As Canções de Beuern e a resistência intelectual na Idade Média

Propaganda
PORTAL DE HISTÓRIA DO TEATRO MUNDIAL E BRASILEIRO
PRATA DA CASA - ENSAIO
_____________________________________________________
Título: As Canções de Beuern e a resistência intelectual na Idade Média
Autor: Danilo Ferreira Putinato
Arquivo: 09.PCES.00002
Portal de História do Teatro Mundial e Brasileiro
As Canções de Beuern e a resistência intelectual na Idade Média - Danilo Ferreira Putinato
09.PCES.00002
Página 1
Título: As Canções de Beuern e a resistência intelectual na Idade Média
Autor: Danilo Ferreira Putinato
Data: Nov/2011
A Idade Média, período que se iniciou com a queda do Império Romano do Ocidente, é
muitas vezes identificada como o momento da história em que a razão teria sido virtualmente
suprimida pela repressão e o controle violento feito pela Igreja. Essa concepção, reafirmada à
exaustão em grande parte das escolas de muitos lugares no mundo, não é totalmente errônea,
sequer é feita sem qualquer tipo de fundamentação: a dominação do mundo pela Igreja foi
intensa ao ponto de levar a crer, até hoje, para muitos, que a disseminação se seus ideais fora
o apogeu da cultura medieval, ainda que isso tenha sido feito pela quase obliteração da
sabedoria popular e das manifestações culturais ditas “profanas”.
Sabe-se, porém, que apesar da violenta repressão, a Igreja não é capaz de,
efetivamente, ter domínio sobre a mente, contanto que não se deixe iludir por seu discurso
moral ou pelo determinismo de sua época. A produção intelectual da Idade Média, de fato, foi
muito rica. Pode-se inclusive presumir que essa adversidade possa ter servido até mesmo
como incentivo, como costuma acontecer em épocas de crise, aos poetas, bardos e artistas de
todo gênero à contraposição; mostram a força do que, realmente, é o “espírito” humano.
As únicas escolas da Idade Média eram as administradas pela Igreja, e voltadas para a
formação de clérigos, ou de pessoas que estariam a serviço da religião, de alguma forma. A
língua ensinada era o latim, principal símbolo da dominação intelectual: uma língua apenas
conhecida pelos membros do clero, e instrumento da unidade entre eles. Sabe-se que, desde o
século V, muitos clérigos anônimos compuseram centenas de cantos, que caracterizam a
principal produção literária latina medieval. Porém, sabe-se também que sempre houve clérigos
que usaram sua formação para produzir canções profanas, satíricas.
Eis a marca da resistência: os membros da Igreja não se limitavam a produzir poemas
de devoção: a natureza humana se rebelava à artificialidade dos ensinamentos religiosos. Boa
parte da poesia profana medieval foi escrita pelos clérigos da época: os ‘clerici vagi’ ou
‘goliardos’ (palavra usada pela Igreja, em referência ao mito de Golias; característica de inimigo
do pensamento cristão). Entre eles nasceu uma poesia anti-dogmática: andavam de uma
escola a outra e se reuniam com “outros clérigos fugitivos da disciplina rigorosa dos conventos;
muitos se perderam na vida devassa e até criminosa das estradas reais, outros na anarquia
moral das grandes cidades como Paris” (O.M Carpeaux, História da Literatura Ocidental, Rio de
Janeiro, Alhambra, vol.1, 1978). Para sobreviver, recorriam à arte que conheciam: compunham
Portal de História do Teatro Mundial e Brasileiro
As Canções de Beuern e a resistência intelectual na Idade Média - Danilo Ferreira Putinato
09.PCES.00002
Página 2
canções para o gosto dos ouvintes, que pagavam sua comida, bebida e dormida. Mas
compunham apenas na língua que conheciam: o latim. Como somente os clérigos os
entendiam, foram eles também os principais ouvintes dos viajantes.
Em 1803, no acervo artístico da abadia beneditina de Benedikt-beuern, foi encontrado
um manuscrito do século XIII, contendo uma extensa coleção de poemas e canções, em sua
maioria profanas e em latim. Publicados em 1847, foi dada à luz uma obra que durante séculos
ficara trancafiada, no que fora classificado pela Igreja como livro subversivo. O manuscrito
ganhou o nome de Carmina Burana (em latim, Canções de Beuern), e foram copiadas por volta
do ano 1230, na região da atual Bavária, e apresentam semelhanças com as músicas das
baladas germânicas antigas, são os primeiros registros de poesia em língua vernácula, e são
ao mesmo tempo a marca da morte da poesia clássica latina e o início da poesia chamada
moderna.
