Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso (PhD) Resumo A proporção de pacientes diabéticos que desenvolvem nefropatia diabética tem aumentado progressivamente nas sociedades ocidentais, chegando a representar de 27% a 44% dos pacientes tratados nos centros de nefrologia. A diálise peritoneal é uma alternativa válida como tratamento renal substitutivo no paciente diabético nefrítico crônico terminal. Entre as vantagens que oferece, encontra-se o fato de ser um método dialítico que propicia maior tolerância hemodinâmica, melhor evolução da retinopatia diabética e do controle da hipertensão arterial, que requer menor quantidade de eritropoetina e que facilita o tratamento do paciente amaurótico, graças a sua alternativa automatizada. Além disso, facilita o controle da glicemia neste grupo de pacientes, podendo se aplicar a insulina tanto por via convencional (subcutânea) quanto por via intraperitoneal. Não é recomendado o uso da diálise peritoneal (contraindicação relativa) em pacientes muito desnutridos, obesos ou portadores d e dislipidemia severa ou de vasculopatia periférica. O paciente diabético em diálise peritoneal pode apresentar as mesmas complicações e na mesma frequência que o paciente não diabético, exceto algumas delas que apresentam maior prevalência em pacientes diabéticos. Neste sentido, vale mencionar (embora a afirmação não seja aceita por todos os autores) a hérnia hiatal e as complicações infecciosas (local de saída, trajeto do cateter peritoneal e peritonite, este último em pacientes que se aplicam insulina por via intraperitoneal). © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso A respeito das principais causas de internação, estas são a peritonite associada à dialise peritoneal, em primeiro lugar, e os eventos cardiovasculares, em segundo lugar, sendo as principais causas de morte neste grupo de pacientes as associadas a questões cardiovasculares e cerebrovasculares. Concluímos que a diálise peritoneal é uma alternativa válida para o tratamento da insuficiência renal crônica terminal (secundária à nefropatia diabética). Introdução A proporção de pacientes diabéticos que desenvolvem nefropatia diabética tem sofrido um aumento progressivo nas sociedades ocidentais, atingindo um número de 27% a 44% no conjunto dos pacientes assistidos em seus centros nefrológicos, sendo que essa proporção depende do país a que pertencem os pacientes. Apesar de os motivos para a indicação da diálise crônica e a técnica do procedimento dialítico peritoneal não diferirem no paciente diabético em comparação com os demais pacientes em diálise, é importante salientar que existem aspectos particulares do paciente diabético que o distinguem verdadeiramente do resto dos pacientes. Esses aspectos (que são precisamente os que serão abordados na presente revisão) são: ● ● ● ● ● Início de tratamento dialítico Potenciais vantagens Potenciais desvantagens Controle de glicemia Miscelânea Início de tratamento dialítico O início da diálise crônica costuma ser recomendada no paciente diabético com insuficiência renal crônica terminal — geralmente quando o valor da sua filtração glomerular é inferior a 15 ml/min/1.73 m2 — antes do que no paciente sem diabetes, © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso em cujo caso a indicação é realizada com uma filtração glomerular inferior a 10 ml/min/1.73 m2. Isto se deve a que o paciente diabético costuma ser muito mais sensível à síndrome urêmica (entre outras razões, pela potencial combinação de neuropatia diabética e urêmica). Além disso, a indicação prematura do tratamento implica uma tentativa de retardar o aparecimento de complicações próprias da diabetes melito que agravam a evolução da neuropatia. Entre elas, vale apontar a insuficiência cardíaca — propiciada pela excessiva retenção hidrossalina —, a desnutrição — facilitada pela dieta pobre em carnes—, a má tolerância à anemia e a marcada diátese hemorrágica. Por causa da lenta cicatrização que os pacientes diabéticos costumam apresentar, é conveniente que a implantação do cateter seja realizada no mínimo três ou quatro semanas antes do início do tratamento dialítico. Este retardamento no processo de cicatrização pode expor os pacientes diabéticos a sofrerem extravasamento do líquido de diálise ou extrusão do cabo externo do cateter em caso de inicio precoce do tratamento. A respeito da opção dialítica