A Guerra e a (Des)Construção da Filosofia: considerações sobre o

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A Guerra e a (Des)Construção da Filosofia: considerações sobre o conceito de
justiça no pensamento de Emmanuel Levinas
Emanuel Marcondes de Souza Torquato1
Resumo:
Partindo da preocupação com a justiça face à guerra, Emmanuel Levinas, filósofo
judeu, se lança a pensar o problema contemporâneo da violência e, ao mesmo
tempo, insere-se no movimento de des-construção da filosofia presente no século
XX. Ele expõe uma desconfiança na potência da filosofia, assim como em suas
grandes conquistas como a síntese, o conceito, o sistema, a objetividade e, enfim, a
abrangência do “processo de totalização”. Ao mesmo tempo, lança uma acusação a
esta estrutura como uma “filosofia do poder e da violência”. Aponta para uma
reconstrução da racionalidade a começar de fora do projeto ocidental, como lugar
grego do pensar que havia se mostrado fatigado na realidade cruel do século XX. O
objetivo desta pesquisa é compreender a desconstrução e reconstrução da
racionalidade presente no pensamento de Levinas e com isso recolocar a pergunta
pelo papel da filosofia em face dos desafios do mundo atual. Em face a violência, a
questão da justiça torna-se, para Levinas, a questão privilegiada da Filosofia.
Palavras-chave: Filosofia, Violência, Des-construção, Justiça.
Abstract:
Based on the concern for justice in the face of war, Emmanuel Levinas, Jewish
philosopher, throws himself to think the contemporary problem of violence and at the
same time, is part of the movement of deconstruction of the philosophy in the
twentieth century. It exposes a distrust in the power of philosophy, and in their great
achievements such as synthesis, the concept, the system, objectivity and, finally, the
scope of the "process of aggregation" and at the same time, throws an indictment of
this structure as a "philosophy of power and violence." Points to a reconstruction of
rationality to get the project off western Greek thinking as a place that had been
shown to be fatigued in the harsh reality of the twentieth century. The objective of this
research is to understand the deconstruction and reconstruction of rationality present
in the thought of Levinas and replace the question of the role of philosophy in the
face of the challenges of today's world. In the face of violence, the question of justice
becomes, for Levinas, the prime question of philosophy.
Keywords: Philosophy, Violence, Des-construction, Justice.
1
Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal do Ceará - UFC, professor do Curso
de Filosofia da Faculdade Católica do Cariri e do Curso de Sistemas da Informação da Faculdade de
Juazeiro do Norte - FJN.
1. Introdução
Por que o homem fere o homem? Por que a violência se faz presente na vida
humana? E, tão urgente quanto estas interrogações, como ultrapassar a esfera da
violência encontrando a paz?
Esta é uma das mais antigas questões que inquieta o pensamento: o
problema da violência. Esta questão tem ao longo dos tempos ecoado como
pergunta política e, ao mesmo tempo, como questão filosófica, como um
questionamento pela justiça e pela ética. O próprio construir-se da razão ocidental,
enquanto racionalidade grega, surge solidário a esta problemática presente no
começo conflituoso da polis grega2. A experiência social, no tocante a passagem da
realeza micênica à cidade grega, desperta o surgimento de uma sophia ocupada
com uma reflexão moral e especulações políticas orientadas para a busca de um
equilíbrio, um acordo diante de uma desordem presente. Os primeiros sábios não
têm por objeto o universo da physis ainda, mas justamente o mundo dos homens e
seus conflitos: Que elementos o compõem? Que forças o dividem contra si mesmo?
Como uma vida comum pode apoiar-se em elementos discordantes? Como
harmonizá-los para que, desses conflitos, surja a ordem na cidade? Como, no plano
social, o uno pode sair do múltiplo e o múltiplo do uno?
Quando nasce, na Escola de Mileto, a filosofia está assentada sobre esta
sabedoria política com traços ainda mítico-religiosos diluída no novo espírito, a polis.
