Pesquisa desfaz estereótipos sobre antigas cidades gregas

Propaganda
Pesquisa desfaz estereótipos
sobre antigas cidades gregas
É frequente identificar a antiga cidade grega apenas com seu
núcleo urbano visível, especialmente com a Acrópole de Atenas.
Visitantes diante do Parthenon, na Grécia: as pequenas cidades
e o mundo rural eram bem mais relevantes do que fez supor a
antiga historiografia. Getty Images
Mas pesquisas arqueológicas demonstraram que a pólis englobava
área extensa, incluindo uma parte eventualmente mais
urbanizada (ásty) e outra de povoamento menos denso (khôra),
onde se praticava a agricultura, a pecuária, a coleta de
lenha, mas também se morava.
A multifacetada relação entre centro e periferia na
organização da pólis é objeto de dois Projetos Temáticos
apoiados pela FAPESP: “A organização da khôra: a cidade grega
diante de sua hinterlândia” e “Cidade e território na Grécia
antiga: organização do espaço e sociedade” (concluído).
Esses estudos vêm ajudando na revisão em profundidade da
organização social e da vida cotidiana da Grécia nos períodos
arcaico e clássico.
“Nossa visão do mundo grego foi muito sugestionada por uma
certa conotação atribuída à palavra ‘política’, que é um
adjetivo derivado de pólis. E é este o principal conceito que
estamos revendo”, disse a historiadora Maria Beatriz Borba
Florenzano, professora titular de Arqueologia Clássica no
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
(MAE-USP) e coordenadora dos projetos.
“Desde a criação dos Estados nacionais europeus, no período
compreendido entre os séculos XV e XIX, o que se procurou na
Antiguidade foram os aspectos relacionados com a autoridade, a
estrutura de poder, as instituições etc. Então, a famosa frase
de Aristóteles, de que ‘o homem é um animal político’, foi
entendida em termos de organização em facções, de disputa pelo
controle do Estado, de participação no governo ou na oposição
etc. Mas, se fizermos uma leitura mais acurada, veremos que,
ao empregar a palavra ‘política’, Aristóteles se referia a uma
forma de vida específica do mundo grego, centrada na
organização em cidades enquanto espaços extensos, englobando a
ásty e a khôra, e não apenas à participação nas instituições
que hoje chamamos de ‘políticas’, no sentido estrito da
palavra”, prosseguiu a pesquisadora.
Florenzano enfatizou que essa abordagem revisionista é fruto
da recente pesquisa arqueológica, que possibilitou uma
releitura ou uma melhor contextualização dos textos clássicos.
Nesse processo, o Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga
(Labeca) vem dando sua parcela de contribuição. Fundado em
2006 no MAE-USP, o laboratório está estreitamente vinculado
aos dois projetos temáticos citados.
“A historiografia sempre se baseou no estudo dos textos
antigos. Mas a arqueologia permitiu desvelar outros aspectos,
que os textos não mostravam. E essas são informações que o
Labeca tem procurado difundir”, afirmou. Materiais diversos
disponibilizados pelo laboratório podem ser acessados no site
da instituição.
A visão da antiga Grécia oferecida por esses materiais é bem
diferente da convencional. Havia, é claro, uma helenidade:
todos falavam grego; até a região ser submetida pelo Império
Macedônico, no século IV a.C., a sociedade se organizava em
cidades independentes e não em um Estado centralizado; o
panteão era um só (embora determinados deuses ou deusas fossem
mais cultuados em um lugar do que em outros, ou fossem
cultuados com certos atributos em um lugar e com atributos
diferentes em outros).
Mas as pequenas cidades e o mundo rural eram bem mais
relevantes do que fez supor a antiga historiografia. “Havia
numerosas poleis com não mais do que mil habitantes e havia
também algumas grandes poleis, como Atenas, com 150 mil
habitantes, ou Siracusa, com 100 mil”, informou Florenzano.
“Antigamente a historiografia valorizava muito os grandes
templos, localizados na ágora, a praça central da cidade
antiga. Mas, quando inserimos esses grandes templos no
contexto geral da pólis, percebemos que eles estavam
conectados com outros espaços sagrados, distribuídos pela ásty
e pela khôra. Havia caminhos específicos ligando uns aos
outros e o conjunto dos caminhos formava uma rede que
articulava o território todo”, afirmou.
“Verificamos, então, que o domínio da cidade se estendia sobre
um território muito maior do que o núcleo densamente povoado.
E podemos entender também as referências feitas nos textos
antigos aos percursos por onde se deslocavam as procissões –
como a grande procissão que integrava Atenas à cidade de
Eleusis, onde eram celebrados os mistérios associados aos
cultos das deusas agrícolas Deméter e sua filha Kore (a forma
virginal e terrestre de Perséfone). São percursos que
energizavam todo o território, dotando-o de uma sacralidade
específica”, disse a historiadora.
