Trabalhando a família no atendimento e acompanhamento à criança/adolescente: Breves considerações Christiane Nunes dos Santos Schramm1 Estas breves considerações têm como base o levantamento de questões fundamentais relacionadas ao trabalho com famílias no atendimento e acompanhamento a crianças e adolescentes. Estas questões envolvem desde a concepção de família abarcada pelos profissionais até proposições e organização de planos de atuação estratégicos para o enfrentamento das demandas trazidas e observadas no decorrer do processo de acompanhamento. De modo geral podemos dizer que a experiência profissional associada ao arcabouço teórico, metodológico e ético nos faz considerar que o trabalho com famílias envolvendo crianças e adolescentes implica, portanto, considerar as seguintes questões: conceito de família; perfil envolvendo, entre outras questões, faixa etária, composição familiar, escolaridade, inserções no mercado de trabalho, condições de moradia, condições de saúde, referências culturais, rede de apoio comunitária, entre outros aspectos que possibilitem traçar tanto a história e o contexto familiar como, concomitantemente, um panorama do contexto social no qual esta família está inserida. Associado aos referidos aspectos é fundamental também vislumbrarmos as demandas espontâneas e observadas no atendimento à família; a organização de um plano de atuação profissional com a família; articular com a rede de serviços a fim de atender e responder minimamente às referidas demandas e ainda, privilegiar a atuação tendo como referência a construção da autonomia da família e de cada sujeito, discutindo a participação desta nos direcionamentos da sua vida, respeitando opiniões, crenças e valores e, concomitantemente, contribuir para reflexões acerca de discursos e práticas produzidos histórica e socialmente e que, muitas vezes, embasam, por exemplo, quadros de violência e desigualdade de gênero, raça/etnia, religião, entre outras práticas justificadas a partir destas construções social e historicamente estabelecidas. As questões levantadas além de não se esgotarem em si mesmas, não são exclusivas no trabalho com famílias envolvendo crianças e adolescentes. Entretanto, discutiremos aqui alguns pontos que consideramos fundamentais para organização deste trabalho de forma qualificada e comprometida com as possibilidades de contribuição para a melhoria da qualidade de vida deste público alvo. Inicialmente queremos destacar que o conceito de família 2, de acordo com as diferentes épocas e períodos históricos vem se modificando através dos tempos. E ainda que este conceito tem relação intrínseca e direta com os 1 Assistente Social/UFRJ;Residência em Serviço Social/Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ; Mestre em Ciências/ENSP/FIOCRUZ; Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Chefe de Serviço Social- Gerência de Serviço Social na Saúde 2 Ariès (1981) discutiu os diversos delineamentos da estrutura familiar no decorre dos tempos, destacando da família medieval à família moderna e sua relação com a construção do conceito de infância no decorrer dos tempos históricos. direcionamentos políticos, econômicos, ideológicos e culturais da sociedade no decorrer dos diferentes períodos históricos. Na Idade Média, por exemplo, “(...) a família cumpria uma função- assegurava a transmissão da vida, dos bens e dos nomes- mas não penetrava muito longe na sensibilidade (...)” (Ariès, 1981:275). Por outro lado, conforme este autor: “A família moderna (...) correspondeu a uma necessidade de intimidade, e também de identidade: os membros das famílias se unem pelo sentimento, o costume e o gênero de vida. As promiscuidades impostas pela antiga sociabilidade lhes repugnam. Compreende-se que essa ascendência moral da família tenha sido originariamente um fenônemo burguês: a alta nobreza e o povo, situados nas duas extremidades da escala social, conservaram por mais tempo as boas maneiras tradicionais, e permaneceram indiferentes á pressão exterior. As classes populares mantiveram até quase nossos dias esse gosto pela multidão. Existe, portanto, uma relação entre o sentimento de família e o sentimento de classe(...)”