Contando os últimos peixes Pesca excessiva compromete estoques marinhos por ruptura da cadeia alimentar Por Daniel Pauly e Reg Watson Um exemplo da pesca "descendo a cadeia" A pesca excessiva tem reduzido os estoques principalmente das espécies de grandes predadores a um nível sem precedentes, segundo novos dados. Se não administrarmos estes recursos, ficaremos apenas com uma dieta à base de cozido de águas-vivas e plâncton. George Bank, a faixa de oceano relativamente raso na Nova Escócia, Canadá, costumava fervilhar de peixes. Segundo relatos do século 17, cardumes enormes de bacalhau, salmão, badejo e esturjão freqüentemente rodeavam os barcos. A história hoje é bem diferente. Traineiras arrastando redes do tamanho de campos de futebol literalmente rasparam o fundo do mar, deixando-o limpo e arrancando um ecossistema inteiro - incluindo o substrato de apoio, como as esponjas - junto com a pesca do dia. Bem acima na coluna d'água, grandes e longas redes apreendem os últimos tubarões, peixes-espada e atuns. A quantidade de espécies de interesse comercial capturadas de uma só vez está decaindo, e o tamanho dos peixes apanhados tem diminuído; grande parte deles sai da água sem ter tido tempo para se desenvolver. O fenômeno não se restringe ao Atlântico Norte. Ocorre por todo o globo. Muitas pessoas têm a falsa impressão de que a poluição é responsável pelo declínio das espécies marinhas. Outras acham difícil acreditar que a redução de peixes realmente exista, pois ainda vêem montes de robalos chilenos e filés de atum em mercados locais. Por que a pesca comercial é vista como tendo pouco ou nenhum efeito sobre espécies capturadas? Suspeitamos que essa seja uma antiga e persistente percepção, de uma época em que se pescava em mar hostil para obter sustento, com barcos pequenos e equipamentos simples Nossos estudos demonstram que não podemos mais pensar no mar como um farto provedor, com recursos inexauríveis em suas misteriosas profundezas. Ao longo dos últimos anos, coletamos e analisamos dados sobre a pesca mundial e formamos o primeiro quadro abrangente sobre o estado dos recursos marinhos alimentares. Observamos que alguns países, particularmente a China, têm registrado de modo superdimensionado suas capturas, encobrindo a tendência de queda na pesca mundial. Em geral, os pescadores têm de trabalhar longe da costa e a grandes profundidades, num esforço para manter os números do ano anterior e satisfazer à crescente demanda. Estamos convencidos de que a pesca exagerada e a pesca dos estoques distantes são práticas insustentáveis e ameaçam espécies importantes. Mas ainda não é tarde demais para pôr em prática políticas mundiais de proteção à pesca para as futuras gerações. Um exemplo da pesca "descendo a cadeia" Cadeias alimentares contêm poucos níveis tróficos, quando há pesca excessiva. Depois que grandes peixes predadores como a pescada-polacha são capturados no topo da cadeia alimentar, começa a demanda por espécies menores que ainda não atingiram o tamanho máximo. Ao contrário das pescadas-polachas mais velhas, os peixes mais jovens não são grandes o suficiente para comer o bacalhau, que geralmente consome merlúcio. Esses se alimentam habitualmente de hadoque (esquerda). Já as pequenas pescadas-polachas recorrem a peixes menores, como o arenque, que se alimenta diretamente de crustáceos planctônicos (direita). Portanto a captura de pescadas-polachas maiores reduz a oferta de alimento da cadeia a quatro níveis, em vez de seis, corrompendo ecossistemas. Os níveis tróficos atuais raramente alcançam seis porque os peixes maiores se alimentam de uma variedade de outros peixes. O Direito do Mar Explicar como o mar chegou à situação atual requer um pouco de história. O oceano costumava ser área de livre competição, com ventos soprando as bandeiras de vários países que compe-tiam por peixes a várias milhas de casa. Em 1982, as Nações Unidas adotaram a Convenção do Direito do Mar, segundo a qual os países costeiros podem requisitar zonas econômicas exclusivas, alcançando 200 milhas marítimas em águas abertas. Essas zonas incluem as áreas continentais altamente produtivas de cerca de 200 metros de profundidade onde a maioria dos peixes vive a maior parte de suas vidas. A Convenção acabou com décadas - e em alguns casos até séculos - de brigas pelos territórios de pesca costeira, mas também atribuiu a responsabilidade pelo gerenciamento honesto da pesca marinha aos países costeiros. Infelizmente, não podemos apontar nenhum exemplo de país que tenha aprimorado sua responsabilidade nesse sentido. O governo dos Estados Unidos e o do Canadá têm subsidiado o crescimento da frota doméstica para pesca. O Canadá, por exemplo, construiu uma nova frota costeira para substituir a dos países estrangeiros que foram excluídas pela convenção, trocando eficientemente barcos estrangeiros por frotas ainda maiores - com reservatórios modernos - que pescam o ano todo nos mesmos suprimentos que as frotas domésticas tinham como alvo. Num esforço para assegurar-se de que não haverá oportunidade para frotas estrangeiras pescarem lotes excedentes - como previsto pela Convenção -, esses países começaram a pescar mais intensamente do que fariam em outra condição. Algumas nações, como as da África ocidental, têm sido pressionadas a aceitar acordos autorizando frotas estrangeiras a pescar em suas águas, como sancionado pela Convenção. O resultado final tem sido uma pesca ainda maior, pois frotas estrangeiras não têm incentivos para preservar os recursos marinhos locais a longo prazo - e são, de fato, estimuladas a obter tanto peixe quanto puderem. A expansão possibilitada pela Convenção e os avanços tecnológicos nos equipamentos de pesca comercial (como os localizadores acústicos de peixes) impulsionaram temporariamente os pescadores do mundo todo. Mas, no final dos anos 80, a tendência de aumento começou a ser revertida, mesmo com os números superdimensionados da China. Para atingir o politicamente direcionado "aumento de produtividade", o país informou o dobro da quantia de peixe que realmente estava capturando. Em 2001, apresentamos um modelo estatístico que nos permitiu examinar onde a captura diferia significativamente daquelas coletadas em águas produtivas semelhantes, na mesma profundidade e latitude em outras partes do mundo. Os números das águas chinesas - cerca de 1% do oceano - foram muito maiores que os previstos, contribuindo para mais de 40% dos desvios do modelo estatístico. Quando reajustamos os dados da pesca mundial para corrigir as informações falsas da China, concluímos que o desembarque de peixes do mundo está diminuindo, desde o final dos anos 80, em cerca de 700 mil toneladas por ano. Os dados da China distorceram as estatísticas globais de pesca significativamente, devido ao enorme tamanho do país e ao grau de manipulação. Outros países também fornecem estatísticas de pesca imprecisas - poucos deles superestimam suas capturas; a maio-ria faz o contrário - mas os números tendem a compensar-se. O excesso de pesca causou um importante declínio na complexidade das cadeias alimentares em mais de um nível trófico entre 1950 e 2000. O mar aberto normalmente tem poucos peixes. Os países reúnem estatísticas de pesca de vários modos, incluindo levantamentos, censos e diários de bordo. Em alguns deles, como a China, esses dados são transmitidos para escritórios regionais e de lá atravessam a hierarquia governamental até chegar aos escritórios nacionais. A cada etapa, as estatísticas podem ser manipuladas para atingir os objetivos de produção. Outros países têm sistemas de comparar os números dos desembarques de peixes com os dados de importação/exportação e consumo local. A evidência mais clara de que a pesca está contribuindo para a destruição do ecossistema marinho é o fenômeno que um de nós (Pauly) chamou de "pescar descendo a cadeia alimentar". O processo descreve o que ocorre quando os pescadores capturam um grande peixe predador no topo da cadeia alimentar, como o atum ou o peixe-espada, até que se torne raro, e então começam a almejar espécies menores que normalmente seriam comidas por peixes maiores (ver box da pág. oposta). Descendo a Cadeia Alimentar A posição que um determinado animal ocupa na cadeia alimentar é determinada pelo seu tamanho, pela anatomia de suas partes bucais e por preferências alimentares. Os vários estratos dessa cadeia, os chamados níveis tróficos, são classificados de acordo com os níveis que os distanciam dos produtores primários na base da cadeia, geralmente algas do fitoplâncton. Esses organismos microscópicos são chamados de nível