O ENSINO DA ARTE POR MEIO DA FILOSOFIA: O PROCESSO DE COMPOSIÇÃO DE CANÇÕES COM ALUNOS DE ESCOLAS PÚBLICAS DE UBERLÂNDIA- MG Maíra de Ávila Francisco [email protected] Universidade Federal de Uberlândia Comunicação – Relato de Experiência Introdução E o que é a educação, senão um retorno ‘às coisas mesmas’, ou seja, um retorno à experiência, ao vivido, à existência, à essência?1 Aparentemente, o trabalho filosófico está mais relacionado à elaboração intelectual, à produção conceitual e à resolução de problemas de ordem teórica. No entanto, por se apresentar como um ramo do conhecimento que lida tanto com a racionalidade quanto com a intuição e a fantasia, a filosofia se aproxima de disciplinas como a arte no intuito de compreender com mais profundidade a condição humana. Nesse sentido, a relação entre filosofia e arte se delineia mais claramente no campo de estudo da Estética ou Filosofia da Arte, enquanto área de estudo e conhecimento que faz uso das faculdades humanas como a imaginação, a criatividade, a intuição e o sentimento a fim de gerar produtos artísticos fundamentados em conceitos filosóficos. A Filosofia da Arte discute, entre outros aspectos, a relação entre o potencial de criação do artista e o caráter inovador que a obra de arte pode trazer em suas mais variadas manifestações. Diante disso, todo e qualquer processo de criação artística dialoga com a filosofia no sentido de que o artista se coloca como sujeito criador de sua obra. Essa concepção de arte admite a poiesis, isto é, a capacidade inventiva do artista, como ponto de partida para uma criação artística que confira identidade ao produto e seja resultado de um exercício de liberdade e autonomia de quem a produz. A arte, nesse sentido, se configura como uma linguagem na medida em que se apresenta como forma de organização do mundo, de transformação de experiências em objetos de conhecimento. 1 Carlos Cardoso Silva. A educação e sua dimensão fenomenológica, p. 79 O caráter de subjetividade da arte ligado a uma racionalidade inerente a si mesma enquanto tradução da realidade permite uma relação que transcende o caráter de reprodução do que existe no mundo para uma forma de arte: trata-se de uma reação cognitiva, de reconhecimento das estruturas do mundo por meio da linguagem artística. Pelo sentimento, dá-se, à obra de arte, expressão e ressignificação do mundo à volta de quem produz e aprecia arte. A crença nesse potencial criador da arte faz a ONG EMCANTAR se posicionar em favor do trabalho artístico em suas ações educacionais. Nos seus empreendimentos com alunos e educadores de escolas públicas e pessoas das comunidades de Araguari e Uberlândia-MG, a vivência artística é metodologia que contribui tanto para o desenvolvimento do senso estético dos participantes quanto de aspectos relacionados a saberes formais e à convivência. Nesse sentido, a música foi a linguagem que impulsionou os trabalhos educativos e artísticos desenvolvidos desde 1996. Além dela, outras linguagens artísticas foram incorporadas como as artes cênicas e a literatura, todas vivenciadas a fim de promover a divulgação da arte brasileira do ponto de vista de quem faz e quem aprecia arte. Por ser a música a linguagem predominante nas experiências educacionais da ONG EMCANTAR, os primeiros resultados desse trabalho, como a composição de letras e canções, são reflexo de um processo artísticopedagógico e filosófico. Possibilidade de unir arte e filosofia O panorama atual da produção artística, no caso específico da música, se apresenta como uma grande variedade de produtos culturais que não necessariamente são produzidos segundo critérios estéticos. Trata-se do fenômeno da indústria cultural, que se atém muito mais à comercialização de bens culturais do que propriamente com a propagação de obras artísticas que valorizem o processo de criação do artista. Diante disso, cada vez mais o público em geral tem acesso ao mesmo tipo de música veiculado nos meios de comunicação de massa, alimentando esse círculo vicioso da produção cultural brasileira. Paralelamente a esse movimento, há focos de manifestações artísticas que visam resistir a esse fenômeno de padronização dos produtos culturais oferecidos ao público em geral. Trata-se de movimentos de música independente, grupos culturais que, por meio de sua arte, mantêm a possibilidade de tornar cada vez mais diversa e rica a cultura do país. Diante dessa conjuntura, as oficinas empreendidas pela ONG EMCANTAR apostam nessa possibilidade de investir no fazer artístico enquanto processo educativo e criativo, potencializando a capacidade de criação e expressão dos participantes dessas atividades. Uma das alternativas vivenciada foi o processo de composição de letras para canções por alunos de escolas públicas de Uberlândia-MG. A contribuição da arte ao processo educativo se deu na medida em que o processo artístico-pedagógico de composição permitiu a inclusão de todos enquanto sujeitos dotados de criatividade e inventividade para produzir textos, melodias, arranjos para as canções. Todo participante pôde contribuir à sua forma num empreendimento coletivo. Além disso, o trabalho em grupo, o prazer em cantar e em brincar de música contribuíram para uma convivência ainda mais harmônica no grupo, promovendo além de conhecimentos específicos de arte, o aprender pela afetividade. O processo de construção das letras das canções O processo de construção das letras das canções utilizou métodos da filosofia enquanto possibilidade de criação conjunta, de