Trabalho - Sintese Eventos

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Pressupostos ao Orçamento Participativo no Brasil:
determinismo histórico ou decisão política?
Érico Rodrigo M. Pereira1
Mestre em Ciências Sociais – UFRB
[email protected]
Resumo
Quer-se com esse texto examinarem-se as possibilidades para a existência de
administrações participativas nas várias localidades do Brasil - orçamento participativo,
levando-se em conta os diversos processos de formação histórica e o nível de
envolvimento da sociedade civil em assuntos de interesse público. Sendo elas mais
democráticas, mais desejáveis, portanto, do ponto de vista da Carta Magna de 1988,
emerge a curiosidade sobre se seriam possíveis de acontecer em quaisquer contextos,
inclusive no Nordeste brasileiro. Em não sendo, poderia restar a afirmação de que tais
constructos se constituem em soluções localizadas e insuficientes para sanar os déficits
de democracia de que padece o país, a qual se vê prenhe de vícios e limitações políticas,
tal como atesta a baixa representatividade dos eleitos pelo voto direto da população em
eleições gerais e irrestritas.
Palavras-Chave: Tradição Associativa, Orçamento Participativo, Estado e
Sociedade
Introdução
O orçamento participativo é um constructo situado teoricamente no contexto das
ciências sociais, que se propõe a tornar socialmente mais amplo o espectro de agentes
envolvidos na elaboração dos orçamentos públicos e, por conseqüência, das políticas
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Defendeu dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB,
com o tema Estado, Sociedade Civil e Orçamento Participativo: limites, possibilidade e perspectivas
para a emancipação social.
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públicas. Emerge em território brasileiro, segundo alguns autores, tornando-se bastante
conhecido a partir da experiência congênere acontecida na cidade de Porto Alegre,
capital do Rio Grande do Sul, o início dos anos 1990. Ganha projeção em termos de
mundo no âmbito das discussões havidas no Fórum Social Mundial, evento construído
para pensar outras formas de sociabilidade e convivência entre os povos, incluindo-se aí
questões políticas, econômicas, ambientais, sociais, dentre outras.
Nos termos em que aqui será discutido, é alvo de especulação sobre o móvel de seu
nascimento nos vários contextos sócio-políticos. Se apenas por vontade política, donde
bastaria determinação e empenho por parte da classe dirigente deste ou daquele
município, ou como consequência de condições históricas presentes nos inúmeros
espaços. O parâmetro principal será o estudo feito por Avritzer (2003), no qual se busca
saber das possibilidades de extensão do OP a outras tantas realidades, algo considerado
relevante, dados os eventuais benefícios gerados quanto ao quesito democracia.
Os estudos de caso utilizados serão os dos municípios de Lages (SC), Porto Alegre (RS)
e Vitória da Conquista (BA), tendo sido o primeiro deles pioneiro, na opinião de
Giacomoni (2002), o segundo amplamente público e conhecido, além de longevo, o
terceiro, por fim, situado em cidade para além dos limites geográficos da Região Sul do
Brasil. Este último, inclusive, tornou-se alvo de dissertação recentemente defendida em
universidade federal baiana. Espera-se serem os mesmo representativos o suficiente
para ao menos burilar respostas ao questionamento inicialmente feito.
Notas Metodológicas
Cabem algumas observações acerca dos caminhos metodológicos seguidos para
escrever este artigo. Escusado dizer, de início, que o presente texto não pretende, nem
de longe, esgotar toda a problemática posta por ele. O tema geral em que se insere –
orçamento participativo, é por demais amplo, sendo superlativas as polêmicas criadas
em redor dele. Basta ver os questionamentos suscitados contra instituições marcantes do
mundo ocidental, a exemplo do sistema liberal-representativo. Não! Seu objetivo é bem
mais modesto. Busca somente avançar um pouco mais em seara apenas esboçada em
dissertação recentemente defendida por este pesquisador.
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Apresenta-se como diversa essa temática, hajam vista as muitas vezes em que o OP foi
colocado em prática, ainda mais em sendo por gestões públicas influenciadas pelas mais
diferentes tendências teóricas e ideológicas. Foram muitos os municípios que
experimentaram tal forma contemporânea de alocação de recursos públicos e elaboração
de políticas para o setor não-privado da sociedade, os quais alcançaram resultados
específicos e adaptados aos contextos. Pelo que se percebeu a partir das pesquisas
especializadas já feitas, cada localidade apresentou muitas consequências próprias e
distinguíveis umas das outras. Foi o que aconteceu nos casos aqui estudados, o que não
invalida, de outro lado, seu uso nem estudo.
Em ordem cronológica, Lages, cidade de Santa Catarina, é referendada dentre as
experiências pioneiras de orçamento participativo no Brasil, segundo autores
especializados em orçamento. Porto Alegre, caso clássico, destacou-se tanto no assunto
que chegou a tornar-se quase sinônimo de orçamento participativo, principalmente na
década de 1990, quando o conjunto de ideias que hegemonizava em sua sede políticoadministrativa praticamente rivalizava em nível nacional contra projeto sustentado
politicamente por agremiação partidária situada em espectro ideológico oposto. Vitória
da Conquista, por fim, experimentou tal tipo de experiência do final dessa década até os
últimos anos da década seguinte.