Ocupando-se da natureza do ser e do saber, a razão está rodeada pelo escândalo
da guerra, pelo irracional da injustiça, pela ausência de sentido da violência, pelos
conflitos de poder, muitas vezes narrados nas diversas teogonias e cosmogonias. O
logos, na sua origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua
eficácia, justamente por intermédio de sua função política. O novo horizonte
espiritual inaugurado no sistema da polis é favorecido, inicialmente, pela
extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder,
tornando-se instrumento político por excelência. A palavra apresenta-se como poder
de conflito e poder de união. De uma disputa bélica entre carros e cavaleiros no
campo de batalha, cede-se lugar a uma disputa oratória, um combate de argumentos
no espaço público da ágora, onde a arte do discurso procura ultrapassar a esfera da
violência, considerada, pelos gregos, uma forma pré-política de lidar com as
pessoas.3
Pode-se dizer, com isso, que o homo sapiens redunda em homo politicus na
origem do logos grego. No palco da guerra, de conflitos ora armados, ora
argumentativos, a filosofia nasce como filha da cidade. Deparando-se com as
questões mais emergenciais e cotidianas da sociedade, mergulha na natureza mais
profunda da sociabilidade, de tudo, do todo.
No início, já sangrento, do século XXI, nos deparamos com estas mesmas questões,
ressurgentes por conta das conseqüências trágicas do século XX, que nos
conduzem a uma experiência violenta e dolorosa do humano. Christian
2
Para um detalhamento do começo da filosofia assentado sobre os conflitos que dão origem à polis
grega ver VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Tradução: Ísis Borges B. da
Fonseca. 13ª. Ed. – Rio de Janeiro: Difel, 2003.
3
HARENDT, Hanna. A Condição Humana.Tradução de Roberto Raposo. – 7ª. Ed. Rio de Janeiro:
Forense. 1995, p. 35.
Delacampagne4 apresenta o século XX tendo como elemento marcante o horror
diante de crimes realizados em escala planetária e originados por uma insondável
perversão do pensamento, em que Auschwitz pode ser situado como o seu maior
símbolo. A Primeira e Segunda Guerras Mundiais, o holocausto judeu, a Guerra-Fria,
a ameaça nuclear, enfim, essa sucessão de fatos bélicos expõem a verdadeira face
do mundo contemporâneo: um mundo em crise. Todos esses acontecimentos põem
em xeque o projeto europeu, exaltado no século XIX como a plenitude da razão
ilustrada, científica e tecnológica. “A guerra representava, antes de tudo, a prova
mais patente do fracasso de um projeto de convivência e do fracasso da cultura
européia.” 5 Uma cultura assentada na ilustração e no liberalismo agora é colocada
em juízo.
Retomando a origem do pensamento grego, percebe-se que, ao impulso
filosófico, corresponde o fato do mundo humano em que o pensamento é gestado.
Diante do quadro contemporâneo, numa convocação à filosofia após Auschwitz,
como pensar a justiça, a igualdade, a liberdade? Como pensar a ação humana após
o século XX? Qual o sentido do sujeito e da filosofia perante o genocídio? Em fim,
com a interdição da razão moderna pelo escândalo da guerra, como pensar a
própria racionalidade? O grito de dor no campo de batalha é um clamor para que a
filosofia, a razão, se faça presente e faça frente ao irracionalismo.
Assim também, Ricardo Timm de Souza6 vê o século XX, no tocante à
estrutura do pensamento, como um século de rompimento e desagregação. “O
sentido geral da filosofia se transloca de forma muito incisiva da construção
sistemática ou conceptual para a crítica do sistema, do conceito, da linguagem e da
filosofia mesma.” 7 Para este autor, a filosofia em sua evolução tem empreendido, na
maioria das vezes, um projeto que consiste justamente em esforçar-se por
neutralizar o poder desagregador do diferente. Diferente este entendido, desde o
começo do pensamento ocidental, como princípio de caos e desordem, o ápeiron, o
ilimitado, o fundamento da indeterminabilidade. Diante de um pensamento
deslumbrado com o próprio poder de abrangência e de identificação consigo
mesmo, esse ilimitado aparece como a “ameaça do desconhecido”. O projeto que o
pensamento toma para si é justamente a redução do desconhecido ao conhecido, do
diferente que se torna uma espécie entre outras espécies.
A história do Ocidente tem consistido, em suas linhas mais amplas, na
história dos processos utilizados para neutralizar o poder desagregador do
Diferente; e a História da Filosofia ocidental tem sido, quase sempre, a
maneira de favorecer e legitimar intelectualmente esta busca da
8
neutralização.
