ANTROPOLOGIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS *1Maria A Leonardo RESUMO Este ensaio estuda a dimensão da cultura nas relações internacionais. Considera-se que a cultura é, de fato, importante para as relações internacionais. Ela se deslocou da periferia para o centro dos debates internacionais, a partir dos anos 1990, por meio de Katzenstein (1996), Lapid e Kratochwil (1996), Hudson (1997), Wendt (1987, 1989), Onuf (1989), Huntington (1997), Harrison e Huntington (2002). Já os fundamentos antropológicos da cultura aplicados às relações internacionais apóiam-se nos clássicos da Antropologia – Malinowski, Boas, Benedict, Mead e Levy-Strauss. Seguindo o raciocínio empírico proposto, torna-se possível comprovar os efeitos e a influência da cultura e estabelecer o conceito de Antropologia das Relações Internacionais, como o campo do estudo da cultura no âmbito das relações internacionais. Nesse sentido, apresenta-se a seguinte proposição: A dinâmica da cultura atua sob diferentes aspectos e dimensões em todas as esferas das sociedades internacionais, interagindo como um composto de vários elementos estruturais de base no processo das relações internacionais. Ora a cultura atua como base das relações, ora exerce um papel ou uma função, ora produz um efeito ou impacto, ora expressa influência ou relação, ora delineia dimensão ou configuração de relacionamentos, ora agrega valores e traça caminhos estratégicos, ora determina ou norteia comportamentos específicos na arte de relacionar em nível transnacional. PALAVRAS-CHAVE: Relações Internacionais, Antropologia das Relações Internacionais, Cultura, Antropologia. 1 Dra. Maria A. Leonardo pesquisadora do Instituto Ethnic - Instituto de Pesquisa e Estudos Interculturais – e professora de Antropologia da Faculdade Etnia - Faculdades Integradas Interétcnicas. Doutorado em Antropologia e Pós-doutorado em Comunicação Intercultural. 1 ABSTRACT This essay represents an approach to a Dimension of Culture in International Relations, with the focus on culture and development. Considering that culture matters in international relations, since the culture has been moved from the perimeter towards the centre of international debate by Katzenstein (1996), Lapid e Kratochwil (1996), Hudson (1997), Wendt (1987, 1989), Onuf (1989), Huntington (1997), Harrison e Huntington (2002). The anthropological foundation of culture applied to International Relations is supported in the classics of Anthropology, by Malinowski, Boas, Benedict, Mead and Levy-Strauss. Development and culture are closely linked and influence each other. Following the proposed empirical thought, it is possible to ascertain the effects and influence of culture on development and establish a concept of Anthropology of International Relations as a field of cultural studies with international dimensions. Then to present this proposal that: The dynamics of culture act on different aspects and dimensions in all areas of International Society, interacting with several sets of structural elements in the process of international relations. Sometimes culture acts as a foundation for such relations, or performs a role or function, producing an effect or impact. Culture may influence relations, represent a dimension or configuration of relations, add values, create strategies and establish specific behaviours at the heart of relations at international level. KEY-WORDS: International Relations, Anthropology of International Relations, Culture, Anthropology. 1. INTRODUÇÃO Considera-se aqui que a cultura é, de fato, importante para as relações internacionais, e que os fundamentos antropológicos da cultura estão em ampla interconexão com os assuntos internacionais. O tema da dimensão da cultura nas relações internacionais, além da proposta de ser um referencial para a comunidade científica e acadêmica da antropologia e das relações internacionais, dedica-se a servir como ferramentas e estratégias de aproximação cultural que viabilizem uma melhor utilização da cultura no meio internacional. Dessa maneira, a cultura é tida como chave e parceira para as relações internacionais. Abordar a dimensão da cultura nas relações internacionais é especializar-se em um tema fascinante e rico em valores transnacionais e transculturais. A cultura de um povo abrange os elementos distintivos pelos quais ele refere sua identidade ao conjunto de fatores que a definem: língua, espaço, época, religião, parentesco, ideologia, história. Os reflexos e a influência da cultura entre as nações pousam no campo das