É com estes três casos que se quer explorar sobre aspecto do OP na realidade brasileira,
tendo-se em mente as perspectivas de se estender tal constructo a outras localidades do
Brasil. Afinal, a Carta Magna de 1988 deixa bem clara a tendência de se mesclarem os
institutos da democracia participativa e da representativa, de que são exemplos tanto as
eleições diretas quanto os conselhos gestores e o orçamento participativo. Ainda uma
última nota. A expressão “determinismo histórico” não está aqui empregada em seu
sentido filosófico. Até porque inexistiria espaço para tanto. Constitui-se somente num
termo utilizado para definir eventual dependência de orçamentos participativos a
condições históricas específicas.
Referencial Teórico
Como já se disse, o tema “orçamento participativo” é não somente bem estudado como
bastante discutido no Brasil. E alguns autores se destacam nesta seara, sempre
levantando argumentos e analisando casos de aplicação dessa experiência. É o caso de
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Avritzer (2003), que organizou, dentre outros, balizada pesquisa sobre o OP de Porto
Alegre e de cidades circunvizinhas. À guisa de falar da conveniência e das dificuldades
de se ampliar o uso desse instrumento para o Brasil como um todo, esse estudioso
pergunta sobre as pré-condições necessárias para que tal aconteça.
O ser humano vive em comunidade. Disso já se sabe há algum tempo. Imerso nela,
cuida de suas tarefas cotidianas, entra em relação uns com os outros, amorosas ou de
amizade, organiza o ambiente das mais variadas formas, enfim, constrói-se e constrói
por consequência o agrupamento em que vivem. As implicações deste fenômeno, como
não poderia deixar de ser, são amplamente estudadas pelos mais variados pesquisadores.
Putnan (2002) o faz de forma aprofundada, buscando explicar o porquê das diferenças
de desenvolvimento entre diferentes regiões da Itália - Norte e Sul, e atribuindo tal
fenômeno ao que ele chama de civismo. Avritzer (2003) aborda o mesmo assunto, mas
o trata de forma diferente. Em suas pesquisas sobre orçamento participativo, ele tacha o
inter-relacionamento humano em grupos por tradição associativa.
Relativamente ao que interessa especificamente a este estudo, destaca-se do assunto
densidade associativa um dado das realidades históricas consubstanciadas no terreno
democrático e participativo dos municípios. No tocante a esta questão, Avritzer (2003),
após analisar cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre, além de Recife e
Chapecó, tira três conclusões interdependentes. Primeiro, ...
“... A experiência de Porto Alegre demonstra a importância do
associativismo comunitário em dois aspectos do OP: na capacidade de
forjar o sucesso inicial da proposta participativa e na capacidade de
democratizar a relação entre Estado e sociedade civil, através de um
crescimento constante da participação no OP. O caso de Porto Alegre
mostra, sobretudo, que o OP é capaz de se tornar a forma predominante,
senão exclusiva, de deliberação sobre recursos públicos incidindo de modo
positivo sobre a relação entre o estado e a sociedade...” (p.46-47).
Referindo-se especificamente ao caso de Porto Alegre, o autor afirma, dentre outros, a
importância que possui a densidade associativa no sucesso da proposta. Daí concluir por
uma relação direta entre esta característica nos vários contextos em que o OP foi
construído e o sucesso da ideia quando já concretizada. Conclui também que lugares
com poucas inter-relações sociais possuem menos chance de lograr êxito em propostas
participativas. Faltar-lhe-ia este pré-requisito fundamental. Em segundo lugar, ...
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“... Os casos da região da Grande Porto Alegre e de Icapuí mostram a
possibilidade de existência do OP em cidades nas quais não existe forte
tradição associativa. É importante, no entanto, mencionar que o OP não é
capaz de gerar uma infra-estrutura associativa nos casos em que ela não
existe, em particular, em cidades pequenas e de médio porte...” (p.46-47).
Esta outra conclusão, resultado da análise em outras regiões, já faz traz perspectiva mais
ponderada no tocante ao tema. É, sim, possível, concretizar uma tentativa de orçamento
participativo, mesmo em lugares onde os viventes não se relacionem de forma mais
intensa, segundo diz a primeira parte do excerto. No entanto, logo depois se re reafirma
a importância dessas relações. Além disso, fica clara a impossibilidade que possui o OP
de gerar tal densidade.
Em locais onde se fazem escassas, o OP se mostra incapaz de criá-la, o que traz
rebatimentos para o outro aspecto levantado anteriormente, a democratização das
relações entre Estado e sociedade civil. Essa segunda parte declara, acima de tudo, o
prestígio da tradição associativa para a democracia nas sociedades, e indiretamente, para
se forjarem orçamentos participativos. Por fim, ...
“... Não parecem existir evidências de que os casos de OP sem infraestrutura associativa tenham os mesmos efeitos democratizantes na
cultura política que aqueles com infra-estrutura associativa. Nesses casos,
podemos afirmar que o OP torna-se mais uma forma sistêmica de
implantar uma política distributiva e passa a ser completamente
dependente como política da capacidade de mobilização do governo
local...” (p.46-47).
Expondo a relação entre adventos de orçamento participativo, com e sem infra-estrutura
associativa, e qualidade da democracia praticada, o estudioso aponta vantagens para
contextos onde é forte e presente a tradição associativa. Em detrimento daqueles de tipo
diverso, que na prática desvirtuam o sentido do OP, qual seja, potencializar poderes à
sociedade civil, que se torna, dessa maneira, distante da influência direta do Estado.