A esta busca de neutralização chama-se totalização e o resultado a este
esforço, de totalidade. A filosofia contemporânea depara-se, então, com um passado
seu referido, com raras e marcantes exceções, a um grande exercício de totalização.
4
DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no Século XX. Tradução: Lucy Magalhães. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
5
COSTA, Márcio Luis. Lévinas: uma introdução. Tradução: J. Thomaz Filho. Petrópolis: Vozes, 2000.
p. 57.
6
SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e Desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas
alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
7
Id. Ib. p. 24.
8
Id. Ib. p. 18.
A inauguração do século XX que, na visão de Souza9, ocorre com a Primeira
Guerra Mundial, expõe uma face oculta da lógica do Ocidente. Os sucessivos
eventos sangrentos presentes neste século trazem à tona a grande razão que
culmina no grande irracionalismo da violência e do genocídio. Gesta-se, a partir daí,
uma fragmentação do pensamento.
Os filósofos da época percebem um desconforto, um perigo, uma
desagregação manifestada na forma de, como vê Souza, basicamente, duas
direções: uma “arqueologia restauradora”, com Husserl, onde se vê uma tentativa de
retomada dos parâmetros da modernidade sobre bases mais consistentes, e
Heidegger, com uma retomada das nascentes do Ocidente, para evitar e corrigir os
desvios causados pelo esquecimento do ser. Ou ainda, alternativas diversas, como
Rosenzweig, com a crítica à totalidade; Wittgenstein, abordando o pólo crítico do
pensamento, a linguagem; Bérgson, com uma crítica da razão rígida; Sartre, às
voltas com a ambigüidade da percepção do diferente; ou a Escola de Frankfurt,
criticando a totalidade da construção ocidental em seus constitutivos mais profundos
e em sua estruturação; para não citar outros, ainda.10 Com isso, a cultura ocidental
encontra-se frente a uma desagregação de todo um sistema de sentido e de valores.
A proposta de Souza, retomando Rosenzweig, é que se leve às últimas
conseqüências este processo de desconstrução da totalidade, oportunizando uma
“re-situação” da filosofia.
2. Um Judeu e a Guerra: Razão e Justiça
Dentro desse espírito de translocação, um judeu, em meio às vítimas da
guerra, manifesta a sua perplexidade, numa denúncia veemente à hermética
civilização constituída tendo como pilar a iluminação. Emmanuel Levinas começa a
sua obra mais célebre, Totalidade e Infinito: ensaio sobre a exterioridade, trazendo a
tona o problema da guerra frente ao projeto da razão moderna: “A lucidez – abertura
do espírito ao verdadeiro – não consiste em entrever a possibilidade permanente da
guerra?” 11.
Partindo da preocupação com a justiça face à guerra, Levinas se lança a
pensar o problema contemporâneo da violência e, ao mesmo tempo, insere-se
nesse movimento de des-construção da filosofia presente no século XX. Ele expõe
uma desconfiança na potência da filosofia, assim como em suas grandes conquistas
como a síntese, o conceito, o sistema, a objetividade e, enfim, a maravilha da
abrangência do “processo de totalização” e, ao mesmo tempo, lança uma acusação
a esta estrutura como uma “filosofia do poder e da violência”. Partindo dessa crítica,
aponta para uma reconstrução da racionalidade a começar de fora do projeto
ocidental, como lugar grego do pensar que havia se mostrado fatigado na realidade
cruel do século XX.
9
SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e Desagregação. p.22-27.
Id. Ib. Para uma compreensão mais detalhada dessa desagregação ver também o capítulo A razão
em Questão de DELACAMPAGNE. Op.Cit.
11
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70,
1980. p. 9. Em outras referências utilizaremos a sigla usual TI.
10
Com a tese fundamental do seu pensamento, a ética como filosofia primeira,
ele procura demonstrar em que consiste essa proposta de saída do lugar grego.
Saída para um lugar pré-originário, o lugar da justiça, a esfera da ética como esfera
fundamental. Neste tocante, a justiça é considerada por Levinas a questão
privilegiada da filosofia enquanto questão que está na base de todo o saber que
possa ser constituído, porque convoca toda e qualquer tematização a justificar–se, a
tornar-se justa em face a exterioridade visada pelo conhecimento, em face ao que
ele chama de “outro”. A relação entre verdade e justiça torna-se, a seu ver, a
questão imprescindível para o humano ao qual a filosofia não pode se furtar: o fazer
justiça ao outro.