relações internacionais – ambiente internacional de tudo aquilo que está relacionado às nações e que ocorre através destas. Políticas, negociações, resolução de conflitos, estratégias, instituições, cooperação, integração, desenvolvimento e fluxos transnacionais possuem diferentes colorações de nação para nação. Dessa forma, o meio internacional é permeado de percepções, memórias, emoções, atitudes, valores, estilos, cultura, imagens e história. O presente ensaio tem como objetivo geral fazer uma análise da dimensão da cultura no âmbito das relações internacionais, identificando os valores culturais relevantes e seus reflexos na relação entre cultura e relações internacionais no contexto internacional. Alguns objetivos específicos são: identificar e analisar quais são os conjuntos de valores culturais que mais influenciam as relações entre países, e seus efeitos como motores ou inibidores para o desenvolvimento; propor uma teoria específica por uma Antropologia das Relações Internacionais. Partindo do pressuposto que a cultura importa na arena das 2 relações internacionais e de que os sistemas de valores definem o desenvolvimento humano, e que a cultura molda o comportamento dos atores internacionais e das relações entre países, as hipóteses estabelecidas por esta investigação científica são: cultura e identidade se relacionam entre si e é por meio desse par cultural que múltiplas identidades partilham do mesmo território, sofrem transformações e enriquecimento de relações, e reconfiguram o espaço social e as relações internacionais; os reflexos da cultura estão presentes no mapa do desenvolvimento e desigualdades internacionais; cultura e desenvolvimento estão intimamente ligados e se influenciam mutuamente; os valores culturais produzem efeitos como motores ou inibidores para o desenvolvimento; a cultura econômica, a educacional, a étnica e a religiosa formam uma forte rede sociocultural de quatro pontas que entrelaçam os seus valores de uma forma muito significativa na relação cultura e desenvolvimento. 2. A ABORDAGEM DA CULTURA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS A contribuição de Snyder, Bruck e Sapin, cujas obras foram publicadas nos anos de 1954 e 1962, para a teoria da dimensão cultural em relações internacionais, deve-se ao fato de abordarem os aspectos comportamentais e valores culturais para análise de política externa, ao explanarem como esses fatores influenciam os atores internacionais nos processos decisórios. Conforme argumentam os SBS, “qualquer esboço conceitual para análise do comportamento do Estado precisa empreender considerar o impacto dos padrões culturais nas decisões” (HUDSON, 2002, apud SBS, p. 5 – tradução nossa). As teorias da abrangência dos fatores culturais entram em cena nas relações internacionais apenas nos anos 1990, por meio de Katzenstein (1996), Lapid e Kratochwil (1996) e Hudson (1997). Mas é o espírito psicocultural de Valerie Hudson que é capaz de capturar em sua essência os efeitos culturais nos assuntos internacionais. Ela explora a importância de explicar e prever o comportamento de coletividades humanas que compreendem a nação-estado. Afirma que a “mente da pessoa envolvida como policemaker de políticas externas contém um complexo e intrigante banco de informações e padrões, como crenças, atitudes, valores, experiências, emoções, concepções de nação e do eu” (Hudson, 1996, p. 217). Hudson explora o fato de que o ponto de intercessão entre as mais importantes determinantes do comportamento não é o Estado, mas os humanos, agentes de decisões. A agência humana ocupa lugar central em sua argumentação, e chama a atenção para o fato de que, em relações internacionais, é preciso desenvolver teorias sobre “como fatores culturais e as construções sociais dentro da cultura afetam o comportamento do estado” (HUDSON, 1996, p. 7). As crenças e valores são pilares sobre os quais a sociedade é edificada, daí a importância do contexto cultural onde o líder está inserido fazer toda diferença em suas decisões e ações. Hudson (2007, p. 6) se opõe à teoria da estrutura, ao resgatar o pressuposto de que Estados não são agentes, pois são abstrações e, desse modo, não podem ser agências. Somente os seres humanos têm condições de ser verdadeiros agentes. Com isso concorda Wendt (1987, p. 338) ao citar que os seres humanos e suas organizações são poderosos atores cujas ações ajudam a reproduzir ou transformar a sociedade na qual vivem. O argumento forte na análise de política externa é que “Somente seres humanos possuem ideias. Apenas seres