Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 Marlene Silva Sardinha Gurpilhares (Lorena) Carlos Alberto de Oliveira (Mogi das Cruzes) As anáforas associativas actanciais: um estudo com os verbos de movimento 1 - Introdução Este trabalho objetiva examinar as anáforas associativas actanciais nos verbos de movimento. As anáforas, consideradas como mecanismos de relação entre um elemento anafórico e um antecedente que fornece condições para a saturação do primeiro, implicam uma atividade de remissão. Mas nem por isso o seu papel se limita ao de manutenção referencial: é também um poderoso recurso de progressão discursiva, ou seja, ao mesmo tempo em que retoma o 'dado', introduz o 'novo', ativando outro referente, a ser predicado posteriormente. O ato de referir, como designação por meio da língua, sempre preocupou os estudiosos, desde a antiguidade clássica, quando os filósofos gregos discutiam a natureza da língua1. Esta polêmica perdurou por séculos, passando pelo estruturalismo lingüístico, quando Saussure, já no século XX, propõe a arbitrariedade do signo lingüístico. A advento da lingüística textual, nas décadas de 50/60, com a introdução do texto como objeto de estudo, traz a preocupação com a coesão e coerência textuais, consideradas como fatores de textualidade. E o referente foi introduzido nos estudos da ‘coesão referencial’, considerado inicialmente numa abordagem sintático-semântica. Mais tarde, a partir da década de 80, delineou-se com o vigor a abordagem cognitiva do texto, que ganha terreno e passa a dominar o cenário, no início da década de 90, já com forte tendência sociocognitiva; ou seja, a coesão referencial deixa de ater-se às preocupações com os aspectos da estruturação concreta dos nexos internos, para integrar-se às dimensões pragmático-discursivas do texto. Decorre disso uma nova visão de 'referência': deixa de ser um problema de representação do mundo, de Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 verbalização do referente, em que a forma lingüística selecionada é avaliada em termos de verdade e de correspondência com o mundo [...] a questão da referenciação não privilegia a relação entre as palavras e as coisas mas a relação intersubjetiva e social (Mondada, 2001,apud Koch, 2005: 34). Em razão do exposto, Mondada propõe a substituição da noção de referência pela de referenciação e, em conseqüência, a noção de referente pela de 'objeto do discurso'. Nesse contexto teórico, emerge toda uma literatura sobre as anáforas, vasta e ampla, com várias respostas teóricas e várias abordagens que buscam uma descrição do fenômeno, o que não será aqui desenvolvido por não ser pertinente aos nossos objetivos. Limitamo-nos uma breve incursão às anáforas associativas, especificamente às actanciais, cuja relação se estabelece entre verbos e seus argumentos, o que vem ao encontro do nosso objeto de análise: os verbos de movimento. Para o desenvolvimento dessa pesquisa necessário se faz, ainda que brevemente, o exame de uma teoria de valências, acoplada a uma gramática de casos, que definam os argumentos e os papéis temáticos dessa classe de verbos, visto que na anáfora associativa actancial, o elemento anafórico é um dos argumentos do verbo que lhe deu origem. Portanto, nesse caso, o anafórico satura um lugar argumental do predicado antecedente, um lugar deixado vazio. 2 - Sobre anáforas associativas actanciais Para Kleiber (2001) as anáforas actanciais constituem um subgrupo das anáforas associativas. Muitos são os estudiosos que vêm se dedicando ao estudo das anáforas associativas. Nem por isso há um consenso quanto à sua classificação, conceituação e/ou terminologia. Como ponto de partida saliente-se que existe um divisor teórico entre aqueles que postulam uma visão 'alargada' da anáfora e os que postulam uma visão 'mais estreita' deste fenômeno. Os primeiros, conforme Charolles (1994; 1999), propõem uma abordagem cognitivo-discursiva, segundo a qual o discurso estabelece a 1 Natural ou convencional? Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 associação. A segunda posição defende uma abordagem mais semântica, segundo a qual a relação associativa é de natureza léxico-estereotípica. Para os que defendem a primeira posição, a anáfora associativa é toda anáfora não conferencial: seu referente se define graças às informações presentes no texto anterior e não é mencionado no contexto. O principal representante da visão 'mais estreita' é Kleiber (2001), para quem nas anáforas associativas a saturação do referente é obtida por um percurso muito particular, sem a mobilização de conhecimentos mais variados, em razão, de tratar-se de uma relação léxico-estereotípica. O autor exemplifica com a frase «Il s’abrita sous um vieux tilleul. Se tronc était tout craquelé» (Kleiber, 2001: 93). O que torna paradigmática essa seqüência é que, embora ela institua um nexo entre dois referentes específicos, o faz, segundo Kleiber, no nível do tipo, ou seja, de maneira genérica. Em outras palavras, se ficamos sabendo que o tronco de que se fala na segunda sentença é o da velha tília, não é porque conhecemos aquela velha tília, mas porque sabemos que toda tília tem um tronco. (Kleiber, 2003: 357358). O referente novo (o tronco), introduzido, pode ser encontrado como parte de um esquema de inferência já estabelecido pelos conhecimentos associados à tília. A tese léxico-estereotípica lança mão de um modelo inferencial descendente, que vai do antecedente à expressão anafórica. Assim, o autor afirma que a introdução de referentes que não fazem parte do estereótipo torna mal formada a seqüência, como em: «Nous arrivamês dans un village. Le grand magasin était fermé» (Kleiber, 2001: 93), já que, segundo a maioria dos franceses não é normal esperar que em cada aldeia haja uma grande loja de departamento. Nesse caso, a inferência, de acordo com a posição discursivo-cognitiva, se contrapõe à léxicoestereotípica, ou seja, a inferência não é provocada quando se menciona «un village», mas quando se menciona «le grand magasin», e é o resultado e se reconhecer entre as duas entidades um relação não convencional, contingente àquele discurso. É o que se denomina esquema inferencial 'ascendente'. Outra questão bastante discutida nesse tipo de anáfora refere-se à sua relação com a anáfora indireta: a anáfora associativa é um tipo de anáfora indireta? Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 Marcuschi (2005: 94) afirma: «As AI não podem ser dissociada das anáforas associativas, sendo estas uma parte substantiva das AI»2, o que significa que toda AA é indireta, ma nem toda indireta é associativa. Ou seja, esta se constitui um subconjunto daquela, posição também abraçada por Kleiber (2001). Postura semelhante encontramos em Koch (2004: 253), para quem as AA constituem um subtipo das AI. A anáfora associativa explora relações meronímicas, ou seja, aquelas em que entra a noção de ingrediência. Estão incluídas aí não somente as relações metonímicas, mas também todas aquelas relações em que um dos elementos pode ser considerado 'ingrediente do outro', como a relação entre «tília» e «tronco». Em outras palavras, o nome anafórico deve ser semanticamente marcado como sendo 'a parte de', devendo ser definido em relação a uma totalidade: é um 'merônimo' e a relação entre o todo (ou holônimo) e a parte (ou merônimo) é de 'meronimia' (Zamponi, 2003: 134). É dentro desse quadro que Kleiber (2001: 9-10) apresenta quatro critérios que caracterizam as anáforas associativas: § há introdução de um referente novo – SN2 – (no exemplo a seguir, trata-se do «sineiro» e dos «vitrais»); § b) há menção prévia de um outro referente – SN1 (no caso, a «igreja»); § c) o referente novo é apresentado como conhecido; § d) no processo como um todo, as construções lingüísticas desempenham um papel fundamental. Exemplificando: «Ao longe via-se uma igreja. O sineiro estava iluminado e os vitrais brilhavam.» O mesmo autor (Kleiber, 2001: 367) apresenta dois tipos de anáforas associativas: as actanciais e as funcionais. Constituem objeto de análise desta pesquisa as primeiras, sobre as quais passamos a discorrer. Essas anáforas constituem um caso especial, pois trata-se da relação entre um antecedente na forma de um predicado – um SV ou um SN predicativo ou processual, ou seja, um SN que comporta um nome de acontecimento, sendo a expressão anafórica um de seus argumentos ou actantes, como em: (a) «A costureira cortou o tecido. A tesoura ficou sobre a mesa.» (b) «Aquela casa já foi comprada. O comprador pretende reformá-la.» 2 AI – anáfora indireta; AA – anáfora