindo a troca de informações e de mercadorias em tempo recorde. A produção alimentar, subvencionada em grande parte pelo avanço técnico e científico também não ficou alheia a todo esse processo de globalização e de internacionalização dos mercados mundiais. Após a Segunda Guerra Mundial, no setor de produção primária de alimentos, tivemos a difusão de uma série de novas tecnologias que tinham como objetivo promover a modernização agrícola e aumentar a produção alimentar. A aplicação do chamado “pacote tecnológico”, teve como principal objetivo marcar “uma maior homogeneização do processo de produção agrícola em torno de um conjunto compartilhado de práticas agronômicas e de insumos industriais genéricos” (GOODMAN; SORJ et al, 1990, p. 34). A utilização de insumos industriais mais eficientes acabou resultando numa diminuição da necessidade de mão-de-obra no meio rural, acarretando em um intenso processo de êxodo rural em vários países do mundo. Mas a questão que se põe nesse momento é entender como o processo de modernização da agricultura influenciou nas mudanças dos padrões alimentares de consumo da população. Tomando como exemplo o caso brasileiro, veremos que até meados da década de 1960 o Brasil ainda era um país essencialmente constituído por uma população rural que tinha na produção de autoconsumo um dos elementos centrais da sua dieta alimentar. A partir da década de 1970, e nas décadas posteriores assistimos o crescimento vertiginoso das taxas de urbanização e subsequentemente uma redução drástica, em números relativos, da população rural. Em pouco mais de três décadas o Brasil passou de uma sociedade rural para se constituir em uma sociedade urbana industrializada. Esse processo de rápida urbanização levou também a profundas mudanças nos padrões de consumo da sociedade. Se no campo se produziam quase todos os alimentos que eram necessários para o consumo doméstico, nas cidades os alimentos teriam que ser comprados e adquiridos em estabelecimentos comerciais. Como nos mostra Schmitz (2005), no período anterior a modernização da agricultura a base da alimentação era obtida na própria propriedade e o consumo de produtos vindos de fora da propriedade era pequena, os agricultores compravam apenas o que não era produzido na propriedade. Em trabalho desenvolvido em uma pequena comunidade de descendentes de etnia alemã, localizada no Sul do Brasil, Schmitz (2005, p. 41) nos mostra que, desde o início da colonização, em Fazenda Lohmann, assim como na região, se plantava arroz, trigo, batatinha (batata inglesa), feijão e as mesmas verduras que existem hoje. Era comum o consórcio de culturas como aipim com milho, arroz ou feijão. As produções eram destinadas principalmente para o consumo da família. Já em outro estudo feito entre lavradores de uma pequena cidade do centro-oeste brasileiro, Brandão mostrava que já na década de 1970 o trabalhador rural se reconhecia empurrado para cidade quando não conseguia “mais prover a família de alimentos no período entre duas safras, sendo então obrigado a comprar a comida que lhe sobrava no passado” (1971, p. 83). Foi através dos avanços técnicos e científicos, ocorridos nos processos de produção, conservação, acondicionamento e transporte de alimentos que foi possível deslocar milhões de pessoas do campo para as cidades e instaurar um modelo de internacionalização e mercantilização da alimentação. Num passado não muito longínquo, como mostram no caso brasileiro os estudos de Brandão e Schmitz, a grande maioria da população vivia no campo e os alimentos eram produzidos nas propriedades. Os processos de produção e transformação dos alimentos, em sua totalidade, eram de conhecimento das pessoas. Os novos processos relacionados a alimentação moderna deslocaram esse conhecimento para a indústria e transformaram o consumidor num alienado. Jamais o consumidor esteve tão distante das etapas de produção e transformação dos alimentos. No último século vimos o crescimento de uma enorme cadeia produtiva por onde circulam os alimentos, desde a sua produção, transformação, até a comercialização em grandes redes de supermercados espalhados pelo mundo inteiro. Segundo Poulain (2004, p. 