(1981:278) Destarte, a historicidade do conceito de família no decorrer dos tempos históricos, destacamos que foi somente a partir da organização das sociedades ocidentais modernas, que buscou-se o delineamento do entendimento de família calcado no núcleo patriarcal. Este delineamento tem relação com a organização societária burguesa direcionada ao patriarcado e aos valores cristãos. Este conceito de família data da idade moderna, sendo fruto do Iluminismo calcado nos valores de democracia e igualdade. Entretanto, conforme Vilhena (2002), tal conceito reflete a organização das famílias burguesas e de seus valores em detrimento da organização familiar das famílias pobres. Ao assumirem tais valores como universais não consideram o caráter histórico, social e culturalmente determinado das concepções de família. O conceito de família, fruto da sociedade patriarcal, marca historicamente ações frente ao trabalho desenvolvido junto à população de baixa renda. Este conceito baseia-se no entendimento da família nuclear, espaço privado de afetos e solidariedade, calcado no trinômio pai-mãe-filhos. Relaciona-se à idéia da família ser uma instância natural isenta de conflitos e contradições. Mello (2000) ao discutir a família a partir de uma perspectiva teórica, aponta que: “O modelo que preside as atribuições de organização e desorganização é o da família nuclear, monogâmica, composta de mãe, pais e filhos. O pai provê, com seu trabalho, todas as necessidades da família; a mãe, carinhosa e infatigável, toma conta da casa e da educação das crianças. (...) O caráter marcante deste modelo é o seu isolamento e a ausência de conflitos, quer internos, quer externos.(...)” (2000:56) Não raras vezes, este modelo de família tem perpassado as esferas de atuação profissional nos mais variados espaços de atuação dos trabalhos voltados à criança e ao adolescente e aí, destacamos às famílias inseridas nos estratos sociais relacionados á baixa renda. O “mito” construído em torno da família nuclear, monogâmica, patriarcal e “célula natural”, embasa e direciona planos de atuação com enfoque no contexto disciplinar levando, não raramente, a práticas estigmatizantes e excludentes no contexto de sistematização e operacionalização das políticas sociais. Todo e qualquer contexto sócio-familiar quando não enquadrado na dita família estruturada formada por “mamãe, papai e filhinhos” é concebido como anormal, desviante e desestruturado. A família é direcionada então ao banco dos réus, de modo que a patologia social vincula-se á pobreza, sendo esta a encarnação do mal. (id-ibid, p52). Este enfoque ao ser direcionado aos espaços de atuação profissional resulta na busca incessante dos profissionais por enquadrar a família neste modelo, onde todo e qualquer arranjo diferenciado torna-se atípico, disfuncional, desviante e necessitando ser trabalhado para que a família dê conta dos cuidados com seus filhos e seja reinserida na sociedade. Esta busca delineada nos planos de atuação profissional envolve a defesa de valores morais que, muitas vezes, refletem posturas discriminatórias, sexistas e estereotipadas quanto aos papéis/funções e possíveis (re)arranjos familiares. A família pobre não relacionada ao modelo nuclear e patriarcal torna-se a culpada e responsável exclusiva pelas questões e possíveis situações que envolvem a criança e o adolescente inseridos em determinados contextos familiares. Nas últimas décadas, dadas mudanças estruturais e conjunturais no contexto societárias, muito se têm discutido sobre a desconstrução do modelo tradicional enquanto normatizador do entendimento do significado de família. A própria legislação, que historicamente (re)produziu a defesa intransigente do modelo de família nuclear e patriarcal enquanto legítima sofreu profundas transformações principalmente, a partir da Constituição de 1988, que amplia, por exemplo, o (...) conceito de família, reconhecendo a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar(...) e suprimindo a expressão ‘constituída pelo casamento’.(Genofre, 2000:98). Esta mesma Constituição, segundo Genofre, significou um marco na evolução do conceito de família (2000:99). As discussões sobre a constituição e existência de múltiplos arranjos familiares têm se ampliado, assim como o entendimento das modificações dos papéis sociais e sexuais no contexto familiar, o que significa sair do paradigma histórico do entendimento de família como lócus natural e espaço de reprodução garantida através única e exclusivamente do casamento. As lutas e conquistas dos mais variados movimentos sociais, principalmente na década de 80, muito contribuíram para o avanço deste conceito, onde podemos citar o movimento de mulheres. Mudanças nas relações de gênero, onde as mulheres cujo visão era o de espaço doméstico e privado ganharam outra dimensão, tanto a ´partir deste movimento, como simultaneamente a partir de mudanças estruturais na organização