peritoneal, esta oferece certas vantagens para o paciente renal crônico em geral, e para o diabético em particular, que justificam seu uso como terapia de início. Entre essas vantagens se encontram: ● A não necessidade de construção de um acesso vascular, precisamente em uma população em que dita construção costuma ser dificultosa devido ao importante comprometimento vascular que os pacientes diabéticos frequentemente apresentam. ● Uma maior preservação da função renal residual nesta modalidade em relação à hemodiálise. Essa vantagem se deve, por um lado, a que a preservação da diurese permite, por meio do uso de diuréticos de alça (por exemplo, furosemida) ou similares à tiazida (por exemplo, metolazona), uma melhor remoção de solutos de moléculas médias, bem como um melhor manejo da sobrecarga hidrossalina, em uma população que é caracterizada por possuir geralmente membranas peritoneais de alta permeabilidade (dificuldade para ultrafiltrar) por “diabetização” da membrana peritoneal, por síndrome nefrótica (secundária à nefropatia diabética) © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso ou por aumento da permeabilidade capilar que propicia a instalação de edemas. Além disso, visto que se considera que 1 ml/min de filtração glomerular residual acrescenta 10 l/semana à depuração total (peritoneal + urinária) semanal, isto permite uma adequação favorável do paciente, ao poder utilizar um volume dialítico menor (com as vantagens que isto acarreta no tocante à redução do número de trocas dialíticas por dia e a uma exposição menor à glicose). Potenciais vantagens da modalidade ● Maior estabilidade hemodinâmica, comparada à instabilidade hemodinâmica que pode causar a hemodiálise dada a necessidade de circulação extracorpórea e a rápida distribuição relativa de eletrólitos entre os compartimentos intracelular e intravascular, sobretudo em uma população sensível a estas mudanças pela alta prevalência de disautonomia vascular, produto da sua neuropatia. ● Melhor evolução da retinopatia diabética a partir do momento em que o procedimento, diferente da hemodiálise, não utiliza heparina (menor risco de hemorragia vítrea), evita mudanças bruscas do volume intravascular (menor risco de isquemia da retina), e ainda oferece a possibilidade de obter um melhor controle da glicemia. ● Geralmente, os pacientes diabéticos em diálise peritoneal (sobretudo os portadores de diabetes melito tipo I) apresentam menor requerimento de eritropoetina do que os pacientes não diabéticos tratados com diálise peritoneal ou hemodiálise, o que é atribuído ao fato destes pacientes possuírem menor índice de resistência ao referido hormônio. ● A hipertensão arterial é uma entidade de prevalência muito alta, tanto no paciente renal crônico em diálise quanto no paciente diabético. A modalidade peritoneal contribui ao controle da tensão arterial nesta população, principalmente no começo do tratamento, quando a diurese residual está conservada. Têm sido postulados como fatores que favorecem a normotensão o caráter contínuo desta © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso modalidade (perda mantida de água e sódio) e a remoção de fatores urêmicos vasoconstritores. ● A presença de uma marcada diminuição da acuidade visual ou sua falta total — amaurose — (secundária à retinopatia diabética) é altamente frequente nos pacientes diabéticos em diálise crônica. A modalidade automatizada de diálise peritoneal, que oferece a oportunidade de realizar uma diálise peritoneal com um número mínimo de conexões diárias, facilita enormemente o trabalho do acompanhante terapêutico para dialisar o paciente. Esta alternativa automatizada é também de extrema utilidade em pacientes que requerem um aumento do volume do líquido peritoneal (melhora na adequação dialítica) ou uma redução da pressão intra-abdominal (mudanças dialíticas com menor volume), por causa da aparição de uma filtração, uma hérnia ou um lumbago. Potenciais desvantagens da modalidade (contraindicações relativas) ● Existe um risco de piora do estado nutricional em pacientes diabéticos tratados com a modalidade peritoneal e que padecem desnutrição. Isto se atribui à perda média de aminoácidos (2.25 g/dia) e de proteínas (8 g/dia) através da drenagem peritoneal, que pode ser ainda maior se a membrana se tornar de alta permeabilidade como consequência da prematura “diabetização” (microangiopatia) que