No entanto, esse pequeno anúncio do que seja toda a estrutura do projeto
levinasiano nos remete a uma série de questionamentos pertinentes a essa
desconstrução e remontagem da racionalidade em outras bases filosóficas,
diferentes das bases modernas. Em primeiro lugar, cabe perguntar em que
consistiria a interpretação que este autor faz da estruturação do pensamento
ocidental. Compreensão esta que o leva a realizar uma crítica às bases da
racionalidade propondo um mergulhar em uma “anterioridade muito mais anterior”
que a apresentada pela racionalidade ocidental. Concretamente, de onde nasce
essa crítica e que elementos a compõem para torná-la sustentável enquanto
argumentação válida? Em que se baseia, verdadeiramente, a sua proposta da ética
como o mais fundamental para a própria filosofia assumindo-a como a anterioridade
de toda e qualquer tematização e do próprio ato de justificar? É possível uma saída
da esfera grega, como constitutiva do pensar ocidental sem ferir o próprio estatuto
da razão, sem cair num irracionalismo? Como se pode perceber, Levinas lança-se
numa polêmica que invita a filosofia a justificar-se diante do que ele chama de
fracasso do projeto da civilização ocidental, que trouxe conseqüências dolorosas e
desastrosas para a vida humana. Mas, ao mesmo tempo, polêmica que convoca o
próprio Levinas a justificar-se.
A crítica à tradição filosófica é o pano de fundo do pensamento levinasiano 12.
A crítica levinasiana é desencadeada pela experiência que ele, juntamente com o
povo judeu, faz da guerra, além do contato com Husserl e Heidegger e de
pensadores judeus como Rosenzweig e Buber. Com Rosenzweig aprofunda a
ruptura do esquema da totalidade hegeliana e redescobre a especificidade do
judaísmo elevando-o à categoria filosófica. De Marcel e Buber é influenciado com a
filosofia da invocação, do mistério, do amor e da relação.
Sua filosofia é, desta forma, fruto do itinerário que a sua própria vida toma mediante
os acontecimentos do século XX. Na condição de perseguido judeu, sentiu na
própria pele as conseqüências mais drásticas do triunfo da razão ocidental. O ponto
focal da crítica de Levinas pergunta pelo o que está, de fato, em jogo na estrutura da
razão. A partir de Levinas, está em questão o poder violento exercido na civilização
ocidental tendo por fundamento e referência os conceitos de liberdade e autonomia
firmados pela elaboração filosófica.
O que Levinas se propõe é, justamente, colocar a liberdade em questão13,
fazendo com que a filosofia assuma esta como a sua tarefa primeira. A filosofia
12
Como descrição do itinerário de Levinas pode-se tomar como referência resumida: COSTA, Márcio
Luis. Op. cit. .; BUCKS, René. A Bíblia e a Ética: filosofia e sagrada escritura. na obra de Emmanuel
Levinas. São Paulo: Edições Loyola, 1997.; MORO, Ulpiano Vázquez. El Discurso Sobre Dios Em La
Obra de E. Levinas. Madrid: UPCM, 1982.
13
TI. p. 72.
deve, antes de qualquer esforço de totalização, tornar-se fundamentalmente crítica
da liberdade. “A essência da razão não consiste em assegurar ao homem um
fundamento e poderes, mas em pô-lo em questão e convidá-lo à justiça”. 14 A crítica
é clara: o discurso ontológico sucumbe à tentação de se fechar sobre si mesmo.15 A
preocupação levinasiana consiste, consequentemente, em por à prova as
armadilhas do discurso que absorve, sem remorsos, a alteridade que lhe resiste.
Recorrendo-se novamente a Souza16, poder-se-á perceber melhor essa suspeita
levinasiana com relação à liberdade. O projeto de Levinas aponta para uma nova
concepção de liberdade que começa justamente com a crítica da legitimação da
liberdade em sua dinâmica. Essa negação da liberdade como última instância de
sua própria legitimação se põe como ultrapassagem de uma liberdade na totalidade.
Para tanto, um acontecimento externo é capaz de evocar essa transformação na
liberdade, a presença do “outro-que-ser”.