associativa Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 (c) «Ele leu até adormecer. O livro caiu ao lado da cama.» (d) «Os noivos enviaram os convites um mês antes da cerimônia, mas Maria só o recebeu às vésperas do enlace.» Nos exemplos anteriores é possível constatar que as anáforas associativas actanciais (em duplo sublinhado) são expressões cujo referente corresponde a um dos argumentos ou actantes de um predicado já introduzido no texto e cuja definitude decorre dessa relação actancial. Em outras palavras, tais anáforas saturam um lugar argumental do predicado antecedente, um lugar deixado vazio. Uma restrição imposta por Kleiber, nesse caso, é que o lugar actancial deve ser preenchido por uma entidade que contenha informação limitada pela expressão antecedente, neste caso o predicado anterior. Assim: § no exemplo anterior (a), o argumento «A tesoura» satura o papel temático 'instrumento'; § no exemplo anterior (b), o argumento «O comprador» satura o papel temático de 'agente'; § no exemplo anterior (c), «O livro» satura o papel temático 'objetivo'; § no exemplo anterior (d), «Maria» satura o papel temático de 'beneficiário'. Ainda com relação às anáforas actanciais merece atenção a tese de Chierchia (2003) para quem o verbo não só determina papéis temáticos, mas também descreve eventos, o que leva ao enfoque de um protagonista da semântica da sentença que ficou esquecido, mas que está, na realidade, bem presente: o evento. Assim, uma sentença como «Léo encontrou Hugo», precisa ser interpretada como: há um evento tal que a) culminou (completou-se); b) esse evento é um encontro; c) o encontro é de Hugo por parte de Léo («Léo» é o agente e «Hugo» é o tema). Admitindo-se esse posicionamento, considera-se a hipótese de que o verbo 'encontrar', além de seus argumentos explícitos (sujeito/objeto) tem Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 esse argumento implícito (argumento evento)3. O termo 'evento' acaba tendo um sentido técnico mais específico, como se segue na Ilustração 1. Ilustração 1. Fonte: Chierchia (2003: 493) São pertinentes para esses trabalhos os verbos de acontecimento/evento, que envolvem um ponto de culminação intrínseco, um 'telos' (ex.: chegar)4. 3 - Breves considerações sobre a teoria das valências Para Neves (2002) o conceito de valência está vinculado à consideração da centralidade do verbo na análise da frase: A consideração lógica da frase, que acompanha os estudos das gramáticas ocidentais, não tem esse ponto de partida: está vinculada à lógica platônica e aristotélica, segundo às quais a frase está bipartida em dois elementos: o sujeito e o predicado. Nessa concepção a frase é uma proposição, entendida esta como a atribuição de uma predicação a um nome. Copi (1961: 22) a considera «o significado de uma sentença ou oração declarativa». Para o mesmo autor só as proposições podem ser afirmadas ou negadas; uma pergunta pode ser respondida, uma ordem dada e uma exclamação proferida. Sendo assim, nomes enunciados em seqüência não formam uma proposição, não exprimem nada, pois não há comunhão mútua. Portanto na concepção aristotélica, a proposição se forma quando se diz algo de uma substância. Outra é a concepção na filosofia estóica, segundo a qual o enunciado não se biparte desse modo. A lógica estóica não é uma lógica de termos, mas uma lógica de predicados, e o predicado é o fato, o evento. A 3 Em nota, Chierchia afirma que a versão dessa teoria se origina em Davidson (1967) que retomou e desenvolveu em termos modernos a intuição de Pãnini (IV-III séc a.C.) 4 Em nota, o autor explica que a forma grega – 'telos' – significa 'fim/meta'. Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 proposição não se reduz a um julgamento de atribuição. O predicado é uno, expressa um fato, que é o seu conteúdo. Em outras palavras, o enunciado expressa os eventos. Nessa perspectiva pode-se afirmar que as teorias que privilegiam o verbo como centro têm um fundamento lógico semelhante ao dos estóicos, embora não o invoquem. Isso posto, enfatizamos que essa pesquisa opta pelo estudo da frase, à luz da teoria das valências, ou seja, considerando o verbo como centro. Para Borba (1996) uma gramática de valências torna como elemento nuclear o verbo, enquanto uma gramática de constituintes decompõe o enunciado por meio de regras de reescrita. Exemplifiquemos isso com a frase «João leu o livro». a) numa gramática de constituintes (Ilustração 2A) b) numa gramática de valências (Ilustração 2B) Ilustração 2. 