da esfera de trabalho que traz novos delineamentos em termos da estrutura produtiva e qualificação profissional. A inserção das mulheres no mercado de trabalho, sem dúvida, contribui para a formação de “novos” arranjos familiares. Deste modo, queremos dizer que mudanças no conceito tradicional de família e nas suas relações internas somente são possíveis quando embassados por mudanças externas, societárias e, portanto, mudanças no dito espaço público. Conforme Sarti aponta: “Essas mudanças correspondem a uma ação deliberada, no sentido de um projeto emancipador que instituiu novos padrões de comportamento, mas que só foi possível por mudanças, na realidade exterior à família, que afetaram de maneira decisiva esta esfera da vida social, transformando-a fatalmente. Acontece que a família não é uma totalidade homogênea, mas um universo de relações diferenciadas, e as mudanças atingem de modo diverso cada uma destas relações e cada uma das partes da relação”. (2000:39) Dados os avanços e as mudanças no entendiemtno do que seja família e o reconhecimento da organização de diversos arranjos familiares, podemos dizer que a visão tradicional do modelo nuclear ainda permanece no contexto atual, não apenas no senso comum, mas embasando atuações profissionais nas mais variadas áreas do conhecimento e de prática profissional. No atendimento à criança e adolescente não é diferente. Não raras vezes, encontramos profissionais ancorados em um discurso normatizador de família, direcionando suas atuações para a tentativa de enquadramento das famílias de crianças e adolescentes a partir de padrões de comportamento. Neste sentido, assumem posturas de culpabilizar, principalmente a mãe, por não garantir a convivência familiar, doméstica dos seus filhos, ou ainda, por esta não ser o “modelo” de caridade e afeto para com os mesmos. Outras vezes, as famílias não formadas por “mamãe, papai e filhinhos”, ou seja, as famílias que assumem outros arranjos familiares, são entendidas como “desestruturadas”, “desajustadas” e fora dos padrões ditos naturais no que se refere aos papéis desempenhados no contexto familiar, primordialmente, relacionados à educação e socialização das crianças e adolescentes. Num outro âmbito, encontramos profissionais que assumem posturas calcadas no entendimento de que existem múltiplos arranjos familiares nas sociedades contemporâneas dadas as mudanças políticas, econômicas, sociais, culturais, ideológicas dos últimos tempos, e ainda assumem posturas profissionais baseadas na desconstrução de papéis e funções familiares construídos social e historicamente. Estes profissionais, normalmente, assumem posturas voltadas à emancipação e empowerment das famílias para as quais se destinam as atuações profissionais, considerando as diversidades dos papéis familiares, as múltiplas relações estabelecidas no contexto familiar e o espaço familiar como lócus de contradições, conflitos e reprodução do contexto social mais amplo. A família deixa de ter o “carimbo” de “desestruturada” e passa a ser entendida em seus mais variados aspectos em termos de organização e inserção na sociedade. Por fim, há também profissionais que mesmo calcados na visão no reconhecimento do conceito de família mais ampliado, com base nos arranjos familiares diversificados, ainda mantêm discursos e práticas enquadradas na manutenção da visão de que determinados papéis devem ser desempenhados e, caso isto não aconteça, estas famílias começam a ser enquadrada no binômio “família estruturada X família desestruturada”. Ao discutir a assistência às famílias no contexto de programas de orientação e apoio sociofamiliar, Mioto ressalta que: “(...)Observa-se um consenso sobre a diversidade de arranjos familiares, sobre o caráter temporário dos vínculos conjugais e sobre outras questões ligadas à área da reprodução humana e da liberalização dos costumes.(...) observa-se que o termo ‘famílias desestruturadas’ (...)ainda é largamente utilizado(...)essa indicação nos leva a supor que o consenso sobre as transformações da família tem se concentrado apenas nos aspectos referentes a sua estrutura e composição. O mesmo parece não acontecer quando se trata das funções familiares. Apesar das mudanças na estrutura, a expectativa social relacionada às suas tarefas e obrigações continua preservada (...).”