humanos podem criar ou mudar identidades, e agir baseados em identidades. Somente seres humanos podem ser socializados ou socializarem outros. Apenas seres humanos são agentes em relações internacionais” (Hudson, 2007, p. 10 – tradução nossa). Em seu livro, The World of Our Making (1989), Nicholas Onuf cunhou o conceito de construtivismo. O mundo pós-guerra fria foi o palco da expansão de sua obra. O construtivismo de Onuf vê o mundo como uma construção de nossas mãos. Para Onuf, o 3 construtivismo não é em si uma teoria, mas um método de estudo das relações sociais, e dentre elas as relações internacionais. Em International Relations in a Constructed World, ele afirma que nós fazemos ou construímos o mundo que existe, “a partir de matériasprimas que a natureza providencia, por meio do fazer o que fazemos com cada um, e dizendo o que dizemos para cada um”. Em sua percepção, o construtivismo assegura que pessoas fazem a sociedade, e que a sociedade faz as pessoas. Para estudar esse processo de mão dupla, é necessário introduzir um terceiro elemento, começando justamente no meio entre pessoas e sociedade. O construtivismo é a porta de entrada da agência humana e suas culturas para o campo das relações internacionais. O foco de Wendt (1999) em sua obra Social Theory of International Politics é desenvolver a teoria do sistema internacional como uma construção social. Inicia sua abordagem sobre forte pilar da doutrina do construtivismo: “as estruturas de associação humana são determinadas primariamente por idéias compartilhadas ao invés de forças materiais”. Ele defende que o significado de poder e o conteúdo dos interesses são amplamente em função das ideias; e que o poder é constituído primariamente por ideias e por contextos culturais. Sua tese central é “que o significado de poder e o conteúdo dos interesses são amplamente uma função de ideias” (Wendt, 1999, p. 96). Pela via das ideias, os efeitos do poder, interesses e instituições transitam, pois, a seu ver, o poder é constituído primariamente por ideias e contextos culturais (p. 94). A perspectiva construtivista de Wendt se apóia na lógica de ideias – estrutura, agência e cultura. Identidade e percepção da realidade são conceitos fortes na abordagem de Wendt. O valor das ideias e o comportamento dos atores internacionais ganham expressão muito forte no sistema internacional, espaço em que ocorrem relações e interações entre os atores. É possível identificar as formações culturais a nível sistêmico, onde as idéias compartilhadas fazem normas, instituições, sistemas-ameaças. Dessa forma, conclui-se que os atores interagem e se relacionam no sistema internacional acionados pela mola mestra da cultura. Estados se envolvem em alguns graus de identificação com o bem-estar de outros, e nesse parâmetro é possível pensar em termos de identidade coletiva (p. 104). A cultura verdadeiramente importa, e é “mais do que a soma das ideias que os indivíduos têm em suas mentes”; é um fenômeno público coletivo. “Estruturas de conhecimento coletivo dependem dos atores crerem em alguma coisa que os induz a se engajarem em práticas que reproduzam aquelas estruturas; para sugerir de outra forma seria para transformar a cultura de algo abstrato em concreto, para separá-las como práticas conhecidas por meio das quais são produzidas e reproduzidas” (p. 162). Valerie Hudson argumenta que “o estudo sobre como cultura e identidade afetam a política externa, ainda que somente em anos recentes, tem o potencial de oferecer mais semelhanças para ambos, teoristas e policymakers” (Hudson, 1999, p. 123). Afirma que os “aspectos da identidade nacional não estão cravados em pedra, nem fluem de blocos de pedra. Entretanto, identidade nacional é política, e está sendo moldada e remoldada a cada momento pela sociedade. Discurso e interação dentro de nossa sociedade são geradores de identidade nacional” (Hudson, 2007, p. 105). Ela reúne o conceito de cultura em três grupos: Primeiro, a Cultura como Organização de Significados. Se cultura é um sistema de significados compartilhados, como ela é construída, perpetuada e modificada? De que forma um sistema de significado compartilhado compara outro sistema, e o que são as ramificações de interação entre duas ontologias muito diferentes? A construção ocorre porque os significados são compartilhados mediante expressões interpessoais. Clifford Geertz (1989) a interpreta através da explicação estrutural-funcional. O processo de comparação de significados de fenômenos culturais pode ocorrer via análise das diferenças e semelhanças. 