Está aqui dito que nessas condições o orçamento participativo fica dependente da
capacidade de mobilização do aparelho estatal.
Estudos de Caso
Com a finalidade de verificar se o OP depende da tradição associativa – determinismo
histórico, ou da vontade política, faz-se agora análise de algumas tentativas de OP que
brotaram em diferentes localidades do território brasileiro. De pronto, a primeira delas é
a da cidade de Lages, em Santa Catarina, na década de 1970. Sintomaticamente, o autor
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do relato, Alves (1988), quer demonstrar, dentre outras coisas, a partir de seus registros,
que é possível reproduzirem-se muitas inovações vividas em Lages, mesmo estando-se
em região diversa do Sul. Mas patenteia uma condição: tendo-se em vista a quantidade
escassa de recursos à disposição dos municípios, dada a alta concentração de poderes
tributários em mão da União, é “um alto grau de organização da população”. Ou seja,
por suas palavras, o povo precisa estar organizado. Com este objetivo,
“A equipe Dirceu Caneiro começou a fazer isso por intermédio do MDB, criando
núcleos e subnúcleos do partido nos bairros e nos distritos. Uma vez no poder,
conquistado através da discussão de um programa concreto, passou a promover o
associativismo pelo incentivo à criação de associações de moradores, nos bairros
urbanos, e de núcleos agrícolas, nos distritos...” (ALVES, 1988, p. 30).
Não houve capacidade organizativa espontânea. Nesta cidade tornou-se indispensável
um partido político organizado para mobilizar a sociedade, muito embora houvesse nela
o impulso à mobilização, gerado no seio do próprio povo. É interessante, neste contexto,
a semelhança desse diagnóstico com aquele presente em Putnan (2002), resultado de
análise das diferenças de desenvolvimento econômico-social entre duas regiões
diferentes da Itália – o Norte e o Sul. Para este autor, cidades onde a população se
dispõe a construir laços de ajuda mútua, construindo relações horizontais, levam
vantagem sobre outras, nas quais nascem, necessariamente, relações verticais.
Enfim, retomando, foi importante para ambas as instituições – associações de
moradores e núcleos agrícolas, a participação de pais de alunos das escolas municipais,
promovida pela Secretaria de Educação. Observe-se que não se constituía uma
vicissitude estar organizado, senão uma necessidade. No contexto da proposta política
participativa em vigor na prefeitura, obras públicas eram decididas em reuniões, as
quais congregavam aqueles que se beneficiam diretamente delas. Está dito, inclusive,
que em muitos casos a própria população de determinada rua financiava seus
investimentos através der recursos pessoais. A prefeitura não possuía dinheiro para
tanto.
Talvez querendo encontrar uma explicação para o caráter organizativo e colaborativo do
povo daquele município, expresso em atos desse tipo, vale ver a opinião com que o
autor termina uma dos trechos que escreve.
“..., a palavra comunidade aparece nas conversas dos lageanos com muito mais
frequência que em outras partes do Brasil. E é essa articulação entre as pessoas
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que formam um grupo social que está presente no lema escrito por toda parte:
“Lages, a Força do Povo...” (ALVES, 1988, p. 31).
Do capítulo sobre a política brotaram duas observações bem interessantes. A primeira
diz respeito às reações das elites locais ao processo político implantado em Lages por
Dirceu Carneiro. A essa, o autor responde que, dadas as características da burguesia
local, é surpreendente não ter havido “reações mais duras por parte das classes
dominantes de Lages à atuação do prefeito”, a não ser quando a equipe de Dirceu
Carneiro levantou abaixo-assinado em favor dos metalúrgicos durante a greve do ABC,
em 1980. Ou seja, já àquela altura a reação das elites ao orçamento participativo não foi
de classe. Em segundo lugar,
“... O que a experiência de democracia participativa de Lages pretende
demonstrar são teses tão elementares que até já não lembramos que possam ser
definidas. Quer demonstrar que os problemas de uma comunidade só podem ser
resolvidos através da mobilização da força de trabalho e da capacidade intelectual
dos seus próprios membros. Quer demonstrar que, em uma sociedade, não existem
problemas isolados – por exemplo, só o problema da saúde pública, desligado dos
problemas da habitação ou do emprego – e, portanto, que o que se deve buscar são
resoluções globais, embora se reconheça a evidência de ser a globalidade formada
pela soma das soluções setoriais...” (ALVES, 1988, p. 121).
Tal experiência constituiu-se em algo marcante numa conjuntura dominada pela
presença no poder nacional de dirigentes que se impuseram por meio de Golpe Militar.
Registre-se que a partir de certo momento da história deste município, as condições sob
as quais se realizava a política administrativa mudaram. Ao invés de uma direção
municipal feita onipresente para resolver os problemas afetos à população, a
comunidade se fez presente, empenhando seu esforço para, em conjunto com a direção
política local, prestar apoio aos assuntos comuns. E o chefe da prefeitura se
responsabilizou por contagiar desse clima participativo a sociedade.
Mas não se tratava de passe de mágica. Algo naquela localidade a tornava propícia à
auto-organização, pois afinal, já foi dito, não era seu privilégio a falta de recursos
públicos, dada a estrutura tributária nacional concentrada em mãos do governo federal.