sofre a membrana peritoneal neste grupo de pacientes. Essa situação pode ser uma indicação de uma passagem transitória a hemodiálise até a resolução do estado de desnutrição. Algumas estratégias que podem reduzir o risco de desnutrição são: uma dieta hiperproteica, o uso de suplementos nutricionais, a prescrição de medidas que reduzem a perda proteica peritoneal, bem como um controle ótimo da glicemia e o uso de fármacos tais como os inibidores da enzima conversora de angiotensina ou os antagonistas do receptor de angiotensina II. ● Outras complicações que podem ser observadas nestes pacientes são a piora de uma situação de sobrepeso e a dislipidemia (sobretudo a hipertrigliceridemia, que é © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso atribuída à sobrecarga de glicídios como consequência do uso do banho de diálise peritoneal). Inclusive, diferente do que se tem observado na população hemodi alítica, o controle farmacológico da dislipidemia no paciente em diálise peritoneal melhora sua mortalidade. Por essa razão, tem se proposto diferenciar nominalmente a dislipidemia quando ela se apresentar em situações clínicas cujo prognóstico ou o da sua terapia difira. Assim, poderia se falar em “dislipidemia” (quando for observada esta condição em paciente não diabético em hemodiálise) e em “dislipidemia DP” (quando for diagnosticada em paciente não diabético em diálise peritoneal). ● A doença vascular periférica, frequente na população diabética em diálise, pode piorar sintomaticamente (claudicação intermitente) devido ao aumento da pressão intra-abdominal secundária ao banho de diálise peritoneal, fazendo com que muitas vezes sejam necessárias amputações. Por tal motivo, é muito importante realizar um controle periódico e interdisciplinar (podólogo, cirurgião vascular, traumatologista, diabetologista e nefrologista) do estado dos pés do paciente, a fim de prevenir o pé diabético ou procurar seu tratamento e sua resolução prematuros. ● Uma excessiva ultrafiltração pode acarretar nestes pacientes, portadores de neuropatia, dores neuríticas difíceis de controlar. Controle da glicemia O controle adequado da glicemia nesta população se baseia na combinação harmoniosa dos seguintes fatores: a dieta para diabético, o uso de banhos de diálise adequados, a medicação hipoglicemiante e o seguimento terapêutico acordado por parte do nutricionista, o nefrologista e o diabetologista. Quanto aos banhos de diálise, os menos hipertônicos (ricos em glucose) e mais biocompatíveis (menor formação de AGEs) são os que favorecem um melhor controle da glicemia. Neste sentido, bolsas de diálise especiais a base de icodextrina (indicadas para melhora da ultrafiltração) e de aminoácidos (indicados para melhora da nutrição) © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso contribuem também ao melhor controle glicêmico (evitar os episódios de excessiva hiperglicemia pós-prandial ou hipoglicemia matinal), bem como à redução dos riscos associados ao uso excessivo de glicose: obesidade, dislipidemia, aterogênese e deterioração da membrana peritoneal. A respeito dos medicamentos hipoglicemiantes, não é recomendado em geral o uso de hipoglicemiantes no paciente em diálise, de modo que adquire maior relevância o papel da insulina para o tratamento desta doença. A insulina pode ser administrada por via subcutânea ou por via intraperitoneal. Neste último caso, utiliza-se insulina cristalina, em uma dose maior do que a empregada por via subcutânea (pois se leva em conta a quantidade de insulina que fica nas bolsas e tubos plásticos do equipo de DP, bem como a que é metabolizada pelo fígado e aquela que se perde com o líquido peritoneal drenado). A insulina cristalina é aplicada precisamente antes da infusão peritoneal, fazendo coincidir o horário das trocas peritoneais com o horário das refeições principais. Em caso de administração por via peritoneal, a insulina é absorvida pelo peritônio visceral e chega maioritariamente ao fígado pela circulação portal, embora uma parte chegue através da cápsula hepática. Quando a aplicação é subcutânea, no entanto, sua absorção é condicionada pelo local e pela profundidade da sua injeção, e pelo fluxo sanguíneo local. Apesar destas diferenças, o controle adequado da glicemia pode ser obtido empregando qualquer uma das vias de administração da insulina antes mencionadas. Porém, existem