O trauma do encontro com a exterioridade traz à luz a conseqüência
indireta, porém, imediata da consciência da radical finitude da Totalidade do
Mesmo, que se expressa aqui pelo “não-pode-ser-consciente” plenamente
da realidade do Outro. Se é verdade que “não há para a liberdade nenhum
17
escândalo maior do que se descobrir finita.
A justiça, enquanto posicionar-se respeitosamente frente ao outro, é quem
conduz, a partir desse ponto, a liberdade. Uma filosofia que não questiona o mesmo
é, para Levinas, uma filosofia da injustiça.18 Consequentemente, a questão da justiça
torna-se a questão privilegiada da filosofia. Desta forma, a filosofia precisa, ela
mesma, assumir-se como justiça. Na verdade, o apelo de Levinas é que a
subjetividade, caracterizada por liberdade e espontaneidade, se reconheça limitada.
“A moral começa quando a liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente
arbitrária e violenta.” 19 Por isso, torna-se importante repetir, Levinas propõe uma
resignificação de termos. A liberdade não pode ser entendida nos moldes modernos,
mas, em face a justiça, deve ser questionada, transformada em uma liberdade que
se abre à ação justa. Todo o movimento de sua obra, como se pode perceber,
apresenta-se como um esforço por justificar a liberdade. E justificar, para Levinas,
não é demonstrá-la como poder, mas é torná-la justa. 20
3. Jacó e o Anjo
O que melhor caracteriza essa revolução que começa a acontecer no seio da
subjetividade é a noção de “intriga ética”. Há um comprometimento profundo que
começa a se estabelecer no seio da subjetividade, que abala todos os seus
fundamentos. Nenhum esforço, até a esfera do saber, foi capaz de impedir que a
14
Ib. p. 75.
FABRI, Marcelo in VV.AA. Éticas em Diálogo: Lévinas e o pensamento contemporâneo: questões
de interfaces. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 11.
16
SOUZA. Sujeito, Ética e História. p. 151.
17
Id. Ib.p. 151 e 152.
18
TI. p. 33 e 70.
19
Id. Ib.p. 71.
20
TI .p. 70.
15
insuficiência da auto-suficiência do eu se manifestasse. Diante da consideração da
presença do outro, essa insuficiência do eu é de fato gritante. A idéia de infinito
atesta isso muito bem: a incapacidade do eu de conter, numa idéia, uma
correspondência ao infinito. A intriga que acontece no interior da subjetividade o
questiona de seus poderes e suas posses e exige dele um rompimento com seu
domínio. Por essa intriga, uma tensão constante se estabelece onde estar vigilante é
o estatuto mesmo da subjetividade.
Para ilustrar essa tensão, Bucks21 utiliza-se de uma figura bíblica. Fazendo
um comentário à obra Diffícile Liberté, Bucks faz uso da metáfora da luta entre Jacó
e o Anjo, utilizada no pensamento de Levinas, para introduzir o tema do abalo e da
fissura, presente desde o interior da subjetividade.
Quando Jacó ficou sozinho, um homem se pôs a lutar com ele até o romper
da aurora. Vendo que não podia vencê-lo atingiu-lhe a articulação da coxa,
de modo que o tendão da coxa de Jacó se deslocou enquanto lutava com
ele. O homem disse a Jacó: „Solta-me, pois já surge a aurora‟. Mas Jacó
respondeu: „Não te soltarei se não me abençoares‟. E o homem lhe
perguntou: „Qual é o teu nome?‟ „Jacó‟, respondeu. E ele lhe disse: „De ora
em diante já não te chamarás Jacó, mas Israel, pois lutaste com Deus e
com homens e venceste‟. E Jacó lhe pediu: „Diz-me, por favor, teu nome‟.
Mas ele respondeu: „Para que perguntas por meu nome?‟ E ali mesmo o
abençoou. Jacó deu àquele lugar o nome de Fanuel (face de Deus), pois
disse: „Vi a Deus face a face e foi poupada minha vida‟. Surgia o sol quando
22
ele atravessava Fanuel, mancando devido à coxa.