E também não deveria ser exclusividade sua o apelo à força dos municípios na
resolução dos próprios problemas, diante uma carga arrecadação tributária concentrada
em mãos federais. Foi muito imediata a resposta daquela comunidade específica aos
chamados da prefeitura por conta da falta de condições mínimas para atender às
demandas por benfeitorias públicas, de forma que a resposta poderia, assim, estar no
caráter socialmente formado das pessoas que ali viviam.
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Com efeito, constatou-se existirem naquele município pré-disposições especiais: a
capacidade associativa da população. Isso quer dizer que, à parte a iniciativa da
prefeitura, sob a liderança de um prefeito que defendia o estímulo aberto a que o “povo”
se organizasse, existiria outros fatores interferentes. Um deles, segundo apontado no
texto do estudioso que relatou a experiência, seria a “memória histórica”, que possuía,
no caso de Lages, uma herança com determinadas características. Havia nela o caráter
do associativismo. Devia-se tal dado à influência, primeiro, de “açorianos e portugueses
do Rio Grande”, que “desde cedo tiveram de se organizar para a guerra...” (ALVES,
1988, p.45). Em segundo, pelas “vagas de alemães, italianos e poloneses...”, que
herdaram as tradições de lutas contra a “tirania feudal” em seus países de origem (idem,
ibidem).
Percebe-se, assim, que havia densidade associativa no município. Analisando-se o caso
somente a partir disso se diria ser o orçamento participativo consequência do
determinismo histórico – de condições históricas, haja vista não ser possível criar-se o
mesmo em outros lugares apenas por decisão voluntária. Mas tal conclusão restaria
incompleta, pois se viu que o quesito vontade política se fez presente. Havia uma
prefeitura governada por alguém disposto a tornar participativa a gestão pública. Vê-se,
então, existirem os dois aspectos na tentativa de administração participativa na cidade
catarinense De um lado, a vontade política do prefeito municipal em tornar
descentralizada a administração, de outro, características específicas no seio da
sociedade civil que a transformam em terreno social receptivo a orçamentos
participativos.
À pergunta, então, sobre a vontade política ou determinismo histórico, esboçada no
título, cabe dizer quanto ao caso de Lages terem se combinado os dois aspectos. E podese dizer também ter sido essa combinação a causa do sucesso observado nesta
experiência. Tanto a proposta de OP foi forjada num terreno onde antes a mesma
inexistia quanto democratizou-se a relação Estado/sociedade, na medida em que a
própria população passou a ser artífice de sua história, à margem daquilo que a gestão
pública local podia ou não fazer em termos financeiros. À parte a iniciativa principal ter
partido do prefeito, a sociedade civil se mobilizou e fez valer a ideia.
Após este primeiro relato, passa-se incontinenti ao segundo, desta feita uma experiência
recente. Trata-se daquela ocorrida em Porto Alegre, a qual recebe o nome explícito de
Orçamento Participativo, inovação terminológica que implicava ao final o mesmo
sentido à gestão pública verificado em Lages: o caráter popular. O partido político agora
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à frente era o PT, sigla criada ainda em 1980, com caráter político-ideológico
diferenciado daquele defendido pelo MDB do prefeito da cidade catarinense. Eram,
diga-se de passagem, agremiações diversas, com pontos de vista semelhantes quanto à
gerência de cidades, embora a partir de pressupostos diferentes. Enquanto este possuía
bandeira em prol do municipalismo, aquele atraía para si a defesa de estratos
populacionais específicos.
Sem embargo, afirma Tarso Genro (GENRO & SOUZA, 1997) que o Estado, à época da
implantação do orçamento participativo, sofria de uma crise, a qual se caracterizaria,
primeiro, pela impotência de suas estruturas em dar respostas satisfatórias às demandas
“de parcelas importantes da sociedade” (idem, p.13); segundo, pelo “...aprofundamento
da sua intransparência e impermeabilidade para lidar com uma realidade social que se
estilhaça e produz incessantemente novos conflitos e novos movimentos...” (idem). Tal
compreensão se enquadrava na “desestruturação do modo de vida moderno, que tem na
destruição do mundo fabril tradicional (típico da Revolução Industrial) e da estrutura de
classes que ele ensejava o seu exemplo mais paradigmático...” (Genro & Souza, 1997,
p.13).
Na continuidade da apreciação feita, Tarso Genro entende o processo enquanto
completo em si, pois afirma ter o OP construído um novo locus de referência políticoadministrativa, que ao lado dos já existente Executivo e Legislativo, “... democratizaram
efetivamente a ação política e integraram os cidadãos comuns num novo “espaço
público”, que “... potencializou o exercício dos direitos da cidadania e instigou os
cidadãos a serem mais exigentes e mais críticos...”. Em sua visão, mecanismos feito o
OP, entendido como “...a abertura de um caminho...” devem ser usados para “...
recuperar a credibilidade do Estado mediante uma experiência de nível local e, de outra,
para mostrar que é possível reformá-lo radicalmente...colocando-o a serviço dos
interesses populares...” (idem, p.12).
Por fim, este intelectual aborda outros assuntos, segundo ele, também correlatos ao OP.
Em primeiro lugar, a questão da opinião pública, que estaria ganhando em qualidade e
diversidade, pois os cidadãos, nas próprias assembleias, tinham passado a discutir
assuntos coletivos, às margens dos marcos da grande media. Ao contrário dos editoriais
massificados desta, notícias produzidas a partir da realidade dos moradores dos vários
bairros, cada qual, em sua vez, abordando as diversas problemáticas do ponto de vista
individual e singular. A influência que certas classes teriam sobre o Estado seria
conhecida e discutida desta forma, tendo como resultado cidadãos ativos, agindo e se
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formando em conjunto. Ao contrário do cidadão tradicional, um novo, participante e
crítico.
