Neuroética: A Disciplina Do Século Xxi Mirella Lopez Martini Fernandes Paiva † e Fernando Fernandes Paiva ‡ “Nam et ipsa scientia potestas est” (O conhecimento é em si mesmo um poder) Sir Francis Bacon1 A compreensão da mente e do comportamento humano tem sido um foco de interesse da comunidade científica desde a Antiguidade. Entretanto, o século XXI tem sido marcado por avanços consideráveis no desenvolvimento científico e tecnológico, sobretudo no que se refere à compreensão do cérebro humano, por meio do advento das chamadas neurociências e neurotecnologias. Esses avanços criaram, nas últimas décadas, circunstâncias nas quais questões éticas emergiram e vêm progressivamente impondo novos desafios à própria Neurociência e também à Filosofia, à Ética e à sociedade em geral2. É nesse contexto de descobertas e controvérsias que surge uma nova disciplina, a Neuroética, cujo foco está nas discussões sobre as implicações éticas, legais, educacionais e sociais das neurociências, assim como nos aspectos associados à natureza da pesquisa em si. Como uma disciplina formal, a Neuroética foi estabelecida em uma conferência intitulada "Neuroethics: Mapping the Field", em Maio de 2002 – São Francisco/EUA. Esse evento foi patrocinado pela The Dana Foundation (www.dana.org), uma instituição privada, fundada em 1950 e sediada em Nova York, que se dedica a dar suporte a atividades, pesquisas e publicações relacionadas à ciência, saúde, educação e, sobretudo, às neurociências. Reunindo cerca de 150 neurocientistas, estudiosos em ética biomédica, advogados, gestores de políticas públicas e representantes da mídia, a conferência foi um marco na área. Foram destacadas quatro ênfases das Neurociências na conferência: (a) Ciência do Cérebro e o Self, dedicada às questões da liberdade humana e da responsabilidade, a base biológica da personalidade e do comportamento social, a escolha e tomada de decisão e a consciência; (b) Ciência do Cérebro e Política Social, incluindo questões de responsabilidade † Doutora em Psicologia. Especialista Visitante do projeto Ética e Realidade Atual: o que podemos saber, o que devemos fazer e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino. Apoio financeiro CNPq/FINEP. ‡ Doutor em Física, Pesquisador associado do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino ERA Ética e Realidade Atual www.era.org.br pessoal e criminal, memórias verdadeiras e falsas, a educação e teorias da aprendizagem, patologia social, privacidade e a previsão de patologia cerebral futura; (c) Ética e a prática da Ciências do Cérebro, abrangendo temas de farmacoterapia, cirurgia, as células-tronco, terapia genética, neuropróteses e parâmetros para orientar a pesquisa e o tratamento; e (d) Ciência do Cérebro e o Discurso Público, incluindo o desenvolvimento de um discurso público amplo e informado, orientação dos jovens trainees e a promoção da compreensão e da comunicação responsável dos conhecimentos na mídia3 Em um breve panorama das pesquisas conduzidas nos diferentes grupos, pode-se mencionar aquelas nas quais as bases neurais associadas a processos cognitivos e afetivos complexos, tais como: tomada de decisão4, afiliação5, altruísmo6, julgamento moral7, cooperação e competição 8, personalidade9, atribuição de punição 10 entre outros processos foram identificados. Os resultados desses estudos suscitam questões fundamentais sobre a natureza humana, sobre as bases biológicas do comportamento humano, sobre a liberdade e o livre-arbítrio, sobre a definição de responsabilidade moral e legal, sobre o papel da punição retributiva ou utilitarista das transgressões legais, sobre a suposta racionalidade dos processos de tomadas de decisão, sobre o papel das intuições no julgamento moral e não moral entre outras. Muito embora a neurociência esteja identificando as bases neurais associadas aos processos cognitivos, afetivos e ao comportamento humano por meio dos recursos de neuroimagem, é essencial que a sociedade e a comunidade científica não