4 Segundo, a Cultura como Preferências de Valores. Essa corrente segue o pensamento de Weber, Parsons e outros, sugerindo que a cultura nos diz o que querer, o que preferir, desejar e valorizar. Almond e Verba (1963) tratam da abordagem dos valores culturais em termos de The Civic culture: political attitudes and democracy in five nations; e um número crescente de autores, especialmente cientistas políticos, tem focado o tema dos valores culturais e feito estudos comparativos de sistemas étnicos. Terceiro, a Cultura como Padrão para Estratégia Humana. Esse grupo defende que os valores expostos pelos membros de uma cultura não são suficientes para explicar o comportamento cultural de seus membros. Asseguram que a variável explanatória mais importante são vantagens de capacidade providas por uma cultura. 3. POR UMA ANTROPOLOGIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Tendo em vista que um dos objetivos específicos desta pesquisa científica é o de propor elementos para uma teoria antropológica das relações internacionais, esta trajetória empírica considera que uma nova confluência de ideias tem levado antropólogos, sociólogos, psicólogos e também economistas, empresários, advogados, agentes sociais e líderes de instituições internacionais a encararem seriamente os diferentes focos culturais na arena, no desenvolvimento e nas negociações internacionais. A antropologia, ciência do estudo do homem por excelência, atravessa os limites da comunidade local para o Sistema Internacional, interagindo na ampla configuração das relações internacionais e expandindose para uma nova esfera: a transnacional e global. A abordagem desta investigação, como foi ressaltado, parte do pressuposto de que a cultura constitui uma importante dimensão no ambiente das relações internacionais. É claramente percebido que um determinado fenômeno, uma demanda, ou disputa podem ter diferentes prismas e valores de acordo com a ótica de diferentes culturas. A Antropologia das Relações Internacionais consiste no estudo da dimensão da cultura no macro ambiente do Sistema Internacional, espaço multifocal, onde ocorre circulação de pessoas, bens, comunicação, movimentos sociais, símbolos, cultura, conflitos e fenômenos considerados globais. Harrison e Huntington (2002), em “A Cultura Importa: os valores que definem o progresso humano”, exploram a argumentação dos efeitos da cultura sobre o desenvolvimento da sociedade e sustentam que praticamente toda diferença está na cultura. Investigam a maneira como “a cultura afeta o grau de progresso que as sociedades alcançam ou deixam de alcançar no desenvolvimento econômico e democratização política”. Dessa forma, a cultura é tida como variável independente ou explicativa, e é pelos autores definida “como os valores, as atitudes, as crenças, as orientações e os pressupostos subjacentes que predominam entre os membros de uma sociedade” (HARRISON, 2002, p. 13). A Antropologia das Relações Internacionais é, sem dúvida, uma nova luz sobre a antropologia contemporânea, sendo a cultura um fator-chave para as negociações e relações no meio internacional. Samuel Huntington (1996), cientista político norteamericano, partilha do pensamento de que a cultura está se posicionando com grande destaque e veemência nos temas internacionais. Valerie Hudson faz uma contribuição para a Antropologia das Relações Internacionais ao levantar a construção da hipótese de que “a cultura afeta o que as nações fazem na arena internacional” (HUDSON, 2007, p. 107). Ampliando a perspectiva antropológica para o campo das relações internacionais, ousa apenas acrescentar o fator internacional na proposição de Ernest Gellner: “A Antropologia é inevitavelmente política: ela invade a política [internacional] em vários aspectos” (GELLNER, 1997, p. 7). Dessa forma, um dos desafios da Antropologia das Relações Internacionais é mapear a dimensão da cultura e enxergar reflexos culturais nas 5 atividades políticas e relações exteriores dos países. A compreensão da dimensão da cultura é uma chave para a qualidade das relações internacionais. Na abordagem de Clifford Geertz, “a política de um país reflete o modelo de sua cultura”. Ao analisar a relação entre política e cultura, ele deixa claro que, nesse campo de interpretação, “cultura são as estruturas de significado através das quais os homens dão forma à sua existência, e a política não são golpes e constituições, mas uma das principais arenas na qual tais estruturas se desenrolam publicamente” (GEERTZ, 1989, p. 135). O autor caminha um pouco mais ao afirmar