A experiência de que aqui se trata se enquadra, também no raciocínio do mesmo
estudioso, numa tentativa maior de fundar constructos políticos novos, responsáveis por
“democratizar radicalmente a democracia”, “pela reforma ou pela ruptura”. Isso porque
se constatava, há muito tempo, que a democracia política facilitaria o acesso ao poder às
classes privilegiadas, limitando a mesma possibilidade ao cidadão comum. O poder
econômico exerce, neste contexto, enorme influência no Estado, o que gera a
necessidade não somente “de um novo projeto emancipatório que incorpore eleições
periódicas e universais, com regras justas e universais, mas obriga a que pensemos
também em novas e criativas formas de influir no poder, para torná-lo sempre mais
democrático...” (Genro & Souza, 1997, p.18).
Abordando a questão da liberdade, Genro expõe a relação deste conceito com o OP,
afirmando que este é:
““... uma experimentação altamente positiva para o “poder local” e também
aponta para uma forma universal de dirigir o Estado e de criar um novo tipo de
Estado...(...)...que combine a representação política tradicional (ou seja, eleições
periódicas e previsíveis) com a participação direta e voluntária dos
cidadãos(criando formas de co-gestão), para que os representantes eleitos pelo
sufrágio universal e os participantes da democracia direta e voluntária gerem
decisões cada vez mais afinados com os interesses da maioria...”” (GENRO &
SOUZA, 1997, p.22).
Um aspecto precisa ser ressaltado, no entanto, antes que se prossiga. Trata-se de questão
abordada em livro de Sader (2001), a qual tem por título “Quando Novos personagens
Entraram em Cena”. Ou seja, ao lado de ressaltar o nome do partido político que geria
determinada prefeitura quando do nascimento de experiências de OP, torna-se
fundamental citar esses novos personagens, que são exatamente os movimentos sociais.
No prefácio da obra, a propósito, a professora Marilena Chauí afirma que são novos, em
primeiro lugar, porque criados “pelos próprios movimentos sociais do período”; em
segundo, “porque se trata de um sujeito coletivo e descentralizado”; em terceiro lugar,
por serem “engrenagens da máquina organizadora”. Vivia-se conjuntura de muita
efervescência por aquela época, e a participação dos movimentos sociais fez-se
determinante.
O próprio Eder Sader (2001) a eles se refere como portadores de novas realidades para
os estratos populacionais economicamente periféricos, sendo, de outro lado,
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instituidores de formas inovadoras de expressão social. Ao mesmo tempo, baseiam-se
em atitudes que visam à busca direta de suas demandas, no que põe abaixo todo o
excesso de ênfase que existia sobre os poderes da institucionalidade vigente. Em virtude
disso, fazem emergir com força a noção de que podem construir sua própria história,
independentemente dos desígnios atribuídos ao Estado. Alargando, dessa forma, a
“própria noção de política” e de espaços institucionais pré-estabelecidos, mudam o foco
para a necessidade da luta na conquista de direitos. Sua força e perspicácia se
impuseram, resultando em transformá-lo num elemento constitutivo da realidade
brasileira a partir da década de 1970.
Santos (2005), referindo-se especificamente à realidade porto-alegrense durante o
período ditatorial, em sua importante pesquisa acerca da hegemonia e da contrahegemonia que a, afirma que a ...
“... A oposição foi dirigida por intelectuais, por sindicatos e pelo único
partido de oposição legalizado, o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), que incluía as organizações clandestinas que se opunham à
ditadura militar – quer socialistas e comunistas, quer revolucionáriocristãs. Dado que a situação política tornava inviável quase toda a luta
política em nível nacional, as organizações acima citadas centraram a sua
atividade no fortalecimento dos sindicatos e dos movimentos comunitários,
como as associações de rua e de moradores, os clubes de futebol, as
cooperativas, os clubes de mães, os grupos culturais etc...” (SANTOS,
2003, p. 463).
Quanto ao móvel para a emersão desse orçamento participativo, portanto, à maneira do
que aconteceu em Lages, também foram importantes tanto a vontade política quanto
condições históricas, pois de um lado o constructo teve como início a determinação do
prefeito em tornar aberta e ampla a gestão à frente da cidade; de outro, Porto Alegre já
contava com forte densidade associativa, principalmente por conta do acontecido na
década de 1980. Santos (2005) assim novamente se pronuncia no momento em que cita
as bandeiras de luta estampadas pela UAMPA (União das Associações de moradores de
Porto Alegre), entidade criada em 1983. Segundo atesta, o Congresso realizado por esta
em 1985 elegeu como motes de reinvidicações, além de habitação, ensino, saúde,
direitos humanos e emprego, a ““efetiva democratização das estruturas políticas em
nível federal, estadual e urbano”” (p.464).
Após Lages e Porto Alegre, fala-se agora da experiência recente de Vitória da Conquista
(BA), por meio do texto dissertativo defendido por Novaes (2011). Para tanto, este traça
longo percurso teórico de embasamento, onde aborda temas correlatos ao seu objeto de
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estudo, a saber, a Reforma do Estado, o Orçamento Participativo no contexto da teoria
democrática, o Orçamento Participativo e a Gestão Pública Societal, finalmente, o
Orçamento Participativo no Brasil. O estudioso pretende, com esta pesquisa...