alguns relatórios que tratam da existência de um número maior de peritonites nos pacientes tratados com insulina intraperitoneal (fenômeno não observado por outros autores). Essa incidência maior da peritonite tem sido interpretada como consequência da contaminação da bolsa de diálise na sua manipulação durante a aplicação da insulina. Outras dificuldades inerentes ao uso de insulina intraperitoneal são, por um lado, o efeito negativo sobre o controle dos lipídios séricos (descenso do colesterol HDL e APOA-A-I), e, por outro, a possibilidade de propiciar mudanças nocivas sobre a membrana peritoneal. © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso Por todas essas razões, na nossa unidade de diálise peritoneal empregamos a via subcutânea para a prescrição da insulina, e seguimos o esquema terapêutico sugerido pelo diabetologista do paciente, a quem previamente informamos qual foi o esquema dialítico (aporte dialítico de glicose) prescrito. Durante o monitoramento do tratamento do diabetes melito nestes pacientes, procurase manter os números de hemoglobina glicosilada (HbA1C) em valores não superiores a 8%, e os de frutosamina em até 300 micromois/litro. Em pacientes em tratamento com bolsas que contêm icodextrina, deve haver uma precaução com os controles matinais de glicemia, já que a icodextrina e a maltose derivada dela podem interferir (resultados falsos positivos) com alguns métodos de medição da glicemia, geralmente naqueles que carecem de especificidade. Miscelânea A doença óssea adinâmica (paratormônio baixo) é mais prevalente nos pacientes diabéticos em diálise peritoneal do que em pacientes portadores de outra nefropatia sob a mesma modalidade dialítica. A infusão contínua de cálcio desde a cavidade peritoneal, segundo se acredita, teria um papel importante na aparição deste fenômeno. Nenhuma das complicações que podem ser observadas com frequência na modalidade dialítica peritoneal difere entre os pacientes diabéticos e os não diabéticos, com exceção das que listamos a seguir (mais frequentes no paciente diabético): ● A hérnia de hiato, que junto com a gastroparesia diabética são fatores que incidem na instalação de episódios de náuseas e vómitos, bem como na deterioração nutricional destes pacientes. ● As complicações infecciosas: a infecção do local de saída e do trajeto do cateter peritoneal (germe mais frequente: estafilococo aureus), e o risco © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso de uma taxa de peritonite maior, sobretudo em diabéticos do tipo II (embora seja necessário destacar que este maior risco de infecção não é aceito por todos os autores). ● A taxa de internações é muito mais elevada em pacientes diabéticos (sobretudo diabéticos do tipo II) em diálise crônica (em hemodiálise ou em diálise peritoneal) do que em pacientes não diabéticos em tratamento dialítico. As principais causas de internação são a peritonite associada à dialise peritoneal, em primeiro lugar, e os eventos cardiovasculares, em segundo. ● A sobrevida do paciente diabético em diálise peritoneal costuma ser maior ou igual, segundo os relatórios, do que em hemodiálise, sobretudo em pacientes jovens (menos de 55 anos) e portadores de diabetes melito tipo I, já que os pacientes idosos e diabéticos tipo II são portadores de uma alta comorbilidade, que é, de fato, a responsável pela sua maior mortalidade. As principais causas de morte neste grupo de pacientes são as cardiovasculares e os acidentes cerebrovasculares. Como resultado desta exposição, concluímos que a diálise peritoneal é uma alternativa válida para o tratamento da insuficiência renal crônica terminal secundária à nefropatia diabética. © SLANH –EviMed – 2014 Diálise peritoneal acessível para todos Manejo do paciente diabético em diálise peritoneal Dr. Carlos G. Musso Referências 1. Tejuca Marenco F. La diálisis peritoneal en el paciente diabético. En Coronel F, Montenegro J, Selgas R. (Eds). Manual práctico de diálisis peritoneal. Sociedad Española de Nefrología. Badalona. 2005: 201-209. 2. Musso CG. We need new terms to better explore emergent clinical settings. Cardiovascular Diabetology. 2014; 12: 156. 3. Stavenuiter A, Schilte M, Ter Wee P, Beelen R. Angiogénesis in peritoneal dialysis. Kidney Blood Pressure Research. 2011; 34:245-252. 4. Coronel Diaz F. Diálisis peritoneal en diabéticos. 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