52), a industrialização da alimentação desliga “o alimento de seu universo de produção, coloca-o num estado de mercadoria e destrói parcialmente seu enraizamento natural e suas funções sociais”. Como apontado por Fischler (apud Poulain, 2004, p. 103), o ser humano dotado da qualidade de onívoro depara-se com uma grande diversidade de alimentos na sua dieta alimentar, mas se na sociologia da alimentação consideramos o ato da incorporação alimentar inerente à construção de identidades sociais então, “se não sabemos o que comemos, não sabemos o que iremos nos tornar, nem tampouco o que somos”. A insegurança provocada pela perda de controle sobre os processos de produção dos alimentos suscitam novas percepções de riscos em relação a alimentação moderna. Mas, Álvarez e Pinotti (apud Menasche, 2003, p. 192), nos mostram que essa insegurança relacionada a alimentação promove novos processos na relação entre os seres humanos e a sua alimentação, pois a insipidez dos alimentos oferecidos pela indústria alimentícia e a sensação de insegurança provocada pela perda de controle sobre a cadeia de operações de produção e elaboração da comida, provocam o resgate de variedades vegetais, animais locais ou regionais e produtos artesanais... Em estudo realizado sobre as representações sociais dos alimentos transgênicos entre moradores de Porto Alegre, Menasche (2003, p. 192) apreendeu de seus entrevistados que “os alimentos industrializados seriam percebidos como excessivamente manuseados, e, ainda, provenientes de lugares distantes – em alguns depoimentos seria manifestada a preferência por produtos locais, gaúchos -, de origem conhecida”. Tendo em vista as ansiedades e os medos relacionados ao elemento desconhecido na alimentação moderna, o natural e o rural são valorizados em oposição ao moderno e industrial. Assim, temos que a valorização do conhecimento popular, e dos produtos considerados tradicionais “opõe-se às angústias ligadas ao desenvolvimento da industrialização alimentar e os riscos de diluição das identidades locais e nacionais na mundialização” (Poulain, 2004, p. 40). Menasche (2003, p. 196) com base em Eizner, já apontava que “talvez possamos identificar, nessa valorização do natural e do rural, mitos do natural e do artesanal, algo como a busca do consumo de imagens dos sabores perdidos”. 4. APROPRIAÇÃO DAS MENSAGENS CULTURAIS Houve uma época em que o pomar perto de nossas casas nos proporcionava prazer e saúde através de frutas saborosas e nutritivas. Os sucos de fruta Pomar se propõem a trazer este prazer e esta saúde para dentro de sua casa através de rigoroso controle de qualidade, de embalagens seguras e práticas, e através de um ponto-de-venda o mais próximo de você, como se fosse um pomar no seu quintal. Como nos mostra, este pequeno texto extraído de uma embalagem de suco de frutas, existe uma preocupação por parte da indústria do setor de alimentos de transmitir mensagens de segurança e confiabilidade ao consumidor. A mensagem deixa bem claro ao consumidor que a época em que as pessoas colhiam as suas próprias frutas não existe mais, e que, portanto, estamos vivendo um período em que a indústria alimentar é a responsável por trazer para dentro de nossas casas as frutas, como se fosse um pomar no nosso quintal. Se como apontado anteriormente, existe uma busca do consumo de imagens e sabores perdidos, e se realmente existe uma valorização do natural e do rural em contraposição aos alimentos industrializados, a questão que se põe é a seguinte: Como a indústria responsável pela produção industrializada de alimentos se põe frente a estas mensagens culturais relacionadas a alimentação? Analisando as formas, as ilustrações, as informações e as mensagens transmitidas através das embalagens de alguns alimentos industrializados, comercializados em algumas das maiores redes de supermercados da cidade de Porto Alegre, podemos perceber a forma como a indústria vem se apropriando dessas mensagens culturais para comercializar seus produtos. Em primeira análise é possível apontar que parecem existir duas formas bem distintas através do qual se expressam as mensagens do natural e do rural nas embalagens de produtos