fazer perguntas e descobrir, em grupo, as respostas. A escolha do tema de cada canção se deu por meio da experiência das crianças em suas pesquisas de palavras, termos e temas para composição de uma letra de música. Ainda que o tema escolhido não tenha sido estritamente filosófico, a experiência de elaboração de sentenças e raciocínios foi, verdadeiramente, uma experiência com o filosofar. O trabalho foi realizado com turmas das séries iniciais do ensino fundamental de escolas públicas de Uberlândia-MG e aconteceu de maneira espontânea, por meio de pesquisas individuais, debates em sala de aula e construção coletiva do produto final, isto é, as canções. Elegido o tema, foram criados momentos de conversas entre os participantes para concatenação das idéias exploradas nas pesquisas. As palavras, as frases e os significados se tornaram textos musicais. A conversa espontânea refletiu o processo de criação em que o artista dá vazão a sentimentos e raciocínios concretizados em obra de arte. A diversidade de opiniões fez surgir contradições que se resolveram na melodia e na expressão de quem interpreta a música. A canção apareceu quando a sonoridade do texto e das falas dos participantes foi musicada pelos coordenadores do trabalho e, apresentada a música, cada participante se reconheceu no processo de composição musical. Produto final: as canções A musicalidade dos textos inspirou os instrumentistas envolvidos no processo a traduzirem em forma de melodia a poesia do processo de composição. A letra produzida foi resultado do trabalho com apreciação de obras literárias e musicais ao longo das oficinas. A canção se apresentou como uma fotografia de cada turma em forma de notas musicais. Depois de pronta, a música foi apresentada aos participantes. Cada turma de alunos começou então o trabalho de interpretação de cada letra. Assim, foram suscitados outros significados que não tinham sido pensados no processo de produção do texto, além de as crianças se aventurarem a dar novas explicações para a letra produzida por eles. O trabalho de interpretação também se estendeu à forma de cantar e apresentar a música. Cada turma participante do processo teve a oportunidade de registrar em CD as composições feitas. Daí surgiram solos, sonoplastias e idéias diversas sobre como colorir ainda mais a música produzida. O processo de composição de canções aconteceu de 2006 a 2008 com mais de 200 alunos de escolas públicas de Uberlândia-MG por meio do Projeto Educando empreendido pela ONG EMCANTAR. Foram produzidas oito canções com temas como violência, brincadeira, a rotina na escola, a produção de papel reciclado, regras de convivência e situações inusitadas do dia-a-dia da criança. Conclusão “O encontro da educação com a fenomenologia redimensiona a nossa visão, a nossa percepção do ato de educar. A partir desse encontro podemos perceber a idéia de intencionalidade presente no educador e no educando, porque ambos a utilizam como elemento significativo para apreensão desse fenômeno, que é o aprendizado, e que se dá nas relações estabelecidas pelos seres humanos com o mundo.”2 2 Celso Fernando Favaretto. Notas sobre o ensino de filosofia, p.80 A proposta de ensino da arte por meio da filosofia se apresentou na atividade de criação de composições infantis. Foram alternativas para trazer à realidade desse público uma música de qualidade e que conferisse sentido a quem a escutava. Nesse sentido, a vivência da linguagem musical se deu a partir do conhecimento de elementos estéticos e de oportunidades para que cada participante se arriscasse enquanto artista. Dentre os aspectos pedagógicos desenvolvimentos por essa metodologia, podese assinalar a ampliação do vocabulário das crianças ao se trabalhar significados de palavras desconhecidas e linguagens diferenciadas como a linguagem textual e a visual. Além disso, foi realizado um trabalho de expressão corporal através do ritmo e o exercício da escuta das músicas estudadas e produzidas. Na relação da arte com a filosofia, identifica-se a riqueza do trabalho no sentido de possibilitar o exercício de “ser artista”, de ser criador e autor de uma obra artística. Além disso, o processo vivenciado despertou a percepção e a consciência corporal dos participantes, a interação entre os participantes do grupo, discutindo assim questões éticas e de convivência, e a capacidade criativa e livre da expressão artística. Algumas das letras produzidas O melhor dia do mundo (alunos da 3ª série – E.E. Profª. Alice Paes – 2006) A gente ri A gente se diverte Brincamos de casinha e pique esconde Pedimos uma porção de batata e um guaraná Brincamos de amarelinha e de nadar A gente pensa Tem vezes que até pega e fala que não pegou Pra brincar precisa de regra E que todo mundo concorde com a brincadeira Soltar pipa Queimada, Carimbada Corre cutia Bandeirinha estourada Polícia e ladrão, Balança caixão Repapel (Alunos da 3ª série – E.M. Professor Leôncio do Carmo Chaves – 2007) Um novo papel vamos criar Vai ser divertido. Quem tiver papel rasgado, picado, guardado Todo tipo vai usar Uma tesoura, meio quilo de papel Um liquidificador Um litro de água limpa, uma bacia grande Uma peneira e um pouco de cola Tesoura, mais papel, papel picado No liquidificador Papel picado, água, cola. Na peneira, tudo do liquificador Depois é só deixar secar por um dia. Papel virando papel Um novo papel já foi criado Foi tão divertido. Referências BRITO, T. A. Música na educação infantil. 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