1. Introdução: um breve percurso histórico A Neurolinguística, precedida por estudos realizados no século XIX, tem se firmado como um dos mais promissores domínios da ciência da linguagem. Inicial e tradicionalmente pautada, por um lado, pelo localizacionismo estrito e pelos pressupostos do modelo biomédico e, por outro, pelo estruturalismo linguístico e pelos modelos sociais acerca da saúde e da doença, a Neurolinguística tem abrigado nas últimas décadas, como veremos neste capítulo, uma agenda heterogênea de questões provindas seja de modelos cognitivos, seja de modelos interacionais sobre nossa vida mental. Um deslocamento epistemológico no campo, do cognitivismo ao interacionismo, que se dá especialmente a partir dos anos 1980, é possível ser observado em manuais ou livros-texto publicados a partir desse período, como o de Lesser e Milroy (1993), Goodwin (2003), Alshén (2007). Do ponto de vista da demarcação do campo, as definições e as descrições concernentes ao interesse teórico e metodológico da Neurolinguística encontradas na literatura da área revelam que as fronteiras que delimitam seu objeto – as relações entre linguagem, cérebro e cognição - são de fato movediças. Assim, não é de estranhar que a Neurolinguística, enquanto disciplina do conhecimento, resulte de verdadeiros clusters de influência, integrando em torno de seu objeto diferentes áreas como a Linguística, as Neurociências, a Filosofia, as Ciências Cognitivas, a Sociologia, as Ciências da Computação, dentre outras. Com isso, tanto áreas das ciências humanas e sociais, quanto das ciências biológicas e da saúde encontram-se representadas na agenda científica atual da Neurolinguística. Como podemos definir, então, esse campo de estudos? Há quem atribua o início da Neurolinguística, como o fazem Bouton (1984) ou Lecours e Lhermitte (1979), à publicação, em 1939, do livro “Le Syndrome de Désintégration Phonétique”, de Alajouanine, Ombredane (neurologistas) e Durand (foneticista). Há também os que consideram a Neurolinguística um ramo (Luria, 1976) ou um subconjunto (Hécaen, 1972) da Neuropsicologia, o que significa circunscrevê-la ao campo de estudo das perturbações verbais decorrentes de lesões cerebrais. Para autores como Whitaker e Whitaker (1976), em função de seu complexo objeto, a Neurolinguística seria uma área “francamente interdisciplinar” que relaciona linguagem e comunicação humana com algum aspecto do cérebro ou da função cerebral. Posteriormente aos autores mencionados acima e, de certo modo, consoante a essa visão mais tradicional, Caplan (1987) define a Neurolinguística como o estudo das relações entre cérebro e linguagem, com enfoque no campo das patologias cerebrais e na relação de determinadas estruturas do cérebro com distúrbios da linguagem. Por seu turno, Menn e Obler (1990) procuram definir a área por meio de seu objetivo, que é, segundo as autoras, teorizar sobre o “como” a linguagem é processada no cérebro. Mais recentemente, em um manual de Neurolinguística, Ahlsén define a Neurolinguística como o estudo da relação entre diferentes aspectos da função cerebral atinentes à linguagem e à comunicação. Para a autora, que não limita o campo a estudos atinentes ao contexto patológico, cabe à Neurolinguística “explorar como o cérebro compreende e produz linguagem e comunicação” (2006: 3). Ainda que professem diferentes abordagens relativas a distintos modelos e construtos teóricos e metodológicos, todos esses autores não deixam de considerar que os estudos sobre as condições de linguagem e de comunicação após algum comprometimento neuropsicológico constituem, provavelmente, a investigação neurolinguística mais corrente e prolífera. Parece óbvio, levando em conta o hibridismo da palavra, que Neurolinguística diga respeito às relações entre linguagem e cérebro e que acione dois principais campos do conhecimento humano para explicá-las, as Neurociências e a Linguística. Isso realmente seria um truísmo se nós não tivéssemos tantos problemas para dar conta dos complexos processos que constituem linguagem e cérebro, bem como do modo de funcionamento de ambos. A despeito do avanço biotecnológico encontrado em nossa época, muitas das indagações a respeito das relações entre linguagem e cérebro ainda permanecem à hora atual, como as referentes à constituição daquilo que chamamos de conhecimento ou aos fenômenos cerebrais envolvidos nos chamados processos cognitivos superiores (lingagem, memória, atenção, etc.). Nossos processos cognitivos, vale lembrar, já se mostraram empiricamente não redutíveis à intimidade do tecido neural, tanto por meio de estudos considerados metodologicamente invasivos (como os córticoeletrofisiológicos, realizados em geral em ambiente intracirúrgico), quanto não invasivos (como os que utilizam ressonância magnética funcional, tomografia por emissão de fóton único, tomografia por emissão de pósitrons, potencial evocado relacionado a evento). Mesmo depois de terminada a chamada “década do cérebro”, os anos 1990, ainda não podemos prognosticar entre os estudiosos um consenso em torno das correlações estabelecidas entre linguagem e cérebro. Assim, um bom começo para entrever as relações que ambos os processo mantêm entre si - e nas quais intervêm a cultura, as práticas ou experiências histórico-sociais, o contexto, a interação - é verificar o que estamos entendendo por uma e outra coisa. A partir daí, naturalmente, não escaparemos da Filosofia. É fundamentando empiricamente essa questão que estaremos “fazendo” Neurolinguística. Se considerarmos que linguagem e cérebro têm uma relação (ou seja, não são uma mesma coisa e tampouco são coisas logicamente heterogêneas entre si), de que ordem ela seria? Haveria uma relação de causalidade entre ambos os processos ou sistemas (na medida em que um cérebro “defeituoso” causaria uma linguagem ou uma mente “defeituosa”) ou haveria uma relação de reciprocidade entre eles, na medida em que a estrutura e o funcionamento do cérebro podem constituir a linguagem e da mesma forma ser por ela constituídos? Embora as respostas a essas questões sejam por vezes apaixonadas e parciais, o que sabemos na atualidade sobre a atividade cognitiva indica que há na verdade entre linguagem e cérebro uma relação estreita, baseada na influência recíproca entre diferentes áreas do Sistema Nervoso Central e vários processos cognitivos com os quais de várias formas percebemos e interpretamos o mundo. Linguagem e cérebro, assim, funcionariam como um sistema dinâmico e flexível cujas regularidades e estabilidades não são determinadas a priori (ou seja, não são fixadas ou pré-determinadas biologicamente; não obedecem a padrões estáticos e homogêneos de existência). Antes, dependem e são constituídos por diferentes fatores de ordem sociocognitiva (cultural, pragmática, contextual, interacional). Tendo isso em vista, admitamos, pois, que Neurolinguística é um campo de arbitragem interdisciplinar cujo foco é o estudo das relações entre linguagem, cérebro e cognição; admitamos, ainda, que seu objeto diz respeito, a um só tempo, às ciências humanas, às neurociências e às ciências da cognição. A partir disso, nosso olhar deve estar voltado para o que caracteriza tal campo de investigação, para o legado filosóficocientífico que o tem constituído. Em boa parte por assumir pressupostos e métodos próprios à Linguística e às Neurociências, a Neurolinguística está sempre colocada frente aos modos de se conceber e investigar tais relações: em que termos são elas estabelecidas?