alimentícios industrializados. O alimento industrializado quanto mais manipulado, processado e, desconfigurado da sua forma original, maior será o seu apelo as representações do natural. Cito como exemplo, as embalagens de extrato e de molho de tomate. No passado, os molhos e extratos eram feitos a partir de tomates colhidos na própria propriedade, era um processo caseiro e de conhecimento dos ingredientes e componentes necessários a sua fabricação. Na atualidade, o consumidor adquire esses produtos em embalagens hermeticamente fechadas, com informações confusas sobre ingredientes e com tabelas nutricionais decifráveis apenas por especialistas da área da nutrição ou da saúde. Mas é possível perceber uma questão em comum com todas as marcas de extrato e molho de tomate pesquisadas. Vamos perceber que todas as embalagens procuram manter uma associação ao elemento central do qual este produto é fabricado, ou seja, o tomate. Desta forma as embalagens apresentam, sem exceções, a cor vermelha como predominante nas suas embalagens e tendo de forma generalizada a fruta tomate como elemento central da sua valorização. Como nos relata o depoimento de um morador de Porto Alegre, colhido por Menasche (2003, p. 191), os molhos industrializados são percebidos como de sabor estranho e alterado. O molho, eu gosto de fazer, que daí faz do gosto. O molho pronto, geralmente tem uns gostos meio estranhos, eu não gosto. Gosto de pegar o tomate, cortar, fazer. Não gosto muito de enlatados. Não sei, acho que o gosto não é tão bom. Acho que às vezes o gosto não é bom. Não é que tem gosto ruim, mas a gente nota que não é um gosto natural, altera o gosto do produto, isso eu não gosto. Gosto de sentir o gosto natural dos alimentos. Menasche (2003, p. 191), aponta que, assim, como este depoimento, vários outros informantes mostraram que “a valorização do natural seria construída como reflexo da crítica ao artificial, qualitativo atribuído aos alimentos industrializados”. Millán (2002) com base em pesquisas anteriores, já afirmava que há uma maior confiança por parte dos consumidores em alimentos situados mais próximos do universo da natureza e menos manipulados por processos industriais. Este, logicamente não é o caso dos produtos pesquisados, pois estes passam por um intenso processo de industrialização, mas ressalto a mensagem que está intrinsecamente ligada a embalagem do produto, ou seja, situando para o consumidor a origem natural do produto. Cabe ressaltar que, das oito embalagens de molho ou extrato analisadas, com exceção de apenas uma, todas as outras possuíam figuras ilustrativas de tomates na sua embalagem. Figura 1: Imagem de uma mulher colhendo tomates Fonte: Própria, 2010. Como vimos então, o apelo ao natural nas embalagens é representado mais frequentemente por aqueles alimentos que durante as etapas de industrialização perdem a sua forma e característica original. Já, as representações do rural nas embalagens de produtos alimentícios industrializados, são verificadas majoritariamente entre aqueles alimentos que mais se aproximam da sua forma natural. Como símbolo das representações do rural nas embalagens de produtos alimentícios, trataremos como exemplo, o caso do leite longa vida. Diferentemente do tomate -, que, transformado em extrato ou molho, durante as etapas de industrialização passa da sua forma original, fruta de cor vermelha e de formato redondo, para uma pasta avermelha -, o leite mantém a mesma forma física. O leite que saí do teto da vaca durante o processo de ordenha, possui a mesma forma física e cor que o leite longa-vida vendido em embalagens tetra pak nas maiores redes de supermercados de Porto Alegre. O que realmente chama atenção no aspecto visual das embalagens de leite é a apresentação de uma ruralidade característica. Se nas embalagens de extrato e molho de tomate o elemento central de sua valorização é o tomate, nas embalagens de leite essa valorização é expressada a partir de imagens de um rural idealizado. Assim, vamos observar que de forma geral as embalagens apresentam imagens ilustrativas de vacas e como pano de fundo uma típica imagem de um rural idealizado. Em algumas embalagens os animais