Um exemplo específico, estudado pela professora Elaine Farias
Veloso Hirata, pesquisadora do laboratório, foi a instauração
do culto às duas deusas (Deméter e Kore) em Gela, cidade
fundada pelos gregos na Sicília (hoje região autônoma da
Itália).
O estudo foi descrito no artigo “As práticas religiosas e a
organização do espaço na Sicília arcaica: artefatos e
estruturas entre a ásty e khóra em Gela”, publicado como
capítulo do livro Imagem, gênero e espaço: representações da
Antiguidade, de Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
(organizador)(Niterói, Editora Alternativa-Capes, 2014).
“Nossa hipótese de pesquisa centra-se no papel desempenhado
pelas áreas consagradas a Deméter-Kore, localizadas nos
arredores da ásty, nos limites da khóra, como marcas
territoriais do domínio greco-balcânico sobre a planície
interiorana agriculturável ocupada pelas populações locais”,
escreveu a historiadora.
Segundo Hirata, os santuários dedicados a essas deusas
agrícolas (eram 25 na área de Gela) foram uma forma de os
gregos, vindos de fora, se aproximarem das populações nativas,
tornando manifesta sua presença e garantindo as posições
conquistadas.
Nessas áreas sagradas, eram realizadas as tesmofórias,
festividades celebradas em honra a Deméter-Kore, nas quais
estava interditada a presença de homens e só podiam participar
as mulheres casadas com cidadãos.
Este e outros exemplos divergem do modelo construído pela
historiografia tradicional de uma sociedade em que os únicos
agentes históricos eram os cidadãos – categoria que excluía
mulheres, crianças, estrangeiros e escravos.
O subtema foi desenvolvido pelo historiador Fabio Augusto
Morales Soares no artigo “Cidadãos e habitantes: por uma
dialética da pólis”, publicado como capítulo do livro Estudos
sobre a cidade antiga, organizado por Maria Beatriz Borba
Florenzano e Elaine Farias Veloso Hirata (São Paulo, Editora
da Universidade de São Paulo, 2000), que contou com apoio para
publicação da FAPESP.
“A historiografia do final do século XIX ao final do século XX
tendeu a pensar a pólis como categoria central na organização
narrativa da ‘história da Grécia antiga’, e essa pólis era a
Atenas do período clássico; a pólis se identificava com uma
‘comunidade de cidadãos’, ou ‘comunidade de cidadãos em suas
instituições’ (…)”, escreveu Soares.
No artigo, o historiador apontou várias tentativas, feitas na
historiografia contemporânea, para incluir como sujeitos
históricos os habitantes não cidadãos (mulheres, crianças,
estrangeiros e escravos).
E concluiu, escrevendo: “Se, por um lado, os cidadãos
procuram, institucionalmente, monopolizar a política e,
portanto, a apropriação da pólis, identificando-se com ela e
formulando seus ‘outros’, os não cidadãos dispõem de meios não
institucionais de prática política, pela qual eles se
apropriam, como sujeitos políticos, da pólis vista como
comunidade dos habitantes”.
Em seu estudo de mestrado, apoiado pela FAPESP, Soares estudou
especialmente o exemplo de Lísias, célebre orador de
ascendência estrangeira do período clássico: “A democracia
ateniense pelo avesso: os metecos e a política dos discursos
de Lísias”.
Reestudo do material disponível
A Grécia vem sendo escavada desde o Renascimento. Os museus e
os institutos de patrimônio europeus têm arquivos e
publicações repletos de materiais.
A massa documental é gigantesca. Considerando essa variável e
a dificuldade em obter autorizações para realizar novas
escavações na Grécia, na Itália ou na Turquia, os
pesquisadores do Labeca optaram por reestudar o material
disponibilizado pelos arquivos e publicações.
“É claro que fizemos também várias viagens a campo, para
recuperar bibliografia e mapas antigos e para visitar,
fotografar e filmar os sítios arqueológicos, porque os nossos
projetos também se inserem em uma arqueologia da paisagem.
Levamos equipes e alunos, montamos bancos de dados,
estabelecemos muitos contatos, na Grécia, na Itália e na
França, mas não realizamos escavações”, afirmou Florenzano.
O projeto temático em curso, coordenado por ela, enfoca
principalmente as muitas maneiras encontradas pelos gregos
para ocupar o território de suas cidades e marcar fronteiras
com outros gregos e os não gregos.
Por José Tadeu Arantes, da AGÊNCIA FAPESP
Fonte original da notícia: Exame.com
Download