4 - O desenvolvimento da teoria das valências As primeiras idéias sobre valência se devem a Tesnière (1965): ele parte do verbo como núcleo, capaz de atrair um número mais ou menos de actantes. O número de casa vazias que tem um verbo e o número de actantes que ele pode reger é a sua valência. O autor não se atém a um regime verbal, mas refere-se a todas as relações de dependência interfrasais, razão porque se fala numa gramática de dependências como derivada das idéias de Tesnière. Para este autor, os actantes são argumentos obrigatórios e os circunstantes são dispensáveis. Os primeiros são em números limitado e os Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 segundos são em números ilimitado. Os actantes variam de zero a 3, e os verbos se classificam em: avalentes (sem actantes), monovalentes (com um actante), bivalentes (com dois actantes), trivalentes (com três actantes). Semanticamente, o primeiro actante realiza a ação, o segundo a completa e é por ela afetado e o terceiro recebe algo em seu proveito ou prejuízo. Em algumas línguas os actantes são marcados por casos, em outras o segundo e o terceiro são marcados por preposições. Outros estudiosos como Helbig (1971, apud Neves, 2002) e Engel (1969, apud Neves, 2002) têm se dedicado ao estudo das valências. Não os abordamos por não serem pertinentes para esse trabalho. Neves (2002) classifica as valências em: valência lógico-semântica, valência sintática e valência pragmática. § A valência lógico semântica diz respeito a uma relação lógica fundamental entre o significado de um verbo e seus participantes. A não correspondência entre as categorias lógicas e as lingüísticas impede que se considere a existência de um reflexo direto da valência lógico-semântica na sintática (Neves, 2002: 111). § A valência sintática é a capacidade que tem o verbo de abrir, na sentença, lugares estruturais que devem ser preenchidos para que se realize a estrutura oracional, ou seja, o preenchimento de lugares vazios por actantes. § A valência pragmática - em se tratando das diversas frases de um texto, pode ocorrer uma determinação da valência verbal operada pela situação de comunicação, o que significa afirmar que a realização do sistema de transitividade nas frases efetivas da língua decorre necessidades e de uma intenções perspectiva determinada comunicativas. Fica pelas assim a necessidade ou a facultatividade dos complementos. Exemplo: na frase «Paulo comprou um livro», o verbo tem valência 2: abre dois lugares, a serem preenchidos (obrigatoriedade) por dois actantes. Entretanto, na situação a seguir - Paulo comprou o livro? - Comprou. nenhum dos argumentos estão expressos. Ou, em: - Quando você vai entregar o livro a ele? Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 Por Amanhã. determinação pragmática, a frase ficou reduzida a um complemento facultativo. Para Borba (1996), a valência lógico-semântica se refere ao número de argumentos que um predicado pode ter (ex. P(A): P(A1, A2), P(A1, A2, A3) etc.); a valência morfossintática ou sintática se refere às características dos actantes, quanto à sua função sintática e forma morfológica. O verbo 'dar', por exemplo, tem como actantes SUJ, OD, OI representados por nomes, pronomes ou frases subordinadas; a valência semântica se refere às funções temáticos (ou papéis) que atualizam os argumentos na predicação. Assim, em «Ana vai à escola», – «Ana» exerce a função sintática de 'sujeito' e a função temática de 'agentivo'. O autor menciona ainda a valência quantitativa, segundo a qual os verbos em Português comportam de zero a quatro argumentos: de valência0 (nevar-chover); de valência1 (tossir); de valência2 (ir-vir-chegar-subir-gostar dever); de valência3 (dar-doar-emprestar); de valência4 (transferir – passar). Pode-se afirmar, pelo exposto, que entre os autores mencionados, apenas Neves (2002) alude à valência pragmática, enquanto Borba estende seu estudo à valência nominal. 