que “Os processos políticos de todos os países são mais amplos e profundos do que as instituições formais destinadas a regulamentá-los” (GEERTZ, 1989, p. 138). Para ele, as importantes decisões para a nação não são tomadas nos gabinetes governamentais, e sim de acordo com a mente coletiva. Nesse mesmo foco, Valerie Hudson desenvolve a sua argumentação sobre o peso da subjetividade nas tomadas de decisões. Segundo Gonçalves (1997), “a antropologia procura apoio em instrumentos conceituais que relevam da história, da sociologia, da psicologia, entre outras ciências” (GONÇALVES, 1997, p. 17). Dos interstícios das fronteiras da antropologia com as ciências humanas e sociais, resultaram vários campos de estudos antropológicos, dentre elas, a antropologia psicológica, a social, a cultural e a política. Desde a evolução destes outros campos de estudos, é perfeitamente coerente emergir uma antropologia internacionalista associando os conhecimentos da antropologia cultural aos das relações internacionais, tendo o objeto de explorar a dimensão da cultura nas relações internacionais. Os vetores constitutivos dessa antropologia consistem em analisar e explicar as interrelações que os ligam, de modo a evidenciar a especificidade da cultura no meio internacional. Na perspectiva de Gonçalves, “as fronteiras entre as diversas ciências humanas são fluidas: variam segundo as fases do desenvolvimento de cada uma delas e segundo as preocupações dominantes, a partir das quais cada ciência se define num dado momento histórico [...] cada disciplina contribui para o desenvolvimento das outras, sob a forma de dados e conceitos, abrindo-lhes novas perspectivas” (GONÇALVES, 1997, p. 27). O fato é que as fronteiras globais evoluíram e, sob essa nova perspectiva, política internacional e antropologia aplicada às relações internacionais se interagem para a compreensão dos atores internacionais numa percepção globalizante da agência humana e de seus sistemas de valores culturais. Gonçalves pontua a perspectiva interpretativa, indisciplinar e plural própria da antropologia visando interpretar as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. Devido a essas características, ressalta-se a integração da perspectiva social aos fatos sociais, da cultural aos fenômenos culturais, da psicológica aos viés do comportamento dos atores, e da internacional desde a projeção do local ao global. A antropologia, enquanto ciência autônoma, sob a futurologia de Malinowski (1962), enxergava uma antropologia que fosse capaz de oferecer conhecimentos e interagir com um grande leque de ciências. Para ele, a antropologia era vista como um “amálgama de instituições”. Ajuntando as peças do conhecimento, o funcionalismo de Malinowski, o estruturalismo de Levy-Strauss, o culturalismo de Boas, o configuracionismo de Benedict são conhecimentos científicos da cultura e da sociedade, presentes como pilares para a Sociedade Internacional. As relações internacionais são campo das ciências sociais de cunho internacional. As teorias e leis sociais de relacionamentos internacionais passam pela dimensão do cultural, do social e do psicológico. Temos aqui, no campo conceitual das relações internacionais, outra esfera de compreensão do pensamento antropológico que se aplica à compreensão dos atores internacionais na sociedade internacional, sendo que as relações internacionais seguem os contornos do social, do psicológico e do cultural. De acordo com Valerie Hudson, a partir da perspectiva da agência humana, somente seres humanos são agentes em relações internacionais. 6 George Marcus (1998) discorre, em Ethnography through Thick & Thin, sobre a emergência de pesquisas de campo multissituada ou multilocal, tendo foco não apenas no local, mas na ampla dimensão do Sistema Internacional. Mayall (1993) pontua que estados-nação, membros da Sociedade Internacional, possuem localização geográfica, fronteiras definidas, população estabelecida, identidade social e instituições políticas. O mesmo, porém, não acontece no Sistema Internacional. O “sistema” não possui essas mesmas propriedades, pois se refere a relacionamentos e comportamentos que emanam dos atores internacionais, que são estados-sistemas. “Política” internacional seria o termo ideal para descrever esse novo relacionamento entre estados-sistemas. A natureza fluida de muitos fenômenos escapa das mãos do local para o global, e, nessa perspectiva, grandes temas de escopo internacional merecem uma investigação multissituada em vários locais simultaneamente. A lente paradigmática do thick enxerga