““... compreender a capacidade do orçamento participativo de Vitória da
Conquista atuar como um instrumento que efetivamente democratiza a gestão
pública municipal, viabilizando uma gestão pública societal, contribuindo para a
criação de “espaços públicos” de participação da população, de modo que esta
influa efetivamente nos destinos dos recursos públicos e na formulação de políticas
públicas municipais...””(NOVAES, 2011, p. 22).
Antes de desenvolver ideias a respeito dessa experiência e responder a essa pergunta, no
entanto, ele as descreve em suas partes estruturais e em seu modo de funcionamento.
Sem embargo, destaca que o mesmo “funciona com uma coordenação geral e uma
Gerência de Mobilização Social e OP”. Além destes,...
“... que são órgãos permanentes da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista,
com cargos de livre nomeação do Prefeito, existe o Conselho do Orçamento
Participativo, eleito em cada Congresso, realizado normalmente de dois em dois
anos, e composto por delegados representantes de cada plenárias das zonas
urbana, rural e das plenárias temáticas” (NOVAES, 2011, 84-85).
Destaque-se desde já a forte presença institucional à frente do processo. Após tal
constatação, segue-se com um pouco da dinâmica do OP de Conquista, donde consta a
abrangência do planejamento, definido como foi por órgãos institucionais e societais.
Ao lado da estática, que acaba de ser comentada em breves linhas, a parte que segue
permitirá o conhecimento mais amplo dos aspectos envolvidos. Veja-se, a propósito,
que as estruturas adotadas trazem implicações sérias ao caso como um todo, revelando
mesmo as causas de algumas deficiências de que padeceu aquela esta experiência
específica.
“... Em Vitória da Conquista, o Conselho do Orçamento Participativo, o Gabinete
do Prefeito e a Secretaria Municipal de Planejamento definiram oito eixos,
envolvendo todos os segmentos da sociedade. As três regiões inicialmente previstas
transformaram-se em 23 regiões e foram criadas 14 Plenárias Temáticas. Quase
todas as temáticas propostas são atendidas no OP, sendo que para iniciar as
discussões em uma plenária e eleger delegados exige-se um quórum mínimo de dez
delegados. No caso de temáticas como Quilombolas, Setor Produtivo e GLBT
(Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros) não foram eleitos delegados no
período de 2002 a 2007, outras temáticas não elegeram delegados em determinados
anos...” (NOVAES, 2011, p.86).
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Ao lado da amplitude verificada quanto ao temário proposto para discussão, muito
importante dada a complexidade derivada dos múltiplos aspectos de que se compõe um
conjunto tão dispare de cidadãos, os prazos que vinculam a experiência particular ora
estudada ao ritmo dos institutos estatais. O funcionamento do orçamento participativo
segue pari passu os momentos institucionais. Nada estranho, aliás, haja vista ter
acontecido o mesmo na experiência de Porto Alegre (GENRO & SOUZA, 1997).
“... Todos os anos é aprovado um cronograma para as discussões do OP, com três
meses para discussões em plenárias, prevendo-se o prazo de quinze dias, após a
última plenária, para a realização do Congresso do OP. Todavia, o prazo máximo
para a realização do Congresso é o dia quinze de agosto, posto que o prazo para
encaminhar a proposta de Lei Orçamentária Anual (LOA) à Câmara de
Vereadores é o dia trinta do mesmo mês...”(NOVAES, 2011, p.86).
Tal como ocorre ao OP de Porto Alegre, dá-se aqui a integração do orçamento feito pela
comunidade com institutos da estrutura estatal. Atente-se a isso: o processo encontra-se
submetido aos ditames estruturais do Estado e ao seu ritmo. É forçoso admitir, além de
tudo, que a Câmara de Vereadores pode, em tese, recusar tudo aquilo que foi feito pelas
assembleias de discussão realizadas no processo, pois se encontra investida de
autoridade política – eleita pelo povo, e legal. Então, algo que se propõe a ser “nãotradicional” (GENRO & SOUZA, 1997, p.12) e societal submete-se, ao final de tudo,
ao que existe de mais tradicional.
Da forma como foi construído o OP de Conquista, a prefeitura se torna figura
importante e central no processo. Veja-se que o orçamento participativo nesta cidade
nasce enquanto algo responsável por reforçar o executivo contra as forças “opositoras”
da Câmara Municipal e dos Governos Estadual e Federal da época (NOVAES, 2011).
Ou seja, traz em si como iniciador um chamamento da prefeitura. A decisão política foi
aqui peça importante para o nascimento de tal tentativa de tornar mais amplo o processo
de confecção e elaboração de políticas públicas.
Em nível de conclusão acerca do que pesquisou Novaes (2011), cabem algumas
considerações pontuais feitas pelo próprio, que possibilitam, por sinal, uma visão
derivada dos dados vistos e analisados.