O que se percebe, fazendo uso desta mesma figuração utilizada por Bucks, é
que, em Levinas, como vem sendo descrito até agora, há uma tensão e
desconstrução em voga. Nota-se que, em Totalidade e Infinito, existe primeiramente
um ser egoísta23, separado, sozinho, e que em um dado momento ele é interpelado
pelo outro, ou seja, a subjetividade produz-se como múltiplo, como cindida em
mesmo e outro, constituindo sua estrutura última.24 Isso se dá como desejo, que
impede de fugir ou manter-se indiferente à luta. Pelo desejo, o eu se mantém refém
do outro na luta.
A ética realiza uma relação entre termos que ao mesmo tempo se aproximam
e se embatem, mas permanecem separados. A separação25 e a interioridade são as
características básicas do eu levinasiano, das quais depende toda a transcendência
da “relação metafísica”. A subjetividade, como explica Levinas, tem sua origem na
sensibilidade através da qual ela se relaciona com o mundo em forma de gozo. É da
felicidade e do gozo26 que o eu tira a sua independência e singularidade27. No
21
A perspectiva de Bucks situa-se numa análise da situação da sabedoria judaica, e da luta do povo
judeu, para preservar essa sabedoria, ou de qualquer outra forma de cultura, frente ao modelo
racional da civilização ocidental. A maior tentação para judeus como para toda a humanidade é
sucumbir a uma razão que reduz a unicidade das pessoas a uma generalização na história que as
assimila e supera. BUCKS, Op. cit. p. 13.
22
Gn 32,25-32 citado em BUCKS, Op. Cit. p. 13.
23
PELIZZOLI, Marcelo Luiz. Levinas: a reconstrução da subjetividade. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2002. p. 84.
24
Id. Ib.p. 114.
25
TI p. 101.
26
TI. p. 97.
27
TI p. 101.
entanto, esta estrutura o expõe a uma insuficiência plantada no seio dessa felicidade
primordial28, a insegurança do futuro. Dá-se formação a um outro nível, mais
elaborado que ultrapassa essa limitações. A habitação e a economia29 são outros
constitutivos do sujeito que garantem a concretização da interioridade e a
permanência do gozo, agora pelo trabalho e pela posse. Não estando livre também
de obstáculos que a obra, realizada pelo trabalho, possa encontrar, a insuficiência
da economia conduz à teoria que surge como fruto da reflexão sobre os atos falhos
numa tentativa de superá-los, podendo reforçar o poder da subjetividade de possuir
e dominar o mundo recobrando a sensação de gozo e felicidade iniciais.
Um novo desnível nessa suficiência aparece pela presença do outro enquanto
alteridade que não se deixa adequar à teoria, que impulsiona a teoria a abrir-se,
enquanto consciência moral, não uma insuficiência no nível da necessidade, mas
como desejo, preservando a identidade do eu, enquanto ser plenificado. O esforço
de nominar é ainda o esforço da identidade em estabelecer-se, e o modo próprio do
eu existir. A relação teórica, entretanto, se inverte pela presença do outro, onde a
liberdade do eu é questionada em sua suficiência.
Pela corporalidade, como fala Bucks30, o sujeito se depara com essa forte
ambigüidade presente em si mesmo. Por um lado, o corpo se constitui como a
maneira própria do eu posicionar-se no mundo, ultrapassando-se os limites da
necessidade. Estas significam o primeiro movimento em direção ao outro, ao que
está fora, superando-se toda e qualquer resistência. Na posse, as coisas
incorporam-se ao eu como uma extensão do próprio corpo, num grande abraço que
abarca a exterioridade, permitindo-lhe estender-se para além do gozo imediato do
momento presente, garantindo-lhe também o gozo futuro. É a grande tentação,
presente na luta, de finalizar-se num profundo amplexo, onde o mesmo abarcaria
toda diferença e resistência.
No entanto, pela corporalidade, acontece a separação frente ao outro, na qual
o eu é exposto. Este mesmo corpo31 que medeia a soberania da fruição é também o
meio pelo qual a subjetividade sofre a pobreza e a indigência, e se reconhece ferida
e mancando. “Pela corporalidade e por nossas obras, que de certa forma a
prolongam, „traímo-nos‟”. 32 Há assim, uma resistência e oposição concreta e real
das armas na guerra, oposição dos exércitos, de uma vontade contra outra vontade,
de uma liberdade contra outra liberdade, é a resistência da violência e da guerra.