aparecem de forma estereotipada através de figuras animadas ou, a partir de imagens de animais reais. Vemos também que nesse caso há novamente uma clara referência a origem do produto, associando o leite ao animal que lhe dá origem. Mas no caso das embalagens de leite, diferentemente das embalagens de extrato e molho de tomate, verificamos um novo elemento presente: o rural. Muitas das embalagens apresentam as imagens dos animais associados a uma ruralidade, assim, vamos poder observar que em muitas embalagens as vacas aparecem pastando em um lindo gramado verde, ou em uma pequena fazenda, ou ainda, como podemos observar na figura a baixo, uma das marcas analisadas apresenta uma vaca sendo ordenhada de forma manual por uma agricultura que usa sobre a sua cabeça um pequeno sombreiro. Figura 2: Embalagem de leite longa vida Fonte: Própria, 2010. Interessante é chamar a atenção para aquilo que Menasche (2003, p. 188) apreendeu de consumidores de Porto Alegre. Vejamos o relato de uma informante da autora quando lhe foi perguntado se comprava leite longa-vida: O saquinho, que eu acho que é mais saudável, da vaquinha. Esses de saquinho. Eu acho que esses outros, de caixinha, têm mais conservantes. Sabe porque não entra caixinha em casa? Não é por ser mais caro. É porque eu sinto um gosto de leite de soja, que eu não sei, eu acho que eles misturam. E porque a minha filha, ela tinha uns quatro, cinco meses, quando ela começou, eu amamentava... Uma época que ia no Big [grande rede de supermercado de Porto Alegre], eu comprava duas, três caixas. E daí a minha filha começou a ter diarréia. E o outro menino começou a não se adaptar, também, com o de caixinha, e eu nunca gostei. E ele azedava assim mais rápido, também. O da caixinha. Quando eu fervia assim, eu sentia um gosto diferente, um gosto amargo, não gostei. Aí eu cheguei à conclusão... na caixinha, tem aqueles negócios assim de “H”, “V”, não sei o quê, aqueles conservantes, assim, eu nem sei o que é isso aí. E eu procuro sempre pelo mais saudável, né, consumir o que eu acho mais seguro assim prá saúde. Eu já nem consumo, já nem entra dentro de casa, o leite de caixinha. Eu prefiro o outro, eu acho que é um leite mais fresco, mais saudável, não vai tanto conservante. Vemos neste relato de uma moradora de Porto Alegre uma percepção de risco associado ao leite em caixinha, mas chamo atenção a primeira frase onde a informante percebe o leite em saquinho como sendo da vaquinha. Neste caso específico, vemos uma percepção positiva em relação ao leite em saquinho, provindo de uma origem conhecida e de um alimento que é percebido pela consumidora como mais saudável e fresco, e, portanto, mais próximo do universo da natureza. Outros informantes de Menasche (2003) também mostraram ter a percepção de que o leite em saquinho seria mais saudável e de melhor qualidade. Estudos como de Contreras e Gracia (2004) também já apontaram que existe uma estreita relação entre a alimentação e as representações de saúde e beleza corporal em sociedades industriais contemporâneas. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Se consideramos, a partir da sócio-antropologia da alimentação, que o princípio da incorporação é inerente à constituição de identidades sociais, então podemos intuir que se nós somos o que comemos, e se somos consumidores de nutrientes da mesma forma que somos consumidores de símbolos e imagens, fica evidente que os alimentos marcam o nosso pertencimento e identidade (Trémolières apud Poulain, 2004). Desta forma, podemos perceber que a perda do controle sobre os processos de produção e transformação dos alimentos ocorridos no último século suscitam nas sociedades contemporâneas novas percepções de risco em relação a alimentação. É dentro desse contexto de percepções de risco alimentar que podemos perceber o resgate e revalorização dos chamados produtos da terra, ou seja, alimentos cujos processos de produção e a sua origem são de conhecimento do consumidor, alimentos produzidos localmente, a partir de procedimentos avaliados como ambiental, social e economicamente sustentáveis, enraizados em um território e uma cultura. Vemos deste modo uma crescente desconfiança