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“... A experiência participativa em Vitória da Conquista surgiu em meio a uma
conjuntura onde prevalecia uma crise política, administrativa e financeira da
prefeitura municipal, forçando a gestão iniciada em 1997 a buscar alternativas de
solução dos graves problemas encontrados. Frente a uma prefeitura municipal
desacreditada, endividada e sem capacidade de investimentos, a nova gestão
enfrentava ainda forte oposição na Câmara de Vereadores e dos governos estadual
e federal. Essa realidade levou o Governo Participativo a desenvolver uma
estratégia política para a obtenção do apoio necessário para enfrentar o grave
quadro da gestão pública municipal. A estratégia envolvia a defesa de propostas de
gestão que se aproximavam de uma democracia participativa, como a proposição
do orçamento participativo e depois dos conselhos gestores, conferências de
políticas públicas, Conferência da Cidade, Agenda 21, novo Plano Diretor Urbano
e outras...” (NOVAES, 2011, p.170).
“... A abertura à participação popular foi uma estratégia para conquista de força
política para enfrentar a oposição e também para encontrar o suporte necessário
para implementar as medidas políticas e administrativas que eram necessárias
naquele momento. Ao mesmo tempo, prevaleceu a vontade política de abrir a
gestão municipal à participação da população, chamada para inteirar-se da
precária situação financeira da municipalidade e para opinar sobre as soluções que
deveriam ser adotadas, que passavam principalmente pelo orçamento do
município e pela ideia do orçamento participativo. Iniciava assim um processo de
“encontro” entre a sociedade civil e o governo municipal, uma tentativa de atuação
conjunta do Estado e da sociedade civil para a criação de “espaços públicos”
(DAGNINO, 2002a)...” (NOVAES, 2011, p.171).
Aqui, de forma explícita, a maneira como funcionou todo o processo, ainda nas palavras
conclusivas de Novaes (2011). Na verdade, já se viu abertamente o porquê do
orçamento participativo em Vitória da Conquista: obtenção de apoio político por parte
do poder público na luta contra “opositores” institucionais. Cabe ver se tal fato não
colocou em risco o objetivo maior visado pelas experiências de OP: causar participação
social. Ou seja, maiores níveis de democracia, entendida esta como participação efetiva
da sociedade na gestão do Estado.
“... Depreende-se na análise da participação social na gestão municipal de Vitória
da Conquista a existência da vontade política dos dirigentes municipais em
implantar o orçamento participativo e outras formas de participação popular,
levando à ampliação da participação social na gestão local, mas também há
evidências que tal abertura à participação foi concebida enquanto estratégia de
obtenção de apoio junto a segmentos mais amplos da população municipal de
modo que a gestão fosse capaz de implantar as medidas administrativas e políticas
que considerava necessárias...” (NOVAES, 2011, p.172).
Havia neste contexto ideias inovadoras quanto à gestão pública. Ambicionava-se a
construção de “uma gestão pública societal”, algo existente num contraponto ao Estado
Gerencial. A busca se concentrava em modelos de gestão pública articuladores das faces
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sociedade civil e sociedade política, estes já bastante conhecidos no presente estudo. Ao
evitar modelos incentivadores da concentração de poder no Estado, tornavam-se
comuns a esta alternativa expressões como “conselhos gestores de políticas públicas”,
“fóruns temáticos”, “o orçamento participativo”, que se colocavam assim como partes
componentes das ideias societárias, além de outras tantas. À sociedade civil deveria
caber papel fundamental no processo de gestão da coisa pública, cujo símbolo maior
era, até aquele momento, as estruturas estatais.
São resultados que podem ser apontados deste processo, segundo Novaes (2011). Em
primeiro lugar, que o OP contribuiu pouco na democratização da gestão pública do
município. Ao longo de seus quinze anos de existência, não logrou funcionar
regularmente, convocando seus fóruns; deixou de atender demandas da população que
haviam sido discutidas em assembleias; não se constituiu em canal direto para a
participação ordinária da sociedade civil nos assuntos do município. Acima de tudo,
passou ao largo de ser o embrião de formas societárias de exercício do poder, o que
resultou em “insatisfação, frustração e descrédito junto a alguns segmentos da
população, notadamente em algumas áreas urbanas...” (NOVAES, 2011, p.172).
Comentário Críticos
Viram-se sucintamente expostos três casos de orçamento participativo. Em todos eles, a
curiosidade acerca dos móveis para suas existências, mais especificamente, sobre se o
nascimento de cada um deles se deu por conta de vontade política ou condições
históricas. Trata-se, na verdade, de experiências bastante específicas, com
características díspares e únicas, pois afetas a contextos históricos também ímpares.
Lages fez, de longe, a mais descentralizada, pois a influência exercida a partir do centro
irradiador – a prefeitura, foi sentida pelos vários cantos da cidade, haja vista a
quantidade de associações e cooperativas que emergiram. Porto Alegre, por sua vez,
sediou OP com estrutura localizada em locais específicos, para cujo funcionamento
tornou-se necessário o chamamento à população às reuniões consultivas e deliberativas.
Vitória da Conquista, por fim, repetiu praticamente aquilo que se verificou na capital
rio-grandense. Munícipes foram convocados a sugerir demandas ao poder público.
Comum a todos eles, a iniciativa da prefeitura, agente dinamizador dos respectivos
processos.