5 - Breves considerações sobre uma gramática de casos Todos os autores citados procuram estabelecer uma relação, entre a teoria das valências e uma gramática de casos. Para Borba à análise valencial não compete somente identificar matrizes ou descrever a estrutura, externa dos constituintes. Nesta pesquisa os termos: argumento/actantes são utilizados indistintamente, mesmo porque não há um consenso entre os estudiosos quanto ao seu emprego. Deve também determinar as relações sintático-semânticas ou temáticas que fazem parte da estrutura conceitual dos itens lexicais. As relações temáticas se fazem representar por um sistema de casos ou gramática de casos. Assim, as estruturas conceituais de um verbo, associadas às de um nome resultam num papel semântico que se apresenta sob a forma de um caso. O autor exemplifica com o verbo 'subir' (mais Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 movimento), relacionado com 'macaco' (mais animado), resultando a função 'agentiva' (ou agente) para o nome e a classe 'ação' para o verbo. Adotamos neste trabalho a teoria de casos de Fillmore (1977) para quem a sentença na sua estrutura básica, consiste em um verbo e um ou mais sintagmas nominais, cada um associado ao verbo numa determinada relação de caso. O número de casos varia muito de proposta a proposta. Julgamos suficientes para esse trabalho os seguintes casos: agentivo, experimentador, beneficiário, objetivo, locativo, instrumental, causativo, meta, origem, resultativo, temporal, comitativo. O agentivo desencadeia uma atividade (física ou não) e tem controle sobre ela; o experimentador quem passa pelo estado psicológico descrito pelo verbo; o beneficiário é um afetado que marca o destinatário da posse; o objetivo, (também chamado alvo ou tema) é o indivíduo ou objetivo diretamente afetado pela ação; locativo – marca o lugar da ação; o instrumental, o objeto do qual o agente se serve para praticar a ação; o causativo é o que provoca um efeito ou desencadeia algo; a meta expressa o ponto de chegada e a origem o ponto de partida; o resultativo mostra o resultado, o efetuado; o temporal indica a localização no tempo; o comitativo é a associação. Exemplificando: § agentivo – «O pássaro voa.» § experimentador – «Pedro ouve música.» § beneficiário – «Gina tem um gato.» (ganhou) § objetivo – «A cortiça bóia.» § locativo – «Ele esta na igreja.» i. locativa direcional (movimento para) – «Vou a Santos.» ii. locativo percurso (movimento através de) – «Ela passeia pelo bosque.» § instrumental – «Cortou o arame com o alicate.» § causativo – «O muro caiu com o vento.» § meta – «Os portugueses descobriram o Brasil.» § origem – «Vim de São Paulo.» § resultativo – «O governo constrói estradas.» § temporal – «Decorreram 3 meses.» Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 § comitativo – «Ela saiu com o noivo.» Fazemos algumas restrições à proposta de Borba quanto ao locativo. Nosso posicionamento vai ao encontro da proposta de Fillmore para quem o locativo, que a princípio incluía o direcional, desdobra-se em: localização espacial da ação, source (origem), goal (meta destino) e itinerativo (lugar por onde). 6 - As anáforas actanciais e os verbos de movimento Na gramática tradicional não há um consenso com relação ao frame dos verbos de movimento, ou seja, quantos e quais actantes ele aceita? Quantos e quais são essenciais e/ou obrigatórios? Gurpilhares (2003) discute a 'in(transitividade)' dos verbos de movimento, à luz de uma abordagem sintático-semântica. A autora fundamenta-se em algumas gramáticas bem conceituadas do Português5, em estudiosos de assunto e em alguns lingüistas. Com relação à terminologia 'verbos de movimento', saliente-se que ela não se encontra em nenhuma das gramáticas consultadas e nem mesmo na NGB. Para essa pesquisa consideramos ‘verbo de movimento’ todo aquele que implica num deslocamento espacial, quer esse deslocamento ocorra numa direção horizontal (ir), numa direção vertical para cima (subir) ou numa direção vertical para baixo (descer). Pelo exposto, é lícito afirmar que todo verbo de movimento abre espaço para três lugares: lugar de onde (ponto de partida do movimento), lugar por onde (ponto final do movimento), os quais consideramos inerentes à raiz lexical do verbo, portanto, complemento. De maneira geral tais expressões se superficializam acompanhadas de preposição, como: «Cheguei de São Paulo.», «Fomos ao estádio.», «Voltei de São Paulo pela Dutra.», ou sem preposição: «Andei longes terras.». Dos gramáticos aqui apresentados, Bechara (1979) e Cunha (1977) consideram essas expressões de lugar como adjuntos, ou seja, termos acessórios. Rocha Lima (1978) observa a diferença entre a expressão que acompanha um verbo de movimento e a que acompanha outro verbo: «Irei a Roma.» e «Jantarei em Roma.», salientado que no primeiro caso a preposição como que forma bloco com o verbo. Luft (1981) alude a tais 5 Foram consultados: Bechara (1979), Cunha (1977), Lima (1978) e Luft (1981). Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 verbos como transitivos indiretos, que se completam com um locativo que não pode ser considerado 'adjunto' (adverbial de lugar), e sim 'complemento'. Entre os lingüistas consultados, Lyons (1970) alude aos circunstantes independentemente dos complementos, mas salienta que, de acordo com o grau de dependência dos sintagmas preposicionados de lugar com o processo, a sua função pode ser adjunto ou complemento. Halliday (1976) alude à necessidade de se distinguir os elementos circunstanciais mais essenciais ao processo e os menos essenciais. Constatamos pelo exposto que não há consenso entre gramáticos e lingüistas no que concerne à função sintática desses sintagmas preposicionados. Nosso posicionamento, exposto em Gurpilhares (2003), é que tais sintagmas constituem parte inerente dos verbos de movimento, já que esses verbos implicam, necessariamente, três lugares: de onde, por onde, para onde. Passamos a algumas considerações sobre esses verbos, relacionandoos à teoria das valências acoplada a uma gramática de casos. Para uma classificação desses verbos levamos em consideração: § valência quantitativa, ou seja, todo verbo de movimento, conforme conceituado anteriormente, abre espaço para quatro argumentos, ou seja, pertencem ao grupo de valência 4: um sujeito, um lugar de onde, um lugar por onde e um lugar para onde; § valência sintática, seguindo a qual o argumento sujeito se representa pela classe dos Nomes e as expressões de lugar por sintagmas nominais ou sintagmas preposicionados; § valência semântica – refere-se aos papéis semânticos, os quais, segundo a gramática de casos, correspondem nos v. de movimento, ao agentivo e aos três lugares: source (origem), goal lugar para onde (meta) e itinerativo (lugar por onde), os quais correspondem ao locativo de Fillmore (1971); § valência pragmática – é a valência determinada pela situação comunicativa, conforme Neves (2002). No caso dos verbos de movimento é comum o apagamento de um dos lugares, nessa Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 situação. Por exemplo: a mãe que está aguardando o filho chegar e diz: «Finalmente você chegou!». Seguem-se as análises de anáforas associativas actanciais em alguns verbos de movimento. Como 'corpus' selecionamos verbos de movimento, os quais são analisandos com as respectivas anáforas associativas actanciais6 A) verbo 'voltar': A.1.) «Voltávamos de São Paulo. A Dutra fortemente escorregadia, oferecia riscos para acidentes. Dentro de instantes aconteceu o acidente.» O lugar 'por onde' (argumento) é preenchido por «A Dutra»’ que satura o papel temático de 'locativo' ou itinerativo. A expressão anafórica preenche as condições de uma anáfora associativa actancial, segundo Zamponi (2003: 31): 1º) o argumento preenchido pelo anafórico é predizível pelo verbo da sentença anterior; 2º) o anafórico é exterior ao conteúdo do verbo; 3º) os elementos envolvidos possuem natureza ontológica diferente: antecedente = evento; anafórico -= indivíduo. A.2.) «Voltávamos felizes, após aquelas férias longas e extasiantes. Aos poucos a fazenda ia ficando para trás, com seu casarão antigo e suas árvores centenárias.» 1º) o argumento: lugar 'de onde' é preenchido por «a fazenda», que satura o papel temático de 'locativo' ou source. 2º) As condições para uma anáfora associativa actancial são preenchidas. A.3.) «O empresário voltou extenuado do trabalho, após aquela reunião polêmica e sem resultados concretos. A casa nunca lhe pareceu tão aconchegante: a poltrona predileta, o whisky, a atenção da esposa.» 6 São todos exemplos fabricados por encontrarmos muita dificuldade para encontrar em outros meios de comunicação. Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 1º) O lugar 'para onde' (argumento) é preenchido por «A casa» que satura o papel de 'locativo' ou goal. 2º) A expressão anafórica preenche as condições exigidas para uma anáfora associativa actancial. A.4.) «Voltaram felizes e aturdidos com o troféu conquistado naquele torneio tão disputado. Os irmãos Pedro e Paulo ainda não acreditavam no que estava acontecendo. Tudo for tão rápido!!! » 1º) «Pedro e Paulo» (argumento) saturam o papel temático 'agentivo' 2º) a expressão, anafórica atende às condições da anáfora associativa actancial. B) verbo 'chegar' B.1.) «A seleção chegou aplaudida pela multidão. O aeroporto estava lotado, a sua espera.» O argumento lugar 'para onde' e preenchido por «O aeroporto» que satura o papel temático 'locativo' ou goal. A expressão anafórica preenche as condições da anáfora associativa actancial. B.2.) «O ônibus chegou de Salvador bastante avariado. A rodovia Rio/Bahia está muito danificada, o que provocou problemas mecânicos.» O argumento lugar 'por onde' é preenchido por «A rodovia Rio/Bahia» que satura o papel temático 'locativo' ou itinerativo. B.3.) «Chegou ao lar feliz, saudoso de tudo que lhe fora tirado, naqueles 10 anos de prisão. A penitenciária parecia agora um inferno deixado para trás.» O argumento-lugar 'de onde' é preenchido por «A penitenciária» que satura o papel temático 'locativo' ou source. B.4.) «Chegou feliz após o resultado brilhante, das provas que acabara de prestar. Também o rapaz estava bem preparado e merecia aquela vitória! » Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 «o rapaz» (argumento) satura o papel temático de agentivo do verbo 'chegar' . A expressão anafórica atende às condições da anáfora associativa actancial. A análise dos dois verbos de movimento: chegar e voltar nos permite afirmar que esse tipo particular de anáfora também constitui um forte mecanismo de coesão, especificamente de progressão textual, na medida em que introduz um referente novo que é predicado posteriormente, chegando às vezes, a assumir um valor axiológico. É o que ocorre no exemplo b3 – em que o argumento 'lugar de onde' é preenchido por uma expressão anafórica com alto teor argumentativo: «A penitenciária parecia agora um inferno deixado para trás.». Trata-se, portanto de um novo foco, importante para o processamento textual. Finalizando, cabem algumas considerações relativas a valência pragmática. Segundo Neves (2002: 114) também do ponto de vista pragmático se pode verificar a relação entre a gramática de valências e a gramática de casos, mais especificamente, a teoria de Fillmore, que postula uma hierarquia de saliência, a qual determina quais elementos de uma cena são postos em 1º plano. Trata-se de uma perspectivização que governa a seleção dos elementos que entram na estruturação da frase, com determinado papel semântico. A seleção das participantes é uma escolha do falante que se faz em dependência da perspectiva em que a cena é ativada: a cena é uma entidade cognitiva, objeto de estudo da semântica; a perspectiva da cena na fala e é pois, objeto de estudo da pragmática. Os exemplos arrolados neste trabalho mostram com clareza este aspecto, pois em todos eles apenas dois argumentos estão explícitos. E mais, o argumento explicitado na expressão anafórica é o que deve ser predicado anafórica é o que deve ser predicado posteriormente, e até funcionando como mecanismo argumentativo. 7 - Referências bibliográficas BECHARA, Evanildo (1977). Gramática da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Fename Lus or am a, v. 6 7- 6 8, p. 1 36- 15 1, 2 0 0 6 BORBA, Francisco da Silva (1996): Uma gramática de valências para o Português, São Paulo: Ática. CHAROLLES, Michael (1994). «Anaphore associative, estéréotype et discourse», em: Schnedecker, Catherine et al (ed). (ed).(1994), L´Anaphore Associative, Paris: Klincksilck CHAROLLES, Michel. (1999). «Associative anaphora and its interpretation», em: Charolles, Michel / Kleiber, Georges, Journal of Pragmatics, v. 31, 3, p. 311-325 CHIERCHIA, Gennaro (2003): Semântica, Tradução de Luis Arthur Pagani, Ligia Negri e Rodolfo Ilari, Campinas: UNICAMP COPI, Irving Marmer (2002): Introdução à lógica, São Paulo: Mestre Jou. CUNHA Celso. (1997). 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