trófico (NT) 1. O fitoplâncton é consumido principalmente pelo pequeno zooplâncton - em sua maior parte pequenos crustáceos de 0,5 a 2 mm - que forma o NT 2. Essa hierarquia por tamanho contrasta totalmente com a cadeia alimentar terrestre, onde herbívoros são tão grandes como os alces ou elefantes, por exemplo. O NT3 consiste em peixes pequenos, entre 20 a 50 cm de comprimento, como sardinhas, arenques e anchovas. Esses pequenos peixes pelágicos vivem em águas abertas e consomem uma variável mistura de fitoplâncton e zooplâncton (herbívoro e carnívoro). São capturados em enormes quantidades pela indústria de pesca: 41 milhões de toneladas foram desembarcadas em 2000, número que corresponde a 49% da captura de peixes marinhos registrada no mundo inteiro. A maioria é destinada ao consumo humano, como sardinhas enlatadas, ou reduzida a ração de peixe e óleo para servir de alimento a galinhas, porcos e criações de salmão ou outros peixes carnívoros. Os peixes típicos de mesa - o bacalhau, caranho, atum - são predadores de pequenos pelágicos ou outros peixes pequenos e invertebrados; eles tendem a ter um NT entre 3,5 e 4,5. Seus NTs não são números inteiros porque eles podem consumir presas em diversos níveis. PEIXES POPULARES ? incluindo muitos dos filés e postas que podem ser encontrados empilhados nos mercados (esquerda) foram dizimados pela pesca excessiva. Os pescadores devem utilizar uma tecnologia cada vez mais complexa e operar longe da costa em profundidades maiores para conseguir esses tipo de peixe. A National Audubon Society e outras organizações emitiram cartões (abaixo) para que os consumidores evitem espécies em perigo (vermelho) ou aquelas cujo status causa preocupação (amarelo). O download do cartão pode ser feito em www.audubon.org/campaign/lo/seafood/cards.html A crescente popularidade desses peixes nos Estados Unidos como alimentos nutritivos tem contribuído para o declínio de seus estoques naturais. Sugerimos que a saúde e subsistência da pesca sejam alcançadas através do monitoramento das tendências dos NTs médios. Quando os números começam a cair, peixes cada vez menores estão sendo capturados e os estoques de peixes predadores maiores estão começando a entrar em colapso. Em 1998, apresentamos a primeira evidência de que a pesca "descendo a cadeia alimentar" já estava ocorrendo, particularmente no Atlântico Norte, na costa da Patagônia e Antártida, no Mar da Arábia e ao redor de áreas da África e Austrália. Essas áreas passaram por declínio de 1 ou mais no NT de 1950 a 2000, segundo nossos cálculos. Na costa oeste de Newfoundland, Canadá, por exemplo, a média de NT foi de um máximo de 3,65, em 1957, para 2,6, em 2000. O tamanho médio dos peixes dessas regiões decaiu em cerca de um metro durante o período. Nossas conclusões estão baseadas na análise de dados mundiais de pesca marinha criada e mantida pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), que recebe dados fornecidos pelos países-membros. Devido aos problemas que esse conjunto de dados apresenta - como a superestimação e o agrupamento de várias espécies na categoria "mista" -, tivemos de incorporar informações sobre a distribuição global dos peixes segundo a "FishBase", a enciclopédia on line de peixes criada por Pauly, assim como dados sobre os padrões de pesca e o direito de acesso dos países que informam suas capturas.Pesquisas de alguns outros grupos - notoriamente aqueles coordenados por Jeremy B. C. Jackson do Scripps Institution of Oceanography, em San Diego, e Ramson A. Myers, da Dalhousie University em Halifax - sugerem que nossos resultados, terríveis como parecem, de fato subestimam a gravidade do impacto da pesca marinha sobre os recursos subjacentes. Jackson e colegas mostraram que o declínio massivo das populações de mamíferos marinhos, tartarugas, pássaros e grandes peixes, ocorreram em todas as linhas costeiras onde as pessoas vivem desde muito antes do período examinados por nós. Myers e seus colaboradores usaram dados de uma ampla escala de pesca mundial para demonstrar que frotas industriais geralmente levam apenas 10 a 15 anos para reduzir, num fator de 10 ou mais, a biomassa de um estoque intocado. Como normalmente leva muito mais tempo para se estabelecer um regime regulatório e iniciar um gerenciamento dos recursos