No tocante ao aspecto do associativismo – Avritzer (2003) ou capital social – Putnan
(2002), algumas observações precisam ser feitas. Levando-se em conta o material
bibliográfico consultado, tal característica ficou explícita nas cidades de Lages e de
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Porto Alegre, na primeira por conta do próprio relator do processo de OP ali existente,
na segunda, através de outros pesquisadores que sobre o mesmo fenômeno se
debruçaram. Quanto ao terceiro município, segundo a leitura feita, não ficou explicitada
a presença do aspecto citado - embora tenha havido grande afluência da população às
plenárias e reuniões organizadas pela iniciativa da prefeitura, ficando claro, de outro
lado, que o orçamento participativo na cidade baiana não democratizou as relações
Estado/sociedade como se desajava, conforme opinou Novaes (2011). Apesar disso,
houve, nos três casos, tentativas concretas de abrir grandes decisões da cidade ao crivo
da participação popular, as quais funcionaram por um bom tempo. Não estaria, assim,
necessariamente configurada nestes casos a imprescindibilidade de redes densas de
relações sociais, da mesma forma que o está quanto à liderança da gestão pública do
município no processo.
Considerações Finais
O orçamento participativo é um instrumento através do qual se pode fazer a distribuição
e alocação de recursos públicos de forma mais ampla, pois envolve setores sociais para
além daqueles pertencentes ao aparelho político-administrativo do Estado. Não possui
uma fórmula pré-estabelecida, ficando os agentes interessados incumbidos de encontrar
o arranjo institucional mais adequado às suas necessidades. Os casos aqui expostos
aconteceram, por exemplo, de maneira particularizada, indo daqueles baseados em
reuniões e assembleias locais até outros nos quais os estímulos pró-participação se
espraiaram por toda a cidade (em Lages, melhor nome ao fenômeno seria administração
participativa).
Lages, Porto Alegre e Vitória da Conquista eram municípios brasileiros que possuíam
em comum um problema: falta de participação popular na administração pública. Os
negócios públicos se passavam como se de interesse restrito de alguns agentes fossem.
A população era posta à margem das questões fundamentais, restando um Estado opaco
e inacessível às interferências da sociedade civil. Além disso, sofriam de escassez de
recursos suficientes para darem conta das demandas regulares da administração,
característica tornada mais explícita em Porto Alegre após a adoção do orçamento
participativo, promessa de campanha. Chamar a sociedade civil a participar dos destinos
da cidade serviu, assim, aos dois aspectos. De um lado se angariava apoio político às
medidas tomadas e à própria gestão, de outro, se discutia em conjunto com todos as
saídas à crise financeira.
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A Carta Magna de 1988 trouxe inovações importantes à ordem constitucional brasileira.
Contraditoriamente fruto de período onde as liberdades foram cassadas, ensejava
mudanças básicas nas maneiras de expressão e de participação da sociedade civil na
vida pública. Ao lado de patentear formas indiretas – democracia representativa,
focalizava a democracia direta por meio de mecanismos através dos quais se fazia
presente a voz civil, de que são exemplos os conselhos de gestão e os orçamentos
participativos. A centralização de período anterior, assim, perdia espaço à
descentralização conquistada em jornadas populares de luta, abrindo possibilidades à
democracia participativa. Neste ensejo, inúmeros municípios Brasil puderam ousar em
busca de novos ares políticos.
Mas podia qualquer dessas cidades gozar da inovação “orçamento participativo”? Com
esta preocupação se expressaram pesquisadores do assunto. Neste bojo também se
inscreve o presente artigo sob a controvérsia determinismo histórico/vontade política.
Dependeriam as várias localidades apenas de vontade política do governante para tornar
participativo o orçamento ou fariam parte da equação elementos como a tradição
associativa? Caso predominasse o primeiro aspecto, somente aquelas localidades que
contassem com fortes laços de relacionamento entre todas as pessoas poderiam tentar
orçamentos ou administrações participativos. O que transformaria a solução em algo
restrito e determinístico. Fosse o segundo o predominante, quaisquer um lograriam êxito
no intento. Bastava que o gestor público se dispusesse a fazê-lo.
A literatura especializada estabelece relações entre tradição associativa e orçamento
participativo. Estudando casos concretos, afirma primeiro que o associativismo é não só
responsável por forjar o sucesso inicial da proposta como também em democratizar os
laços Estado/sociedade. Segundo, se de um lado diz ser possível o nascimento de tais
experimentos onde não exista essa característica, de outro afirma que os mesmos não se
mostram capazes de criá-la, principalmente em cidades de pequeno e médio porte. Por
fim, orçamentos participativos sem infra-estrutura associativa deixam dúvidas quanto à
capacidade que possuem de democratizar as trocas Estado/sociedade, ficando, nestes
casos, tais experimentos reféns da capacidade de mobilização do aparelho estatal. Sendo
assim, o aspecto da densidade associativa torna-se fundamental, pelo menos nos marcos
aqui expostos.
O curioso nos três casos estudados – Lages, Porto Alegre e Vitória da Conquista, é que
embora a participação popular tenha sido forte, o poder público se fez o responsável por
provocar o estímulo inicial para a elevação da proposta. Nessas cidades, a conjunção de
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esforços entre sociedade e governo se colocou como o responsável no empreendimento,
dado, aliás, bem marcante no município catarinense. No caso da cidade baiana concluiuse que o orçamento participativo não gerou a democratização Estado/sociedade
desejada. Na capital do Rio Grande do Sul, por sua vez, sobressaía forte associativismo.
Densidade associativa e vontade política se constituem, assim, em fatores primordiais
na emersão de orçamentos participativas. Lembrar, no entanto, que estes nascem mesmo
não existindo associativismo. Nestes casos, a tão almejada relação Estado/sociedade
resta verticalizada, com o Estado tomando a iniciativa no processo.
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