As canções do manuscrito de Beuern vêm de lugares e épocas muito distantes, e algumas
delas têm variantes encontrados em outros manuscritos. Uma delas, chamada “Estuans
Interius” (conhecida também como Lamento do Arquipoeta) tem mais de 40 versões diferentes
e até hoje adaptações são produzidas no ambiente da música erudita. Outras, como “O Fortuna
são amplamente conhecidas, principalmente através da cantata de Carl Orff, que, inspirado
pelos manuscritos, compôs a Carmina Burana, parte do repertório de qualquer coral.
A principal característica de muitas das obras é a de apresentarem temas que seriam
considerados “heresia”, como por exemplo, o poema 196 (In Taberna):
“[...] Brindam logo a quem paga/ com o vinho que se
traga,/ uma vez que prisioneiros,/ três vezes nossos
herdeiros,/ quatro vezes os batizados,/ cinco vezes
nossos finados,/ seis, todas as mães solteiras,/ sete, os
guardas das fronteiras,/ oito, os confrades meliantes,/
nove, os monges caminhantes,/ dez, os nossos
navegantes,/ onze vezes os discordantes,/ doze vezes
os flagelantes,/ treze vezes os viandantes./ Por fim, ao
Papa e ao Rei/ brindam nossos fora-da-lei”
Com uma referência à taverna, e à vida boêmia, na qual incluem também o Papa e o
Rei, o poeta coloca em nível de igualdade aquele que era tido como santo e seus amigos de
bebida e jogo. Mais que isso, mostram como a ídole das pessoas do povo é superior ao dos
sacerdotes, como no poema 219, “Cum ‘in ordem universum’”:
Portal de História do Teatro Mundial e Brasileiro
As Canções de Beuern e a resistência intelectual na Idade Média - Danilo Ferreira Putinato
09.PCES.00002
Página 3
“[...] dos padres desapiedados andem precavidos,/ pois
negam toda ajuda, aos destituídos./ [...] A verdadeira
piedade nós a praticamos,/ tanto os grandes quanto os
humildes, a todos aceitamos;/ há lugar para os ricos,
para os necessitados/ expulsos pelos pios monges,
pobres desamparados./ [...] Em jejum nunca ninguém
nossa casa deixou,/ aqui sempre o indigente, uma ajuda
ganhou.”
Os clérigos goliardos eram o ícone do elemento de desordem que impedia o domínio
absoluto da Igreja sobre a sociedade: trocaram o celibato pelo prazer. Em contato com a
rusticidade das camadas populares, usavam a erudição da elite para criticar o alto clero e
exaltam os prazeres do amor, da bebida e do jogo. Eram críticos e delatores da hipocrisia
aristocrática: “[...] ao indigente é negado/o direito comprovado;/para o rico não falta juiz/ a
vender-se por pratas vis” (Poema 1 do Carmina Burana, ‘Manus Ferens’).
O goliardo é pobre, mendigo. Deixou de criar poemas eclesiásticos para pedir dinheiro,
cantar em troca de bebida, compor uma revolta lírica contra aqueles que oprimem a própria
fundação da natureza. Os que, para manter seu império moral, tentaram estagnar a evolução
da cultura, sendo derrotados de dentro por aqueles que se recusaram à submissão,
manchando de vinho os brancos robes dos puritanos hipócritas, satirizando reis e príncipes,
exaltando as qualidades físicas das mulheres. Os goliardos mostram, hoje, que a “idade das
trevas” é apenas nebulosa para os que se deixaram levar pelo dogmatismo e por uma
repressão que nunca poderia, afinal, alcançar, verdadeiramente, o intelecto.
Referências Bibliográficas:
O.M Carpeaux, História da Literatura Ocidental, Rio de Janeiro, Alhambra, vol.1, 1978
Woensel, Maurice van, Carmina Burana. Ars Poetica, 1994
Portal de História do Teatro Mundial e Brasileiro
As Canções de Beuern e a resistência intelectual na Idade Média - Danilo Ferreira Putinato
09.PCES.00002
Página 4
Download