“Numa luta de vida ou morte entre duas pessoas, a vida de cada um depende da
maleabilidade do corpo que sabe escapar dos golpes. A vida é assim, um saber
adiar o golpe final”. 33
4. A Relação Ética
A “relação ética” surge justamente na brecha causada pela fissão que acontece
na luta entre a plena identificação do eu consigo mesmo e com o mundo pela fruição
e pelo pensamento e a impossibilidade de englobar nesta identificação a
28
TI p. 103.
TI. p. 139.
30
BUCKS. Op. cit. p. 114.
31
TI. p. 146.
32
BUCKS, René. Op. Cit. p 112-113.
33
Id. Ib.
29
exterioridade do outro. A impossibilidade de incluir a exterioridade na obra da
identificação abre as portas para a relação.
A ética, portanto, é uma tensão permanente estabelecida na base de todo
saber. Promover a primazia da ética é considerar essa tensão como fundamental,
lugar onde se revela todo o sentido. A tensão, por sua vez, encontra lugar numa
subjetividade que se constitui transida pela presença de outrem, pela epifania do
rosto como vestígio, com diz Susin: o enigma do rosto que é “este modo de passar,
de deixar um vestígio, de enviar o Outro e assim desarticular e inquietar o mundo
tranqüilo do Mesmo”. 34 Levinas expõe então uma subjetividade impossibilitada de
exercer uma liberdade que não seja respeito, ferida em seu processo globalizante de
identificação, onde não é possível antecipar nunca o golpe do outro. Um ser
deslocado sobre si mesmo: “A possibilidade que o adversário mantém de frustrar os
cálculos melhor estabelecidos traduz a separação, a ruptura da totalidade através da
qual os adversários se enfrentam. O Guerreiro corre um risco: nenhuma logística
garante a vitória”.35
Na metáfora da luta não há vencedor nem vencido. A relação não implica na
anulação do eu. Não é necessário que ele perca a sua identidade, renunciando ao
egoísmo que o identifica. É necessário sim, que na relação, através do discurso,
deixe-se que o outro questione a liberdade identificadora da subjetividade a fim de
que, esta, possa se justificar. Isso evidencia que, o modo de ser da subjetividade na
terra é guerra, ou seja o tempo todo tensionada para evitar a morte. “Esta
fundamentação do pluralismo não congela no isolamento os termos que constituem
a pluralidade. Ao mesmo tempo que os mantém contra a totalidade que os
absorveria , deixa-os em comércio ou em guerra”.36
Entretanto alguém é atingido com um golpe e, com isso, estando “deslocado
na coxa”, vê-se retirado de sua posição. Este relacionamento, não poderia acontecer
sem o rompimento da totalidade, uma fratura do ser, sem alguém ceder: “Tal
distensão na tensão do instante só pode vir de uma dimensão infinita que me separa
do Outro, ao mesmo tempo presente e ainda por vir, dimensão aberta pelo rosto de
Outrem” 37. O eu, por vontade própria, se abre ao desejo na súplica do rosto. Uma
mudança acontece porque a alteridade não se deixa constituir intencionalmente
como objeto, e a subjetividade já não pode ser mais entendida como identificação ou
correspondência, mas como esforço de identificação transido pela alteridade,
deslocado pelo outro, num face-a-face, porque o outro não pode ser apanhado em
emboscada.
A subjetividade levinasiana é marcada por essa “intriga ética” como anterioridade
a qualquer gesto humano, um estabelecimento de paz que, na verdade, não ocorre
pela suspensão da guerra, mas se caracteriza como resistência que vem do alto,
como crítica permanente e anterior a qualquer palavra, onde manter-se consciente
significa manter-se vigilante, diante da possibilidade de ceder a um resultado fatal
que está à espreita: o assassinato. A relação é, portanto, um risco contínuo, uma
incerteza, um despojamento e uma doação, pois nunca se pode saber previamente
o outro termo da relação, não se pode ter garantias.
34
SUSIN, Luiz Carlos. O Homem Messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas.
Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1984.
35
TI p. 201. p. 241.
36
TI. p. 200.
37
BUCKS. Op cit. p. 112.
5. Considerações finais
Desde o seu nascimento, na Grécia antiga, a filosofia esteve marcada pela
determinação da busca de fundamento e pela luz da evidência que a razão supõe
alcançar. Também não é nova como atitude filosófica, ao longo da história, a
tentativa e o movimento no sentido de um rompimento crítico com a tradição do
saber greco-ocidental. A filosofia em todas as épocas vive no encontro e confronto
com as crises e as críticas.