em relação a alimentação industrializada, resultado em grande parte da desnaturalização dos alimentos e de sua descontextualização do universo de produção, gerando a perda de suas funções sociais. Contudo, se existe presente na sociedade um anseio urbano contemporâneo em relação a alimentação industrialização, e por outro lado uma revalorização dos produtos da terra podemos perceber também que a indústria alimentar não fica alheia as essas dinâmicas. Desta forma, este trabalho pretendeu evidenciar como a indústria alimentar vem se apropriando dessas mensagens culturais relacionados a alimentação, tentando imprimir aos consumidores uma imagem da origem natural e rural dos produzidos industrializados pela grande indústria alimentar. Ao analisarmos as mensagens e figuras presentes nas embalagens de alguns produtos industrializados em grandes redes de supermercado da cidade de Porto Alegre, podemos perceber como a indústria alimentar vem se posicionando frente a seus novos hábitos de consumo, onde há uma crescente demanda por produtos de origem natural e de origem conhecida. O uso de referências e a idealização de um rural ou de um natural encontram-se presentes em todas as embalagens dos produtos analisados, evidenciando uma tentativa da indústria alimentar de diminuir a desconfiança do consumidor em relação a alimentação industrializada e aproximando o da origem rural e natural do produto. REFERÊNCIAS BECK, Ulrich. Incertezas fabricadas. IHU em revista, São Leopoldo, p. 5 - 12, maio 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher e comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Graal, 1981. CANTARERO, Luis. Preferenciais alimentarias y valores de los neorrurales: um estudio en Aineto, Ibort y Artosilla en el Serrablo Oscense. In: GRACIA, Mabel Arnaiz (Org.). Somos lo que comemos: estudios de alimentación y cultura en España. Barcelona: Ariel, 2002. CAPOZOLI, Ulisses. Forum Mundial – Forum Social: ciência e globalização. Disponível em: <http:// observatorio. ultimosegundo.ig.com.br / ofjor / ofc310120011.htm >. Acesso em: 10 jul 2007. CONTRERAS H., Jesús; GRACIA, A., Mabel. Cuerpo, dieta y cultura. In: Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas. Barcelona, Ariel, 2004. RIOS CARDONA, Juan Camilo de los. Percepções e formas de adaptação a riscos socioambientais na Região do Páramo Colombiano. Porto Alegre: UFRGS, 2009. 151 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural. Faculdade de Ciências Econômicas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. DOUGLAS, Mary e WILDAVSKY, Aaron. Risk and Culture: An Essay on the Selection of Technological and Environmental Dangers. Londres: University of California Press, 1982. DOUGLAS, Mary. La aceptabilidad del riesgo según las ciencias sociales. Barcelona: Editorial Paidós, 1996. FISCHLER, Claude. El (h) omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995. FOUILLÉ, David. Desenvolvendo o gosto por alimentos saudáveis. In: SLOAN, Doanld (Org.). Gastronomia, restaurantes e comportamento do consumidor. Barueri (SP): Manole, 2005. GOODMAN, David; SORJ, Bernardo; WILKINSON, John. Da lavoura às biotecnologias. Rio de Janeiro: Campus, 1990. MENASCHE, Renata. Os grãos da discórdia e o risco à mesa: um estudo antropológico das representações sociais sobre cultivos e alimentos transgênicos no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ufrgs, 2003. 287f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. MILLÁN, Amado. Malo para comer, bueno para pensar: crise en la cadena socioalimentar. In: GRACIA, Mabel Arnaiz (Org.). Somos lo que comemos: estudios de alimentación y cultura en España. Barcelona: Ariel, 2002. POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: EdUFSC, 2004. SCHMITZ, Leila Claudete. Agricultores de origem alemã, trabalho e vida: um estudo das mudanças ocorridas na agricultura e nos costumes na comunidade de Fazenda Lohmann (Roca Sales/RS). Encantado: UERGS, 2005. 70 f. Trabalho de conclusão de curso (Curso de Bacharel em Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial). Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. Unidade Vale do Taquari. Encantado (RS, Brasil): UERGS, 2005.