o macro ambiente pela teoria racional, na qual as relações processadas no Sistema Mundial são sistêmicas com ação a partir da estrutura com macro interdependências. Contudo, o mundo contemporâneo se desloca do thick para o thin, da ação centrada na estrutura para o poder da agência, do macro para o micro. Os eventos atravessam fronteiras mundiais de forma fluida, simultânea, interdependente e veloz. Nesse espaço de mudanças, a antropologia contemporânea lança mão das pesquisas de campo multilocalizadas para interpretar os fenômenos culturais em contextos internacionais. A linguagem de Marcus (1998) é uma etnografia multilocalizada no Sistema Mundial, ao passo que a de Leonardo (2008) é uma pesquisa de campo de natureza etnológica baseada em métodos interpretativos e comparativos de análise das diversas variáveis da cultura na Sociedade Internacional. Para Marcus (1998), a etnografia interessada em espaços multilocalizados investiga o homem e sua cultura no Sistema Mundial, onde ocorre “fluxo de pessoas”, “fluxo de coisas”, “fluxo de metáforas, enredo, história, alegorismo”, e comportamento de atores internacionais. Vale situar a argumentação de Marcus sobre o espaço da Etnografia Through Thick & Thin produzida do início da década de 1990 até a publicação de sua obra em 1998. Nessa conjuntura de borbulhar de novas perspectivas, ele procurava esticar os campos da antropologia para a dimensão do mundial e do internacional. “Pode haver pouca dúvida que a antropologia cultural neste país [Estados Unidos] está em estado de transição de maiores proporções” (MARCUS, 1998, p. 231). Essa transição estica a etnografia local para a multilocalizada, para novos padrões de pesquisa e transformações na carreira de antropólogos. Nessa mesma década, os teóricos das Relações Internacionais trouxeram o mundo da cultura para o campo de RI. As teorias de maior abrangência dos fatores culturais entram em cena nas relações internacionais nos anos 1990, por meio de Wendt (1987, 1989), Onuf (1989), Katzenstein (1996), Lapid e Kratochwil (1996), Hudson (1995, 1996, 1997, 2000). 4. TRAZENDO À EXISTÊNCIA UMA ANTROPOLOGIA INTERNACIONALISTA Esta investigação científica associa-se aos objetivos de Samuel Huntington e Lawrence Harrison em “desenvolver as teorias, elaborar os preceitos e fomentar os vínculos entre estudiosos e praticantes que promoverão as condições culturais que aumentam o progresso humano” (HARRISON, 2002, p. 15); e aos objetivos de George E. Marcus (1998) em estender a dimensão da pesquisa antropológica para o Sistema Internacional. Neste raciocínio empírico, torna-se possível estabelecer o conceito de Antropologia das Relações Internacionais, como o campo do estudo da cultura no âmbito das relações internacionais (LEONARDO, 2008, p. 38). Essa Antropologia das Relações Internacionais consiste no estudo interpretativo e comparativo das diferentes culturas no ambiente da 7 Sociedade Internacional, do comportamento dos atores internacionais e dos fluxos transnacionais. Considera, ainda, o esboço de seu domínio, os aspectos contemporâneos da globalização e as possíveis interconexões das culturas. Essa antropologia esboça um paradigma cultural para as teorias de relações internacionais e um paradigma internacional para a antropologia sob a ótica do par cultural-internacional. Trata-se da proposição de uma antropologia internacionalista no sentido de compreender a antropologia do ponto de vista internacional, bem como entender o internacionalismo do ponto de vista antropológico (cultural). Essa antropologia pós-moderna, no mundo globalizado, é social, cultural e, sobretudo, internacional. Uma reflexão sobre a antropologia em sua particularidade internacionalista considera a dimensão da cultura desde o local ao global, no mundo de comportamentos e relações na sociedade internacional, e apresenta a seguinte proposição: A dinâmica da cultura atua sob diferentes aspectos e dimensões em todas as esferas das sociedades internacionais, interagindo como um composto de vários elementos estruturais de base no processo das relações internacionais. Ora a cultura atua como base das relações, ora exerce um papel ou uma função, ora produz um efeito ou impacto, ora expressa influência ou relação, ora delineia dimensão ou configuração de relacionamentos, ora agrega valores e traça caminhos estratégicos, e ora determina ou norteia comportamentos específicos na arte de relacionar em nível transcultural e transnacional. (LEONARDO, 2008, p. 38). A interdisciplinalidade das relações internacionais permite uma junção de