As idéias de Levinas, no entanto, se destacam na filosofia contemporânea
pela crítica ao pensamento conceitual e objetivante fazendo uso de uma inspiração
que atravessa o logos grego, mas se constitui para além deste. Esse seu destaque,
entretanto, não se dá apenas pela contestação, mas, sobretudo, por esforçar-se em
redefinir os próprios fundamentos da filosofia. Seu objetivo é valorizar a
transcendência presente na intersubjetividade que a situa fora das categorias
objetivantes da ontologia e da estrutura conceitual.
Esta pesquisa teve como objetivo destacar estes dois aspectos principais do
pensamento de Levinas: sua oposição ao conhecimento ontológico totalizante,
enquanto auto-fundamentado, e a defesa da transcendência ética na relação com o
infinito, com uma esfera mais anterior, como fundamento verdadeiro e justo para
todo saber.
Para tanto, Levinas reconstitui as categorias de análise da
subjetividade, numa abordagem que a convoca a uma abertura, a torna
intersubjetividade ética, relação de uma liberdade que não ignora o respeito e a
justiça ao outro.
Analisando a sua trajetória filosófica até a elaboração de Totalidade e Infinito
pode-se perceber que, para Levinas, a ontologia enquanto fundamento constituiu-se
como uma filosofia da violência, do poder e da guerra. Presenciando os
acontecimentos violentes do século XX, Levinas percebe que o ser que se manifesta
na guerra tem o seu referencial teórico no conceito de totalidade da ontologia
ocidental. Os indivíduos são reduzidos a formas e conceitos universais e abstratos
nos quais encontram normas de ação, o sentido das coisas e do mundo. Não se dá
a devida importância ao que existe de original e singular em cada pessoa. A relação
interpessoal está, portanto, submergida no impessoal do conceito. E encontra-se
tensionada no encontro com o outro. Neste momento da pesquisa, a preocupação
consistiu em expor o problema no qual Lévinas se insere, situar o pensamento do
autor dentro da problemática levantada no século XX: a crítica ao projeto violento em
que se tornou a racionalidade moderna.
A partir desta tensão assentada na base da racionalidade, a construção
levinasiana suscita novas elaborações em torno à crítica da razão ocidental, como
um juiz que se atualiza em cada gesto teórico, tematizador, que possa buscar
estabelecer a verdade como definitiva, estática, e irremediável diante da alteridade.
Procurando descrever a noção de “intriga ética” em Levinas, chega-se a
compreensão de que a ética como filosofia primeira, aponta a permanência da
tensão como algo extremamente produtivo, lugar mesmo de encontro com a
verdade.
Muitos criticam o pensamento de Levinas, seja acusando-o de misturar
filosofia e teologia ou pela centralidade dada à alteridade numa heteronomia radical.
A radicalidade negaria ao sujeito qualquer iniciativa de ação, tornado-o incapaz de
autodeterminar-se como autor de seus próprios atos. E, por outro lado, há os que
fazem a defesa de Levinas afirmando que sua ética é possível, graças ao lugar
privilegiado de encontro, abertura e diálogo que é a subjetividade. O que se percebe
é que Levinas parte do pressuposto de que no íntimo de cada pessoa existe um
misto de bondade e egoísmo, como constitutivos mesmo do sujeito. Se a bondade
não for suscitada, cultivada e exigida será suplantada pelo egoísmo.
Conseqüentemente, as estruturas sociais serão impregnadas de egoísmo se não
forem sacudidas pelo grito profético da bondade.
Nesse mesmo intuito, a ontologia não pode abrir mão da crítica estabelecida
pela “relação ética” como o mais fundamental para a sua concretização. A ontologia
já deve acontecer esforçando-se por ser justiça, abertura ao diálogo crítico. Por outro
lado, a relação dialogal que se estabelece na linguagem não pode abrir mão da
ontologia, toda justificação quer ser tematizada, exposta, apresentada e, dessa
forma, retornar ao diálogo sempre. Sendo assim, o pensamento levinasiano, como
se acredita que ele queria ser, mostra-se como abertura produtiva e criativa para a
produção filosófica elaborar-se em vários caminhos sem perder de vista que sua
vocação primeira é a justiça.
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