marinhos, é muito provável que os níveis determinados de sustentabilidade estejam baseados em números que já reflitam o declínio da população. O grupo de Myers documentou bem esse processo, particularmente na área de pesca japonesa, que em 1952 se alastrou da pequena área ao redor do Japão - confinada até o final da Guerra da Coréia - através do Pacífico e pelos oceanos Atlântico e Índico. A expansão dizimou as populações de atum do mundo inteiro. Na verdade, Myers e seu colega Boris Worm informaram recentemente que os oceanos no mundo todo perderam 90% dos grandes peixes predadores. Mudando o Futuro O que pode ser feito? Muitos acreditam que as criações de peixes passam aliviar a pressão sobre os estoques naturais, mas isso só poderá acontecer se os peixes criados não forem alimentados com produtos do mar. Mariscos, mexilhões e tilápias - peixes herbívoros - podem ser criados sem alimentos do mar. Quando peixes são alimentados com peixes, como no caso do salmão e de outros carnívoros, a criação piora o problema, transformando pequenos seres pelágicos e peixes que poderiam perfeitamente servir para o consumo humano como arenque, sardinhas, anchovas e cavalas - em ração para peixes. De fato, criações de salmão consomem mais peixe do que produzem: a produção de um quilo de salmão pode exigir até 5 quilos de alimento à base de peixe. Uma opção para resolver as dificuldades que afligem a pesca mundial atualmente é o gerenciamento baseado no ecossistema, buscando manter - ou, se necessário, restabelecer - a estrutura e função dos ecossistemas onde a pesca está inserida. Isso envolveria considerar as demandas alimentares de espécieschave nos ecossistemas (claramente as de mamíferos marinhos), retirando os equipamentos de pesca que destroem o fundo do mar, e implementando reservas marinhas, ou "zonas sem captura", para reduzir os efeitos adversos da pesca. Essas estratégias são compatíveis com as reformas propostas há anos por cientistas e economistas de pesca: reduzir radicalmente a capacidade das frotas de pesca globais; abolir os subsídios governamentais que mantêm frotas não lucrativas no mar; e reforçar as restrições para os equipamentos que prejudicam os hábitats ou que capturam por arrastão espécies posteriormente descartadas depois. Criar zonas sem captura será a chave para preservar a pesca mundial. Alguns refúgios devem ser criados próximos à costa, para proteger as espécies costeiras; outros devem ser grandes e afastados da orla, para preservar os peixes oceânicos. Apesar de esses refúgios já existirem, eles são pequenos e dispersos. Na realidade, a área total de proteção de qualquer forma de pesca constitui apenas 0,01% da superfície do oceano. As reservas agora são vistas pelos pescadores - e até pelos governos - como concessões necessárias em resposta às pressões conservacionistas, mas devem tornar-se ferramentas de gerenciamento para a proteção de espécies exploradas pela pesca exagerada. O maior objetivo deveria ser a conservação de espécies que uma vez foram deixadas por si mesmas em grandes profundidades e longe da costa, antes de os pescadores desenvolverem melhores equipamentos para persegui-las. Esse tipo de pesca é parecido com a mineração de recursos não renováveis, pois os peixes são muito vulneráveis, têm tipicamente vida longa, e baixa produtividade nas grandes e escuras profundezas. Essas medidas possibilitarão que a pesca, pela primeira vez, torne-se sustentável. OS AUTORES DANIEL PAULY e REG WATSON são pesquisadores de pesca no Projeto Sea Around Us em Vancouver. O projeto, iniciado e financiado pelo Pew Charitable Trusts, está situado no Fisheries Center da University of British Columbia e se dedica a estudar o impacto da pesca nos ecossistemas marinhos. Pauly desde cedo concentrou sua carreira na formulação de novos modos de pesquisa de pesca e gerenciamento nos países tropicais em desenvolvimento. Ele desenhou softwares para a avaliação dos estoques naturais de peixes e começou a "FishBase", uma enciclopédia "on line" de peixes do mundo. O interesse de Watson inclui a modelagem de pesca, visualização de dados e mapeamento computadorizado. Sua pesquisa atual envolve o mapeamento dos efeitos da pesca, a modelagem de técnicas de censo visual submarino e simulações por computador para otimizar a pesca.