várias ciências, dentre elas, a antropologia que, mediante essa confluência de aplicabilidade, torna possível desenhar a subárea da Antropologia das Relações Internacionais. A proposta de uma teoria específica sobre a Antropologia das Relações Internacionais se apóia no fato de que a cultura produz reflexos e exerce influência (positiva ou negativa) nas relações internacionais, negociações e desenvolvimento internacionais, diplomacia, poder, gestão de conflitos, assuntos estratégicos, fluxos e cooperação internacional. Métodos antropológicos de análise, interpretação das culturas e interpretação de valores culturais podem e devem ser aplicados em programas de pesquisas que explorem essa rica interconexão entre a cultura e os temas das relações internacionais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pressupõe-se que a cultura é, de fato, importante para as relações internacionais, e que, seguramente, os fundamentos antropológicos da cultura encontram-se em ampla interconexão com os assuntos internacionais. Essa dimensão da cultura é real, e coube a esta investigação científica o devido reconhecimento da relevância do tema e a comprovação desse fenômeno. A cultura desempenha um papel cada vez mais importante e dinâmico na conjuntura internacional contemporânea. Projeta-se, nesta consideração final, o espectro da primeira abordagem feita por Snyder, Brucks e Sapin: “qualquer esboço conceitual para análise do comportamento do Estado precisa empreender em considerar o impacto dos padrões culturais nas decisões”, aliado à afirmação de Huntington sobre a análise da política mundial: “atualmente no mundo pós-guerra fria as mais importantes distinções entre os povos não são as ideológicas, políticas ou econômicas, são de natureza cultural”. Cultura e relações internacionais estão intimamente ligados e se influenciam mutuamente. A cultura – essa lente paradigmática – é um importantíssimo instrumento de abordagem para os estudos das relações internacionais contemporâneas, visto que o mundo 8 da globalização trouxe The universe next door de cada nação para dentro da realidade de nosso dia a dia. Reconhece-se o fato do paradigma cultural ser uma importante abordagem antropológica da cultura, de dimensão transcultural e transnacional no mundo das relações internacionais. O cenário internacional é, enfim, palco de forte expressão cultural. O horizonte antropológico dessa antropologia internacionalista recebeu contornos teóricos e interpretativos que tornou possível o diálogo entre antropologia e relações internacionais. Maria Leonardo, Doutora em Antropologia Pós-doutorado em Comunicação Intercultural Doutora em Antropologia da Religão ( Etnoteologia) Mestrado em Relações Internacionais, PUC Minas Mestrado em Teologia Prática (Psicologia Social Aplicada às Relações Interpessoais) Bacharel em Teologia, com especialização em Missiologia Bacharel em Química, com especialização em Tecnologia de Alimentos pela Universidade de Itaúna Pós-graduação em Nutrição e Saúde pela Universidade Federal de Lavras Pós-graduação em Administração de Empresas e Gestão do Terceiro Setor Pós-graduação em Antropologia Cultural e Desenvolvimento Social Pós-graduação em Psicologia Social Áreas de Especialização Antropológica: Antropologia Cultural, Etnoteologia, Antropologia da Religião, Antropologia das Relações Internacionais, Antropologia das Relações Interétnicas, Antropologia da Alimentação, Antropologia das Emoçoes, Antropologia Empresarial Nome em citações bibliográficas: LEONARDO, Maria. E-mail: [email protected] _________________________________________________________________________ BIBLIOGRAFIA ALMOND, Gabriel Abraham: VERBA, Sidney. The civic culture: political attitudes and democracy in five nations. Boston: Little, Brown, 1965. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989. GERNER, Deborah J. The Evolution of the Study of Foreign Policy. In: Foreign Policy Analysis: continuity and change in its second generation. New Jersey: Prentice Hall, 1995, pp.17-32. GELLNER, Ernest. Antropologia e Política: Revoluções no Bosque Sagrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. GONÇALVES, A. Custódio. Questões de Antropologia Social e Cultural. 2. ed. Porto, Portugal: Edições Afrontamento, 1997. 9 HARRISON, Lawrence E.; HUNTINGTON, Samuel P. A Cultura Importa. Rio de Janeiro: Record, 2002. 460p. HUDSON, Valerie M. Foreign Policy Analysis: classic and contemporary theory. Lanham, Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 2007. 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