Origem do terramoto permanece um mistério

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Estão agora em confronto quatro hipóteses
Origem do terramoto permanece um mistério
Por Teresa Firmino
31.10.2005
Onde foi a origem do terramoto de Lisboa, um dos mais fortes de que há memória? Duzentos e
cinquenta anos depois, poderia pensar-se que os cientistas teriam uma resposta. Nada disso.
Esgrimem argumentos sobre o ponto onde a crosta terrestre começou a romper-se e provocou o
tremor de terra e um maremoto (tsunami).
Estão agora em confronto quatro hipóteses, de portugueses e estrangeiros, e nos próximos dias, com
várias conferências científicas em Lisboa a assinalar a efeméride, irão de novo confrontar hipóteses.
Com 8,7 de magnitude, foi primeira catástrofe considerada global. Nunca mais na Europa houve um
sismo tão forte como o de 1 de Novembro de 1755. Afinal, o que aconteceu na crosta da Terra para
causar um terramoto tão violento? O busílis começa aqui. Obter consenso é difícil, mas numa coisa
os cientistas estão de acordo. O mecanismo por detrás do terramoto é complexo. Procurar a origem,
ou fonte, deste terramoto é importante para determinar o risco sísmico de uma zona mal conhecida,
a da fronteira entre as placas euroasiática e africana ao largo do Algarve e no golfo de Cádis.
Banco de Gorringe foi o primeiro candidato
Em 1914, o norte-americano Harry Fielding Reid disse que a origem teria sido no Atlântico, a cerca
de 100 quilómetros a ocidente de Portugal. Em 1940, um catálogo da sismicidade na Península
Ibérica, de um autor espanhol, propunha uma zona um pouco a norte do Gorringe, através das cartas
de intensidades dos danos. O Algarve, Lisboa, Sevilha e o Norte de África foram bastante
afectados.
Foi o Gorringe, a 200 quilómetros a sudoeste do Cabo de São Vicente e a 300 de Lisboa, que
durante muito tempo concentrou as atenções. Esta montanha submarina tem 200 quilómetros de
comprimento, está a apenas cerca de 50 metros de profundidade e é rodeada de planícies abissais
que descem até aos cinco mil metros.
"É uma estrutura geológica impressionante", diz o geofísico João Fonseca, do Instituto Superior
Técnico, em Lisboa. E está numa zona crítica para a tectónica de placas, de fronteira entre as placas
euroasiática e africana, que começa nos Açores e se segue com facilidade até ao Gorringe, mas aí
deixa de se perceber a transição. "O traço da fronteira desaparece, porque passa a ser distribuído em
várias falhas. O ponto onde se dá essa viragem é o Gorringe, por isso chamou tanto a atenção."
Foi na década de 60 que o Gorringe foi claramente considerado como possível fonte do terramoto,
pelo português Frederico Machado. "Disse que foi a fonte do terramoto apenas por ser uma
estrutura tão evidente na batimetria [morfologia do fundo do mar] da margem continental."
Depois do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, com uma magnitude já elevada (7,5) e bem estudado
com instrumentação, passou considerar-se que a origem do terramoto de 1755 teria sido a mesma.
Ou seja, a sul do Gorringe, na Planície Abissal da Ferradura.
Primeira simulação do tsunami apontou nova pista
Os grandes problemas com a localização no Gorringe ou a sul dele começaram em 1998, quando se
simulou a propagação das ondas de um tsunami gerado na Planície Abissal da Ferradura por um
sismo com a magnitude do de 1755.
A equipa de Maria Ana Baptista, do Centro de Geofísica da Universidade de Lisboa e do Instituto
de Engenharia da Universidade de Lisboa, construiu um modelo de simulação das ondas de 1755.
No entanto, algo não batia certo com os relatos da época - desde cartas e crónicas em jornais até aos
inquéritos ordenados pelo marquês de Pombal a todas as paróquias sobre o sismo e o tsunami -,
cujos originais foram consultados por uma historiadora.
Graças a essa consulta, construiu-se uma tabela com os parâmetros necessários para simular o
tsunami de 1755, por exemplo a hora a que o sismo foi sentido e chegaram as ondas.
O pequeno tsunami gerado pelo sismo de 1969 também serviu de comparação, já que foi registado
em todas as estações maregráficas de Portugal e não só. Sabe-se bem como se propagou e que a
altura máxima das ondas atingiu 1,2 metros, em Casablanca.
As descrições nos relatos não eram reproduzidas: "A chegada à costa dava tempos superiores aos
dos registos históricos", conta Maria Ana Baptista. "Daí que eliminássemos este local."
Simularam um tsunami originado num local mais perto da costa portuguesa, e em 1998
apresentaram a nova proposta em dois artigos na revista Journal of Geodynamics. "Propusemos
uma primeira fonte que dava tempos de chegada correctos a toda a costa portuguesa, mas atrasados
para o golfo de Cádis." Faltavam as provas geológicas, além de resolver o problema de Cádis, onde
os efeitos foram muito fortes, como em Lisboa.
Uma falha chamada Marquês de Pombal
Para a nova localização, não se conhecia nenhuma ruptura na crosta que pudesse ter originado o
terramoto de 1755. Foi então que apareceu um investigador italiano, Nevio Zitellini, do Instituto de
Geologia Marinha, em Bolonha, a montar mais uma peça no quebra-cabeças.
No final de 1998, Zitellini descobriu uma falha geológica, a 100 quilómetros a oeste do Cabo de
São Vicente. Chamou-lhe Marquês de Pombal, num artigo publicado em 2001 na revista EOS,
assinado também por investigadores portugueses, como António Ribeiro, Luís Mendes Victor, Luís
Matias ou Pedro Terrinha, da Faculdade de Ciências de Lisboa. "A Falha do Marquês de Pombal
correspondia à localização provável da fonte do tsunami publicada em 1998", lembra Maria Ana
Baptista.