minimizem as influências sociais e culturais às quais o ser humano está submetido. Além disso, é fundamental que o papel do agenciamento humano, isto é, da capacidade do indivíduo de conscientemente operar sobre o mundo, de forma responsável e intencional, não seja desconsiderada11. As questões associadas ao aprimoramento cognitivo têm sido também um dos principais focos da neuroética. Para Illes2, os efeitos do aprimoramento cerebral, isto é, da maximização da capacidade cognitiva de indivíduos saudáveis, por meio da utilização de drogas tipicamente desenvolvidas para o tratamento de pacientes com doenças neuropsiquiátricas e lesões cerebrais desafiam a questão da autenticidade do comportamento. Seria correto, por exemplo, permitir que alunos pudessem utilizar essas drogas para aprimorarem o seu desempenho no vestibular? A competição por essas vagas seria justa? Seria correto exigir que os funcionários de uma empresa utilizassem drogas estimulantes de modo a alcançar um melhor desempenho cognitivo no trabalho? Em decorrência disso, como ERA Ética e Realidade Atual www.era.org.br seria possível garantir que as avaliações de desempenho em contextos organizacionais fossem justas quando alguns de seus colaboradores fazem uso dos estimulantes e outros não? Outra discussão igualmente relevante se refere aos dilemas éticos associados à comunicação do conhecimento neurocientífico e dos diagnósticos baseados nessa área. Quando um paciente tem o direito de saber ou não saber o que revelam as suas imagens cerebrais sobre eles próprios e sobre o seu futuro? Quais seriam as pessoas que poderiam ter conhecimento sobre essas informações? Seria correto permitir que o governo ou os marqueteiros se beneficiassem desse conhecimento para ter acesso às preferências, interesses, personalidade, habilidades e, com isso, manipular a população visando seus próprios interesses? Quais seriam os limites da privacidade da mente humana? Não menos importante estão as precauções necessárias quanto às previsões baseadas nos métodos neurocientíficos no que se refere, por exemplo, às doenças neuropsiquiátricas na ausência de tratamento, ao potencial de recuperação de estados de consciência 12 à possibilidade de comprometimento no desenvolvimento infantil ou, ainda, de detecção de mentiras. O uso indevido dessas informações ou o potencial abuso desse conhecimento comporta sérias implicações, que vão desde a criação de estigmas, a discriminação social, a cobertura de planos de saúde, a inclusão social e laboral entre outros. Essas são somente algumas das indagações provenientes dos atuais avanços neurocientíficos e neurotecnológicos das últimas décadas. A neurociência avançou substancialmente nos últimos anos e o seu potencial de desenvolvimento está muito além do que se possa compreender. O que se sabe hoje é apenas uma amostra do que se poderá conhecer sobre o cérebro e o comportamento humano nos próximos anos. A implantação de chips eletrônicos em lugares específicos do cérebro para o tratamento de epilepsia, doença de Parkinson, transtorno obsessivo-compulsivo, depressão maior entre outras doenças ou, ainda, por meio dos mesmos métodos, a modificação do comportamento anti-social de maneiras terapêuticas são possibilidades reais, que provavelmente serão concretizadas nos próximos anos13. Com isso, intensifica-se a responsabilidade sobre a prevenção do mau uso ou abuso desse conhecimento, o que implica, necessariamente, em uma reflexão exaustiva e urgente sobre as inúmeras questões éticas advindas desses achados, bem como uma compreensão ampla e profunda dos limites e possibilidades das neurotecnologias. Palavras-chave: neurociências, neurotecnologia, neuroética. ERA Ética e Realidade Atual www.era.org.br REFERÊNCIAS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 ERA Bacon, F., Meditationes sacrae. De haeresibus. . (1597). Illes, J. and Bird, S. J., Neuroethics: a modern context for ethics in neuroscience. 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