(2004:53)3 Ora, esta visão e reprodução quanto aos papéis a serem desempenhados no contexto familiar, quando direcionada para o atendimento à criança e adolescente delineia planos de atuação profissional embasados na perspectiva de atuação profissional tendo-se em vista trabalhar à família para que haja desempenho das ditas funções maternas e paternas. Considera-se a diversidade dos arranjos familiares, porém secundarizam-se possibilidades de que outras funções e papéis sejam delineados em determinados contextos familiares onde, por exemplo, quem tem a responsabilidade legal pela criança não é necessariamente uma mulher e sim um homem. Traçam-se, portanto, perfis familiares preservando-se modelos tradicionais quanto às tarefas e obrigações a serem desempenhadas. Num outro âmbito, a elaboração e organização de planos de atuação que, além do reconhecimento da diversidade dos arranjos familiares, reconhece e valoriza também a diversidade no desempenho de papéis e funções familiares imprimem uma outra ótica neste plano e, por conseguinte, na estruturação do perfil da família para qual se destina a atuação profissional. Considerar o contexto familiar envolvendo composição e história familiar, faixa etária, escolaridade, inserções no mercado de trabalho, condições de moradia, condições de saúde, relações de gênero, referências culturais, rede de apoio comunitária, relações étnicas e religiosas, entre os mais variados aspectos da vida social; assume outra vertente e norteador na proposta de trabalho para com as famílias no atendimento e acompanhamento à criança e ao adolescente. A discussão sobre família e a relação com o atendimento e acompanhamento à criança e adolescente, ganha maior complexidade quando vislumbramos uma outra dimensão: o Estado. Entender historicamente as concepções, construções e direcionamentos do poder público diante a formulação e operacionalização de políticas públicas voltadas à família nos seus mais variados aspectos é fundamental para, no lócus da atuação profissional, buscarmos a desconstrução e sistematização de planejamento, planos de atuação e práticas mais condizentes com a visão de família calcada não na culpabilização e responsabilização exclusiva por seus atos e mudanças de estilos de vida; e sim 3 A referida autora ainda aponta que existe uma espera por um mesmo padrão de funcionalidade, “(...)independentemente do lugar em que estão localizadas na linha de estratificação social, calcada em postulações culturais tradicionais referentes aos papéis paterno e, principalmente, materno”. (2004:53) visões mais abrangentes baseadas tanto no reconhecimento dos múltiplos arranjos familiares e novos delineamentos diante às funções e papéis familiares, como nas possíveis contribuições para garantir a autonomia e empoderamento dos sujeitos inseridos em determinado contexto familiar. Acreditamos, inclusive, que estas visões contribuem para modificar ciclos de violência e outros possíveis conflitos familiares, já que embasados por concepções de totalidade da vida social, o que envolve diversos aspectos e determinantes, sejam de ordem social, política e econômica, sejam de ordem cultural, étnica, religiosa e de gênero. 4 Deste modo, queremos apontar que, historicamente, o Estado ao destinar ações e políticas públicas para atendimento às famílias (principalmente às famílias de baixa renda), seja na esfera da educação, seja na esfera social e da saúde, entre outras, assentou-se na normatização, disciplinarização e culpabilização dos comportamentos dos indivíduos no contexto familiar. O século XIX, por exemplo, “(...)assistiu à invasão progressiva do espaço da lei pela tecnologia da norma. O Estado moderno procurou implantar seus interesses servindo-se, predominantemente, dos equipamentos de normalização(...)(Costa, 1999:50-51). Costa aponta, que considerando o contexto da saúde, a trajetória do Estado na atuação frente ao contexto familiar (principalmente a partir do século XIX), baseou-se na disciplinarização dos corpos e comportamentos, na higienização e defesa da saúde física e moral das famílias: “(...)O Estado Moderno, voltado para o desenvolvimento industrial, tinha necessidade de um controle demográfico e político da população(...). Esse controle, junto às famílias, buscava disciplinar a prática anárquica da concepção e dos cuidados físicos dos filhos, além de, no caso dos pobres, ´prevenir conseqüências políticas da miséria e do pauperismo(...). Criam-se dois tipos de intervenção normativa que, defendendo a saúde física e moral das famílias, executavam a política do Estado em nome dos direitos do homem: a medicina doméstica, no interior da burguesia, e as campanhas de moralização e higiene da coletividade, dirigidas às famílias pobres.