O problema é que essa falha, com 60 quilómetros de comprimento, não chegava para gerar um
sismo de 8,7 de magnitude. "Se se rompesse todo o segmento do Marquês de Pombal, a energia
libertada corresponderia a metade da do sismo de 1755. Tivemos de ir à procura de uma segunda
localização", conta a geofísica. Essa segunda zona de ruptura na crosta, em conjunto com a do
Marquês de Pombal, reproduziu melhor o tsunami no golfo de Cádis.
Zitellini descobriu depois falhas no banco de Guadalquivir e, em 2003, ele e a equipa de Maria Ana
Baptista publicaram um artigo na revista Natural Hazards and Earth Systems Sciences, a propor
uma origem dupla para o terramoto: deveu-se a uma ruptura da Falha do Marquês de Pombal, em
conjugação com o rompimento da crosta ao longo do banco do Guadalquivir.
Falha da Ferradura é outra das peças
António Ribeiro, que chegou a mergulhar no Banco de Gorringe e nunca encontrou lá provas do
sismo de 1755, juntou novas peças ao quebra-cabeças. Defende que a origem do terramoto está na
conjugação da Falha do Marquês de Pombal com as da Ferradura e do Cabo de São Vicente. À
superfície da crosta podem estar separadas, mas no interior até pode ser o mesmo acidente
tectónico. "Provavelmente, as três reúnem-se em profundidade."
António Ribeiro interpreta estas falhas e o sismo de 1755 como o início de um processo em que a
placa oceânica começou a entrar por baixo da placa continental, para ser destruída no manto
(subducção).
No meio do Atlântico está a ser criado fundo oceânico novo, que se afasta para os lados e terá de ser
destruído algures, no manto. Se isso começou a acontecer no sudoeste da margem ibérica, o risco de
grandes sismos está aí, mas isto é motivo de discussão.
Gorringe regressa e entra em hipótese com dois sismos
João Fonseca reavivou a hipótese do Gorringe, em 2003, na revista Bulletin of the Seismological
Society of America. Disse que houve um primeiro sismo no Gorringe (8,5 de magnitude), que
minutos depois induziu um segundo abalo (6,5) no Vale Inferior do Tejo.
Esta é a questão central, para João Fonseca. Com o seu modelo, quer explicar algumas contradições
dos relatos históricos. Por um lado, houve um tsunami, o que indica que o sismo foi no mar e longe,
já que as ondas levaram 90 minutos até Lisboa (à zona de Marvila). Por outro lado, a intensidade
muito alta do sismo na região de Lisboa sugere um epicentro mais próximo. Cita relatos como o do
padre de Benavente que viu um barco ficar em terra seca, que indicam que o terreno no Tejo ficou
muito deformado. "Estas deformações podem compreender-se se tivermos uma ruptura próxima,
mas não se foi a centenas de quilómetros."
Como aposta num sismo induzido no Vale Inferior do Tejo, João Fonseca adoptou o Gorringe como
epicentro por ser o mais longe de Lisboa e desfavorável à sua hipótese. Pretendia mostrar que o
terramoto de 1755 se encaixa num intervalo de sismos de 200 em 200 anos, em que as falhas do
Vale Inferior do Tejo se rompem e causam abalos de magnitude superior a seis: terá acontecido em
1344, 1531 e, depois do abalo induzido em 1755, em 1909.
Mas os dados de Miguel Miranda, director do Centro de Geofísica da Universidade de Lisboa,
obtidos com estações GPS nos últimos dez anos, mostram que os dois segmentos de falhas
identificados no Vale Inferior do Tejo estão a mover-se muito devagar. "Se estes anos representam
o comportamento normal, os sismos que atingem Lisboa são gerados na fronteira de placas e não na
região de Lisboa. Esta é a grande polémica", diz, referindo que os seus dados indicam que é no sul,
em particular no Algarve, que o risco sísmico está concentrado.
"A falha está a mover-se décimas, senão centésimas, de milímetro por ano. Portanto, não pode gerar
sismos com aquela magnitude de 200 em 200 anos", acrescenta António Ribeiro, para quem não
houve dois sismos em 1755. Diz que já ninguém acredita na conjectura do Gorringe. Um epicentro
ali nunca explicou bem como é que Lagos e Lisboa, a 200 e a 300 quilómetros do banco, tiveram
graus de destruição semelhantes. Uma origem mais perto explicá-lo-ia.
Arco de Gibraltar
Para Marc-André Gutscher, da Universidade da Bretanha Ocidental, o epicentro foi no arco de
Gibraltar - relatou em 2002, na revista Geology. Considerou que há ali uma zona de subducção
ainda activa, na qual um bloco de uma placa velha mergulha e, ao descer no manto, ainda deforma a
superfície (dez milímetros por ano). Ali terá nascido o terramoto de Lisboa e é ali que estará o
grande risco sísmico.
António Ribeiro rejeita esta solução: diz que essa zona está inactiva há cinco milhões de anos.
Outros, ainda, consideram que o grande risco sísmico se deve mais à convergência entre as placas
africana e euroasiática (quatro milímetros por ano). E Maria Ana Baptista aponta outro problema:
"Gera um tsunami que reproduz bem todos os dados para o golfo de Cádis, no entanto gera tempos
de chegada atrasados e ondas pequenas para a costa portuguesa."
http://dossiers.publico.pt/noticia.aspx?idCanal=1543&id=1237410
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