(...) Todo o trabalho de persuasão higiênica desenvolvido no século XIX vai ser montado sobre a idéia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de sua sujeição ao Estado. (Costa, 1999: 51-52; 63) Ora, este direcionamento Estatal diante às práticas de saúde voltadas às famílias no século XIX, não apenas exemplifica um dado momento histórico de política pública destinada as mesmas, qual seja, a da ótica da higienização; como, concomitantemente, nos faz considerar que determinadas ideologias e 4 Ao considerar estes vários determinantes na atuação junto a famílias, não podemos deixar de pontuar que, nas sociedades contemporâneas, dadas as mudanças estruturais e conjunturais, o contexto familiar vem sofrendo, cada vez mais, mudanças diante seu papel voltado à reprodução social. Conforme Pereira aborda: “(...)em decorrência da grave crise econômica do país, expressa no desemprego crescente, rebaixamento dos salários, precarização das condições e relações de trabalho, desregulamentação de direitos sociais, observa-se a fragilidade da família para cumprir seu papel no âmbito da reprodução social, funcionando como suporte material e de integração social, a partir do qual os indivíduos podem encontrar refúgio para as situações de exclusão”. (1994, in Alencar, 2004: 64) construções sócio-históricas atravessam tempos e espaços e se reproduzem cotidianamente nos discursos e atuações profissionais. Não é raro, por vezes, encontrarmos profissionais, das mais variadas áreas imbuídos desta concepção que direcionam suas práticas para a disciplinarização e higienização das famílias para as quais suas ações se orientam no espaço institucional. Mesmo o poder público, dados todos os avanços legais e conceituais em termos da formulação de políticas públicas, mesmo nos dias atuais ainda reproduz esta visão nos discursos e nos espaços de desenvolvimento e consolidação do serviço público. Sendo assim, concordamos com Mioto quando esta ressalta que a relação entre família e Estado é marcada pelo controle do Estado, elaborador de normas para a família. Junto a isso, esta construção histórica foi permeada pela ideologia de que as famílias, independente das suas condições de vida e vicissitudes da convivência familiar, devem ser capazes de proteger e cuidar de seus membros, sendo este o pilar da construção dos processos de assistência às famílias.(2004: 50-51). A família é, então, categorizada, entre famílias capazes, sãs, normais e famílias incapazes, doentes, anormais, onde as primeiras conseguem desempenhar com êxito as funções que lhe são atribuídas pelo Estado; e as segundas não conseguem desempenhar estas funções requerendo interferência externa, a princípio do Estado, para a proteção dos seus membros. Esta categorização, segundo a autora, foi fortemente arraigada no senso comum e nas propostas dos políticos e dos técnicos responsáveis pela formulação de políticas sociais e organização de serviços(id:51). Outrossim, as relações Estado-família, associada às discussões supracitadas, delineou duas nuances: os ditos espaço privado X o espaço público. Sendo a família o espaço privado, lugar de afeto, o não cumprimento de papéis socialmente estabelecidos e naturalizados acarreta a intervenção do Estado, historicamente, de modo paternalista, autoritário, calcado na tutela e na visão dos indivíduos enquanto objetos da intervenção do poder público. Entretanto, conforme Sousa & Peres é necessário que as instituições e entidades voltadas ao trabalho com crianças e adolescentes, considerem o lugar de sujeito da família.(2002:71). Considerar este lugar significa, entre outras questões, estabelecer nos serviços de atendimento a famílias possibilidades concretas de acolhimento e escuta, buscando propor, planejar, operacionalizar e sistematizar práticas direcionadas à construção da emancipação e autonomia destes sujeitos, empoderando-os na tomada de decisões e envolvendo-os no processo de desconstrução de ações caracterizadas pela violação dos direitos de crianças e adolescentes. Enfim, é imprescindível que no cenário das políticas de atenção às famílias, estas sejam olhadas “(...)no seu movimento. (...) Evitando a naturalização da família, precisamos compreende-la como grupo social cujos movimentos de organização-desorganização-reorganização mantêm estreita relação com o contexto sócio-cultural.(Carvalho, 2000:14). Queremos pontuar, portanto, que o trabalho com famílias na atuação junto a crianças e adolescentes, requer desmistificar o espaço da família como rede de relações naturais e instintivas e direcionar a este espaço uma lente mais ampliada onde se alcance as múltiplas contradições, conflitos e reproduções de relações sociais e culturais determinadas historicamente. Aumentar o foco é também atuar com uma visão de reconhecimento de que as famílias são heterogêneas e da mesma forma, são os papéis que os sujeitos desempenham no contexto familiar, bem como, as questões culturais e ideológicas produzidas e reproduzidas neste contexto. Por conseguinte, não se trata apenas de reconhecer os múltiplos arranjos familiares assumidos na sociedade contemporânea, mas concomitantemente, reconhecer que o dito espaço de afeto pode ser também o espaço de violência, conflitos e contradições.5 Reconhecer que não existem famílias “desestruturadas” pois não existe um modelo ideal, estruturado de família. A família e o seu contexto são permeados por organizações e diferenciações. Reconhecer e atuar a partir destes preceitos, principalmente no serviço público e na operacionalização da política pública é avançar no sentido da desconstrução da relação Estado/família calcada sob a ótica da penalização, dos indivíduosproblema, culpabilização, tutela e controle do primeiro com relação aos sujeitos que compõem determinados contextos sócio-familiares. Caminhar da cultura assistencialista no âmbito da política e dos serviços direcionados às famílias e na desconstrução da família como sociedade natural e sujeito econômico de mercado, onde a intervenção do Estado deve acontecer através de compensação por falimento ou pobreza (Mioto, 2004:47); para novas atuações e práticas calcadas “(...)no modelo institucional de políticas públicas, assentado no princípio da universalidade, objetivando a manutenção e extensão de direitos. Estes em sintonia com as demandas e necessidades particulares.(id: 47). Este referencial implica ainda na mudança da diretriz da própria política pública, historicamente calcada na fragmentação das relações sociais, paliativas, assistencialistas e emergenciais rumo à sistematização das políticas públicas calcadas na assistência, no entendimento de família sob o viés da integralidade e da visão como sujeito de direitos. A perspectiva apontada acima é, sem dúvida, um desafio. Desafio quando ainda vislumbramos nas sociedades contemporâneas, políticas, ações e referenciais teórico-metodológicos na operacionalização da política pública e, especificamente, na política direcionada a crianças e adolescentes, respaldados sob a ótica do Estado autoritário e direcionado à disciplinarização da vida dos sujeitos para os quais se destinam as ações do serviço público. Os avanços no arcabouço da formulação das políticas e das Leis garantidores de direitos a famílias, crianças e adolescentes, não vieram acompanhados de mudanças no contexto da organização dos serviços e atuações profissionais ou ainda, no contexto do aparato estatal nas suas diversas esferas. Deste modo, queremos enfatizar que mudanças desta ordem não estão relacionadas apenas a atuações profissionais isoladas, mas requerem mudanças em todo o contexto organizacional do serviço público nos mais variados aspectos, âmbitos e esferas. Entretanto, entendemos que a atuação profissional qualificada e não reprodutora de normas, burocracias e conceitos socialmente determinados, contribuem, e muito, para avançarmos rumo não apenas a novos entendimentos sobre o que 5 Aqui não estamos desconsiderando a importância da família no processo de educação e socialização das crianças e adolescentes. Inclusive, concordamos com Carvalho quando esta aponta que “(...)a família é o primeiro sujeito que referencia e totaliza a proteção e a socialização dos indivíduos. Independente das múltiplas formas e desenhos que a família contemporânea apresente, ela se constitui num canal de iniciação e aprendizado dos afetos e das relações sociais.” (1998:93). considerar no trabalho com famílias, mas principalmente rumo a outras óticas referenciais e ideológicas que, de fato, sejam precursores de um novo fazer profissional, institucional e organizacional no âmbito do Estado e das suas respectivas esferas de atuação quando o viés direcionar-se ao enfrentamento das múltiplas e desafiantes determinações (re)produzidas nos variados contextos familiares. Bibliografia: - - - - - - - - - - Alencar, M.M.T.de. “Transformações econômicas e sociais no Brasil dos anos 1990 e seu impacto no âmbito da família.”In: Sales, M.A.;Matos, M.C. de & Leal, M.C. (orgs). Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2004. Ariès, P. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: JC Editora, 1981. 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